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quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Pelo caminho das cinzas de um morto, a transição do Ser para o Outro

(O que a angústia de ter nas mãos uma moderna urna funerária pode nos fazer refletir? Talvez que tenhamos responsabilidades que não conhecemos direto)

Olá!

Tudo é bem recente. Estava em Taubaté fazendo pizza frita quando as mensagens começaram a chegar. “Vocês vêm hoje? Vocês vêm amanhã? Quando vocês voltam?” Essas eram as mensagens do senhor meu sogro no último fim de semana, em uma insistência que não é costumeira. “Tá tudo bem aí? Aconteceu alguma coisa?” foram as respostas da patroa, já ressabiada, conhecendo seus pais como a palma da mão. De toda forma, não era causa de urgência, do contrário teríamos uma ligação. Sendo assim, ficamos em compasso de espera. O mistério foi sanado na terça. A senhora minha sogra ligou chorando para a patroa, com um derramamento que lhe é característico até quando o gato do vizinho é atropelado, o que torna difícil mensurar a gravidade do caso. O rosto da patroa foi desanuviando à medida que ouvia a pantomina da mãe, até virar um sorrisinho jocoso, o que já me prenunciou mais uma da genitora. É preciso aqui descrever com cuidado e detalhe a ocorrência para que possamos seguir no nosso assunto.

O pai da minha sogra morreu há 24 anos. Foi sepultado em uma campa da família de uma das noras, em um cemitério de Santo André, o que livrou uma parte dos pesados custos do féretro. Eles não se davam lá muito bem, mas, no momento do aperto, um pouco de solidariedade não vai mal (e a economia dos cobres faz sepultar junto certos desconfortos). Acontece que a tal nora mudou para outra cidade, e perdeu todos os vínculos com a antiga moradia, vizinhos, convênios, pedicure e etc. Dessa forma, a manutenção do jazigo passou a ser um gasto inútil, já que todo mundo lá dentro já estava reduzido a ossos. Avisou à irmandade da sogrona que iria se desfazer da sua quota de campo santo e pediu para que providenciassem sua exumação, caso se incomodassem com a remessa dos restos mortais para o cruzeiro. Como essa patota é toda cheia de dedos e superstições, resolveram resgatar o “papai” e mandar cremar o calcário. O resultado foi uma urninha parecida com uma caixa de badulaques, que custou bons vinténs para os seis filhos sobreviventes. A questão se tornou que fim dar ao papai em pó, e aí começa a encrenca.

A senhora minha sogra é uma personalidade dúbia. Quando se trata de conviver com o sogrão e com a patroinha, ela é cascuda. Irrita-se com facilidade, com coisas graves como fazer barulho ao comer ou sentar torto na cadeira. Já com os irmãos é de uma indulgência que ultrapassa a barreira da subserviência, submetendo-se a absurdos que chegam a ser desumanos. Digo isso porque os cinco irmãos que não são minha sogra deliberaram, sem consulta, que o encargo das cinzas deveria ser exatamente dela, pelo fato de ser a primogênita.

É uma escolha de Sofia? Não me parece, mas não ME parece. Para os outros, como minha sogra, pode parecer. No meu caso, restos mortais nada mais são que isso: restos. De minha vontade, eu doaria meu corpo morto para pesquisa, ser útil em alguma coisa depois da morte. Contudo, compreendo que isso pode ser muito doloroso para os meus filhos, então eu deixo a critério deles o que fazer, desde me mumificar e colocar em um sarcófago até enterrar na várzea dentro de um saco preto. Só que a sogra sacraliza as cinzas do papai, e buscou até uma história de que ele queria ser enterrado junto com a esposa. Eu acho que é uma falsa memória, mas, se for verdade, é muito estranho. A vida comum dos dois não era nada modelar. Não que vivessem às turras e aos berros, mas, pior ainda, era um casal de absoluta indiferença. Quando estava prestes a morrer, a velha teve sua perna torada, por conta de uma trombose. O papai não teve nenhum remorso em colocar ela para dormir em outro cômodo, porque afirmava que ela passou a se mexer muito e fazer barulho no quarto. Sendo assim, não me parece crível essa vontade de permanência na eternidade (salvo algum peso na consciência).

Os irmãozinhos queridos não diligenciaram a tarefa por respeito à primogenitura da minha sogra. Fizeram-no para não gastar ainda mais, já que a exumação e cremação não saíram de graça. E, como eu disse, o que seria no máximo uma tarefa desagradável virou um dramalhão mexicano. Jogue no mar, solte no vento, leve para Minas que nasceu ou Paraná em se casou, enterre em um jardim… a cada conselho, um choro e uma oposição. Eu discretamente fingi ir ao banheiro, deixando o encargo para a patroa. O que ela quer é enterrar as cinzas no túmulo da velha, mas não há nem a certeza de que este ainda existe. Diante de toda essa incerteza, aliada ao gasto do enterro que os irmãos não compartilharão, a minha sogra está plena de angústia. É como se fosse uma segunda morte do pai, reservada apenas para ela. Sentiram o tamanho da encrenca? Quando a conversa se encerrar, eu volto aqui e cadastro a solução dada, para não lhes deixar pontas soltas*.

Eu não posso pensar só com a minha cabeça. As fronteiras da morte são muito embaçadas, e nunca é claro onde o confronto diário que temos com ela é aceitável ou não, pelo simples fato de sermos todos muito diferentes uns dos outros, e, embora eu possa parecer mais irônico do que deveria em um texto como esse, eu procuro respeitar o que é a dor de cada um. Ela não é consensual nem entre os leigos, nem entre os doutos. E vou mostrar como posições antagônicas podem ser elegantes, ambas.

No começo do século XX, entrou em voga, no âmbito filosófico, uma corrente chamada de Fenomenologia. Ela foi criada pelo tcheco Edmund Husserl e dizia, em seus mais básicos fundamentos, que toda realidade é apresentada para uma consciência. Isso tinha um significado imediato: se cada um tem sua própria consciência, cada um tem sua própria maneira de absorver o mundo que lhe cerca. Isso se dá porque não somos robozinhos com um processador padrão – todos recebemos educações diferentes, de culturas diferentes, repassadas por pessoas diferentes, nascidas em épocas diferentes. Dessa forma, qualquer objeto que observemos vem revestido por várias camadas de cultura, que se apresentam a nós antes do objeto que recobrem, sendo que a primeira e mais fundamental de todas é a própria linguagem. Pense numa vela, por exemplo. Ela é, fundamentalmente, um artefato para iluminar. Alguém a verá meramente nesse sentido, uma peça para substituir a lâmpada quando não houver força. Há outro sentido prático, o de aquecer. Quem precisa esterilizar pequenos objetos, já verá nela outro sentido. Pode fugir de seu uso pragmático e partir para um uso simbólico, ritualístico, como acontece em inúmeras religiões. Pode ser ainda um objeto estético, e, nesse escopo, tanto pode enfeitar e perfumar um cômodo, quanto ser um adereço de dança. Pode mudar de sentido pelo seu material ou sua cor, pelo tamanho da sua chama, pela época do ano em que seu sentido concreto ou metafísico é invocado. Tudo isso pode ser extraído de uma vela e vai depender de um sem-fim de fatores, e cada um verá essa vela de acordo com as circunstâncias que moldaram sua consciência. Quando o filósofo vai analisar essa vela pelo método fenomenológico, procura retirar qualquer conhecimento anterior que se tenha sobre ela, removendo todas as capas de cultura e preconcepções, para evitar a contaminação do processo cognitivo. Isso é fácil? Não é, mas é necessário esse esforço para que se chegue ao âmago de uma essência. Isso é o que é chamado em Filosofia de redução eidética, ou seja, a remoção de qualquer ideia (eidos) enviesada que tenhamos sobre um determinado assunto ou objeto.

Martin Heidegger tornou-se adepto da Fenomenologia, e utilizou-a não para analisar um objeto qualquer, mas a essência do Ser por excelência, o próprio humano, e suas relações com o universo. Eu já falei sobre essa sua tese do humano como Ser, neste texto. Portanto, vou só dar uma rápida repassada: o ser humano, enquanto visto como essência, tem uma permanente relação com seu meio, mas que se mantém em destaque peculiar: é um homem presente, que está no mundo e que se pergunta sobre sua essência - o ser-aí (dasein). Esse dasein vive para si, para o mundo e para os outros, mas toda essa relação desemboca em seu propósito último, a morte. Desta forma, o dasein e todos os demais aspectos do ser são, na verdade, o ser-para-a-morte, caracterizado pela angústia. É porque a existência do dasein assemelha-se a uma estrada cujo fim é um muro. Parafraseando Toquinho, e ali logo em frente a esperar pela gente o futuro está. Pior ainda: há um muro no ponto de fuga do horizonte, e saberemos que em algum momento chegaremos nele, mas não sabemos com exatidão quando. Não sabemos de nada que está para lá deste muro chamado morte, e por isso temos aquela permanente angústia que caracteriza o ser humano, e que foi dissecado com tanta propriedade pelo Existencialismo.

Pelo que podemos notar, o dasein heideggeriano é um primado do indivíduo. A pessoa que pergunta sobre sua própria essência está delimitada por si mesmo, já que eu não tenho como acessar a consciência de outros seres. Como somente é dele que se pode depreender uma consciência autônoma e conhecida, não é possível extrair de outra parte um ponto de vista, que permanecerá sempre em si mesmo. E como será com a morte? O ser humano não pode projetar coisa alguma, por estar dentro de si, assim como só sabemos que o planetinha é azul porque um dia nós saímos dele. Não é possível colocar a morte diante de nós para que possamos encará-la?

O filósofo lituano Emmanuel Levinas, a quem tenho acompanhado com recente interesse, oferece uma resposta. Ao contrário do olhar ontológico de Husserl e Heidegger (e, por extensão, de todos os adeptos da Fenomenologia), Levinas extrai do indivíduo a centralidade filosófica e a transpõe para o Outro, digitado em letra maiúscula para que se dê a ele noção de sua importância, estabelecendo uma ética da alteridade. Há a percepção de que toda a Filosofia, ao se ocupar do Ser como entidades ontológicas (vistas como essências), aponta sempre para a totalização e para a uniformidade, ou seja, para coisas eternamente iguais a si mesmas, invariáveis. Um ser humano, visto dessa forma, não cumpre com aquilo que temos em nosso convívio, não explica as variações, não justificam a diversidade. Vejam: não se trata de negar uma raiz ontológica para o homem, mas unicamente de se enganar no viés de análise. Quando olhamos para a humanidade através da ótica ética, todas as diferenças se justificam. É no outro que está muita explicação para nós mesmos.

A principal representação da alteridade que Levinas utiliza é o rosto. Não se trata aqui meramente do aspecto físico facial de uma pessoa, mas o distintivo de uma presença sobre a qual eu tenho uma responsabilidade. E não se trata aqui de uma responsabilidade alla Pequeno Príncipe apenas (“tu te torna eternamente responsável por aquilo que tu cativas”), mas um reconhecimento de um significado sem contexto e sem preconceitos a cada um que se olhe. Não importa de onde vem, para onde vai, como se chama, de que cor é, a qual etnia pertence, o Outro é um elemento de revelação de mim mesmo e da própria realidade em si.

O rosto, portanto, é o elemento de identificação de outro humano, e sem importar sua beleza já carrega uma predisposição ética que é dada desde a sistematização moral judaica, contida nos mandamentos: não matarás. Isso porque o rosto expressa a vida - só o vivo ri, chora, geme, teme, enoja-se, enraivece-se, assusta-se. É com o rosto do Outro que nos relacionamos e responsabilizamos. O rosto é a expressão de que existe um indivíduo fora de nós, com o qual devemos reconhecer a titularidade de direitos e de existência. Ao reconhecer a responsabilidade que temos sobre o Outro, reconhecemos a responsabilidade que temos para com a humanidade inteira.

Quando vai à morte, o rosto se transforma em máscara. Já não é mais uma expressão de vida, porque a máscara não é rosto, é apenas uma simulação que ainda traz uma expressão, agora fixa, agora eterna. O rosto morto possibilita a nós tornar possível algo que não conseguimos testemunhar em nós mesmos. É o sair de si que era impossível para o dasein heideggeriano.

E como isso acontece? Pelas medidas das reações que temos diante de um caixão, por exemplo. Lá, o universo de emoções que vivemos se dá pela medida da responsabilidade que tínhamos por aquela vida que se esvaiu. A cada vez que vivemos essa experiência, e Levinas, sendo judeu em plena ascensão do nazismo, a teve em profusão, retomamos uma relação ética: o que eu poderia ter feito para manter a vida desse rosto que se torna máscara, ainda que eu nunca o tivesse visto antes? É nessa morte que eu mesmo posso projetar para fora de mim o que será esse além-muro do ser-para-a-morte heideggeriano.

Em resumo: enquanto Heidegger se preocupa com o ser humano que se caracteriza pela permanente angústia diante da morte, Levinas resgata o Outro como elemento com o qual o ser humano obtém uma experiência ética concreta diante da morte, ao reconhecer o espelho que é a morte do Outro para a sua própria morte. Pode não ser divertido, mas é interessante. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Ainda estou estudando este filósofo, e ele é muito interessante, e deverei voltar a ele. Esta é sua magnum opus: 

LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Coimbra: Edições 70, 2008.

* Bem, o túmulo da mãe não existe mais. Foi tragado pela correria de sepulturas da pandemia e sua ossada, dizem, foi parar na vala comum do cruzeiro. Sendo assim, a senhora minha sogra localizou mais ou menos onde ficava a sepultura e enterrou as cinzas do papai ao pé da árvore mais próxima. Nem foi tão trabalhoso assim.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Tá, só não saquei bem o que é esse tal de (37 - Urbanismo)

(Urbanismo é o tema da vez. Às vezes parece frio, mas não dá para viver unicamente em espaços que se alastram ao sabor do vento)

Olá!

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Quando eu era eu-menino, ainda em tempo que se podia mandar um cidadão de oito ou nove anos comprar verdura no chacareiro, minha mãe mandava-me fazer exatamente isso: “vá na chácara do Seo João e traz um pé de alface”. Não era longe. Bastava descer a ladeira onde eu morava até o fim das casas, onde aparecia um córrego e, do outro lado, as plantações do precitado agricultor. Para chegar lá, eu atravessava por uma pinguela ou brincava de Tarzan na corda que estava amarrada na imensa árvore na margem do riozinho. Isso tudo onde hoje é a Avenida Professor Luiz Ignacio de Anhaia Melo, conhecidíssima em São Paulo pela quantidade industrial de agências de carros usados. Sim, São Paulo – Capital, Terra da Garoa, Metrópole da Solidão, Capital da Vertigem e outros epônimos.

São Paulo é repleta de rios subterrâneos, alguns embaixo de logradouros muito famosos. Sob a Avenida Prestes Maia, temos o Rio Anhangabaú, o mesmo que dá origem ao famoso vale, de tantos shows e assaltos; na 9 de Julho, tem o Córrego Saracura, que inclusive empresta seu mascote para a Vai-Vai; na 23, o Itororó, com seu Palacete finalmente reformado. Tem o Rio da Água Espraiada embaixo da Avenida Roberto Marinho, o Córrego da Traição que fica no subsolo da Bandeirantes, o Riacho do Tatuapé que está oculto pela Salim Maluf e a tal Anhaia Melo tem sob si o Córrego da Mooca, o curso que eu transpunha para angariar hortaliças. Para quem observa os dois ambientes em um intervalo de 50 anos, não há praticamente nenhum referencial que consiga fazer reconhecê-los como sendo o mesmo. Eu não vou aqui fazer nenhum juízo de valor sobre nostalgia de lugares que nos eram caros, nem de prejuízos causados pela impermeabilização das grandes cidades, mas vou focar no processo de transformação do meio urbano e na área do conhecimento voltada para esse tema, o Urbanismo. É dele que eu falarei hoje.


Hoje é consenso científico de que nós, humanos, descendemos de algum ancestral comum com os demais macacos, e que este já guardava características que foram transmitidas a nós e aos demais primatas. Uma delas é a tendência a se conviver em grupos, o que traz evidentes vantagens para os indivíduos em si e para a coletividade como um todo. É uma espécie de ganha-perde onde todos conseguem uma espécie de equilíbrio entre as vantagens auferidas e os tributos pagos. As relações humanas são bastante complexas, mas a lógica subjacente é simples: diante de um dente-de-sabre, meu destino como indivíduo é certo – virar almoço. Já em um bando de cinco ou seis, passa a ser uma hipótese, e não mais uma certeza. Dessa forma, eu abro mão da exclusividade do alimento que eu obtenho em troca da proteção coletiva para comer com uma mínima paz. Melhor dividir o alimento do que ser o alimento.

Mas essa é uma origem muito remota. O que foi o real nascedouro do conceito de cidade foi o domínio da agricultura. Enquanto os grupos eram predominantemente coletores ou caçadores, eram sujeitos aos humores do hábitat. Quem tem uma mangueira no quintal sabe que ela só dá fruta no fim do ano. Se essa for a base da sua alimentação, haverá problemas nos outros meses. Ou seja, nos momentos em que não havia o que comer, nada mais se poderia fazer a não ser migrar para outras paragens.

Entretanto, alguém, em algum lugar do Crescente Fértil* (e pipocando em vários outros lugares), descobriu que era possível usar sementes e mudas para fazer com que as mesmas plantas se multiplicassem mais e mais. Também foi descoberto que diferentes culturas podiam ser alternadas em períodos do ano, e que era possível domesticar alguns animais que serviam de alimento. Pode parecer algo meio prosaico, mas essa foi uma das maiores revoluções ocorridas no gênero humano. O homem deixa de ser um nômade, um cachorro sem dono, um largado no mundo, para se sedentarizar, ficar fixo em um só lugar, já com as intempéries devidamente dominadas.

Só que as vantagens de ser gregário não deixaram de existir. O mundo continuou sendo um lugar perigoso para se viver sozinho, e várias pessoas se juntavam ao redor das plantações e das criações, em regime de coletivismo, fundando algo parecido com aldeamentos. Lá, dividiam suas tarefas de acordo com suas capacidades e trabalhavam em cooperação. Aqueles que tinham a função de vigiar a comunidade ficavam nos extremos e nos pontos mais altos, enquanto aqueles que cuidavam das crianças ficavam mais internalizados, e assim por diante. Esses são os germes das cidades.

Evidentemente, o desenvolvimento das cidades se deu em passos miúdos, progredindo à mesma medida que as sociedades que lhe compunham foram ganhando complexidade em sua estrutura. Etimologicamente, a palavra cidade vem do latim civitas, mas é importante entender porque quando queremos pensar em estrutura física falamos em urbe, e não em polis, termo tão caro à filosofia.

Os três termos têm um significado bastante próximo, mas as sutis diferenças entre si contém toda a explicação para seus diversos usos. A polis grega se origina da reunião das famílias em torno de objetivos comuns, calçado especialmente em interesses políticos e religiosos. A polis carrega consigo um significado de pertença, de reunião de indivíduos unidos por costumes e consensos, dando a ela um aspecto que beira o metafísico: a polis é algo a mais que a soma de seus cidadãos, carregada de simbolismos.

Já a urbs romana é concreta. É a materialização de um determinado território que precisa ter boas condições de abrigar uma população, com vias de acesso, habitação, fortificações, praças públicas, prédios governamentais. Em suma, aqui, o principal ponto de interesse é a maneira com a qual os pontos físicos são dispostos para que as pessoas possam exercer seu convívio. O conceito urbano abarca o meio como uma cidade funciona da melhor maneira possível. Pensada como meio urbano, as casas são casas, não são lares, como seria na polis. Ou seja, elas importam pelo seu sentido concreto, sem os simbolismos.

As cidades vão se desenvolvendo de forma natural, de acordo com o objetivo com o qual nasce. Normalmente, elas pressupõem uma estabilidade de habitantes, e isso se demonstra por uma proximidade razoável com as vias que levam a ela. Por exemplo, é comum que se busque uma proximidade às águas, sem, no entanto, que se torne arriscado estar submetido às inundações. Isso é diferente nas cidades eminentemente mercantis, onde os núcleos urbanos ficam próximos dos cursos de tráfego. Isso é bem fácil de ver em cidades de tropeiros, que pagam o risco da proximidade de rios e vales em nome da estrada por onde correm as juntas, como é o caso de São Luiz do Paraitinga. É bem verdade que esses lugares mais desfavorecidos passam a ser ocupados pelos pobres, excluídos dos pontos melhores, e com isso muitos dos problemas a serem resolvidos nas cidades vão se multiplicando.

Mais modernamente, surge o conceito de cidade planejada, aquela que escapa do conceito natural e já tem em seu nascedouro um propósito mais específico. Quando isso acontece, é plenamente possível verificar como os desenhos urbanos estão menos ligados aos contornos naturais e os tecidos urbanos são mais uniformes, muitas vezes dividindo a mancha urbana em setores específicos.

O urbanismo pressupõe, como pudemos ver até agora, a existência das cidades, e uma oposição bastante comum é distinguir o meio urbano da zona rural. Embora haja tecnologia de ponta cada vez mais presente no campo, é bastante razoável definir que os arranjos necessários nesse meio de fato não têm muito a ver com o que se pratica em uma cidade. Por essa razão, quando falamos em urbanismo, estamos precipuamente pensando naquilo que se desenrola nas áreas mais adensadas, onde há uma continuidade construtiva e uma justaposição habitacional. O conceito de atraso dos ambientes rurais já ficou para trás há muito tempo.

O urbanismo, já agora em um mundo que tem sua população preponderantemente nas cidades, nasce com o objetivo de tornar a vida urbana mais bem adaptada às grandes concentrações, grosso modo. Como grande desafio, tem o propósito de minorar as questões típicas do desenvolvimento desordenado sem tornar as cidades espaços da exclusão e do automatismo. Ele não se confunde com a arquitetura, embora seja subsidiário dela. É preciso lembrar que a arquitetura é uma arte, cujo principal escopo é estético: sua visão está voltada mais para a forma do que para a praticidade, embora não a exclua. O urbanismo, por outra mão, tem um objetivo eminentemente prático, mesmo que sem necessariamente deixar de ser belo. Para o urbanista, fatores como as velocidades praticadas nas vias, o tempo que se leva para ir de casa ao trabalho, a facilidade de se chegar a um hospital ou a quantidade de escolas espalhadas pela área urbana são a grande matéria-prima.

Não só a arquitetura é um aspecto primordial para o urbanismo. É necessário revirar os aspectos geográficos de uma localidade para compreender o que é aquele espaço e como ele pode ser ocupado da maneira mais racional possível. Em um mapa, colocado em cima da mesa de um escritório, é muito fácil fazer rabiscos e garatujas geniais, mas inócuos (quando não prejudiciais). A ocupação urbana desordenada já deu suas caras por aí, e para acomodar a cidade é imprescindível conhecê-la em seus aspectos físicos: onde se eleva, onde alaga, onde venta, onde é úmida, onde o solo é rígido, onde todas as características físicas e geográficas podem fazer com que se vença ou perca o jogo. Já pensou construir uma ponte com altura abaixo do padrão dos caminhões? Já aconteceu, viu?

Pode-se perceber que a preocupação do urbanista é em fazer a cidade funcionar, mas isso pode ter muitas nuances. Como eu explanei no texto anterior a este, houveram urbanistas que se opuseram a um planejamento que somente considerasse a funcionalidade das cidades, e não que as mesmas fossem habitáculos de histórias e relações sociais. Esses urbanistas, retomando os conceitos de polis e urbs, entendiam que a cidade é uma fusão de visões, sob pena de não cumprirem seu papel. Uma cidade não é só um lugar onde as pessoas vivem como organismos, mas como cidadãos, e isso empresta à cidade uma vida para ela também. A solução dos problemas urbanos não passa somente pelo seu funcionamento como um relógio, mas no atendimento das expectativas das pessoas, que a fazem sentir prazer em andar pelas ruas.

Pois é isso. O menininho de cabelinho enrolado que voltava com um maço de alface embaixo do braço não tem mais isso em São Paulo para fazer, porque era preciso que a cidade crescesse e pudesse se expandir, e hoje as saudades não são suficientes para que a cidade novamente se modifique, e ela apenas vai continuar a se modificar, para melhor ou para pior, mas para provar que a urbe caminha como a própria vida. Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

Eu sigo o canal abaixo porque muitas vezes ele percebe coisas que nem passam pela minha cabeça e, nesse sentido, tem toda uma carga filosófica por trás dele, mesmo que não se concorde com tudo. 

São Paulo nas Alturas - Raul Juste Loures

https://www.youtube.com/c/SaoPauloNasAlturas

* Crescente fértil é uma região do atual oriente médio compreendida entre o rio Nilo e o golfo pérsico que era altamente irrigada, e consequentemente conseguia manter a fertilidade em região desértica. Tem esse nome por conta de seu formato abaulado, que lembra uma lua crescente.

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Navegações de cabotagem - o Parque Bacacheri de Curitiba e as calçadas que sempre deveriam trazer seu balé

(Um parque, antes de mais nada, deve ser uma extensão das calçadas que o rodeiam, e não um mero agregador de valor econômico) 

“As cidades são lugares absolutamente concretos. Ao tentar entender seu desempenho, as boas informações vêm da observação do que ocorre no plano palpável e concreto, e não no plano metafísico” - Jane Jacobs

Olá!

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São Paulo e Curitiba são grandes metrópoles, isso é o óbvio. Claro que mencionando meros números, a terra da garoa é mais impressionante, porque aqui o patamar está elevado para o nível mundial. Mas Curitiba não pode ser chamada de aldeia. Muitas coisas são semelhantes entre ambas, com as características típicas e problemas também típicos de quem reúne tanta gente em um espaço limitado. Mas também muita coisa as diferencia, e é isso que dá graça à coisa.

Uma delas sem dúvida se dá na maneira em como Curitiba lida com a questão do verde. Muitos dos parques de SP são praças cercadas, e os verdadeiros são poucos, como o Ibirapuera, o Villalobos e judiado Parque da Luz, enquanto em CWB eles estão mais espalhados e mais presentes na vida dos transeuntes, aquela coisa de fazer parte do caminho diário mesmo. Não por acaso. São Paulo tem um índice de áreas verdes de aproximadamente 16 m2 por habitante. Na Cidade Sorriso, esse mesmo número é de quase 65 m2. Um banho que não tem como fugir à percepção.

Isso acontece porque os parques curitibanos estão no meio do caminho das pessoas, como é o caso do Parque Bacacheri, localizado no bairro de mesmo nome, que é onde meu rebento mais velho habita.

O parque nasceu de um lago que ficava situado em um baixio do Rio Barigui, que formava, há um bom tempo atrás, prainhas onde a população vinha tomar seus banhos.


O nome Bacacheri, pensa-se, vem do tupi-guarani e significa "vaca que escorrega", numa história desconhecida que é possível supor: um belo dia uma vaca descuidada levou um belo tombo e foi parar no fundo do lago, e algum índio espirituoso resolveu apelidar o local com o fato.


Aqui tem o que se espera de mais básico em um parque que não tem atrativos extraordinários, mas que se mistura à vizinhança que lhe cerca. Pistas de caminhada, quiosques, mata preservada e fontes de água.


Há socós, garças e galinhas d'água…

... além de outros bichos que não conheço, que pousam em bandos na reserva nativa, composta essencialmente de árvores de grande porte.


Como eu disse, não há nada de tão distintivo no Parque Bacacheri, a não ser sua integração com o bairro onde se situa, com a proximidade ao Museu Egípcio e os prédios que lhe cercam. Há uma importância que vai para além do lazer: o tanque serve como contenção para a época da cheia, evitando que a região sofra com enchentes.

A existência de um parque desses é o principal contraste que eu vejo entre São Paulo e Curitiba. Não há parques no “meio do caminho” em SP. Um parque não é um caminho pelo qual alguém passa para chegar a algum lugar, salvo raríssimas exceções. O Bacacheri é usado pelo meu moleque não só para levar a cachorra-linguiça para passear, o que é uma das funções modernas de um parque, mas para chegar ao seu serviço, para ir ao mercado. Se formos a uma dita cidade planejada, como é Brasília, as diferenças são ainda mais radicais, com um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar.

Esse papo, tão caro e tão aplicável aos modernos personal organizers, é a premissa fundamental dos adeptos da ordem. O urbanismo dos meados do século XX, que assistiu à explosão das grandes cidades, via na ordenação dos espaços a solução para a expansão das metrópoles, seja na criação dos novos espaços, seja na revitalização dos antigos.

Pensemos novamente em Brasília, mais especificamente no Plano Piloto. Sempre que queremos exemplificar o planejamento urbano, este é um ótimo referencial. Quem observa um mapa viário da cidade, com seu formato de aeronave, percebe o quão poucas são as curvas. Estas são transferidas para parte dos prédios arquitetados por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. A cidade é toda dividida em setores, cada um com sua especialização. As compras são feitas em um lugar, as moradias são em outro, a Esplanada dos Ministérios serve só para isso, com pouco comércio funcional ao redor - bares e restaurantes, por exemplo. Em termos de organização, parece perfeito.

Isso garante uma cidade funcional? A cidade segue os ditames mais modernos da época, especialmente a Carta de Atenas, do célebre arquiteto suíço Le Corbusier. Lá, está descrita a funcionalidade como o principal propósito de uma cidade. Cada problema deve ter descrito para si uma solução clara e eficaz. Isso incluía um primado da setorização, onde as variedades de propósitos e a densidade demográfica seriam minimizados.

Bem… não sei Brasília, mas o fato é que em São Paulo muita coisa não funciona, especialmente no Centro. A principal modificação trazida a partir da década de 50 foi o despovoamento, justamente em região tão bem provida de todos os demais recursos. O afastamento dos contingentes habitacionais não foi somente visto com naturalidade, mas mesmo com incentivo.

Encontro eco nas palavras de Jane Jacobs, jornalista e ativista urbana estadunidense. Quando viu seu Village novaiorquino sofrendo intervenções de cunho radical, trazendo a visão modernista de implantação de grandes avenidas, mergulhou em uma campanha que acabou por impedir a desnaturação do bairro.

Ela preconiza dois termos que se tornarão autênticos motes de campanha para as propostas urbanas no Brasil bem tardiamente, quase quarenta anos depois da edição de sua primeira obra: os olhos nas ruas e o balé da calçada. Isso porque somente no ano 2000 a mesma foi traduzida em Terra Brasilis, e políticos das mais variadas vertentes passaram a tê-la como referência de cabeceira. É preciso compreender que ela entende haver uma organicidade imperceptível na cidade, que nada mais é do que uma ordem natural nas ações, que faz com que haja uma presença permanente de pessoas. Esse balé a que ela se refere não é uma dança no sentido artístico, mas que mesmo assim guarda um aspecto estético de alternância de papéis sociais. Não se trata de um fundo metafísico, mas uma mecânica que é própria do convívio obrigatório das cidades, representado pelas calçadas, o local por excelência onde o homem "natural" urbano, o cidadão, transita. E enquanto há balé, há olhos também. As pessoas se veem, se cruzam, se relacionam, se protegem mutuamente.

Diante dessa maneira de ver as coisas, passo a compará-la com minha própria experiência. Quando eu era criança um pouco mais taludinha, morava na Vila Diva, um bairro operário. Ele vinha à vida logo cedo, porque era preciso que o proletariado se encaminhasse às fábricas, algumas na própria rua, outras bastante distantes. Eu ouvia o Seo Otávio ligando seu táxi para esquentar, sentia o cheiro da padaria do Seo Gaspar, escutava o portão enferrujado do cortiço em frente de casa, em um entra-e-sai que começava ainda no lusco-fusco e ia assim até o escurecer. No alto da rua, era possível escutar o Seo Américo, eternamente mal humorado, rolando as portas da venda para receber suas mercadorias avulsas. Eram pessoas que já iam de macacões, pessoas que voltavam com sacos de pão e leite, alguns poucos com um jornal, muita molecada de avental indo para a escola, alguns com as mães, outros já sozinhos. Bom dia, dona Júlia; bom dia dona Nair.

Mude-se o foco para uma rua adjacente à Praça da Sé. Durante o dia o movimento é intenso. Pessoas circulam de um lado para o outro, namorando as vitrines, puxando carrinhos de frascos, disputando o espaço do leito carroçável com os carros e as motos. Ao cair da noite, a rua se desertifica como tem acontecido com a Amazônia. Por mais que o ambiente diurno não inspire confiança, agora o risco quintuplica. Tem gente morando em três prédios: um no começo da rua e dois no meio. Seus movimentos não são suficientes para trazer vida noturna à rua, que só se mantém habitável por conta da base policial que fica em um dos seus extremos. Se esta sair, acaba a segurança.

Qual é a principal diferença entre as duas ruas, e mesmo da rua do Centro no dia e na noite? O pressuposto inconsciente de que não se está sozinho em momentos de adversidade, no que Jacobs resume na palavra confiança. São as pequenas redes de relacionamento fortuito que levam olhos para a rua, que fazem com que a confiança das pessoas as retirem de uma atitude meramente passiva diante do perigo. É essa a maneira ideal de manter a segurança de um certo logradouro. A segurança dada pela polícia é absolutamente necessária, mas não pode ser considerada uma normalidade em termos civilizatórios. Uma rua tranquila porque está policiada significa que ela foi tomada pela barbárie, e que as pessoas perderam a confiança natural do convívio. Esse é o defeito da minha rua, especialmente à noite, e que não existia na antiga Vila Diva. Aquela constância matutina se repetia à noite, tanto no movimento de retorno, quanto na presença das crianças nas ruas para brincar, nos homens que iam tomar suas talagadas, nas mulheres que se sentavam nos banquinhos para fazer seu WhatsApp analógico. Não se trata de saudosismo, mas da constatação de que a vida moderna, com seus imensos prós, tem também os seus contras.

A cidade não é primordialmente prédios e carros, mas relações sociais. Grandes avenidas e setorização de atividades eliminam todo o aparente caos que é, na verdade, a vibração das atividades de pessoas que são muito diversas entre si, e que tem interesses muito diferentes, que procuram por residências adequadas a seus orçamentos e conveniências, e que tem necessidades e possibilidades únicas. Somente essa calçada viva denuncia que uma rua reflete sua autêntica função.

Com os parques, a coisa funciona da mesma forma. Podemos dizer que eles cumprem sua função não apenas olhando para o que acontece dentro dele, mas em suas cercanias. Um parque cercado por monotonia reflete a mesma em si, ou se estiver em área degradada, trará essa degradação para dentro de si. A diversidade física funcional adjacente vai, mais dia, menos dia, transportar-se para seu interior. As calçadas internas de um parque também são calçadas.

Jacobs demonstra o engano que há em se transfigurar uma cidade em uma peça funcional quando se dá um desvirtuamento de seus propósitos, e o faz pelo próprio exemplo do parque:

“(...) não há por que levar os parques onde as pessoas estão se, ao fazê-lo, as razões que motivam as pessoas a estar lá forem eliminadas e o parque tornar-se um substituto para elas. Esse é um dos erros fundamentais dos projetos de conjuntos residenciais e centros administrativos e culturais. Os parques urbanos não conseguem de maneira alguma substituir a diversidade urbana plena. Os que têm sucesso nunca funcionam como barreira ou obstáculo ao funcionamento complexo da cidade que os rodeia. Ao contrário, ajudam a alinhavar as atividades vizinhas diversificadas, proporcionando-lhes um local de confluência agradável; ao mesmo tempo, somam-se à diversidade como um elemento novo e valorizado e prestam um serviço ao entorno (...)” 

Talvez tenhamos aí o diferencial curitibano, de ter seus parques mais integrados à cidade. Há aqui outros parques mais espetaculares, mas é a existência desses pequenos lugarejos realmente inseridos na vida social que lhes dá o verdadeiro sentido que um equipamento público deve ter. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

A primeira e mais importante obra de Jane Jacobs pode ter muitos pontos críticos, mas, em geral, remove todo o ranço tecnicista de quem vê a cidade como algo que tem funcionar antes de ser sede de convívio.

JACOBS, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

E este é o endereço do Parque Bacacheri:

Parque General Iberê de Matos (Bacacheri)
Rua Paulo Naldony, nº 136
Bacacheri
Curitiba/PR
A aproximadamente 400km do centro de São Paulo

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O café filosófico do quotidiano - sobre monografias e o humor como contador da História

(Já falei bastante sobre produção acadêmica por aqui. Mas e a minha? Sobre o que escrevi na minha monografia?)

Olá!

Clique aqui para ler mais cafezinhos de minha lavra

Na última vez que fui a Curitiba, tive a sanha de conhecer uma cafeteria chamada Café do Moço, que estava ganhando fama com certa rapidez. É o caso de uma leva de siriris: sumiu em questão de horas, vítima de desencontros do quadro social. Só que há males que vêm para bem. A tal cafeteria não existe mais, acontecendo de cindir-se em duas, ambas ótimas: Rituais e Ô Barista, o que me permite visitar não somente uma, mas duas casas de meu líquido predileto. Não ganho um tostão de nenhuma, mas estou aberto a negociações.

A segunda é um negócio mais de café-bar mesmo, enquanto a primeira investe em um cardápio mais amplo e em mercearia voltada ao café, com vários métodos bastante caros. Mas vi um que ainda não tinha tido contato, extremamente parecido com o Hario V60, só que muito mais barato. Veio em minha mala para São Paulo, e seu nome é Waals.


É um artefato de fabricação brasileira, o que ajuda a explicar seu preço mais convidativo. É praticamente igual ao famoso sistema V60 desenvolvido pela japonesa Hario, de quem já falei nesta postagem.


O princípio de funcionamento é o mesmo: produzir um fluxo de água espiralado para disparar um certo turbilhonamento no escoamento, fazendo-a percorrer com mais intensidade pelo pó.


O furo é maior do que o de um porta-filtro Melitta, garantindo que haverá pouca retenção de líquido, e evitando que o café seja superextraído (sinônimo de amargor).


As diferenças mais marcantes estão em aspectos de acabamento, que na Waals são menos bem cuidados, embora não gerem discrepâncias no produto final.


O restante é o formato da alça, que se emenda ao disco de apoio, e os furos laterais próximos à saída de água, o que permite observar mais facilmente o fluxo. Além do preço, esta é a única vantagem real do método com relação ao equivalente nipônico.


Nome do utensílio: Filtro Waals 02

Tipo de técnica: coador cônico espiral (percolação)

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: um coador de papel cônico é introduzido em um porta-filtros de fundo denteado e guias espirais, que retém as partículas enquanto a água faz a extração do café, desembocando em um decanter ou outro recipiente por ação da gravidade.

Resíduos: Mínimos.

Temperatura de saída: Baixa

Nível de ritual: médio

No meio do primeiro cafezinho que passo nesse engenho vem meu debate mental.  É bastante discutível, no meu entender, se não há algo de errado com a propriedade intelectual deste método, que tem tudo de igual ao seu concorrente no que há de essencial: material, angulatura, estrutura de construção, tamanho, capacidade e outras sutilezas. Eu sinceramente não tenho nada com isso, já que não sei bem se a patente do original já está expirada. São coisas das contradições do capitalismo, que reza pelo livre mercado, mas não gosta que invadam suas propriedades intelectuais.

Meu papo não é, entretanto, voltado a questões econômicas, mas um assunto levemente correlato carregou minha cabeça para outra parte do universo. As cópias, no âmbito legal e acadêmico, recebem o nome de plágio. Com inúmeros casos nos meios artísticos,  é uma prática bastante tentadora que estudantes sobrecarregados de tarefas busquem textos já prontos para fundear seus trabalhos, poupando a eles a trabalheira concorrente. Só que é, na verdade, um jogo sujo, e para tentar detê-lo (ou minimizá-lo), há uma série de regras para citações e paráfrases, consubstanciadas, aqui no Brasil, nas normas ABNT. Os orientadores vêm com estas embaixo do braço para tocar o terror nos pobres concluintes. É assim que tem que ser, e assim será.

Eu já contei para vocês as aventuras e desventuras de minha monografia em um dos meus melhores textos, este aqui, ao qual convido a vocês, meus poucos leitores, a conhecer. Mas eu nem de perto passei pela temática abordada, o que eu gostaria de fazer hoje, até porque ele teve uma linha um pouco menos convencional. Acompanhem.

São Paulo não mata ninguém de tédio – deslocar-se pela cidade é uma aventura diária. Logo que comecei a trabalhar no centro desta Terra da Garoa, e morando próximo à divisa com o ABC, tomei por hábito sair bem mais cedo do que precisava (já falei sobre o caso neste texto). Isso porque atrasos representam descontos e eu não estava podendo, como ainda não posso. Acontece que às vezes as coisas dão certo demais, e eu acabava chegando MUITO mais cedo do que o necessário. Sentinela na porta da guarita quer serviço, o que me fazia ocupar o tempo do lado de fora, onde há numerosos sebos de livros e de discos. Alguns deles faziam promoções de bancada, que nada mais são do que pilhas de livros colocados do lado de fora da loja, em um mostruário. A grande maioria eram livros encalhados, de pequeno valor literário, mas o preço era tão baixo que valia a pena arriscar uma porcaria qualquer, porque também ali apareciam coisas boas.

Em uma dessas escavações, apareceu um livrinho de pequeno formato, com capa dura, ainda em estado bastante razoável. Em sua capa, podia-se ler: “Giovanni Guareschi - Dom Camilo e os Cabeludos”, com uma caricatura de um jovem rebelde sendo repreendido por um padre. Era a péssima tradução para um livro chamado no original italiano de “Don Camillo e i giovani d’oggi” - Dom Camilo e os jovens de hoje. Olhei meio de soslaio e dei uma folheada desconfiada. Como a temática do pós-guerra já aflorava logo nas primeiras páginas, acabei me interessando e dispendi os dois reais da aquisição, para lê-lo já logo na viagem de volta.

O fato é que eu engoli o livrinho em uma sentada só. Não se trata de literatura rebuscada, nem de profundas reflexões filosóficas, mas é uma maneira interessante de abordar um tema difícil e, principalmente, de modo divertidíssimo. Isso me levou a caçar outras edições das histórias, com um duplo resultado surpreendente: seus livros não são editados faz tempo e há certa abundância de livros antigos nos sebos, inclusive em língua italiana. Com isso, acabei completando a coleção de contos com a personagem Dom Camilo. É estranho, mas justamente o último livro, aquele que li primeiro, é o mais diferente de todos. Os primeiros são apanhados de crônicas que primeiramente eram publicadas no periódico Cândido, uma prática muito comum na atividade jornalística de meados do século XX, inclusive aqui no Brasil.  Diante do sucesso editorial, estas crônicas foram coligidas em filmes, que, observados com cuidado, deixam transparecer um certo aspecto fragmentário, como naquelas comédias de situações que não tem um grande fio condutor, tendo foco na esquete do momento. O livro que primeiro li, já antevendo sua transposição para a película, tem muito mais a cara de um roteiro de cinema, com capítulos mais longos e mais encadeados entre si, além de ter claramente uma finalização proposital. Conto isso tudo a título de curiosidade. 

Em linhas gerais, a história trata de dom Camilo, um pároco de uma pequena cidade no vale do rio Pó, norte da Itália. Temporalmente, estamos no imediato pós-guerra, em um dos países que mais ficou destruído durante os embates, pelo óbvio motivo de ser um país vencido. Nas incertezas da reconstrução, ele se debate com o prefeito comunista, Peppone, de temperamento iracundo e voluntarioso. O próprio dom Camilo é um símbolo da oposição de forças, sendo descrito como um armário de portas abertas e mãos semelhantes a enxadas, mas que se deixa derreter indefeso por um simples furto de bicicleta. Esses dois protagonistas vão se debater incessantemente por toda a narrativa, ora brigando por uma nova via social, ora resgatando antigos valores, geralmente se ameaçando mutuamente com excomunhões e expurgos, além, é claro, de uma boa dose de vias de fato.

Eu, sem dúvida, fui influenciado na minha simpatia pela minha própria infância, quando via meu avô fazer debates acalorados com o padre Antônio, então pároco da freguesia onde eu habitava, e que, de certa forma, se assemelhavam a esse mote. O velho era ateu convicto, e gostava muito de espezinhar o padre quando o trombava pelas cercanias. "Eh, padre… com saudades do titio?". Essa pergunta se dava maldosamente por causa do sobrenome do sacerdote, Franco. Fazia isso porque o generalíssimo Francisco Franco aderiu às causas fascistas de Mussolini e Hitler e lhes fazia coro, embora a Guerra Civil Espanhola tenha sido suficiente para que a Espanha não tivesse forças de fazer alinhamento explícito na guerra. Francisco Franco era o típico ditador que usava uma pretensa religiosidade para agregar em torno de si a opinião pública assustada com a ameaça vermelha*. Em troco de se proteger uma religião, faz-se tudo o que é contrário a ela, com repressões violentíssimas.

Era uma brincadeira de todo injusta, embora carregasse um certo sentido. O padre Antônio era jovem, saído direto do sínodo de Medellín**, com os novos ares do Concílio Vaticano II, que queria mudar os trilhos da igreja – sua função social deveria ir além das rezas. Ele instalou uma CEB na paróquia e, a custo, montou uma escolinha nos fundos da igreja, aventura narrada neste texto. Acontece que meu avô era daqueles que dizia que o mundo só valeria a pena quando o último padre se enforcasse nas tripas do último político***, e a provocação era mais para levar a discussão para o balcão de um boteco. O padre Antônio compreendia que também lá, entre as garrafas de cerveja, havia suas ovelhas.

Mas como o simpático padre e seu furioso oponente foram parar na minha monografia? Bom… na faculdade de Filosofia, nós temos aulas de Iniciação Científica e de Metodologia de Pesquisa, que visam abastecer o aluno com conhecimentos suficientes para produzir academicamente, e o Trabalho de Conclusão de Curso, vulgo TCC, é a prova de fogo para a averiguação da suficiência formal do aluno. Ocorre que nem só de forma o TCC viverá, mas de todo conteúdo que vier da pesquisa do discente. Isso quer dizer que não adianta estar tudo direitinho como mandam os cânones normativos, mas é preciso que, além do ineditismo e originalidade, o trabalho tenha base e serventia, embora instituições menos sérias não prezem lá muito pela qualidade do que se apresenta. E, para conseguir isso, é preciso consciência do longo caminho a ser trilhado.

A primeiríssima dica do mestre de Iniciação era escolher um tema que o aluno amasse, de modo que os percalços da pesquisa não gerassem desânimo, já consciente de que ele baterá às portas. Por isso, a grande maioria dos colegas normalmente escolhia um filósofo com os quais se apetecesse e fechasse o foco para um aspecto específico de seu pensamento. Há uma armadilha nesse rumo. Se eu quiser falar, digamos, na vontade de potência de Nietzsche, encontrarei milhares de artigos que tratam do mesmo assunto. Se eu quiser sustentar a temática, talvez eu chegue a uma abordagem que tente ser tão original que acabe por escapar do assunto, estragando a proposta. Por esse motivo, saí do sentido filósofo-tema e caminhei para o sinal inverso, só que a partir da linha-mestra dada pela obra do escritor italiano. O objetivo era ter o tema pós-guerra, mas não seguindo o fluxo de um livro de história, e sim das crônicas de Guareschi.

O título da minha monografia foi "Religião e Política na Itália do Pós-guerra: A Visão da Literatura de Giovanni Guareschi". Girei por todos os ciclos necessários, apresentando o autor em breve biografia, descrevendo minuciosamente o contexto histórico e fornecendo até circunstâncias geográficas necessárias à boa compreensão do trabalho. Minha ideia era produzir um texto que conseguisse ser agradável de ler ao mesmo tempo em que cumprisse todos os rigores acadêmicos. O segundo objetivo foi claramente atingido, dada sua aprovação e franqueamento à publicação. Já com relação ao primeiro, volta e meia o recupero para dar uma lida, e constatar se ainda me produz o mesmo encantamento de outrora. Por enquanto, tem dado certo.

Algumas referências são óbvias. Como falei de confrontos políticos tendo de um lado o comunismo e do outro a democracia cristã, explorei muito Marx, Engels, Gramsci e as encíclicas papais voltadas para a doutrina social da igreja. Outro aspecto de que tratei foi a laicização cada vez maior da sociedade, o que ocasionou debates antes impensáveis, quando a política, especialmente na Europa ocidental, não passava sem o crivo sacerdotal. Mas o objeto ia além disso, porque a forma como Guareschi tratava de seus assuntos incluía muito uso do humor, então discorri também sobre o efeito psicológico da ironia e da paródia, no que lancei mão de gente como Freud e Lacan. A hipótese básica foi: o humor popular é uma ferramenta para contar a História? Foi um belo trabalho, modéstia à parte.

Eu gostaria de liberá-lo para a leitura de vocês, meus corajosos leitores, mas ainda não desisti por completo da ideia de utilizá-lo em um mestrado, e, por esse motivo, preciso manter seu ineditismo. Garanto que me mantive mais comportado do que muita gente com relação a plágios, até mesmo em propriedades intelectuais que  nem sempre me parecem grandes argumentos para impedir o conhecimento. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Como já mencionei outros livros de Guareschi nesta casa, segue mais uma recomendação de livro típico, que dá uma boa amostra do que levei em conta para meu trabalho.

GUARESCHI, Giovanni. Dom Camilo entre o Diabo e a Água Benta. Rio de Janeiro: Record, 1981.

Outra recomendação é o pacote de normas técnicas que dizem respeito à produção acadêmica. Os sites de universidades costumam tê-las, e são as seguintes, em ordem numérica:

NBR6022: Apresentação de artigos em periódicos

NBR6023: Referências bibliográficas

NBR6024: Numeração das seções

NBR6027: Sumário

NBR6028: Resumos

NBR6034: Índice

NBR10520: Citações

NBR12225: Lombadas

NBR14724: Apresentação dos elementos

NBR15287: Estrutura do projeto de pesquisa

* Qualquer semelhança com os estranhos dias atuais não é mera coincidência

** As conferências episcopais da América latina são realizadas de tempos em tempos. A última, realizada em Aparecida, foi de uma inocuidade de dar pena, mas a de Medellín propôs uma igreja integrada à realidade de desigualdade social que, de fato, teve efeitos práticos no meio da sociedade. Até a chegada de João Paulo II e a volta do conservadorismo na igreja.

*** Há muitas variações possíveis: o mundo só será mais mundo quando o último político se enforcar nas tripas do penúltimo, quando o último padre se enforcar nas tripas do último pastor e via discorrendo.