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segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Navegações de cabotagem - o Parque Tanguá de Curitiba e a Alegoria da Caverna colocada em contexto

(Vamos jogar a preguiça fora e contextualizar melhor a Alegoria da Caverna).

"A definição mais precisa que temos da Filosofia ocidental é a de que ela não passa de uma sucessão de notas de rodapé da obra de Platão " - Alfred Whitehead

Olá!

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Conforme falei no meu último texto sobre Curitiba, ela é uma cidade que se caracteriza pela presença do verde. Isso significa que, para dar presença diária na vida das pessoas, um parque tem que estar integrado ao bairro onde se localiza, sem a necessidade de ser grande e mirabolante. Mas não há necessidade que não existam espaços maiores, mais exuberantes, e estes também existem nesta casa, e são bastante interessantes e inspiradores. É o caso do Parque Tanguá, e vou pincelar um pouco sobre ele hoje.

Localizado originalmente em uma área degradada da cidade, onde existiam pedreiras, o Tanguá é um projeto que funde recuperação da flora original e diversidade paisagística, na melhor tradição dos jardins botânicos, desde a sua entrada.

Um mero detalhe curioso: bem na entrada do parque havia um lindo carrossel veneziano, daqueles à moda antiga, com música circense e repleto de espelhos e gravuras.


Um jardim de estilo francês é a principal marca da parte superior do conjunto arquitetônico. Ele homenageia um artista curitibano de renome internacional, Napoleon Potyguara Lazzarotto, mais conhecido simplesmente por Poty, cujas principais obras foram as gravuras dos livros de Dalton Trevisan, outro curitibano ilustre.

Como ainda era época de Natal, havia uma grande árvore cônica após a passagem do espelho d’água, e o tempo fechado permitiu que ela fosse acesa mais cedo do que o normal. Esta árvore fazia parte do circuito da Prefeitura local, que as espalhou por toda a cidade.


O parque é caracterizado por um grande desnível geográfico. Do belvedére, emergem plataformas que permitem avançar sobre o abismo que há entre a parte alta e o baixio.


Mais alto ainda ficam as torres do mirante, de onde é possível ver não somente todo o parque, mas uma boa parte da cidade de Curitiba.


Na medida do possível, o reflorestamento com a flora original permitiu que a bacia norte do rio Barigui fosse novamente protegida, além de resguardar alguns dos exemplares mais intrínsecos do Paraná, as araucárias.


Embora o cuidado paisagístico envolva a manutenção das formas originais, muita coisa está banhada pela mão humana, que tem um duplo viés: a negatividade da destruição imponderada e a vontade de recuperá-la. Há bastante coisa que saiu do eixo pela ação humana, e que só voltou por ela também.


O resultado é belíssimo, com uma cascata de quase setenta metros que parte do belvedére, melhor observada pelo bistrô que serve a carne de onça, prato típico de Curitiba.


Na flor da água, há um túnel escavado na rocha, que liga os dois flancos da lagoa.

Ele tem algo em torno de 50 metros e dá uma virada visual no parque, podendo ser acessado através de um deck de madeira que parte das proximidades do estacionamento.


Túnel e caverna são coisas semelhantes, com a diferença nada sutil de que um tem saída, enquanto o outro, não necessariamente. E como um remete ao outro, é difícil não lembrar de um vendo o outro. Por conta disso, quem milita na área de filosofia vê um retrato desses e imediatamente se sente remetido à Alegoria da Caverna de Platão.

Ora, essa é, na verdade, uma dívida da dívida que eu tenho com vocês, meus bissextos leitores. Tempos atrás, havia admitido que eu estava em falta com a audiência por tardar em falar sobre a alegoria da caverna, e acabei redigindo a peça que vocês podem ler aqui, e recomendo que o façam, por amor à concatenação lógica. O grande problema é que, embora o texto baste em si mesmo, fica no ar uma pergunta importante de ser respondida: o que Platão queria responder com essa metáfora? A alegoria da caverna prima muito por seu aspecto epistemológico, que é o mais usado por professores para fazer ilustrações aos seus estudantes, mas há todo um conjunto de circunstâncias que leva Platão a construí-la e que passa pela Filosofia da Educação e, especialmente, pela Política. Vamos destrinchar.

A alegoria da caverna está inscrita na obra “A República”. Embora o tal mito seja sua passagem mais célebre, há um pano de fundo mais abrangente a lhe costear, que é o conceito de justiça. De acordo com o hábito platônico, ele coloca o protagonista Sócrates a desfiar sua maiêutica, o método dialético que consiste em colocar em xeque um conhecimento preestabelecido e fazer surgir dele uma nova ideia (falo mais sobre o tema neste texto).

A obra está na conhecidíssima forma de diálogo*, onde um dos interlocutores sempre é Sócrates, e que debate com jovens, velhos, doutos e simples. A fórmula é aquela da maiêutica: uma pessoa possui uma firme opinião formada, e atribui a ela valor de verdade. Quando defrontada pelas oposições socráticas, começa a claudicar - será expressão de conhecimento, ou não passa de doxa, a boa e velha opinião, tão sujeita a erros? No caso da justiça, entre os diversos interlocutores, vários argumentos são apresentados para lhe dar fundamento:

·         Dar a cada um o que lhe pertence;

·         Fazer bem aos amigos e mal aos inimigos;

·         A conveniência do mais forte;

·         Ser injusto, mas parecer justo (utilidade).

Sócrates refuta cada uma dessas definições colocando-as em condição absurda, como tanto gostava de fazer. Ao fazê-lo, conduz o roteiro para a extensão da justiça do homem para a sociedade, porque é nela que está em ponto maior, e aí começa a construção de sua teoria sobre o estado ideal. Fundamentalmente, este seria dividido em três classes, articuladas entre si para o perfeito funcionamento do todo: os artesãos, os guerreiros e os guardiães. Aos primeiros, caberia o trabalho mais básico: a obtenção de alimentos, confecção de vestimentas, construção de habitações e tudo o mais que demandasse um ofício com um mínimo de especialização, obtido por aprendizado e vivência; aos guerreiros, obviamente, caberia a proteção do território, brando no trato interior, animoso contra o inimigo. Aos guardiães, caberá o governo da cidade, incluindo, naturalmente, a distribuição da justiça em um plano mais alongado, menos baseado nos indivíduos, mais no benefício à sociedade como um todo. É de se notar como a noção de justiça como virtude do indivíduo vai se estendendo a um ponto mais institucional, assemelhado à função judiciária como conhecemos em um estado constituído.

Essa extensão do conceito de justiça como virtude leva a uma comparação entre o funcionamento do estado e da alma. Cada cidadão deverá ser guiado por sua aptidão para exercer sua função social, da mesma forma que há diferentes funções no espírito : há uma porção racional que tem a função de conduzir e equilibrar as ações do indivíduo, um aspecto volitivo que impulsiona os apetites e desejos, e uma parte do ímpeto, que leva à ação em si. Quando essas três partes atuam harmonicamente, todo o organismo ganha, porque nem será incontroladamente impetuoso, nem se resguardará de qualquer ação, nem se dominará unicamente pelas vontades. Aplicada à sociedade, essa regra traz o melhor conceito de justiça: a harmonia entre as diferentes classes da cidade.

Daí, surgem dificuldades. Para que o guardião exerça efetivamente a justiça, é preciso que receba educação apropriada e que não possua bens próprios, maior corruptor de virtudes conhecido. Toda a classe dirigente deve comungar de bens comuns de acordo com a necessidade da classe, e não do indivíduo. Nesse condão, também não deve constituir família, para que não aja no interesse de seus descendentes. Plasmando para a atualidade, vejam como os governantes ocupam uma residência oficial unicamente pelo período em que exercerem seus mandatos, e como há leis impedindo a prática do nepotismo**. Além disso, tanto no corpo dirigente, quanto mesmo no exército, não deverá haver distinção entre homens e mulheres. Na guerra e na política, não há argumentos sustentáveis para estabelecer qualquer tipo de distinção que coloque um ou outro gênero como mais capacitado. E, por último, mas não em último, Platão estabelece que a virtude da justiça somente poderá ser distribuída na pólis quando os reis se tornarem filósofos, e os filósofos se tornarem reis.

Ser filósofo, no caso, não é uma tentativa de privilégio de classe que Sócrates sugere, mas que os basileus tenham a capacidade de ser virtuosos no sentido mais necessário: para ser justo no mais perfeito grau, é preciso saber reconhecer a máxima virtude - o Bem. O Bem, agora com inicial maiúscula, é uma espécie de gabarito que guia todas as demais virtudes: só é virtuosa a justiça calcada no bem; só é virtuosa a caridade calcada no bem; só é virtuosa a beleza calcada no bem. Ou seja, não há como fugir do conhecimento. Para se compreender o que é o Bem, é preciso escalar das experiências obtidas no mundo até que se chegue ao perfeito conceito de Bem.

Precisamos aqui discorrer rapidamente sobre a teoria epistemológica platônica, embora eu já tenho falado sobre ela diversas vezes neste espaço. Platão fala em uma divisão entre mundo sensível e mundo inteligível, sendo que o primeiro é captado pelos sentidos, enquanto o outro é acessado unicamente pelo intelecto. Em um exemplo, nossos olhos percebem o Sol como uma bolinha que cabe entre os dedos. Entretanto, ainda que sem grandes instrumentações, é possível fazer associações com outras fontes luminosas e perceber que ele é muito maior. Tomemos uma vela, por exemplo. Embora seja ínfima, consegue iluminar um cômodo de modo que não tropecemos nos móveis. Sua chama também cabe no espaço entre os dedos, e quanto mais longe, menos eficaz é. Ela ilumina muito menos que o Sol, que traz luz para meia Terra pelo dia inteiro. A inferência é simples: o Sol é muito maior do que meus sentidos captam. E isso eu deduzi utilizando apenas processos mentais.

Se eu faço isso para reconhecer que o Sol não é o que aparenta ser, o filósofo-rei precisa ter o mesmo discernimento para reconhecer o bem, que deve ser seu principal objeto de saber. É preciso escapar das aparências dos sentidos e das convenções sociais, para escalar dialeticamente pela cadeia intelectual que leva a um governo justo. 

Para que seja possível trazer ilustrações à sua tese, Sócrates/Platão tecem três símiles, hipóteses ilustrativas que se tornaram célebres. O primeiro é a Analogia do Sol, que é usada para ilustrar como o bem possui uma hierarquia superior às demais ideias e lhes dá sustentação. O sol é primordial para que se permita ao homem ver e ser visto. Como o nosso sensório visual é o mais expressivo de todos, ao menos para a espécie humana, sem que o Sol exista não há uma fonte para que se percebam todas as coisas do mundo. Assim como é o Sol para o universo sensível, é também o Bem para o universo inteligível. O Bem é a condição que dá virtudes ao conhecimento, porque faz parte do Bem que o conhecimento seja verdadeiro, que a ação seja ética ou que a sensação seja bela. 

Caminhando mais um pouco, vamos chegar ao exercício mental da Linha Dividida. Sócrates propõe que se imagine uma linha reta, e que esta seja dividida em duas partes desiguais, sendo que a primeira seria menor que a segunda. Depois, repetir-se-ia a mesma operação em cada uma das seções, de modo a se obter quatro pedaços, do menor para o maior. Esse tamanho progressivo corresponderia à capacidade de cada um carregar verdade. Os dois primeiros segmentos estariam no campo do sensível, enquanto os dois últimos estariam na senda do inteligível.  Do mundo visível, teríamos as imagens das coisas e as próprias coisas. Já na esfera inteligível, teríamos o discurso que traduz a natureza e a inteléquia pura. Imagem, opinião, razão discursiva e intelecção. Em grego, eikasia, pistis, dianoia e noesis.


O terceiro símile é a Alegoria da Caverna, que traz a fusão das duas construções anteriores e ainda acrescenta uma espécie de conduta ao filósofo-rei. O prisioneiro que se liberta não é somente aquele que procura a verdade, mas aquele que a usa para trazer o Bem em retorno à polis, mesmo que isso possa custar sua integridade física, e aqui tudo está unido: a metafísica do mundo das ideias, a gnosiologia do descompasso entre aparência e essência, a ética da distinção do bem e de sua distribuição à polis, tudo amarrado pela estética da metáfora, para desembocar em uma conclusão política.

Mais adiante, Platão comentará sobre a degeneração das formas de governo e sobre o mito de Er, mas, como eu já tenho outros textos engatilhados para tratar desses dois temas, vou deixar para esse momento. Até mesmo porque entendo que, desta vez, consegui cumprir a missão de contextualizar a Alegoria da Caverna devidamente, como deve ser feito, sem indolência, nem incompletude.

E o Parque Tanguá com tudo isso? Ele dá o exemplo de que um túnel dá aparência de caverna, e dessa imagem, tão nos primórdios do conceito platônico de conhecimento, é que obtemos um caminho sistêmico para a chegada ao saber que até hoje traz influências no pensamento geral. Bons ventos a todos!

Recomendações:

A República é uma obra tão fundante da Filosofia como um todo que não posso deixar de repetir sua recomendação. Procurem pelas indicações que fiz nos meus posts indicados, mas também vou deixar aqui uma versão online pesquisável, para fica ainda mais fácil:

PLATÃO. A República. Da Justiça. Disponível em http://www.eniopadilha.com.br/documentos/Platao_A_Republica.pdf .  Acesso em 22.10.2022.

E este é o endereço do Parque Tanguá:

Parque Municipal Tanguá
Rua Oswaldo Maciel
Taboão
Curitiba/PR
A aproximadamente 400km do centro de São Paulo

*Conhecidíssima hoje, bem entendido. Na época, a abordagem, apesar de comum, era uma criação razoavelmente original.

** Se funcionam ou não, são outros quinhentos.

sábado, 8 de outubro de 2022

Pequeno guia das grandes falácias – 65º tomo: a falácia das falácias (argumentum ad logicam)

(Viver em São Paulo já foi mais fácil. E manter a coerência dos argumentos também. Cuidado para não ser mais realista que o rei).

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Já faz um bom tempo que eu moro no centro de São Paulo. Para quem é de outros estados, talvez isso não signifique grande coisa, mas para quem é da Terra da Garoa e cercanias, causa estranheza. Fosse ainda morador do Glicério, do Bixiga ou se fôssemos concessivos com outros bairros, como a Santa Cecília e a Aclimação, não teríamos esse olhar espantado, mas moro na Sé, onde o principal contingente habitacional é de moradores de rua.

Nem sempre morei aqui. Na verdade, nasci na Mooca e fui me afastando cada vez para uma Zona Leste mais profunda, mais oriental. Quando eu era ainda bem pequeno, morei com meus pais em uma série de casinhas de aluguel na Vila Ema e imediações. A primeira que eu me lembro era um cômodo-e-cozinha em uma rua chamada Vila Rosa, um beco sem saída que dava com um córrego, daqueles com banheiro externo, para servir à coletividade do quintal. Era costume da época construir algumas unidades a mais para garantir uma rendinha extra ao proprietário, e fazer um banheiro que servisse a todas economizava dinheiro e espaço. Depois, fui morar na casa do meu avô materno, para que meus pais economizassem o dinheiro do aluguel. Na década de 70, ainda era factível a um operário comprar um terreninho e construir sua casa, sem extensos e eternos financiamentos, exatamente o que ocorreu. Ficamos lá por oito anos, até ficar pronta a casinha no Jardim Independência, onde passei minha juventude, e que virou de esquina após a prefeitura desapropriar uma boa parte das casas para construir a atual Avenida Anhaia Melo. Ficava próxima a um riacho, e todas as ruas eram de terra. Como fazia uma espécie de vale, eram comuns as inundações. Meu pai foi esperto, e fez a casa alguns patamares mais alta, ao contrário dos vizinhos, que sofriam nas chuvas. A terra empaçocada das margens formava uma tabatinga grudenta que fazia parte da coloração de nossos calçados, então éramos conhecidos como "aqueles da lama", além de outros epônimos menos amigáveis, como “sapos”. Isso só foi acabar com a completa construção da galeria para abrigar o córrego e com a construção da avenida em epígrafe.

Fiquei por lá até casar, quando fui morar no porão da casa do meu sogro, no Jardim Guairacá, por longos sete anos. Era uma casinhola que permitia trocar as lâmpadas sem subir em escadas e banquinhos, de tão baixinha que era. A lógica era a mesma que se aplicou aos meus pais: espreme-se em um canto modesto para juntar o dinheiro do terreno, e depois dos tijolos necessários a um andar térreo. Só que a década de 90 já não permitia comprar nada nas redondezas, e fui achar um pouco de chão na Casa Grande, um bairro periférico ao Jardim Elba, célebre por ser considerada a favela mais "carioca" de São Paulo. Apesar da situação de risco, vivi lá por onze anos, e foram bons, porque a maior parte da infância das crianças foi naquele projeto de sobrado que nunca viu seu piso superior construído.

Acontece que, à medida que o tempo passa, suas pernas vão ficando mais bambas e sua paciência mais curta. O trajeto até a Liberdade, meu posto de trabalho, dava uma hora e meia para vir, uma hora e meia para voltar, se não houvesse nenhuma perturbação extra, como chuva ou greve. Três horas jogadas fora todo santo dia, porque era raro conseguir sentar para ler, e ouvir música como se deve é meio difícil em meio ao bate-lata que caracteriza nosso transporte público. Dessa forma, fui criando uma vontade e um plano para mudar a uma casa próxima ao metrô.

Tudo começou com um grande copo de desânimo, porém. Qualquer casa que ficasse minimamente próxima a uma estação custava pelo menos o dobro do que eu conseguiria com meu sobrado perneta do Elba. Levando em conta que orçamento não era coisa que sobejava em meu lar, os primeiros movimentos de desistência já iam se evidenciando. A coisa reverteu com radicalismo, quando um colega me indicou um apartamento a 50 metros da estação Sé, daqueles antigos, com uma portaria digna de filme noir, mas com uma unidade bem nouvelle cuisine, com “ingredientes” incomuns para os apês funcionais de hoje. Começando por uma cozinha onde cabe a mesa, vejam vocês. Também tem um cômodo de cada cor e uma distribuição em "S", com o corredor do hall de entrada começando à esquerda, e gingando para a direita após a sala, para acessar os quartos. É um arranjo atípico que a deixou incrivelmente mais bem distribuída, e, a partir daí, o insondável aconteceu: já que o centro não vem até nós, vamos nós ao centro. E aqui estou. Há quatorze anos.

Quando cheguei aqui, o centro de São Paulo vivia outra realidade. Eu pegava meus filhos e afilhados e os levava para brincar de mula e maçaneta na Praça Clóvis. Mendigos havia, mas eram tão clássicos que nós os conhecíamos pelo nome: Bonitão, Raul Seixas, Caixote, Robinho. Uns morreram de miséria, outros foram resgatados pela família ou se mandaram para outras paragens. De um jeito ou de outro, faziam parte da nossa vizinhança e nos cumprimentávamos todos os dias. Eventualmente, pedíamos algum servicinho, como carregar um móvel velho para o ecoponto, e destinávamos a eles roupas e comida. Eu acho furadíssimo esse modelo de pseudocaridade, que as pessoas fazem mais para amenizar suas culpas, mas não serei eu a resgatar o modelo com o qual a sociedade deve lidar com a situação, e doar algumas coisas não faz mal a quem tem necessidades imediatas.

Eu mudei para cá no auge do último período de prosperidade econômica desta claudicante nação. Falava-se então em uma população de rua da ordem de 10000 pessoas, o que não é pouco, mas a situação geral permitia a mim atravessar a Sé pelo meio, sem grandes sustos, mesmo que a prudência mandasse tomar certo cuidado. 

Ocorre que o brasileiro, embora nunca tenha encarado uma guerra, desconhece o que seja paz. Logo as coisas degringolaram e entramos na espiral em que nos encontramos atualmente, com uma cadeia de causas e consequências que tão bem sabemos, e o centro se ressentiu das desastradas tentativas de desmonte da Cracolândia, da queda do nível de investimento e não poderia deixar de sentir os efeitos da pandemia. Ruas de comércio incessante como a São Bento e a José Bonifácio estão com a maior parte de suas portas fechadas, e a montanha de placas de “aluga-se” denuncia: a miséria voltou com força. Com tudo o que ela traz de desgraça. Hoje, temos estimadas 32000 pessoas em situação de rua, segundo o Censo da População em Situação de Rua, feito pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS). É mais que o triplo, só isso. Percebem a dimensão do nosso empobrecimento?

A consequência direta é que vivemos dias violentos. O fluxo grande entre as portarias do metrô e o posto da Guarda Civil não dão conta do volume novo de assaltos que tem ocorrido no pedaço. Aqui cabe lembrar que nunca o centro foi um lugar absolutamente tranquilo. Carteiras e relógios são roubados desde sempre, pela mão leve dos finórios e rapidez dos trombadinhas. Mas o que nós estamos vendo agora são arrastões, levados a cabo pela escolha de uma vítima preferentemente feminina, que é cercada por bicicletas e atacada por sete ou oito moleques de uma vez só, que fogem cada um para um lado, para depois dividir o butim. É uma ação violentíssima, que inclui derrubar a vítima no chão e enchê-la de chutes, caso haja alguma resistência. Mesmo o teoricamente inocente pedido de esmolas está mais atemorizante: do pedido com cara desmanchada de piedade, temos agora verdadeiras intimidações, com o "pedinte" te seguindo até conseguir os tais trocados. É nesses dias em que me bate o arrependimento de ter mudado, mas como estará a periferia? Não terá ela mesma tido sua própria piora?

Mas há questões que são próprias da região central. Há bairros que um paulistano da Zona Norte nunca verá na Zona Sul, e o pessoal da Zona Oeste pode conhecer a Zona Leste só de ouvir falar, mas o centro é um lugar para onde todos vão, pelos mais diferentes motivos. O perigo daqui não é uma exclusividade dos seus poucos habitantes, mas da cidade inteira. A mulher que é derrubada nas escadarias do metrô provavelmente não mora na Sé, mas na Vila Matilde, no Butantã, em Pirituba, no Campo Belo.

E o que vai acontecendo é que aqueles mendigos diários a quem cumprimentávamos e destinávamos trocados vão nos causando medo. Já não os conhecemos nem os saudamos. Seus pedidos ganham contorno de ameaça e o convívio cada vez mais se impossibilita. Nós sabemos que o trocado não vai para o lanche, mas para a cachaça e a droga, e isso não é de hoje. A grande novidade é que você sabe que isso alimenta a cadeia de marginalidade que se desenrola debaixo de nossos olhos.

O mendigo que pede, hoje, é uma ameaça. Essa é a sensação geral e o pensamento falacioso, ainda que compreensível. Isso porque nós confundimos, no plano lógico, mentira com falácia. O pedido do mendigo pode ser uma mentira, mas não é uma falácia. Vamos ver melhor isso.

Uma falácia ocorre dentro de uma argumentação. E a definição de argumento passa pela noção de proposição, a que em tratei neste texto, mas que vou repassar rapidamente, por amor à concisão.

Uma proposição é qualquer frase, seja afirmativa ou negativa, que pode receber um valor de verdade. Sendo assim, posso afirmar tranquilamente que dizer que "a bola é um artefato cheio de ar" é uma proposição, porque isso pode ser verdadeiro ou falso. Se é ou não é uma declaração intuitiva ou óbvia, não importa. O que caracteriza a proposição é ser verdadeira ou falsa. Se a bola de fato tem ar, a proposição é verdadeira; se tem água ou pedra, é falsa - punto e finito.

Acontece que nem tudo o que sai da sua boca é propositivo. Imagine o centroavante que se desmarca e pede o passe: "toca, toca, toca!" é o curto, porém facilmente compreensível pedido do camisa nove. Seu toca-toca é verdadeiro ou falso? Ora, nem uma coisa, nem outra. Não estamos diante de uma proposição, mas de uma frase imperativa, que exprime um desejo, uma ordem, um conselho, uma sugestão ou qualquer outra coisa cujo escopo não é obter um valor de verdade, mas uma interveniência que parta de uma pessoa para outra.

É aqui que temos um procedimento falacioso: expressões imperativas nunca são falaciosas, porque não são argumentos. O mendigo que te pede pode mentir, mas não está sendo falacioso. Certo: seu pedido pode conter apelos à misericórdia e à emoção, dentre outros, mas aqui o cerne não é argumentar, e sim obter um favor. Ele mente, mas não é falacioso. Alegar isso é um erro lógico chamado de falácia das falácias, ou argumentum ad logicam, uma espécie de macartismo* lógico de quem vê falácias em tudo.


Quando vi esse termo pela primeira vez, tive uma impressão errônea. Achei que se tratava da falácia mais importante ou mais utilizada de todas, tipo um rei dos reis, campeão dos campeões. Ou então que fosse a mais difícil de perceber, a mais sutil e perniciosa. Nem uma coisa, nem outra. Grosso modo, a falácia das falácias nada mais é do que tratar reiteradamente como falaciosa qualquer assertiva que nos incomode ou cause inconveniente. Como eu disse: o mendigo que te pede não está fazendo uma proposição, mas dirigindo uma súplica; o centroavante que te grita não é verdadeiro, nem falso: é um centroavante chamando o jogo. Não é possível qualificá-los como falaciosos pelo simples fato de que não são proposições.

Outra maneira de cometer o argumentum ad logicam é desqualificar uma conclusão pelo erro nas premissas. Embora argumentações defeituosas possam causar contorções e câimbras mentais, elas não invalidam, de per si, a conclusão que pretendem defender. Por exemplo: é consenso que o excesso de consumo de carnes vermelhas não faz bem. Isso pode levar algumas pessoas a inferir que o organismo humano não é adaptado para esse tipo de alimentação. Se isso fosse verdade, os seres humanos não produziriam certas enzimas, como a lipase e a colesterase, específicas para o processamento de alimentos de origem animal. Isso não muda o fato de que o alto consumo de carne é prejudicial, e embora o argumento da má adaptação seja ruim, isso é insuficiente para invalidar a conclusão. Baixada em termos lógicos, a coisa fica mais ou menos assim:

Consumir alimentos que nosso organismo não está adaptado para processar é prejudicial

Nosso organismo não está adaptado para o consumo de carne

Portanto, o consumo de carne é prejudicial

A premissa menor cai no problema que mencionamos logo atrás, mas a conclusão continua sendo verdadeira. Os motivos podem ser outros: muita gordura, falta de outros nutrientes, sei lá. Mas não é puramente a falsidade do argumento que invalida a conclusão. As coisas não são simples assim.

Outro exemplo clássico de falácia das falácias, desta vez por um erro lógico formal:

Se uma pessoa gosta de futebol, então ela vai a estádios.

Um certo policial gosta de futebol.

Portanto, ele vai a estádios.

O erro aqui é evidente. O tal policial mencionado vai a estádios por dever funcional, já que jogos de futebol representam aglomerações com alto potencial para encrenca. Se ele gosta ou não de futebol, é algo irrelevante. É o que a gente chama de afirmação do consequente, sobre o que já falei especificamente neste texto. O argumentum ad logicam entra quando se desconsidera que o referido militar efetivamente vai a estádios, mesmo que não goste de futebol (aliás, isso seria sempre o ideal, para uma melhor concentração no trabalho).

Dessa forma, é bom conhecer a falácia das falácias, porque ela tende a ser uma expressão do dogmatismo. Alguém que procura tantos defeitos nos discursos dos outros acaba por perder o foco em seus próprios argumentos, ficando mais com o papel de chato do rolê do que do bom debatedor. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Para fazer uma breve comparação entre o que era o centro há décadas atrás e o que é hoje, o livro abaixo é uma recomendação e tanto.

BARBEIRO, Heródoto. Meu velho centro: histórias do coração de São Paulo. São Paulo: Boitempo: Sesc, 2007.

*O macartismo era uma doutrina política estadunidense propalada pelo senador republicano Joseph McCarty, que, durante a guerra fria, via qualquer tipo de oposição ou atitude crítica ao governo como prova de comunismo por quem a profecia, criando um clima de caça às bruxas muitas vezes completamente desfundamentada.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Quatrocentos: a Filosofia serve como consolação?

(De grão em grão, a galinha filosofal enche o papo. Já são quatrocentos textos que redijo por aqui. Perguntam meus poucos leitores: isso me consola? Não sei. Vamos ver)

Olá!

Este é meu texto de número quatrocentos neste blog, e como eu já havia prometido há alguns anos, sempre que fosse tempo de efemérides eu iria filosofar especificamente sobre minha escrita, o que me influencia e leva a redigir da forma como redijo. E, desta vez, vou unir um pouco do que me perguntam com as coisas que me motivam.


Antes e rapidamente, uma estatística bem pontual. Em 138 meses de existência deste humilde espaço, são quatrocentos textos publicados. Isso dá uma média de quase três textos ao mês, e a cada dois anos e nove meses eu tenho uma efeméride como a que eu agora comemoro, o que não está nada mal, no final das contas. É óbvio que há meses extremamente produtivos, onde eu gerei meu pico de nove textos, no ainda pandêmico dezembro de 2021, como há meses em que nem uma linha sequer foi traçada, o que não ocorre desde novembro de 2016. Bom… vamos ao que interessa.

Para que escrever tanto, notadamente sobre Filosofia? Uma das perguntas mais permanentes sobre essa área é sobre sua utilidade. De fato, não dá para desqualificar a filosofia como conhecimento, mas tenho que concordar que a vida tem suas necessidades pragmáticas, e isso colide com a ideia de se assentar por quatro anos em um bacharelado abordando a área. Quando eu estava estagiando, essa foi uma colocação para a classe, que ficou bem dividida. Obviamente há alunos que estão apenas com o corpo presente em aula, mas levando em conta aqueles que têm algum mínimo de interesse, a posição adotada sempre foi muito em função das perspectivas de vida de cada um: os pretendentes a humanas viam belíssimas funções para a coruja de Minerva, enquanto os direcionados para exatas e aplicações práticas achavam uma inútil caceteação. Inclusive havia a divergência entre mim e o professor Arnaldo, meu tutor. Talvez empolgado pela próxima formação, eu achava imprescindível ter noção sobre o substrato do conhecimento para poder transmiti-lo, enquanto o mestre, já tarimbado, alinhava-se aos que não viam utilidade na Filosofia, por entender que o conhecimento por si só já era uma justificativa. Utilidade seria uma função acessória, dispensável no caso.

Só que há uma boa quantidade de contradição nessa pergunta. Se hoje falamos sobre pragmatismo, é porque alguém pensou no pragmatismo, uma atividade filosófica, não é? E, no final das contas, inutilidades geram utilidades. Um jogo de futebol, em si, não tem mais valor do que uma prática de lazer, tão inútil quanto qualquer filosofia. Entretanto, é uma cadeia de valor gigantesca que gira em torno da pelada com mania de grandeza: mercado de jogadores, artigos futebolísticos, praças esportivas, direitos de transmissão, elaboração de contratos, ortopedia, imprensa especializada, e assim muito por diante. O cerne tem utilidade discutível, seja lá o que isso signifique, mas tudo o que gira ao redor tem utilidade prática para lá de consolidada. Idem, portanto, com a Filosofia. Olhada sob um viés fragmentado, de fato não muda muita coisa saber que o ser é e o não-ser não é, mas se pensarmos que é por aí que nasce o questionamento para se chegar na origem de qualquer problema, talvez devamos reconhecer que ela está na pergunta da origem do universo, do mundo, da vida.

Eu teria sempre o argumento de que ensinar Filosofia já é, por si só, um motivo e uma utilidade. Entretanto, manter uma atividade como a minha precisa de propósitos diferentes, já desvinculados do objetivo letivo. Eu não escrevo mais para propor temas aos alunos, mas para propor questionamentos (e algumas tentativas de respostas) a quem se interessar e, como fim último, dar a mim mesmo satisfação pessoal. Não é um belo motivo?

Acontece que o fenômeno do viés de confirmação faz com que acolhamos assertivas e opiniões com as quais já tenhamos concordância, que confirmem o que julgamos conhecer. Quando ocorre de soltar algum texto mais polêmico, como o que escrevi exatamente a cem posts atrás, a reação é mais aguda, do tipo "você acha que a filosofia pode substituir deus na sua vida?". Não acho, simplesmente porque são coisas diferentes. Mas essa categoria de pergunta deixa transparecer uma posição: de que precisamos de algum tipo de sentido e, in extremis, de consolação para nossa existência incerta. Para o quê? Para o fato de nos reconhecermos finitos, provavelmente.

Só que há enganos nesse tipo de pensamento. Primeiro, que deus e filosofia não são irreconciliáveis, como tão bem provaram Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Boécio. E, depois, que a filosofia não tem objetivo de consolar, de confortar, de autoajudar. A Filosofia é outra coisa.

Quando o pensamento filosófico nasce, já possui em si um espírito de desvelar o que estava por trás da realidade, sem importar se o que estava lá era bom ou ruim. Alguns dos mais renomados pré-socráticos viam divindades nos mecanismos de constituição da natureza, e algumas delas eram más, como o intercâmbio entre amor e ódio de Empédocles, e isso não importava, não consolava, não trazia conformação, mas uma visão que o filósofo julgava ser a mais adequada para explicar o universo.

Quem estuda filosofia para encontrar sentidos positivos na vida ou razões para existir, entrou no boteco errado, porque ela não trabalha com esse produto. Eu sei que certos termos induzem a pessoa a fazer confusão. Quando alguém pergunta qual é a sua filosofia de vida, está usando uma figura de linguagem, que se mistura com objetivos, e não filosofia de fato. Filosofia, aqui, é tratada como alegoria para fundamento, para base, para substrato, como o alicerce que dá a vida um sentido, o que é falso. Outros enquadram autoajuda como sistemas de pensamento, o que é uma evidente empulhação. Sistemas de pensamento ou sistemas filosóficos são grandes arranjos lógicos que buscam dar explicação para grande parte dos fenômenos intelectuais que permeiam a humanidade. Platão, Aristóteles, Kant e Hegel são alguns exemplos de pensadores que fizeram grandes encadeamentos de raciocínios para abordar metafísica, epistemologia, ética, estética, política e sociedade, sem discernimentos obrigatórios do que nos traz alegria ou tristeza. Autoajuda não é nada disso. É uma espécie de estimulante para cansados e muleta para inseguros, evitando temas polêmicos ou dolorosos. Filosofia, por outro lado, é verdade posta, natureza escancarada, realidade tal como ela é, mesmo que o filósofo esteja errado, mesmo que a tal verdade não seja possível. Ou seja, se eu tenho que ocultar algo, não é Filosofia.

Mesmo que eu procurasse respostas espinhosas, é ainda necessário ter em mente que filósofos não são imunes a erros e constatações que se demonstram furadas. Muito pelo contrário. Como a Filosofia não se apoia na prova, não tem os grandes experimentos científicos para lhe dar apoio; como não se refugia na fé, não tem uma divindade para lhe servir de ad hoc, e como além de tudo tem que se focar na lógica, não tem a liberdade da arte. Quadros de Dalí e sinfonias de Stockhausen não têm lugar nos meandros filosóficos. Os filósofos são muito bons para detectar as grandes questões e esmiuçar como elas se embaraçam, mas para desenroscar o fio nem sempre se mostram como os melhores proponentes. Marx descreveu lindamente como a história se movimenta pela luta de classes, mas o comunismo não se provou até hoje como a resposta. Kierkegaard narrou como a existência é escolha e angústia, mas sua solução parece a resposta de um padre. Adam Smith enxergou como o mercado se equilibra entre oferta e demanda, só que largado ao sabor do vento se demonstra como uma lavoura de miséria. Em resumo, as respostas da filosofia sempre são estimulantes do pensamento, mas não entregas prontas e acabadas.

Por essas e por outras é que, ao menos no meu caso, a filosofia não serve de consolação, como se fosse um substituto para deus. A não ser que possamos considerar que o conhecimento seja uma maneira válida de se passar os dias, e o saber possa ser considerado uma forma de suprir as ausências que inevitavelmente temos em nossas vidas.

Não digo isso com presunção. Eu sempre procuro dar boa base para as coisas que escrevo, e embora meus textos não sejam acadêmicos, com formatações ABNT e cobertura de fontes a cada letra, até porque quero dar certa leveza a temas áridos, vocês sempre poderão perceber nas indicações que há uma obra na qual os posts são calcados. Evidentemente não tenho todos eles na cabeça. Mas há fatos que acontecem na minha vida para os quais procuro inspiração no que aprendi de filosofia e correlatos. E às vezes vou buscar referências em compêndios mais simples. Nem só de Kant e Hegel a Filosofia viverá, mas de toda palavra que reserve alguma lógica e força especulativa.

E por que digo isso? Desde uns sete ou oito anos para cá, existe uma coleção chamada Grandes Ideias da Humanidade. Ela surgiu em terras ianques e fez sucesso por lá, e aqui nas terras do seo Cabral também acabou emplacando, embora tenham diminuído o formato para economizar no custo sem diminuir no preço. Cada um dos livros é dirigido para uma determinada pauta, e assim temos o Livro da Filosofia, da Política, da Sociologia, dos Negócios e assim por diante. De tempos em tempos, novos volumes são lançados, com novas áreas sendo abordadas, cada vez mais específicas. Todos os livros traçam uma linha temporal e vão costurando os diferentes autores com os principais fatos históricos. Até pouco tempo atrás eu tinha a coleção em dia, mas lançaram cinco novos títulos e eu não estou podendo dispender a grana todo em um só aviamento.

São livros feitos no capricho, há de se convir. Tem um bom projeto gráfico, o papel utilizado é de primeira linha, todos tem capa dura, várias ilustrações e os pesquisadores são eficientes, dificilmente deixando passar em branco algum autor ou ideia importante. É bem verdade que o tamanho reduzido dos últimos lançamentos torna um pouco mais difícil sua leitura por gente pouco privilegiada de visão, como é o caso deste escriba, mas ficam belos na estante e contém informação relevante.

Mas a grande questão: livros desse tipo, que contém informação enciclopédica, são de fato uma boa fonte para consulta?

A resposta é simples e, em parte, opinativa. Sim, são uma ótima fonte para consulta. Mas isso tudo nos termos corretos, que vou tentar destrinchar agora.

Essas enciclopédias trazem inúmeras referências que podem ser úteis. Imagine que se queira saber mais sobre um tema específico, digamos Epistemologia. Se você localizar qualquer autor que trate sobre o tema, conseguirá fazer inúmeros links sobre outros autores, até se conseguir formar uma visão um pouco mais ampla. Então Sócrates puxará Platão, que puxará Aristóteles, que puxará Descartes, que puxará Kant e assim até o término, formando um compêndio bastante razoável sobre Epistemologia. É quase a mesma coisa que faço, muito mais humildemente, neste espaço. Eu jamais poderei esgotar um assunto aqui, porque não é minha proposta e não tenho forças para tanto, mas há um encadeamento que procuro dar através de links e resumos de temas que espero serem instigantes o bastante para estimular, aí sim, a pesquisa mais aprofundada.

Entretanto, é preciso não cair na armadilha de se achar um intelectual apenas por ter esse tipo de livro na estante. O conhecimento que eles fornecem é superficial, uma espécie de guia para correr atrás de profundidade. Se, por exemplo, percebo que eu tendo a puxar sotaque todas as vezes que vou para uma cidade diferente da minha, e encontro uma referência sobre o assunto em um desses livros, ganho fontes para correr atrás. É um fenômeno chamado mere exposition, e que ocorre quando somos apresentados a determinados fatores ambientais que fazem com que adaptemos nossas condutas sem que percebamos. Não fosse a existência de um tópico desses na coleção, dificilmente eu o conheceria e procuraria em compêndios mais especializados. Esse é exatamente o caso de uma consulta a livros dessa coleção que redundou em uma consulta mais profunda e que terminou neste texto.

Volto ao cerne do texto. A questão de se sentir consolado pela filosofia é, na verdade, uma assertiva meio falsa. Não no sentido de se não ser possível encontrar no conhecimento uma causa para defender na vida ou para encontrar propostas para dúvidas que são angustiantes de fato. Mas isso não é um conforto para o fim, e sim um motivador para não se desesperar em uma vida sem sentido. Esses sentidos podem ser tremendamente simples, como já preconizavam os epicureus há mais de dois milênios atrás. Tudo pode ser motivo de prazer se não formos exigentes com o mundo que nos cerca. Por exemplo: as coisas que eu escrevo aqui hoje bastam por si mesmas. Se eu fosse criar expectativa por um número gigantesco de leituras, eu já teria procurado outra turma. Se eu fosse para o YouTube, teria que ter muito mais gasto e ocupação, e podendo atingir unicamente mais frustração. Se abrisse uma conta no Instagram, talvez houvesse mais gente percebendo minhas olheiras do que prestando atenção em que estou dizendo. Tudo isso poderia se tornar um grande peso se minhas expectativas forem muito altas.

Mas a vida ensina. A gente baixa o nível de expectativas e, com isso, sofre menos… Bom, aí já é estoicismo. E eu nem sei bem qual caminho ético é melhor, mas também não importa. O que é legal na história da filosofia é que você percebe que muita gente já se defrontou com os mesmos problemas que nós, e isso sim é um motivo de grande consolação, porque demonstra que somos muito parecidos nessa barca chamada humanidade. Alguém, em algum momento, já pensou nos mesmos dilemas que vivemos hoje. Ele coloca isso na pedra e tempos depois nos sentimos acolhidos por uma proposta de solução, que podemos guardar e aperfeiçoar, ou simplesmente aprender com ela. Todas as vezes que eu coloco um texto neste blog, tenho a esperança de que alguém venha aqui e ao menos se sinta induzido a saber mais, mesmo que seja para se opor. E isso, agora sim, me consola, porque me dá um lugar no mundo. Se (e somente se) isso serve de consolação, então a resposta se torna positiva. Bons ventos a todos e até a próxima efeméride, daqui a uns dois ou três anos. Mas continuem lendo os textos não redondos.

Recomendação de leitura:

Como eu já bem falei no corpo do texto, recomendo toda a coleção Grandes Ideias da Humanidade, da Editora Globo, sempre com o espírito de se ter o início do início em um determinado tema.