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terça-feira, 26 de junho de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (13 – Filosofia da Arte)

Olá!


Na época em que estava no fim do ginasial*, era hábito entre os filhos de peão, como eu, procurar os cursos técnicos integrados, para estudar à noite e já se destinar a um emprego. Para ingressar em uma delas, era preciso fazer um vestibulinho, sendo que algumas das vagas eram tão concorridas quanto aquelas dos vestibulares de “gente grande”. A maioria era oferecida pelo governo, como a Federal e as ETE’s, mas também havia acesso gratuito provido pela iniciativa privada, como as bolsas oferecidas pela excelência no concurso, por empresas como a Antárctica e seu prestigiado curso de Química, o SENAI, e o Liceu de Artes e Ofícios. Deste último, muito antigo, veio-me uma curiosidade. Sua grade falava em Edificações, Mecânica de Motores, Eletrotécnica... todos ofícios, na minha jovial concepção, mas nada das tais artes.

Perguntei a quem sabia: meu compadre e seus amigos, já versados nessas coisas de secundarismo. Entre compungidos e sarcásticos, explicaram a mim que, em termos industriais, não havia muita diferença entre artes e ofícios, e que eu, safra nova, ainda aprenderia melhor essas sutilezas. E eles tinham razão. O termo latino ars significa habilidade em produzir artefatos, da mesma forma que a palavra grega techné, e isso não se circunscreve, como se pode notar, unicamente ao campo de objetos desprovidos de utilidade ou destinados ao enlevo. Mas essa designação mais ampla do léxico se perde quando imputamos aspectos estéticos à sua produção, e a Arte passa a ser algo distinto. Ou não? O que é essa tal de Arte? Essa é a pergunta primordial da Filosofia da Arte.


Oportunamente já tratei de estabelecer distinção entre Filosofia da Arte e 
Estética, muito comumente confundidas. É que o objeto de ambas é semelhante, porque se imbricam – de uma forma ou de outra, ambas buscam o conhecimento sensível, além do fato de que a Arte trafega pelo âmbito da Estética mesmo. Mas há distinções que precisam ficar realmente claras.

Talvez pudéssemos ter dificuldades para incluir a Arte como uma fonte de conhecimento. Mas o fato é que arte e cultura são inapartáveis, e isso as tornam ferramentas intercambiáveis para o conhecimento de uma e outra. Não se explica a cultura de um determinado povo sem olhar para a maneira como pratica suas manifestações artísticas, e nem se entende a arte de uma determinada comunidade sem que se entenda seu desenho cultural. A produção artística da Idade Média, por exemplo, era quase toda destinada à Religião. Isso é um indicativo imprescindível de um determinado contexto cultural: por um lado, uma religiosidade espraiada por um meio onde não haviam alternativas nas dificuldades a não ser esperar a piedade divina. Há guerra? Que Deus nos ampare. Há doença? Que Deus nos proteja. Há fome? Que Deus nos sustente. Além disso, é uma prova de que a divindade possui um estatuto tão elevado naquela cultura que é necessário envidar os esforços mais preciosos para se referenciar a ela, e sabemos o quanto a arte medieval é grandiosa, tanto na construção de igrejas quanto em seu adorno. Mais ainda: a arte daquela época demonstra onde residia o poder e o quanto ele era magnificente, com o empenho de recursos quase ilimitados para a produção de pompa e circunstância. Isso denota, de uma só vez, o sentimento de desamparo e submissão, a reverência e a noção das relações de poder, política inclusa.

Isso tudo acontece porque, apesar da noção inicial que temos de Arte como portadora de beleza, o fato é que ela é muito mais do que isso, e, por isso mesmo, independente da mera apreciação estética. A Arte é um duto por onde se propagam e comunicam-se ideias, que, naturalmente, não carregam consigo apenas o ideal estético do belo, mas toda sorte de expressões de sentimentos. Muitas vezes os discursos lógicos e bem construídos dos acadêmicos são menos eficazes para expressar costumes e tradições de uma sociedade do que os modos como se constroem as narrativas contidas nas expressões artísticas.

Sabem por quê? A arte é uma autêntica ferramenta da liberdade, e é só nesse âmbito que é possível dar vazão total àquilo que se quer e que se pensa. É a síntese do pensamento inalcançável pelas demais pretensões ao conhecimento. Vejam como as Ciências precisam se balizar por provas, por contraprovas, por experimentos bem sucedidos ou fracassados, por anos e anos de observação e por um empirismo quase doentio. É verdade que provê a melhor estrutura possível para se aproximar da realidade, mas é preciso toda uma instrumentalização ao seu redor, que tolhe muito do que nos é cabível pensar. Já a Filosofia possui um grau de liberdade maior, porque sua pauta é a especulação e a lógica, cadarços mais laceados para os sapatos no caminho da criatividade, mas ainda assim cadarços. A Religião, por sua vez, tem uma posição contraditória. É livre para criar seus mitos e configurá-los de modo a explicar o mundo sem provas e até mesmo sem lógica, mas uma vez fechado seu escopo, torna-se inamovível, em um jogo dicotômico de certo ou errado tão exacerbado que toda expressão nova fica do lado de fora (às vezes, no inferno). 

Com a Arte não acontece nada disso. Ela cria, ela imita, ela interpreta, cria a imitação, imita a interpretação, interpreta a criação. Ela representa e dá voz, através de suas técnicas, a todo o espectro do que pensa o artista e sua sociedade, do trivial ao catártico, e do apolíneo ao dionisíaco, sem limites materiais, já que ela é canto, é poesia, é dança, é expressão. Às vezes, expressão em forma pura, como acontece com a música e com a dança, que se valem só da beleza para existir, e não da funcionalidade da arquitetura, da plasticidade da pintura e da escultura, da narrativa da literatura, do teatro e do cinema.

Pois bem. Já chegamos à conclusão de como arte e cultura se imiscuem. Por tabela, isso nos carrega à ideia de que a arte é atividade tipicamente humana, porque ela, para o ser, precisa ser intencional. Meus canários, por exemplo, me acordam todo dia de maneira sincronizada. O mais velho dá o sinal para os demais, como se fosse o regente, e sai de cena. Um deles tem o tal canto-campainha, rapidíssimo e linear, bastante longo e persistente, e outro tem um canto mais costurado, com alternância entre graves e agudos, em um desenho melódico mais complexo. Parece que um faz a base e outro o solo, e é lindíssimo, gerando uma impressão estética muito marcante. Estética, sim; artística, não. Não é arte. É parte da natureza dos bichinhos, que concorrem entre si pelas fêmeas, no viveiro ali do lado, e não pelo julgamento estético que possamos eventualmente fazer. O mesmo se aplica à casa do joão-de-barro, ao balé dos pavões e à performance dos golfinhos. Não buscam uma intenção estética para sua atividade, como faz o homem. Desta forma, a Arte tem um permanente viés antropológico, sempre dizendo alguma coisa, em primeira instância, do artista que a produz e, em segundo plano, da sociedade que o molda e que por ele é moldada.

É claro que esta concepção de Arte não foi sempre igual e também não é unívoca. Da mesma forma como já falei neste texto, há uma certa arenga entre aqueles que acham que basta a aplicação do talento para que qualquer coisa possa ganhar qualificativos artísticos e aqueles que depuram um desinteresse utilitário na sua produção, uma espécie de carregar do lema “a arte só se justifica pela arte”. Portanto, a discussão está no pote: ele é arte como um todo ou a arte está só nos seus mosaicos e craquelados? O pote foi fabricado pelo artista ou pelo artífice? É arte ou é ofício? O artesanato pode ser arte? Se víssemos as coisas no tempo dos gregos antigos, veríamos que a Arte está no próprio ato da produção do artefato. É a sinonímia entre artes e ofícios que citei lá no comecinho. Só que sua transformação conceitual foi se dando à medida que o apuro no plano estético se tornava mais relevante que seu propósito prático. É como se sua beleza fosse mais significativa que sua utilidade. Desse progressivo afastamento é que foi nascendo essa ideia de arte pela arte. Que, diga-se, não é impassível de críticas. E de gente cascuda. Platão, por exemplo, não via a Arte como demonstração do talento, mas de afastamento da realidade. Em seu cosmos dual, o conhecimento verdadeiro estava instalado no mundo das ideias, e o mundo perceptível pelos sentidos eram suas cópias imperfeitas, contingentes e acidentais. Sendo para Platão a arte uma imitação, ela não seria mais que uma cópia da cópia, ainda mais imperfeita e distante da realidade atingível pelo intelecto. Seria a réplica de uma concreção produzida com os desvios dos sentidos de um artista, o que é plenamente indesejável para a obtenção de conhecimento seguro. O que Platão talvez não considerasse é a capacidade do artista de produzir uma visão já depurada, e às vezes mais clara, de uma relação cognitiva com um objeto, ou seja, da arte vista como interpretação, e não como imitação.

É bem o caso da ficção. Na concepção platônica, ela é mentira e pronto. Já seu discípulo e sucedâneo Aristóteles percebe a mancada e a importância que tem a tragédia baseada na Mitologia, capaz de produzir a catarse, como procurei espelhar neste texto. Não há uma realidade necessária no mito; a realidade está no efeito catártico, que purifica a alma dos audientes pela situação trágica construída e vivenciada pelo herói, um ser imaginário.

E é exatamente no jogo de interpretação e reconstrução de realidades que está o grande conhecimento possível de ser produzido pela Arte. Peguemos o livro Crônica de uma Morte Anunciada, do genial Gabriel Garcia Márquez. Uma obra pequena, para ser lida em poucas horas, consegue nos dar uma visão clara sobre um tema universal: as sobreposições de versões dos fatos e a perspectiva pessoal. Um compêndio de Psicologia, preso às restrições científicas, tem muito mais dificuldade de pôr a claro a questão do subjetivismo na interpretação dos fatos, movidos não só por questões concretas, mas também pelo desejo de vingança, pela indiferença, pelo rigor moral, ou seja, por sentimentos que não têm como fugir do individual. Cada maneira de ver os propósitos e desfechos são particulares. O mestre em Psicologia teria um trabalho de anos; Gabo, em cento e poucas páginas, com acesso a mais gente e mais saboroso de se ler. Falta-lhe o rigor científico, mas a função da Arte é outra: a sua verdade está em revelar uma fórmula de pensamento, que é a verdade daquele indivíduo, daquela situação e daquela comunidade, e não um conhecimento testável.

É claro que muito da magia da relação artística está no polo de quem a absorve. A arte não para unicamente no artista, ela é fruída por alguém. Como eu falei neste texto, há uma espécie de experiência cultural no momento em que alguém é colocado diante da obra de arte e lhe tira proveito ou não. No instante em que se contempla desinteressadamente o artefato artístico é que essa interação cognitiva pode acontecer. E, sim, aqui entra muito da visão pessoal e da carga educacional que uma pessoa possui. É óbvio que alguém que possua em seu arcabouço toda a obra de Shakespeare bem absorvida dificilmente vai se impressionar com Harry Potter. Mas não há nenhuma regra fechada nisso. É perfeitamente possível que uma leitura mais leve traga exatamente o que a pessoa quer: uma experiência simples de prazer. Ainda que haja quem queira estabelecer cagação de regras cânones para diferenciar o que é ou não é arte, o fato é que nada é mais antidogmático do que esta atividade humana. Ao artista cabe dizer o que é a obra, como pensa o filósofo Wollheim, e cabe a nós concordar ou não, guiados pelo nosso conhecimento e pelo nosso juízo de gosto. Afinal, há quem goste de alecrim e há quem deteste. Há quem goste do perfume do alecrim e odeie o sabor (eu). Nisso também reside a liberdade artística: estar perante a obra e ter a prerrogativa do escrutínio.

Gostar ou não gostar modifica em alguma coisa a obra de arte? Não posso ter nas mãos um bastão com o qual eu determine se algo é arte ou não, baseado simplesmente em minhas preferências. O que eu posso fazer é dizer se gosto ou não de uma determinada peça, ou até mesmo fazer um juízo comparativo, apreciando mais uma do que outra, mas dogma e liberdade não combinam, e é preciso tirar o autoritarismo da contemplação estética.

Recomendações:

Conforme citei no corpo deste texto, segue a indicação do livro do velho Gabo, um dos meus autores favoritos.

MARQUEZ, Gabriel G. Crônica de uma Morte Anunciada. São Paulo: Record, 1981.

Vou recomendar também um canal muito bom do YouTube. Trata-se do Vivieuvi, da Vivian Villanova, que traz notícias do mundo artístico e discute muitas questões afeitas à Filosofia da Arte, em um ambiente eivado de cultura, como deve mesmo ser a Arte.

https://www.youtube.com/channel/UCxIruXzvzmLkaH-a-QGnnKQ

* Ginasial era o modo como se chamava o atual Fundamental II. Já Colegial é o atual Ensino Médio.

terça-feira, 19 de junho de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (12 – Filosofia da História)

Olá!


Gostamos de histórias. Gostamos de contá-las e de ouvi-las, principalmente quando o narrador coloca toda a sua vivacidade a serviço do colorido na exposição dos fatos, sejam eles verídicos ou nem tanto, como os “causos” do pessoal do interior ou as pantomimas de avós e de madrinhas. Eu tinha uma tia que era especialmente hábil neste mister, a tia Antônia, espanhola de nascimento, e que contava coisas de além-mar com tal destreza que a audiência mal piscava durante as sessões. É evidente que, ainda que a base seja real, muitos dos detalhes mais barrocos vinham do âmbito do legendário e do mítico. Como diria Camus, “a verdade, como a luz, cega. A mentira, ao contrário, é um belo crepúsculo que valoriza cada objeto”. É claro que se trata de um rigor excessivo para quem deseja apenas apreciar um bom conto nos dias frios em que falta energia elétrica, mas é necessário crer que o existencialista franco-argelino (de quem já falei neste espaço) estivesse se referindo unicamente à verdade como correspondência ao mundo que nos cerca, e não com vieses artísticos da oratória de bons velhinhos. E é nessa toada que precisamos olhar para a Filosofia da História, o estudo crítico de como é construída a rememoração de nossos tempos.


Uma das perguntas iniciais que fazemos quando olhamos filosoficamente para a História fatalmente se dirige aos seus propósitos. Para que serve estudar a História? É uma pergunta que pode obter resposta um tanto pragmática, já que poderíamos ter o condão de dar uma resposta tão sentimental quanto inútil: muita gente acha relevante que saibamos de onde viemos e como fomos formados, mas também tem muita gente que pensa que isso não quer dizer muita coisa. O que passou, passou. Não é verdade.

Vamos aproveitar a Tia Antônia. Ela nos dizia que, quando chegou ao Brasil, era costume dos trabalhadores da indústria têxtil, na sua maioria estrangeiros, passear pela cidade nas horas livres, a fim de conhecê-la um pouco melhor. Um dos lugares mais bonitos era o bairro dos Campos Elíseos, nome chupado do Champs-Élysées francês, que, por sua vez, já tinha sido importado da mitologia grega, o lugar de honra para onde os homens virtuosos eram encaminhados após sua morte, uma espécie de paraíso. Região absolutamente central*, era um bairro tomado pelos casarões dos antigos barões do café, com destaque para a sede do governo do Estado (hoje abrigando o SEBRAE) e para o Liceu Coração de Jesus. De lá, a vetusta parenta nos contava que, pelos largos passeios, era possível observar a elite com sua criadagem, os poucos automotores disponíveis, o cheiro das azaleias nos jardins, os guardas civis que ladeavam os prédios oficiais. Contava também das moçoilas de vestidos rendados e ancas de arame, que soltavam seus lenços para chamar a atenção de afetados príncipes encantados, mas aqui já começa o blá-blá-blá. Era, enfim, um local de enlevo, propício aos sonhos de gente que vinha de tão longe e que tinha tão pouco.

Transpondo a mesma região para os nossos dias, quem passa desavisadamente pela sua via principal, a avenida Rio Branco, provavelmente terá uma sensação de que ainda temos um bairro ao menos razoável, mas é nas travessas que a coisa acontece. E tudo se deu por conta da vizinha Luz. Acompanhem o raciocínio.

A Luz era um bairro quase tão bom quanto os Campos Elíseos. Menos luxuoso, mas bem equipado com a famosa estação, o jardim, a pinacoteca, não havia muito do que reclamar. Um belo dia, aparece o colosso do mau planejamento público: a Rodoviária. A princípio, a ideia não parecia de todo ruim. Construída entre as estações de trem da Luz e Júlio Prestes, teria por objetivo ser um ponto focal para a interligação entre os meios de transportes. Acontece que colocar a única rodoviária do maior aglomerado urbano da América Latina bem no centro da cidade foi uma enorme estupidez. O trânsito se tornou insuportável já no começo de seu funcionamento, e as antigas residências foram substituídas por rede hoteleira miúda, destinada principalmente para pernoites. Além disso, expandiu-se a quantidade de bares, restaurantes e pequeno comércio principalmente para dar suporte aos passageiros que faziam uso do terminal, mudando completamente o perfil ocupacional da região.

Toda ideia de jerico acaba mal, como bem sabemos. A Rodoviária da Luz durou joviais 21 anos, por motivos que deveriam ser óbvios, mas que só foram sentidos na prática após o bairro e seu entorno serem desfigurados. E aí temos a emenda pior do que o soneto. A sua desativação foi feita de maneira atabalhoada e com ainda menos planejamento que sua construção. O terminal simplesmente foi transferido para a Marginal Tietê, e toda a estrutura comercial que lá se estabeleceu foi abandonada à própria sorte, sem que houvesse a substituição por outro modelo urbano. O resultado foi a falência de inúmeros estabelecimentos, a transformação de outros em puteiros, com o abandono dos imóveis e sua ocupação pelo tráfico de drogas. Com o advento do crack, a partir da primeira década do século XXI a região teve um aumento absurdo de usuários, no que ficou conhecido como Cracolândia, uma verdadeira 25 de Março do narcotráfico. Sua “capital” é a rua Helvétia, ligação direta entre a estação Júlio Prestes e o antigo Palácio dos Campos Elíseos. A Tia Antônia certamente não reconheceria mais sua região de passeio, que hoje nos dá a mais clara ideia do que seria um apocalipse zumbi. Talvez, se fosse muito atenta, perceberia aqui e ali uns vestígios das antigas residências, e ficaria estupefata. Mesmo que suas histórias não fossem de príncipes, mas de demônios, dificilmente conseguiria chegar ao nível do que a realidade se transformou.

É para isso que serve a História: para que entendamos o que deu certo e o que deu errado. Este é seu objetivo prático. Mas a Filosofia a olha mais profundamente do que isso. Seria possível existir alguma forma de lógica nos rumos dos acontecimentos? A História tem um fio condutor? Estamos fadados a nunca termos uma antevisão do futuro ou condenados a repetições eternas?

Há algumas concepções de História que a veem como uma longa sequência de fatos sucessivos, inéditos e irrepetíveis, que apontam linearmente para o futuro, como se fosse um vetor. O Positivismo, por exemplo, vê o rumo da humanidade como um caminho que parte da visão supersticiosa da Religião, baseada quase que exclusivamente em mitos e lendas, para a noção positiva, que coloca no lugar dos altares a primazia da Ciência, desprovida de misticismo e de visões fugidias ao metódico e ao sistemático.

Outras concepções enxergam a História como a repetição indefinida de ciclos, como estabelece a alegoria do eterno retorno de Nietszche, muito embora os ciclos sejam entendidos não em seu sentido estrito, mas em sua estrutura. Para tanto, basta que se pense na sucessão dos dias e dos anos. Em si, eles são ciclos infinitos – eternamente o Sol nasce e se põe, a lua e as estrelas surgem no céu e lá ficam até um novo despontar; o tempo esfria, as noites ficam mais longas, até que lentamente os dias comecem a aquecer progressivamente, quando chegará o ápice do verão, e volta a temperatura a se amainar, as folhas a cair e novamente, e novamente, e novamente... Essa estrutura cíclica dá a intuição de que tudo é circular, ainda que os fatos em si, vistos isoladamente, sejam inéditos. Ciclos de guerra e paz, de miséria e prosperidade, de avanço e estabilidade parecem pavimentar a rota por onde a História caminha.

Temos ainda um terceiro ponto de vista de desenvolvimento histórico, que é o vai-e-vem do movimento dialético. Cada fato na realidade carrega consigo sua própria contradição e ruma para ela, até chegar ao ponto de síntese, que elabora um novo fato na realidade, com uma nova contradição e assim sucessivamente. Se a História é a narrativa da realidade, também nela se plasma essa mesma estrutura. Desta forma, a mecânica dialética, tanto hegeliana quanto marxista, é linear e cíclica ao mesmo tempo, porque trabalha com acontecimentos irrecitáveis que se guiam sempre no mesmo delineamento sucessivo.

Pensamos até agora no desenho que a História percorre, mas, para que isso aconteça, já é preciso que ela não seja algo estanque. O que faz com que a História se mova? No final das contas, há algum propósito em estarmos aqui, deixando nossos passos nas areias das ampulhetas? Somos seres teleológicos?

Há um confronto mais ou menos moderno na própria concepção de História a partir do momento em que marcos como o Renascimento e o Iluminismo reforçam a posição humanista de independência com relação às divindades. Até então, a noção de “motor da História” sequer existia, porque ela não fazia sentido. Os fatos se sucediam através da concreção da vontade divina, que era interpretada por filósofos e teólogos, mas extremamente simples: um plano divino, que caberia desvendar, sem grandes possibilidades de contestação. Mas a coisa muda de figura com o advento do novo humanismo. Como já vimos, Hegel percebe a linha histórica como um movimento dialético, ainda transcendental, mas já não propriamente divino, o que não é mais o bastante para explicar como ela se desloca. A percepção dialética é a posteriori; o que vem antes? Aprioristicamente, o mestre alemão entende que a humanidade possui um “espírito”, que, diferentemente da ideia de uma deidade, não é algo físico ou transcendental, mas uma espécie de predisposição em se ser o que se é, com variações de acordo com o espaço (volksgeist) e com o tempo (zeitgeist). O exemplo que eu mais uso é o seguinte: o Geist é como se fosse um ethos, ainda que não seja exatamente a mesma coisa. O brasileiro é o rei do jeitinho: dadas suas limitações patrimoniais, improvisa com gatos e gambiarras, tem uma língua de veludo de dar inveja e toda agenda já embute quinze minutos de atraso. Esse é o “jeitão” do brasileiro, uma espécie de espírito coletivo, é seu volksgeist. Também temos aquilo que chamamos de “tempos bicudos”: contingências climáticas, estados de tensão bélica e outras coisas conduzem a uma condição generalizada de prevenção, de restrição e de pessimismo, que vão se espelhar nas artes, na religião, na filosofia, nas vontades e nas atitudes das pessoas. Esse é o zeitgeist, o espírito do tempo, dinâmico, influenciador do e influenciado pelo volksgeist. Essa variação no tempo e no espaço tende a procurar uma estabilidade, onde os espíritos nacionais se unifiquem. É o que Hegel chama de Espírito Absoluto, a razão concreta, uma espécie de estágio final das transformações históricas, onde não haverá motivos para a busca de uma nova síntese. Esse Geist é que “puxa” a História.

Como eu já falei anteriormente, Karl Marx vê o movimento dialético hegeliano como correto no sentido de processo histórico, mas discorda frontalmente com seu motor. Nada de espírito disso ou daquilo, o que temos é o cosmos em que vivemos e que podemos experienciar. O que toca as transições entre tese e antítese está nas condições materiais com as quais a humanidade convive, e é a guerra pelo poder, sintetizada na luta de classes, que faz a roda da História girar. Vejamos.

Marx não acredita em transcendências, Geist incluso. Para ele, todo o espectro de uma sociedade pode ser dividido em classes, que são definidas de acordo com o seu acesso a meios materiais. Esse alcance definiria todas as características dessas classes: como se alimentam, como se educam, como pensam, como vivem. Enquanto permeados por uma ideologia dominante, as classes de uma sociedade se mantêm mais ou menos estáveis, até que a consciência coletiva de um determinado estrato se vê incomodada com a disparidade de acesso com a qual se vive, e passa a lutar contra a classe dominante. Notem como já aí é possível enxergar a estrutura dialética da realidade. Segundo Marx, toda a História pode ser explicada a partir da perspectiva da luta de classes. A insatisfação gera o conflito, que descamba para o confronto, que pode ou não gerar uma nova classe dominante, com novas classes oprimidas, que novamente gerarão conflitos, e via discorrendo. Ainda que do conflito não brote uma nova classe, a situação mantida também preserva a realidade e a sua contradição: continua havendo quem domine e quem é submetido. Diferentemente do Espírito Absoluto, para Marx a estabilização histórica viria com a implantação do Comunismo, que teria por objetivo a extinção das classes sociais e o consequente “desligamento” do motor de transformações históricas.

Tudo isso dá uma certa impressão de “destino”, que os pensadores contemporâneos costumam rejeitar. Por outro lado, há linhas de pensamento que afirmam existir um propósito para que a História seja como ela é. A Filosofia Medieval, por exemplo, afirma aos quatro ventos que a teleologia humana se explica em Deus, unidade de força universal, inclusive histórica. Também na metafísica aristotélica é possível visionar teleologia, ao compor na descrição das essências a causa final, inerente a todos os seres. O problema está em uma visão mecanicista, que obriga a causa e desvia a observação. Pensadores hodiernos entendem que a História deve ser estudada sob o prisma científico, com metodologia própria, ou seja, o fato deve ser analisado pelo que dele pode ser observado, sem que se tente buscar um objetivo para além deles. Evidentemente, há coisas que são criadas para determinados propósitos, mas, ao imputar finalidade ao próprio processo histórico, faz-se um exercício mais de adivinhação do que propriamente de previsão. Este se desenrola empiricamente: quando se juntar A com B, ter-se-á C, e pronto.

Por fim, há a questão do recorte dos tempos históricos, que se inicia pelo registro, que não é determinado somente, mas principalmente pela escrita. As eras são estabelecidas por marcos, o que é bom didaticamente, mas que costuma distorcer a visão que temos dos processos de transformação. Além disso, as divisões históricas são absolutamente eurocêntricas, mas fazer o quê? É a cultura dominante até hoje, e não cabe discuti-la neste momento (ainda que seja discutível e que possamos fazê-lo em alguma hora adequada).

A tradição dos marcos históricos, apesar das críticas, tem sua razão de ser. De fato, são compostos por situações onde tanto os acontecimentos anteriores se desenrolaram para construí-las quanto os posteriores foram moldados decisivamente por eles. Por exemplo: a tomada de Constantinopla pelos turcos, marco inaugural da Idade Moderna, não aconteceu como um meteoro que cai durante a noite. Há vários fatores concorrentes, como o enfraquecimento do Império Bizantino, os desencontros causados pelo cisma da Igreja Católica e as progressivas conquistas das invasões otomanas. Mas a importância do marco se dá pelas suas consequências. Visto isoladamente, seria uma tomada de um território entre outras, mas é a partir dela que se iniciam as Grandes Navegações, que, a princípio, objetivavam dar acesso à Ásia por vias marítimas, contornando o bloqueio da passagem terrestre. Caso não ocorresse esse evento, é impossível saber quanto tempo levaria para se saber da existência da América.

A essa tendência de viés positivista, a principal oposição se deu através da École des Annales, movimento de historiadores franceses do século XX que se propôs a rever essa concepção compartimentada, unida por sucessão de fatos como uma fieira e as contas de um rosário, onde a única diferença está no tamanho de algumas delas, e passam a encarar o tempo histórico como a urdidura de um tecido. Para tanto, desenvolvem a ideia de extensão dos tempos. Um fato participa tanto do breve tempo de um momento específico, quanto do tempo médio que forma um contexto, quanto do tempo longo que impulsiona o mundo a uma determinada direção, o que lhe dá uma certa tridimensionalidade. Além disso, os Annales cuidam de aproximar a visão histórica de um momento específico à sua devida conjuntura. Como vimos neste texto, é um descuido frequente levar valores atuais para a visualização de acontecimentos pretéritos, o que faz com que a sua descrição se distorça e a historiografia deixe de cumprir seu papel.

No fundo, no fundo, a Filosofia da História, assim como a Filosofia da Ciência, é uma derivação da Epistemologia, a área da Filosofia que estuda a possibilidade de conhecermos com segurança (se isso possível for). Ficamos por aqui porque já andamos muito. Bons ventos a todos.

Recomendação:

A História como narrativa é algo sensacional, tanto que eu tinha grandes dúvidas sobre cursar Filosofia ou História, mas o que vem pelo pano de fundo é algo realmente meio árido. Para tirar algumas dúvidas, sugiro o canal e o blog do Icles Rodrigues, o Leitura ObrigaHistória.

https://leituraobrigahistoria.wordpress.com/

https://www.youtube.com/channel/UCtMjnvODdK1Gwy8psW3dzrg

* Eu moro a 100 metros do marco zero de São Paulo. Se eu for a pé até os Campos Elíseos, demoro algo em torno de 20 minutos.

sábado, 9 de junho de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (11 – Filosofia da Ciência)

Olá!


Encerrada a primeira etapa desta série, onde tratei daqueles campos mais básicos da Filosofia, vou começar agora a falar de áreas derivadas, ou seja, que pressupõe a existência de alguma base anterior e que esteja mais próxima de sua aplicação no dia-a-dia, mostrando o que há por trás de uma série de conhecimentos humanos. Vamos principiar falando sobre a Filosofia da Ciência, filhote direta da Teoria do Conhecimento, e, mais especificamente, da Epistemologia.



Bem, qual seria a diferença entre a própria Ciência e uma filosofia dedicada a ela? Ao cabo do presente texto, seremos capazes de dar essa resposta, mas, sempre recordando o que é a própria Filosofia, é a pergunta que nós lançamos sobre os fundamentos últimos das próprias coisas. Portanto, a Filosofia da Ciência tem o escopo de determinar quais os tipos de conhecimentos podem ser enquadrados como científicos. E, para isso, precisamos fazer a pergunta basilar: o que é a Ciência?

Sempre que pensamos em um cientista, temos na mente profissionais de jalecos brancos, com instrumentos sofisticados, enfiados em laboratórios e observatórios, rodeados de anotações. Essa é uma visão estereotipada, é bem verdade, mas serve para notar o quanto a experimentação é importante nesse meio. Isso não ocorre porque os cientistas são malucões, mas porque a investigação empírica é premissa fundamental da Ciência, e explico por que.

Quando falei sobre a Lógica como ferramenta do conhecimento, dei o exemplo da construção de inferências através da articulação de proposições, conhecidas como silogismos. É um processo de aquisição cognitiva conhecido como dedução, que parece excelente, mas que não nos fornece grande coisa. Querem ver?

A dedução parte de uma proposição universal para apontar para uma proposição particular, de forma que sua conclusão será verdadeira se as premissas forem verdadeiras. Ora, conhecimento seguro é uma coisa muito boa, mas o problema é que essa dinâmica não nos traz novidades. Vamos no clássico dos clássicos do silogismo:

Todo homem é mortal
Sócrates é homem
Logo, Sócrates é mortal

Vejam bem. Sem grandes interpretações, podemos perceber a plena validade dos argumentos acima. Só que ele tem um defeitinho. A premissa maior já contém a premissa menor, ou seja, o universal já contém o particular. Quando falamos que todo homem é mortal, já incluímos automaticamente Sócrates nessa assertiva, já que ele é homem. Deduzimos algo que já está implicitamente no universal, e isso não é acréscimo de conhecimento, mas uma simples evidenciação.

Ciência é uma palavra latina que significa algo como “aquilo que se sabe”, ou, em um neologismo que pensei aqui, é uma “sabência”. Ora, para eu saber o que são as coisas e os fenômenos, preciso entender suas essências e funcionamentos mais profundos, e, para isso, preciso obter conhecimentos novos, e como a concretização do objeto está no plano particular, é para essa instância que preciso observar. Uma vez conseguindo dados novos, busco extrair deles uma regularidade e, subsequentemente, uma proposição que se aplique a todos os casos semelhantes. Em suma, eu parto do particular rumo ao universal, um processo inverso ao da dedução, e tenho a indução, a grande ferramenta da Ciência.

Ao contrário da dedução, a indução nunca parte do raciocínio puro, mas da observação, em especial de fenômenos que se repetem com alguma habitualidade. Não é a estrutura do argumento que garante a sua validade, mas a quantidade de indícios que dão consistência ao que se afirma. Aliás, as proposições asseveradas por induções têm uma característica importante: elas nunca são 100% fiáveis, porque um só indício que contradiga uma série de argumentos é suficiente para desmontá-los por completo. É clássica a construção de Hume: sabemos que o Sol vai nascer no dia seguinte porque desde os inícios dos tempos ele vem nascendo; no entanto, basta um único dia que o sol não desponte para invalidar toda a lógica deste argumento. Portanto, a indução nos fala de probabilidade, e não de certeza.

Até mesmo por conta desta insegurança, a indução não pode se calcar em um mero exercício mental, mas em rigorosas anotações, onde todas as variáveis possíveis são relacionadas e testadas, formando uma metodologia própria. Além disso, filosoficamente a Ciência é aberta, com cada experimento sendo devidamente divulgado e disponibilizado à crítica de quem discordar de seus resultados, ou para ser utilizado como base para novas hipóteses e experimentos (já descrevi um pouco como funciona esse processo). É dessa forma que o pensamento científico se torna patrimônio da espécie humana, embora nem sempre seja possível ser neutro e altruísta como seria desejável.

Vou fazer uma narrativa que mistura ficção factual e realidade geográfica para deixar as coisas mais claras. Conforme já andei contando por aqui e por ali, sou nascido na Mooca, um dos bairros mais tradicionais da Pauliceia. Diferentemente dos bairros mais modernos, compostos por meia dúzia de ruas, a Mooca tinha uma extensão territorial formidável, com o agravante de ser dividida ao meio pela linha de trem, que funciona até hoje. Isso significa, neste caso, que morar no mesmo bairro não equivale a morar perto. Tanto minha parte da família quanto o Zio Chico e primas éramos mooquenses, só que eu era mais dos confins, próximo à Vila Prudente, e eles moravam al di là da linha de ferro, na Mooca Baixa, três casas para lá do campo do Juventus. Isso é um bocado longe, uns 40 minutos a pé, mas tinha uma gambiarra para o caminho ficar mais rápido: atravessar o muro da ferrovia, cheio de buracos, passar pelos trilhos e ladeá-los pela avenida das fábricas até a antiga porteira, perto da Antarctica, o que constituía uma reta só. Hoje em dia é absolutamente contraindicado cumprir esse roteiro, mas a quase quarenta anos atrás não havia grandes sustos, mesmo sendo eu um pouco mais que uma criança.

Essa transposição dos trilhos era algo habitual, e eu nada teria percebido se não fosse um costume esculachado: ficar girando a chave de casa nos dedos, pelo aro do chaveiro. Uma vez, fazendo isso enquanto saía do matagal para saltar os trilhos, a chave voa do meu dedo e se aloja em um vão entre dois deles. Abaixo para pegá-la e continuo minha caminhada normalmente. Algum tempo depois, temos a exata repetição da cena, com uma diferença primordial: a chave ficou encalacrada na junta dos trilhos, muito mais estreita do que outrora, e deu trabalho de tirá-la de lá antes que o trem a esmigalhasse. Desse dia em diante, passei a notar a fenda entre os trilhos todas as vezes que os cruzava, e percebi que elas variavam de tamanho. Ora mais largas, ora mais estreitas, ainda que no mesmo ponto; percebi também que essa variação acompanhava a dança das temperaturas, aumentando em dias frios, diminuindo em dias quentes.

Para aumentar minha intriga, observei também que o linhão elétrico ficava mais esticado em dias frios e mais bambo em dias quentes. Pus os piolhos para pensar: não se trata dos trilhos que ficam mais próximos, mas maiores; nem dos postes que se ajuntam, mas dos cabos que ficam mais longos. Sendo que ambos os fenômenos ocorrem nos dias mais quentes, chego à brilhante conclusão de que o calor dilata os corpos!!!

A empolgação perante a descoberta me faz contá-la para Deus e para o Diabo na terra do sol. Alguns fingiam surpresa, indulgentes; outros nem ligavam, dizendo “uhum”; mais alguns faziam cara de desdém, como se perguntassem se minha próxima descoberta seria o odor das fezes; havia até quem duvidasse e perguntasse como eu havia chegado a tal conclusão.

No dia seguinte, de muito sol, acordei cedo e fui procurar porcarias por aí, para corroborar melhor minha teoria, não sem antes encher uma garrafa daquelas de água mineral e colocá-la no congelador, para fazer os resfriamentos necessários. Peguei um parafuso que entrava justinho em uma porca e o aqueci, para em seguida não conseguir rosqueá-lo mais. Ponto para a ideia. Consegui um pino que saía facilmente de sua dobradiça; aqueci-o e ele não saía mais. Mais um gol. Cada pequeno experimento confirmava tudo aquilo que eu havia previsto: que todo corpo se dilataria com o calor. Faltava fazer os testes inversos – esfriar os corpos para detectar seu encolhimento e, para isso, fui buscar minha garrafa d’água gelada. Acontece que eu me distraí tanto com os meus afazeres científicos que acabou passando um tempão. Quando fui retirar a garrafa, ela estava trucidada pela água que congelou em seu interior.

Cocei a cabeça. Se a água que estava na garrafa congelou, deveria ter condensado. Caso a garrafa fosse de vidro, poderia pensar que havia quebrado justamente pela sua variação de tamanho, fragilizada por uma eventual e impercebida rachadura. Mas não. A garrafa era de plástico, fininha, e é visível que arrebentou por que o volume em seu interior se expandiu, já que não há blocos de gelo externos que denunciem vazamentos. Conclusão: apesar de submetida a congelamento, a água AUMENTOU de tamanho, contrariando tudo o que eu havia até então observado e deixando minha tese mais destruída que a própria garrafinha*.

O que podemos extrair dessa fábula onde não há bicho que fale? Que, de maneira quase infantil, está exposto todo o método científico. Vamos conferir.

Quando eu tive o acidente com a chave, fiz uma constatação direta do mundo que me cerca e a problematizei. Todo o processo científico (e mesmo filosófico) começa com uma pergunta, e é sobre ela que vamos nos debruçar. E aqui começam as observações, como os trilhos afastados e os fios arqueados, a coleção de dados que vai fazer parte do arcabouço informacional que levará à construção da hipótese. A hipótese nasce, portanto, do processo indutivo, ou melhor dizendo, a indução gera a hipótese. Um fenômeno qualquer acontece uma vez, duas vezes, três vezes, várias vezes, até se perceber que ele se repetirá todas as vezes em que o fenômeno se der. No meu caso, a hipótese é de que todas as vezes em que eu aquecer um material qualquer, ele se expandirá em alguma medida. Por que montei essa hipótese? Porque o fato se repetiu sempre que o observei e me induziu a uma suposta regra geral.

A indução permite que se façam previsões. Não só os objetos constatados se dilataram mediante o calor, mas qualquer outro sofrerá o mesmo processo se submetido às mesmas condições. Por isso mesmo, é preciso que todos os passos que utilizei na minha experiência sejam bem descritos, já que o conhecimento da técnica não pode ficar adstrito à minha pessoa: é preciso que os desconfiados possam fazer o mesmo e obter seus próprios resultados. É o que fiz quando tagarelei o meu achado pelos quatro cantos, dando a oportunidade de que alguém jogasse água no meu chopp.

Por fim, é imprescindível que as minhas conclusões tenham algum ponto em que elas sejam provadas falsas. É um aperfeiçoamento do processo de repetibilidade, já que este só busca o que é igual. A falseabilidade caça o que é diferente. Portanto, se eu afirmo que os corpos se dilatam com o calor, há duas maneiras de falsear minha hipótese: pesquisar algum corpo que não se expanda, ou encontrar um material que se expanda com a refrigeração, o exato oposto da minha declaração hipotética. Foi exatamente o que aconteceu.

Um problema, uma indução, uma hipótese, uma experimentação, uma conclusão com sua divulgação e repetibilidade, uma previsibilidade e um falseamento. Esse é o método científico aceito pela academia a nível mundial nos dias de hoje. Se eu suprimir qualquer um desses passos, NÃO TEMOS CIÊNCIA. É algo muito simples de entender, mas que gera muita resistência.

De fato, como já falei neste texto, a Ciência parece arrogante, mas não é o caso. Muita gente pensa que o processo científico dá um estatuto de verdade irrefutável às conclusões científicas, mas o que acontece é exatamente o oposto. A obrigatoriedade do princípio de falseabilidade existe justamente para remover a possibilidade de um saber absoluto, tão afeito às religiões, mas um conhecimento em permanente atualização. As pseudociências brotam no exato momento em que uma explicação esotérica retira a falseabilidade, conforme já discuti aqui e aqui. Se eu acrescentasse uma chicana, do tipo “há uma radiação indetectável que muda o sinal da expansão ou da condensação”, tirarei a verificabilidade e consequente falseabilidade da hipótese, tirando-a do campo científico.

Lamento frustrar a todos, mas a Ciência é conhecimento seguro, forte, consolidado, embasado; mas, no que tange à sua essência, e dentro do que permite seu pia-máter (a indução), é sempre e somente provável, nunca definitivo. Por isso mesmo precisa fazer o reconhecimento filosófico de sua transitoriedade. Se não for assim, não é Ciência, é dogmatismo.

É só isso. Uma Ciência é um conjunto de procedimentos que passa pelo crivo do método científico. Se não atende a todos os critérios, não há porque dizer não se tratar de conhecimento, mas sem a segurança que a Ciência propõe. Há até mesmo dificuldades em se enquadrar confortavelmente as Ciências Humanas no método científico, porque as hipóteses nascem de induções menos tangíveis e mais sujeitas a variações imprevisíveis, mas isso somente aumenta o número de refutações, e não a sua cientificidade. Obviamente, as Ciências Naturais, embora altamente complexas, fogem do fator humano, o que lhe dá um pouco mais de estabilidade.

E isso é a base da Filosofia da Ciência: dar compreensão do que é essa atividade humana, explicar porque seu método funciona da maneira como funciona e qual seu papel e limites. E, nos dias de hoje, deixar claro o que é e o que não é propriamente científico, sem as confusões que costumam ser feitas. Às vezes de propósito.

Recomendações:

Vou fazer duas remissões hoje. A primeira é ao ótimo livro de Rubem Alves, cujo objeto é exatamente o tema deste texto:

ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência. Introdução ao jogo e as suas regras. São Paulo: Loyola, 1999.

A outra é o bom canal do Pedro Loos, chamado “Ciência Todo Dia”, que tem uma pegada semelhante à do meu blog, de achar no quotidiano onde estão as grandes questões da Ciência e acabamos nem percebendo. Recomendo fortemente.

https://www.youtube.com/CienciaTodoDia

* A água se expande quando congelada por conta do arranjo sui generis de suas moléculas, que tem a forma de cristais. Normalmente, o estado sólido faz com que o perímetro de vibração dos átomos seja menor, porque eles estão mais “juntinhos”. O formato dos cristais do gelo impede essa aproximação. Pior ainda: faz com que o espaço intermolecular se amplie.

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (10 - Metafilosofia)

Olá!

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Quando falamos em Filosofia, temos em mente um termo um tanto genérico. Podemos pensar em coisas como "filosofia de vida", que indicam objetivos a serem perseguidos por uma pessoa qualquer, podemos achar que são os sistemas de relacionamentos que fazem com que as diferentes partes das corporações trabalhem em sincronia ou podemos fazer a grave confusão com a auto-ajuda. Todos esses usos são feitos de maneira permissiva, ainda que impropriamente, porque passam uma impressão inicial de "parar para pensar", que, no final das contas, está mesmo no substrato do pensamento filosófico. Portanto, passons, o negócio é tolerar para o bem do convívio. No entanto, Filosofia com "F" maiúsculo, feita a sério, não se faz a esmo, sem um mínimo de critério. Não se trata de praticar uma falácia do escocês de verdade, mas de defender uma diferença entre o uso próprio e o uso comum da palavra.

Isso porque não há uma prática da Filosofia que não olhe a si mesma como uma busca autêntica de conhecimento. Quando nossos petizes criam galos na cabeça, não estamos praticando medicina quando damos beijinhos sobre tais intumescências. Pelo contrário, fá-lo-emos se aplicarmos uma compressa sobre a lesão. Quando plantamos um vasinho de uma planta aleatória, não praticamos ecologia, mas fá-lo-emos se não comprarmos espécies em extinção. Da mesma forma, quando dizemos que pensar positivo é o segredo do sucesso não estamos praticando filosofia, mas fá-lo-emos se nos questionarmos o que é o sucesso e se ele pode ser considerado essencial à existência humana. Deu para perceber a diferença?

É justamente para que se defina o que é uma pergunta filosófica, quais são os critérios de pesquisa necessários para se estabelecerem hipóteses dignas de análise, para que se investigue o funcionamento da própria Filosofia é que nasceu a Metafilosofia, ou, em termos mais coloquiais, a Filosofia da Filosofia.



A coisa é mais ou menos assim: um mecânico hábil tem a capacidade de juntar adequadamente as peças e fazer um motor funcionar, para o gáudio do motorista inconsolável. Pode até mesmo compreender o funcionamento de tudo, sabendo com exatidão a necessidade de cada componente no conjunto. Mas é só compreendendo a totalidade de forças que atuam no ato motor, entendendo a dureza e a tenacidade dos materiais empregados, calculando giros, torques e pressões e analisando erros de projetos, fadiga dos materiais e excessos de atritos que o profissional poderá dar o salto de qualidade, melhorando a máquina. Discernir sobre isso e produzir motores melhores transformam o mecânico em engenheiro. Com a Filosofia é por aí. É preciso entender o funcionamento do conhecimento e da lógica para tratar do tema.

No fundo, é a velha questão de separar o que é conhecimento de achismo. É certo que a Filosofia possui uma ação mais livre do que a Ciência, que precisa de experimentos e provas para cumprir seu método, mas isso não significa que basta especular para filosofar. Isso é opinião, e não conhecimento. Para que a doxa se torne logos, é preciso que passe pelo crivo da lógica, sua exigência mínima. Sistemas filosóficos complexos e completos, como os de Aristóteles, Kant e Hegel foram consolidados sem provas, mas com muita coerência interna, mesmo que tenham sido várias e várias vezes refutados, já que, em Filosofia, não existem conclusões cabais.

Quando eu estava na faculdade, tinha uma disciplina que eu considerava brochante: Metodologia de Pesquisa Científica. Formatações, margens, parágrafos, bibliografia, abstracts, NBR, ABNT, isso, aquilo e o outro. Uma cagação de regras insuportável, com a necessidade de fontes a cada centímetro. Eu, louco para pôr minhas ideias e ideais no papel e o mestre perguntando: De onde você tirou essa concepção? Qual autor? Por que esse, e não aquele? Você não acha que o escopo está muito aberto? Qual obra? Qual página? Qual edição? Qual coleção? Qual tradução? Ao final das contas, não sei se convencido ou doutrinado, comecei a ser mais criterioso com essa questão de fontes. Como, modéstia à parte, comecei a ter alguns artiguinhos publicados, dois colegas de serviço me pediram para apreciar seus TCC's de especialização na área de Informática. Meu Deus, que merda completa (com todo respeito)... Um festival de informações colhidas ao léu, sem um plano diretivo, na sua maioria de buscas na internet, sem qualquer critério e lá colocadas apenas porque pareciam boas (parece aquela música do Língua de Trapo, que dizia que "esse coral não era prá ter, a gente pôs porque ficou legal"). Após um diálogo razoavelmente agressivo, forma meio torta de amizade que inclui mães e sexualidade, aceitei o desafio de fazer uma orientação informal, e a conclusão acabou sendo minimamente satisfatória, com a aprovação dos trabalhos. Mas a verdadeira satisfação foi concluir que eu peguei o espírito da coisa. Não dá para sair escrevendo com a pena solta e chamar aquilo de produção de conhecimento. É isso o que os seguidores de certos pretensos filósofos não entendem ao defender seu guru: ainda que uma ideia seja boa e inovadora, ela precisa ter um mínimo de base.

Mas, até aí, o método de pesquisa é comum a todas as disciplinas, já que qualquer trabalho digno de publicação precisa segui-lo. O diabo é que, em Filosofia, há uma segunda metodologia a ser seguida e declarada, que não se reduz aos ditames burocráticos da norma ou à profusa descrição das fontes. Foi o que nos foi ensinado em uma disciplina a parte, chamada de Metodologia da Pesquisa Filosófica, que cuida da abordagem com a qual tomamos o objeto da investigação. A pergunta guia para determinar qual método deveremos utilizar (além da evidente preferência pessoal) é a seguinte: "o que eu quero extrair desse objeto?". A resposta determinará o melhor caminho a seguir. Quero estudá-lo em si mesmo? Quero encaixá-lo no mundo que o rodeia? Quero entender o seu contexto histórico e social? Quero abordá-lo o mais cientificamente possível? Vamos dar um rápido passeio nas diferentes escolas metodológicas.

Poderíamos começar a falar em métodos filosóficos já a partir do velho Tales, que trocou a confabulação legendária por uma concepção racional dos elementos constituintes do cosmos, mas é preciso localizar os rudimentos mais formais para não nos perder em prolongadas caceteações. E que rudimentos!

Francis Bacon lança o método experimental, que vai dar base a toda filosofia de raiz empírica, e René Descartes fornece a dúvida hiperbólica, matriz de todo o seu método de verificação em quatro passos, que já esmiucei em minha teoria do gomo da mexerica, mas o fato é que, hodiernamente, os critérios e procedimentos de ambos já estão sobejamente abarcados pelas metodologias científicas consagradas. Dessa forma, é preciso dar uma olhadinha no que se aplica na pesquisa atual na academia.

Comecemos pela Fenomenologia, de quem já falei neste texto. Husserl, seu codificador, dava ênfase na posição do observador, que, através da intencionalidade de sua consciência, já voltava seu olhar para um objeto com a contaminação de uma carga de cultura. Quando analiso um pavão, por exemplo, tenho uma série de componentes simbólicos que são associados a ele, começando pelo próprio substantivo que o designa. A palavra "pavão" é desenvolvida em uma linguagem, um ato puramente cultural, e, no meu caso, em língua portuguesa. Além disso, há outras cargas que lhe são associadas, como a sua beleza natural, a utilização de suas penas em ornatos e adereços, seu rito reprodutivo, o fato de ser um dos grupos do jogo do bicho e etc. E há mais: pensamos na cultura como um todo, mas há, além disso, preferências e convicções pessoais de quem realiza a pesquisa, além de um arcabouço intelectual que varia de pesquisador para pesquisador. Dessa forma, dificilmente não há algum grau de atravessamento no modo como se observa o objeto. Na abordagem fenomenológica, tudo isso representa "cascas" que impedem a análise em profundidade do objeto pavão. A tarefa de pesquisa é fazer com que essas cascas culturais sejam removidas, na medida do possível, para que o pavãozinho seja apresentado puro à consciência. É um método interessante quando o objetivo de pesquisa for ontológico.

Outro método trilha o caminho oposto. É a Hermenêutica de Gadamer, sobre a qual também já me pronunciei. Nesta sistemática, as interveniências culturais que procuramos descartar na Fenomenologia são amplamente aproveitadas, porque o objetivo da Hermenêutica, mais do que explicar, é interpretar. Aqui, não se busca mais o isolamento do objeto. Tudo o que estiver colocado ao seu redor e que, de uma forma ou de outra ajuda a contextualizá-lo, deverá ser levado em conta pelo pesquisador. Um dos grandes cuidados da Hermenêutica está no campo da significação, ou seja, aquele pavão do exemplo precisa ser visto mais pelo seu aspecto simbólico do que concreto - interpretá-lo abstratamente e em articulação com os demais signos sociais: o que significa um pavão solto em um parque, o que representa suas penas no traje da passista, o que indica certas adaptações como o verbo "pavonear". Deve ser utilizado quando o aspecto linguístico for muito relevante na pesquisa, ou quando se queira discutir um contexto mais holístico e menos dirigido.

Temos também o método do Positivismo de Comte, também já campeado por estas plagas. O Positivismo é uma doutrina filosófica que floresceu na medida em que o pensamento empírico foi ganhando mais e mais primazia com relação ao racionalismo, principalmente por conta da visibilidade de seus resultados. Os avanços científicos obtidos a partir do século XVIII começaram a dar um estatuto de panaceia universal às ideias científicas, o que fez com que todo o conhecimento válido viesse revestido desse aspecto. No esteio dessa tendência, surgiram novas ciências, que antes ficavam adstritas à seara filosófica, como a Sociologia e a Antropologia. Dessa forma, o método positivista procura transformar todas as disciplinas filosóficas em Ciências, trazendo, tanto quanto possível, toda a especulação para o campo experimental, retirando seus aspectos metafísicos. É um método mais adequado no nascedouro de novas hipóteses científicas, onde poderão ser previstos meios empíricos para mensuração e investigação, mais ou menos como descrevi neste post.

Outra metodologia de pesquisa filosófica é a Dialética, antiquíssima, já utilizada por Sócrates e Platão, mas que, delineada como sistema, surge com Hegel, e também dela já deixei meus pitacos. Para nosso caro e complexo alemão, toda a realidade se encontra em permanente movimento, e há uma lógica que lhe dá rumo: um fenômeno qualquer já carrega em si mesmo sua própria contradição, e é na rota dela que o histórico do fenômeno se movimenta. No entanto, no meio do caminho entre essas posições antitéticas se encontra a síntese, que não tem aqui o significado de resumo mas, na verdade, uma espécie de meio-termo que dá origem a um novo fenômeno, e a outro, e outro, e outro, em um ciclo de repetições estruturais infinito, com cada ciclo enriquecendo o anterior. No que consiste esse método? Em analisar onde está cada um dos polos e detectar onde eles se sintetizam. Dessa forma, é possível descrever os processos de transformação de realidade.

Uma derivação bastante famosa da Dialética hegeliana é o Materialismo Histórico Dialético de Marx (tá aqui). O mais recente demônio que aterroriza almas e patrimônios deve ter percebido que a dinâmica por trás do movimento dialético era efetivamente um espelho da realidade, incluindo as oposições tese-antítese. O problema estava no motor dessas mudanças. Para Hegel, havia um tal de zeitgeist, o Espírito do Tempo, que fazia um polo se deslocar para o outro como um impulso de mudança, algo como as modas entre um verão e outro, ou seja, nada muito concreto. Para Marx, esta concepção estava equivocada. Havia um motor, sim, mas sob a égide de uma concepção materialista. Marx não acredita em ideias metafísicas, e, menos ainda, na existência de um Espírito Absoluto. O motor da realidade, que disparava o processo dialético, eram as condições materiais que levavam à luta de classes. Portanto, no método marxista, é preciso aferir de que maneira estão dispostos os meios materiais e perceber como isso influencia na inter-relação entre as classes sociais. O pavão que está no parque precisa ser analisado sob essa perspectiva - nos parques mais periféricos há bichos menos atraentes, ou ele está aqui porque as classes menos favorecidas não têm como vê-lo em habitat natural, para dar dois exemplos. Hegel avalia que a Dialética é a dinâmica da natureza, e a isso Marx acrescenta a mecânica da História sob a lente social. Por conta disso, os métodos dialéticos são mais apropriados quando se quer levar em consideração o tempo histórico na análise.

Já o método do Estruturalismo, consagrado por Lévi-Strauss (sim, também já falei sobre isso), procura, como o próprio nome diz, pelas estruturas fundantes de cada um dos menores atos cometidos pelos seres humanos, que, realizados em cadeia, possuem uma lógica subjacente originada justamente destas estruturas maiores, que, no seu entender, são presentes e semelhantes em todas as culturas humanas, que se aproximam entre si, ainda que revestidas de características próprias. Isso porque os estruturalistas acreditam que todas as culturas são diferentes na forma com as quais são construídas, mas, uma vez detectada sua estrutura, seu esqueleto, se verá que são todas muito semelhantes. Por exemplo: temos descrições de dilúvios universais em vários povos do Oriente Médio, incluindo a famosa narrativa bíblica, aquela do Noé e da arca. A proximidade geográfica é um bom fator aglutinante dos diferentes mitos da região mesopotâmica, mas acontece que também nas Américas há relatos de tal catástrofe, como pode ser lido no Popol Vuh dos maias. No entanto, longe de representar um efetivo cataclisma, essas narrativas denotam uma maneira universal com a qual o componente mítico explica a divindade: um ato que demonstra o poderio da deidade, sua ira e sua piedade. Esse esqueleto é praticamente igual em muitos dos mitos, e pretende estabelecer a ferramenta de poder ligada à religião - a fúria divina é devida à insubordinação humana, o que explica muito melhor a existência do mito do que um efetivo evento mundial que não consegue corroboração. A temática do dilúvio não se repete porque tenha ocorrido de fato, mas porque a estrutura por trás das sociedades faz com que esse mito seja escrito de maneira parecida e por motivos afins. E é isso o que busca este método: descascar as paredes das culturas para descobrir os pilares de sua edificação, o que o torna ótimo para pesquisas sociais e antropológicas.

Isso tudo é suficiente para demonstrar como a discussão sobre a Filosofia em si mesma é aberta e cheia de nuances. O método científico é muito mais bem delineado e dirigido: grosso modo, monta-se a hipótese e consegue-se provas. Todas as abordagens filosóficas que listei aqui, que podem inclusive ser utilizadas concomitantemente e de modo entrelaçado, e há outras ainda, são de uso corrente, o que demonstra o quanto o aprofundamento intelectual que se debruça sobre ela é intrincado e ramificado. Atentem que mesmo esta pequena série é toda metafilosófica, porque busco dar um pouco de luz às dúvidas que a galera me pede para dirimir, e vejam, no global da obra, quantas áreas são afeitas. Ponto para os filósofos, que sempre são acusados de serem viajandões a cuidarem de inutilidades. Chamem-nos assim, mas jamais de preguiçosos. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Um bom livro para compreender a Metafilosofia e diferenciar a metodologia filosófica da científica é a obra do francês Granger:

GRANGER, Giles-Gaston. Por um Conhecimento Filosófico. Campinas: Papirus, 1989.

Já que mencionei a música do Língua de Trapo, segue abaixo sua referência completa:

LÍNGUA DE TRAPO. Régui Espiritual. In Língua de Trapo. São Paulo: Lira Paulistana, 1982.