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quinta-feira, 26 de março de 2020

O amor nos tempos do coronavírus

"O amor se torna maior e mais nobre na calamidade”

Gabo, O Amor nos Tempos do Cólera


Olá!

Se alguma vez eu falei que vivi tempos bicudos, rapaziada... Apaga tudo. Que perrengue lascado! As notícias se atropelam de tal forma que nem sei mais direito a sequência. Tudo o que consigo resumir, e isso vale para agora-agora-agora, é que no meu emprego as grávidas e os velhos foram mandados para casa na sexta-feira treze. Simbólico e significativo. Na segunda seguinte, redução de jornada para seis horas; na terça, metade da turma em trabalho remoto, e na quarta todo mundo trabalhando de casa, ficando meia dúzia de infelizes revezando nos plantões, até a proibição total de acesso ao prédio na sexta, dia 20. Eu, ecdemomaníaco diagnosticado, me ajeito quase claustrofóbico com um detestável notebook na mesinha da sala. Salva a companhia da patroa e da filha mais nova, a moringa de água fresca e o café passado na hora.

Já tinha encarado algumas epidemias antes. Quando eu era bem pequeno e ainda estava no prezinho, passei a mais séria que eu tinha visto até hoje. Houve um surto de meningite que ceifou muitas vidas, especialmente de crianças. Entre estas, estava aquela que viria a ser minha cunhada, irmã da consorte, se poupada houvesse sido. Dizia-se que era uma doença que, quando não matava, deixava algum tipo de sequela, aleijando e/ou retardando. Enquanto o governo militar procurava minimizar a epidemia (qualificando os casos como um mero surto – leiam mais aqui) e adiava a vacinação, nossos pais se viravam como podiam. Antes de ir para a rua, penduravam um patuá contendo cânfora por dentro da gola de nossas camisas. Imaginava-se que os vapores evolados tinham a propriedade de afastar os vírus, o que eu penso hoje se tratar de uma mezinha tão válida quanto um benzimento. Mas nada foi meramente parecido com o que estamos vivenciando agora.

Reavivando esse tipo de memória, vou completando a segunda semana de resguardo. Mas esse é o ponto culminante (por ora) da trajetória e da tragédia do coronavírus em meu diminuto universo – ficar enclausurado em casa, com medo de um ser microscópico, que nem é um bicho, nem uma planta, nem uma pedra. Um vírus, a forma mais elementar de vida que existe no combalido planetinha azul. Uma cápsula de proteína que envolve uma cadeia de ácidos nucleicos, e que invade uma célula saudável para se reproduzir. É isso um vírus, uma estranha entidade no limiar entre os seres vivos e os brutos, e que toca o terror em tanta gente. Antes disso tudo, porém, algumas medidas já vinham sendo tomadas: lavar as mãos, tossir no lenço, não se aglomerar e evitar contato.

Isso tudo é muito estranho. Aqui no Brasil, somos muito acostumados a essa coisa do contato físico, com beijos, uma mão no rosto carinhosa, um abraço seguido por tapinhas na barriga, ou, no mínimo dos mínimos, um aperto de mão. O inimigo da vez nos proíbe de tudo isso, até mesmo e principalmente nas avós, vítimas prediletas do “bichinho” que parece mais a cabeça do Fudêncio* do que a coroa que seu formato diz representar. E isso me parece o ponto que mais toca nossos afetos. A perspectiva da morte não é algo quotidiano, e ninguém vai todo dia pegar fila no mercado ou na farmácia atrás de “arcogel”. Mas cumprimentar... Beijo-abraço-aperto-de-mão... O namastê hindu, por mais afetuoso e elegante que seja, é um substituto quase que melancólico para um povo quem tem como virtude a capacidade de tratar um novato como se fosse um velho amigo. O que será de nosso amor quando a espuma desse vagalhão desmanchar?


Vejamos. A designação amor é, na verdade, um guarda-chuva que abarca uma quantidade meio grande de sentimentos que são unidos pelo ponto em comum da sensação de afeto positivo, ou seja, um querer bem. Percebam de cara, portanto, que é muito difícil estabelecer uma definição de dicionário para o amor. E, de fato, é um tanto complexo estabelecer qual é a cola que une pessoas tão distantes entre si. O ideal, nessas coisas de Filosofia, é apelar para os gregos, que sabiam das coisas e já deram parâmetros para todo o pensamento ocidental.

Já de cara podemos notar que não existe só uma forma de amar, muito embora as diferentes modalidades do amor possam receber nomes distintos, dependendo especialmente do objeto para o qual nosso sentimento se volta. Se formos detalhistas em excesso, veremos que os gregos tratam da questão sob inúmeros vieses, o que vai deixar este texto meio longo e chato. Vamos reduzir a conversa a três deles, os mais clássicos e que abrangem todos os outros. Vamos falar de eros, de philia e de ágape.

Falar em eros nos remete automaticamente ao deus grego do amor, filho de Afrodite e Ares, ou Vênus e Marte na versão romana. Afrodite é a divindade da sexualidade, dos corpos perfeitos e da perpetuação da vida, enquanto Ares é o deus da guerra, da violência e da virilidade. A combinação da personalidade de ambos fez de Eros (Cupido para os romanos) a personificação da volúpia e do desejo incessante. Essas suas características fizeram-no emprestar o nome a um tipo de amor de toque, romântico, aquela coisa de amantes mesmo, e que pressupõe envolvimento físico. Todos nós que já namoramos um dia sabemos muito bem o que isso significa: é gostoso à beça, mas não nos dá sossego, especialmente na ausência. Por trás do amor erótico, há muito das moções do desejo, e por conta disso, todas as demandas deste vem junto: a impulsividade, a instintividade, sendo, por vezes, quase patológico. É, é isso mesmo. Pathos serve tanto para designar o sofrimento quanto a paixão. O apaixonado adoece de seu amor: pensa a todo tempo, quer a todo tempo. No entanto, o amor erótico não é pura e simplesmente sexo. Aquele beijinho de bom-dia é a ponta mais inocente do eros nosso de cada dia, e que serve de conexão para a próxima face do amor. O centro do amor erótico está essencialmente no interesse próprio. Quando amamos eroticamente, estamos preocupados, primordialmente, com o nosso próprio bem, o cumprimento de nosso desejo. Por este motivo, o foco do eros é egoísta, voltado para o próprio amante e a posse do objeto do desejo. Nada disso é essencialmente ruim, e faz parte integrante da dinâmica dos relacionamentos.

Vamos falar agora da philia. Aqui, nós vamos desacoplar o elemento erótico e inserir um mutualismo obrigatório. No eros, é possível que apenas uma das partes, o sujeito, seja ativo na busca pelo desejo. Já na philia, teremos um compartilhamento no querer bem, e por isso mesmo é o tipo do amor de amigo, em que o companheirismo toma o lugar da proximidade física. A amizade não se reveste de desejo, ao menos da mesma forma que em eros. É aqui onde encontramos a lealdade e fraternidade entre os grupos, como no sentimento pátrio ou nas famílias. Percebam, meus caros, que enquanto o eros tem uma linha vertical, com a clara definição entre um sujeito desejante e um objeto desejado (embora possa ser recíproco), na philia temos uma relação horizontalizada, e é nisso que nos reconhecemos gregários: há uma relação de complementaridade que não é de rigor no eros. Afinal de contas, digamos que em um casal não há necessariamente dois amantes, mas entre dois amigos há sempre uma relação de reciprocidade, senão não seriam amigos**.

Agora, existe uma terceira abordagem do amor que é chamada de ágape. Neste caso, já não é necessária a corporeidade do eros e nem o interesse comum da philia. O ágape é o amor desinteressado, aquele que não aguarda retorno nem compartilhamento. Temos aqui um completo desprendimento com relação ao proveito – nem o individualismo erótico, nem a mútua simbiose amical. Muitos religiosos dizem que é exatamente este o amor que deus tem para com suas criaturas***. Isso quer dizer que ele é inaplicável ao pensamento dos ateus? Não. É aquele sentimento que envolve a comiseração ao vermos um desassistido, a ternura em observar crianças brincando na rua, a empatia que nos une aos distantes, o amor colocado em ação. Em outras palavras, a caridade. A verticalidade volta, mas com o sinal trocado. Aqui, o foco do amor está todo no objeto. O sujeito funciona como uma espécie de doador do sentimento, sem esperar nada em troca. Altruísmo puro.

Paixão, amizade e caridade... um atuando no plano físico, outro no social e o último no espiritual. Nossas formas de amor não são unívocas em cada relação, mas misturadas. É evidente que o primeiro pensamento que temos nos amores eróticos são as relações sexuais, mas esta se dá naquele momento efêmero, que não exclui a amizade entre ambos (ou no trio, quarteto, sei lá). Idem quando dirigimos uma ação que atinge a coletividade. Nela não está apenas pessoas que nunca vi, e que o faço desinteressadamente, mas também lá eu tenho meus amigos e meus amores eróticos, o que demonstra que o sentido de fraternidade é mais abrangente do que somente uma das modalidades pode atingir.

E tudo isso com o coronavírus? Bem...

Nesta área da informática em que milito, há uma predominância masculina que vem sendo equilibrada muito aos poucos. Naquela rota que eu faço entre o elevador que me deixa no andar em que trabalho, com mais de setenta pessoas, passo ao lado de duas ou três analistas, a quem cumprimento com um beijinho no rosto. Com relação aos demais, temos quase que um código interno de se cumprimentar com um toque e um soco nas mãos, meio que no estilo do basquete ianque. Além disso, eventualmente um abraço e, mais eventualmente ainda, um beijo no rosto (porque esse tempo está passando). Gozações mútuas entre corinthianos e palmeirenses, uma chacota para a novíssima tatuagem do webdesigner (como cabem tantas em um único ser?) e alguns comentários sobre roupas estranhas e cabelos esquisitos. Só depois disso, encho a caneca com água e vou destravar minha máquina. Nestes dias próximos ao recolhimento total, uma pesada aura de desconfiança recíproca baixou como um muro entre todos. O máximo de afeto era o protocolar bom-dia e um aceno de mão, decretando que o carinho recíproco era risco de vida.

Quando toda a poeira baixar, o que é que vai sobrar? Em tese, o rio da vida voltará para seu curso, mas é cedo para dizer isso ainda. Hoje podemos até achar engraçadinho trabalhar de casa, mas, na medida em que o tempo passar e as costas começarem a doer, a reposição das peças ficar por nossa conta, a falta de um happy hour incomodar as gargantas secas, ou pior ainda, o bicho desgraçado nos pegar, a nós ou aos nossos, e deles fizer estragos, o tamanho do trauma vai ficando imponderável. Como reagiremos a tudo isso, a todas as perdas, a todo tédio, a toda dor? Pode ser que criemos uma nova reverência, distante e segura, que nos afaste do colega que soltar um espirro mal dado. E, com isso, o vírus nos levará uma boa parte não só de nossa saúde, mas de nossa identidade. Nossa philia poderá se manter como era, só que mais distante, menos táctil, mais creditícia, menos calorosa, mais segura, menos próxima, mais chocha, menos amorosa.

Por outro lado, se nos arriscamos a perder em eros, podemos ganhar em ágape. É claro que, ao concordar com a reclusão, estamos pensando inicialmente em nós mesmos, e, em seguida, nos nossos velhinhos e doentes particulares. Mas é óbvio que a adesão como cidadãos inclui uma solidariedade com o próximo como poucas vezes tivemos oportunidade no Brasil. Em um momento onde esperamos sinceramente que um líder nos guie, vemos que há um estúpido onde não deveria estar. Ao lado dele, um corpo de empresários que insistem em se preocupar com a economia, que menosprezam os perigos da doença, e não se importam com a saúde de todos, a não ser de seus lucrativos negócios. Estão em desespero com os bolsos cheios e, acostumados a comprar almas e convicções, relativizam a vida humana como se fosse possível mensurá-la em dólares, dizendo que as perdas são inevitáveis, e que se gire a roda da grana então. Eles têm um amor erótico pelo próprio dinheiro, devem ter sonhos pornográficos com seus cofres, e o imbecil-mor faz coro com eles. Dessa forma, só temos nós mesmos para nos defender, além dos governadores e prefeitos que assumem seu real papel, substituindo o idiota que não governa para o povo****.

(Aliás, que belo tapa na cara das ideias do liberalismo extremo, estado mínimo, e demais que-tais, hein? Mas, quanto a isso, vamos aguardar um pouco mais para voltar a escrever).

É dessa nossa miséria particular, combinada com a desgraça mundial, que uma conduta independente de uma ideologia pré-fabricada vai emergindo, retomando o bom senso e a confiança na Ciência, e que nascerá um novo conjunto de relações sociais. A cada vez que nos propomos a nos isolar, damos mostras de que nosso mergulho na monotonia é uma oferenda para todos aqueles que estão mais expostos ao risco, ou que tenham uma situação de saúde mais complicada. Ficar em casa, lavar as mãos, espirrar no cotovelo, tudo isso são atitudes que desenvolvem justamente nosso amor mais difícil e raro, o amor ágape. Talvez saiamos dessa catástrofe toda com um pouco menos de contato, mas muito mais solidários. Tomara que seja ao menos assim. Bons ventos a todos.

Recomendações de leitura:

Um dos primeiros tratados sobre o amor veio de nosso mestre Platão, com a curiosa figura do andrógino, as duas partes que se completam mutuamente. O Banquete é uma das obras fundantes da Filosofia ocidental. Vale a pena conhecer.

PLATÃO. O Banquete. São Paulo: Martin Claret, 2015.

O livro de quem chupei descaradamente o titulo do texto é uma das grandes obras de um de meus escritores favoritos. O cólera não é uma virose, mas uma infecção pelo vibrião colérico, uma bactéria. Seus sintomas são muito piores do que o da coronavirose: a pessoa literalmente se esvai em merda, agravada por vômitos e cãibras. É uma doença que vai na contramão de nosso caso atual. Enquanto o coronavírus grassa pelas classes mais altas, que tem dinheiro para longas viagens, o cólera se dá nas aldeias mais miseráveis deste mundão, lugares com deficiência em saneamento básico e acúmulo de eflúvios patogênicos. O conteúdo crítico da obra de Marquez vai muito além, portanto, do que a história de um amor à primeira vista que demorou 50 anos para se concretizar. Só lendo para entender.

MARQUEZ, Gabriel G. O Amor nos Tempos do Cólera. Rio de Janeiro: Record, 1985.

* Fudêncio e seus amigos foi o grande desenho animado de Terra Brasilis. Para quem não conheceu a série, era uma turma de amigos de uma escola liderada por um menino punk que só fala mimimi, mimimi, mimimi, mas que era perfeitamente compreendido por seus colegas. Ácido e crítico até a raiz da medula, tinha tudo o que você puder pensar de errado. Mas era excelente.

** Este termo, como designa uma atratividade, foi distorcido por completo para nominar toda sorte de compulsão anômala, como acontece em pedofilia, parafilia, zoofilia e etc. Entretanto, outros usos estão mais próximos da verdadeira etimologia, como filantropia, filosofia e tantos outros.

*** Estranho esse modo de amar desinteressadamente quando o primeiro mandamento ordena “amar a Deus sobre todas as coisas”.

**** Não que eles sejam muito melhores, que agem no oportunismo, mas, independentemente da intenção eleitoreira ou não, estão se movimentando. Isso é um fato inegável e o mínimo que se pode esperar de um dirigente.

Retirei a imagem do coração quebrado do site br.freepik.com

segunda-feira, 16 de março de 2020

Em trezentos textos, a sutil história da transformação do pensamento e da fé

Olá!

Trezentos, que não são de Esparta. Este é o número deste texto que você, herói da resistência deste humilde espaço, que ainda insiste em aqui comparecer, lê agora. A você, só resta o meu sincero agradecimento.

Conforme eu estipulei em uma dessas efemérides, números redondos e aniversários serão destinados à Metafilosofia, evidentemente no meu âmbito particular. O problema, no caso, é: o quê? Com tanta coisa para escrever, dá uma tentaçãozinha de passar batido e vamos-que-vamos, mas eu sou queixo-duro, e achei por bem manter minha palavra.


Estando as coisas nesse status, comecei a "folhear" o blog em busca de um tema. E comecei a perceber melhor as transformações que foram ocorrendo na maneira com a qual o compunha. A mudança mais notável foi no tamanho dos posts. Como minha proposta inicial era soltar reflexões rápidas para discussão em classe, eu escrevia coisas absolutamente concisas, havendo algumas coisas de meia lauda*, o que, convenhamos, é bem curtinho. O passar do tempo foi atiçando meu perfeccionismo e os textos se alongaram muito, de forma quase viciosa. Sim, textos longos nestes tempos de despachos presidenciais em 140 caracteres viraram uma incômoda caceteação, mas o fato é que quando eu deixo a pena correr solta, ela não para mais, gerando jamantas de até doze laudas.

Para dar uma dimensão do tamanho das escritas deste escriba, vou colocar um quadro anual da minha produção. Como eu fiz isso? Para quem não sabe (acho que ninguém), tenho agremiado toda a minha produção em um único volume, como se fosse um livro de crônicas. Separando os tomos por anos, teremos o seguinte resultado:

Ano
Total de posts
Total de páginas
Média de páginas
2011
36
74
2,1
2012
28
88
3,1
2013
19
78
4,1
2014
28
133
4,8
2015
40
207
5,2
2016
28
150
5,4
2017
37
311
8,4
2018
37
212
5,7
2019
35
258
7,4
2020
11
119
10,8

Isso demonstra a curva ascendente com relação aos primórdios, com um pico em 2017, e que estou em grande forma, com uma média quase inaceitável atualmente. Com isso, tenho claramente uma mudança de propósito, mas espero estar atingindo ainda o mesmo público, enquanto angario outros interessados. Nenhum dos meus textos tem intenção acadêmica, o que eu queria mesmo é acender a chama de meus leitores por temas relacionados à área de humanas em geral, já que há muito eu desencostei meramente da Filosofia.

Eu achei bom também dar uma olhada nas visualizações mais bem cotadas, para tentar entender o que interessa mais à galera. Só que há uma armadilha aqui. Textos mais antigos tendem a ter mais visualizações pelo simples fato de existirem a mais tempo, então o ideal seria calcular a média diária de visualizações, fazendo uma continha simples: total de visualizações dividido pelo número de dias da publicação. Mas aí temos outra cilada, Bino. Imagine que eu tenha publicado algum texto ontem, e ele tenha tido dez visualizações. Sua média será, ora pois, de dez visualizações ao dia, o que distorcerá a métrica. Para sanar a questão, adotei um critério simples: somente levar em conta postagens com mais de cem visualizações, o que garante uma certa pulverização temporal. O hit parade demonstra uma certa correspondência entre números absolutos e médios, com poucas exceções. As vinte melhores médias são as que seguem:

1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20

A destacar que o post mais visitado é o único com média de visualizações superior a uma por dia, o que é pouco, muito pouco**. Não estabeleci um ranking na parte de baixo da tabela, mas os dois últimos, este e este, são textos que eu gosto muito e não entendi porque não decolaram. A temática triste não se explica, já que há alguns outros muito dramáticos que mandaram bem, e vamos combinar que não dá para rejeitar um artigo apenas pelo título. Bom… dá, sim. Entretanto, não é possível acertar sempre.

Mas eu falava em transformações, e passados esses dados mais administrativos, percebi que um determinado pano de fundo de fato pode ser notado no transcorrer da obra deste escriba: a minha relação com a Religião. Quem ler, vá lá, meus primeiros trinta textos, entenderá que eu sou uma pessoa com boa quota de religiosidades; quem ler os trinta últimos, ter-me-á como um ateu não declarado. E é isso mesmo.

Aqui, é preciso discorrer calmamente. Eu nasci em uma família cuja prática religiosa não era uma regra acentuada. Todos os sacramentos eram aplicados e comemorados, como batizados e casamentos, e as crianças eram enviadas à igreja para fazer a primeira comunhão. Meu avô por parte de mãe era ateu, mas daqueles que discutiam política com o padre tomando cerveja, e, de fato, nunca deixou de ir à igreja em uma celebração qualquer só para fazer birrinha, ou recusou um convite para ser padrinho de alguém. Tem valor religioso? Creio que não, mas o que interessava para o velho era fazer o compadrio feliz e, mais uma vez, discutir política ao redor de uma garrafa de cerveja. Deu para entender a situação, né?

Isso tudo para dizer que, se eu não era alijado da vida cristã, também não era um dos frequentadores mais assíduos. Isso somente foi acontecer na década de 90, quando minha beatitude chegou ao máximo. Era uma época em que eu me importava de verdade com preceitos católicos, e, mesmo continuando a não ser chegado a uma reza, guardava jejuns quaresmais, levava a sério o recolhimento da Sexta-feira Santa e assim sucessivamente. Aprendi muito sobre a vida dos santos e li a Bíblia de cabo a rabo, mais de uma vez. Foi também a primeira vez que tive um encontro com Santo Agostinho e outros escritores da mesma estirpe, donos de uma Filosofia ligada ao funcionamento do universo sob a batuta de Deus.

Quando chegaram os anos 2000, deixei o espiritual um pouco de lado e parti para a ação. Trabalhei com catequese, toquei e cantei nas missas e, principalmente, aprendi tudo de liturgia para instruir coroinhas, e essa foi de longe minha principal função por mais de dez anos.

Entretanto, foi exatamente nessa época que o fenômeno começou a acontecer. Aos poucos, bem aos poucos, porém ininterruptamente, a fé foi minguando. O processo foi lento, durou pelo menos vinte anos, e dos paradoxos foram surgindo as dúvidas, das dúvidas foi surgindo o esmorecimento, e do esmorecimento foi surgindo o mecanismo de autoengano que me segurou ainda por tempos vinculado à igreja. Daí, somente a posição de conforto e da companhia de meus confrades ainda me segurava. Aqueles meninos e meninas tinham em mim uma espécie de paizão, um cara com quem eles tinham até mesmo uma relação de confiança, e me contavam coisas que não tinham coragem de contar a seus pais. Eles cresceram e continuavam comigo pelo simples prazer de estarmos juntos, e por isso eu ainda me mantive por tanto tempo ainda com algum laço à comunidade. Quando eu encerrei as atividades do grupo, os mais velhos foram aos poucos se dispersando, e não havia mais crianças novas para renovar os claros deixados e reciclar a turma. Nesse ponto da minha vida, eu já não tinha fé alguma, e continuei tocando nas missas apenas por uma questão de gratidão à pessoa física do padre. Ouvir um culto passou a ser um suplício, uma série de malabarismo para explicar coisas inexplicáveis, com uma imobilidade de pensamento que já não coadunava com meu momento. Quando o padre em questão se mandou para o Amazonas, por ordem de sua ordem, decretei a mim mesmo que era hora de parar. E isso foi bem recentemente, acreditem.

Como se pode perceber, o processo é muito longo, e, especialmente, involuntário. Eu nunca acordei belo dia e disse a mim mesmo que não cria mais em um deus, embora vários insights fossem colaborando na guinada. E por isso eu não posso fazer nada. Não tenho medo do inferno porque, se não acredito em Deus, não acredito também no diabo, ora pois. Também entendo perfeitamente que ser ateu significa única e exclusivamente não acreditar em uma divindade, punto e finito. Não significa ser mau, não significa ser imoral, não significa ser depressivo. Ser mau é prerrogativa humana, grupo natural dos quais fazem parte os sacerdotes da Inquisição ou os stalinistas ateus, acreditem se quiser. A moral não necessita de uma divindade para proclamá-la, bastando a força do contrato social e do elo humano para estabelecer o que se pode e o que não se pode. E a perspectiva do post mortem pode até mesmo ser mais angustiante para o religioso, dependendo do peso que seus pecados carregam em seu inconsciente. Para o ateu, a morte é uma extinção, sem prêmios, mas também sem punições. Se há angústia, paciência, as coisas são assim e é melhor não pensar muito nisso.

É só depois que as coisas acontecem que você consegue entendê-las melhor, incluindo aí a perda da motivação religiosa. De um modo geral, a coisa vai em uma linha descendente em que as couraças que retém sua fé vão sendo removidas. A primeira é o confronto com a realidade. Uma das maiores bobagens em um religioso é tentar encontrar provas: da existência de Deus, da separação entre corpo e alma, da eficácia das orações e assim por diante. Deus é infalseável - é muito comum os religiosos inverterem o ônus da prova, pedindo provas de que Deus não exista. Eu mesmo fiz isso muitas vezes, o que me ajudou a reconfortar. Mas você consegue demonstrar quantos fenômenos atribuídos a uma divindade na verdade são eventos naturais, e também como são irreprodutíveis tantas histórias contadas nos livros sagrados. Curas, que são o principal item do cardápio de quem quer demonstrar a bondade de Deus são, à vera, um argumento contrário, porque em toda e qualquer igreja há quem morra de câncer, do coração, jovem, de acidente e assim por diante, em mesma proporção do que ocorre na sociedade como um todo. E Deus parece injusto, restando apenas o argumento do mistério. Comparada com a realidade, a Religião perde sempre. Se tudo o que não encontra espelho no mundo que nos cerca, como supostas travessias no Mar Vermelho, arcas de Noé ou homens feitos de barro, for jogado no plano simbólico, temos diante de nós uma inutilidade; se continuarmos acreditando concretamente, temos um problema de fanatismo.

A partir daí, pergunta-se quais são os elementos de força para a manutenção da fé, e teremos provavelmente a experiência pessoal, seja lá qual for. Um transe místico, um sonho vivaz, um fato aparentemente extraordinário, uma demanda que se julgue atendida... Tudo isso são experiências que eu nunca tive. Exceção feita ao sentimento oceânico (aqui), que é uma sensação de espiritualidade, e não uma manifestação espiritual em si, nunca tive um sentido forte de comunicação com a transcendência, nem de que eu tinha alguma entidade ao meu lado. Nunca foi falta de experimentação - templos, terreiros, igrejas das mais variadas categorias já foram visitados por mim. Sem esse sentimento de conexão, eu sempre fiquei boiando nas incorporações dos cavalos, nos êxtases dos médiuns, nas glossolalias do Espírito Santo, e mesmo nas meditações orientais.

Restava a vivência comunitária, o último sustentáculo para você manter uma fé, se não na crença pura e simples, pelo menos no convívio de seus circunstantes. Deus parecia a cola que unia as pessoas de uma comunidade, aqueles que ficam nos bastidores preparando as celebrações, fazendo suas tarefas por amor ao seu deus e ao seu próximo. Tudo rui como um castelo de areia quando você passa a vivenciar os fundos do altar. Aquele trabalho que parece de intensa união é uma mera ilusão, com a mesma guerra de poder que existe onde qualquer humano se mete, independentemente da disponibilidade de recursos. Sem dúvida os maiores ódios que eu tenho na minha vida estão vinculados à igreja, de alguma forma. Coisas que influenciaram minha vida pessoal mesmo. Achei que seria um fenômeno localizado, mas mudar de ares somente demonstrou que se há universalidade é nesse aspecto triste. Nos meus últimos dias de igreja, já não lutava por nada, apenas tocava as músicas que me eram pedidas. Sem a dimensão da realidade, sem misticismo pessoal e sem o acolhimento comunitário, a Religião perdeu todo e qualquer sentido para mim.

Hoje, não posso afirmar que sou um ateu convicto. Melhor seria me qualificar como agnóstico, o assim chamado ateu cagão. Quando somos levados a certos limites, fica realmente difícil para nosso pobre telencéfalo extremamente desenvolvido admitir processos meramente naturais que justifiquem o universo e a vida. Embora não aposte na hipótese, eu conseguiria admitir um tipo de divindade mais difusa, que atuasse discretamente nas leis da Física. Agora, um deus como o abraâmico, com tantas incongruências e contradições, as chances de sua existência são irrisórias no meu entender. Para esse modelo, sim, sou ateu.

Será que chegará um ponto em que acontecerá com todo mundo aquilo que tem acontecido comigo? Não sei dizer. A patroa já veio comigo, em processo muito semelhante, no qual estranhamente não nos confessávamos, como se fosse vergonhoso. A secularização é um processo inevitável, mas tão lento quanto a minha "conversão". Em outros tempos, o sagrado ocupava um lugar de relevo porque ele oferecia boas respostas, mas ele fracassou em dois sentidos: explicar o mundo e fazer uma sociedade melhor. Com isso, ela perdeu a melhor forma de ser assumida com portadora da verdade: a sua credibilidade. Os papéis mais altos do estatuto social tendem a conservar a Religião em seu posto por um motivo muito simples - a coisa está boa para eles, e mexidas não são bem-vindas para essa trupe, mas à medida que a fragmentação da sociedade se dá, e a ordem social passa a ser contestada, as garantias de validade do organismo social precisam sair do velho ordenamento. Mesmo em sociedades cuja religiosidade ainda é muito presente, como no Brasil, é possível ver esse fenômeno. Nada explica melhor a proliferação de novas denominações pentecostais do que uma vontade implícita em se desestruturar uma hierarquia tão sedimentada quanto a que tínhamos até bem pouco tempo atrás. Só que a resposta que elas trarão é igualmente transitória e frágil, pelo simples fato de que antibióticos continuarão sendo mais eficientes do que orações.

Todas as impressões do parágrafo anterior eu extraí, com as devidas adaptações, do sociólogo britânico Bryan Wilson. Ele dedicou grande parte de sua obra ao estudo da Religião e como os novos movimentos religiosos se fundeiam em uma prática divergente dos métodos tradicionais, justamente para tentar renovar uma forma de atratividade, baseada especialmente na utopia do escape do mundo.

Fundamentalmente, era isso o que eu queria mostrar para vocês: o que mais veio influenciando a mudança no meu traço, embora eu continue respeitando a Religião como fonte de conhecimento e modo de ver o mundo. Eu sei que essa minha “saída do armário” pode me trazer problemas, sendo um assunto que eu não trato abertamente nem entre meus familiares, mas o fato é que não dá para segurar para sempre um assunto desses, principalmente quando eu vejo tanta gente, em nome de um suposto deus, metendo os pés pelas mãos na defesa da verdade e da vida, algo que deveria ser tão caro a todo mundo. E, principalmente, justificando nossa miséria em nome de um destino traçado por uma entidade que insistem em chamar de misericordiosa. Bons ventos a todos e até os 400!!!

Recomendação de leitura:

Wilson não foi um cara que se popularizou muito no Brasil, mas tem argumentos interessantes. Segue uma recomendação em língua espanhola.

WILSON, Bryan. Sociología de las sectas religiosas. Madrid: Guadarrama, 1970.

Extraí a imagem do cadeado do seguinte endereço:

Já a foto da parede de tijolos é minha mesmo.

* Para quem não sabe, a lauda é uma medida informal de tamanho de artigos que representa uma página completamente preenchida. Pelo padrão da ABNT, os textos acadêmicos devem ser confeccionados em papel A4. Para facilitar, imagine um lado de uma folha de papel sulfite.

** Mas foda-se

sexta-feira, 13 de março de 2020

O cesto da gávea de onde observo o mundo – Epílogo: onde continuarei escrevendo minhas histórias?

Olá!


Sabe aquela sensação estranha de coisa incompleta? Tipo quando você vai no estádio ver um jogo que não sai do 0 X 0, ou quando você vai na casa da avó e não come bolinho de chuva? Era mais ou menos o que estava acontecendo com a falta deste texto, que ficou pendente por tempos, desde que concluí os relatos da minha viagem à Vertente Oceânica Norte, nome besuntado de glamour para a região de Paraibuna, São Luiz do Paraitinga e vizinhanças. Gestalt explica? Pode ser, leiam aqui. Tinha deixado este epílogo em stand by, aguardando um retorno ao Núcleo Santa Virgínia, reserva ambiental que fica encravada na Serra do Mar, e que demandaria alguns dias para percorrer algumas de suas longas trilhas. Acontece que eu fui para bem perto de lá nesses últimos dias, e enriqueci esta série com mais quatro textos. Sendo assim, decidi compor este post de fechamento, para tirar esse inútil peso da consciência. Tão logo vá ao Núcleo, farei as inserções necessárias. Esse é o lado bom de ser o patrão das próprias palavras, uma das poucas coisas em que tenho autonomia na vida.

Depois de passar em tanta parte, na maioria das vezes cidades pequenas, com muito pouco a ver com a megalópole paulistana, passei a ficar um pouco mexido nas minhas convicções tipicamente urbanas, e passei a pensar no que eu quererei para daqui a alguns anos, quando certas amarras que ainda me ligam à Terra da Garoa já estiverem suficientemente desatadas.

Vou dar uma ideia do meu estado mental. No último sábado, passei por um lugar em que eu era frequente nos tempos de moleque. A Avenida Renata ligava a Vila Diva à região do cemitério da Vila Formosa, um dos maiores do mundo. Todas as vezes em que um professor pedia um trabalho um pouco mais elaborado, a desmilinguida sala de livros de minha escola não dava conta (leiam a aventura que isso me gerou aqui) e eu acorria para a biblioteca situada naquele logradouro, a menos ruim daquela região. Para quem ia a pé, era um bocado longe, e, para disfarçar a distância, eu ia pelo meio do matagal que encimava os canos da adutora do Rio Claro. De lá, era virar à esquerda na Rua Planeta e pegar a avenida desde o começo. Era um lugar bastante calmo, cheio de casinhas e com um comércio ainda incipiente, de modo a ser um núcleo agregador daquele pedaço da Zona Leste que ainda se assemelhava um pouco às cidades interioranas. Neste sábado passado, muito pelo contrário, fiquei pelo menos meia hora para cruzar seu aproximado quilômetro, coisa que fazia mais rápido na caminhada. Tentei ver o que havia de errado, mas não há nada além de um intenso comércio e uma Avenida Abel Ferreira para conturbar o fluxo, onde antigamente ficava um hoje desaparecido córrego. Das casinhas, meia dúzia ainda resta, e senti uma estranha solidariedade com gente que nunca vi, e que deve pedir prestimosa licença para conseguir sair de casa. É muito estranho alguém que mora no Centro desta nervosa metrópole falar isso, mas… sério. Não sei se eu teria saco de encarar voltar para um bairro e ter uma fila indiana na janela do quarto. Para isso, já estou psicologicamente preparado para o deserto dominical das traseiras do Corpo de Bombeiros, quando mais utilizo transporte individual.

Mas não é só uma questão de impaciência. Talvez, na verdade, essa seja só uma consequência de um tipo de mal-estar que ainda não diagnostiquei com muita precisão. Afinal de contas, por mais que São Paulo seja uma cidade que cansa no trânsito intenso, nas miríades de semáforos, no asfalto lunar, na insegurança das vielas, nas enchentes das baixadas, na indiferença dos concidadãos, ainda é o núcleo para onde o país converge. E aqui há tudo, simplesmente tudo: as melhores escolas, os melhores museus, os melhores médicos, os melhores estádios, os melhores cinemas, as melhores lojas. Esse porre provavelmente tem outra origem, e aventar a hipótese de morar no interior passa por uma análise bem cuidada (e pela transitoriedade do aluguel).

É curiosa a reação das pessoas do interior quando confrontadas com suas convicções. Várias pessoas com as quais conversamos sequenciam as vantagens de se morar no campo. Quando você aprofunda um pouco na história delas, é gente que viveu nas grandes cidades, stress após stress, e foi buscar a paz no mundo rural. Mas há uma galera que, pelo contrário, sonha com as capitais, com suas oportunidades exponencialmente maiores. Reclamam do tédio e da falta de perspectivas, e em geral são jovens que nasceram por lá mesmo. O valor para uns e para outros estão em polos diametralmente opostos. É estranho esse ser chamado homo sapiens, não é mesmo?

Entretanto, veio de um senhorzinho já bem senhorzinho uma das frases que mais me atentou a razão. Estando tomando alguns bons copos de vinho em sua adega, a conversa entabulada levou para a pergunta inevitável a estranhos: De onde vocês são? Ao reportar a localidade, nosso simpático e macróbio interlocutor afirma, com um certo ar de melancolia: “Ah, São Paulo... São Paulo sustenta tudo mesmo”. Não sei se eu deveria ter meu ego insuflado, já que não entendo até onde isso é um elogio e até onde isso reflete o que eu mesmo sou, mas o fato é que acaba por se tratar de mais uma azeitona na salada da minha cabeça. Será que eu vivo no melhor lugar possível? Será que a quantidade de recursos disponíveis suplanta qualquer outro tipo de valor?

Sei não. Tenho sentido cada vez mais vontade de me mandar daqui, embora ainda guarde muita relutância. É claro que um ser eminentemente urbano como eu pode até mesmo desejar uma casa de praia ou de campo, o que poderia suprir esse tipo de carência, só que eu superei de longe qualquer desejo nesses moldes. Haverá que demonstre o contrário, mas cem por cento dos casos que conheço pessoalmente resultam naquele arrependimento sintetizado na frase “há duas alegrias na vida de quem tem sítio: uma quando compra e outra quando vende”. Vale o mesmo para casa de praia. Parando para pensar, a empolgação inicial vai para o inferno no primeiro carnê de IPTU, ou na primeira fiscalização da prefeitura, ou na primeira invasão por meliantes, ou no primeiro reparo que lhe ameaçar a estrutura da casa. Mesmo se nada disso acontecer, o primeiro ano é de visitas a cada quinze dias. No segundo, a cada quinze semanas. No terceiro, já é possível passar batido. Sempre a mesma coisa, mesma coisa, mesma coisa, aditivada por manutenção recorrente e caseiro indolente. Tanta abertura a gastos e desencantos brocham nas pessoas qualquer intenção de manter um recanto do guerreiro. Por isso, mesmo que um dia eu possa, já combinei que não. Quando eu achar por bem, pego minha mochila, alugo um lugar e passo os dias desejados. Concluo que sai ferrenhamente mais barato e menos propenso a dores de cabeça.

Mas às vezes penso mesmo em me mudar para uma dessas pequenas urbes. Várias delas me produzem um encantamento, e de repente me vejo projetado em algumas. Em Areias, por exemplo, vi as casinhas que parecem pequenas por fora, mas que possuem quintais gigantescos nos fundos, onde o insondável Homem-Cueca poderia correr à vontade atrás das galinhas que eu certamente passaria a criar. Já em Monte Alegre do Sul talvez eu resolvesse bancar de pesquisador, montando um pequeno alambique nos fundos de casa para desenvolver a cachaça ideal. Ou então em São Luiz do Paraitinga, onde eu me misturaria a um dos povos mais bem-humorados que já conheci, alugando uma casinha na Vila Rosário para assar pães em um forninho de barro a ser montado, para depois filosofar na praça defronte à igreja ou cantar músicas da década de 80 com a patroa, nas mesas do boteco da Dani ou nos pés da escada do Largo do Teatro, embaixo da noite estrelada.


Pensando menos romanticamente, acho que eu estou tentando procurar novamente a minha turma. Durante estes quase nove anos que escrevo por aqui, já choraminguei um bom tanto pelo decréscimo na circulação de gente na minha casa. Ela trafegou de um polo de intensa movimentação de jovens para um lugar quase que pacato, agravada pela mudança do meu menino mais velho para o interior do Paraná, onde ele tenta a vida. Morreu uma pá de gente importante na minha vida: minha mãe, meu pai, meu padrinho, minha comadre, entre outros. Dei-me conta outro dia que, de todos os nove moradores da minha casa na Vila Ema, só sobrou eu. Só eu tenho ainda guardadas as histórias de um período meio grande da minha família como um todo, e isso me assustou um bocado. No âmbito particular, é uma responsabilidade e tanto ser o custodiante desta parcela do “brasão”. Não faz muito tempo, houve uma reunião de família com parentes distantes, que não víamos há mais de 30 anos. Dos descendentes da Mariuccia, minha nonna, só tinha eu!!! E não por falta de convite, mas de sobreviventes. Bom... Chega de chororô.

Sempre que falamos no social, pensamos na estrutura algo mecanicista na qual os indivíduos se articulam. Mas há uma diferença essencial entre a sociedade e a sociabilidade. A primeira diz respeito exatamente a esse aspecto racional dos agrupamentos de seres humanos, enquanto o segundo vai na via do afeto, no modo mais íntimo como as pessoas se relacionam. Há que se marcar bem a diferença: enquanto na sociedade falamos em indivíduos, na sociabilidade falamos em pessoas. Desta forma, há níveis diferentes de sintonia em que “vibramos as nossas frequências” com relação ao nosso meio social. Eu, por exemplo, vivo em um prédio onde mais da metade dos moradores são senhoras de uma ordem católica muito fechada, com pouquíssimo ânimo para relacionamentos mais profundos. Estão exatamente na margem de lá de onde eu vim, com seus limitadíssimos bons-dias e com-licenças. É um fragmento de sociedade, não há dúvida, mas não é um espaço da sociabilidade.

Se eu busco algum lugar onde há experiências sociais ou compartilhamento de sensações estéticas, certamente não é neste vetusto predinho. Quando meus mortos ainda não arrastavam suas correntes e a moçada não tinha criado asas, esse distanciamento era todo suplantado. Quando todos se foram, eu e aqueles da minha casa caímos no tempo das tribos de Michel Maffesoli. É preciso readequar novamente o indivíduo isolado ao seu aspecto coletivo, e isso só se consegue procurando uma nova tribo.

Não quero aqui dizer que colocarei flores na cabeça e virarei hippie. O conceito de tribo em Maffesoli vai além destes simples agrupamentos em torno de uma causa comum (embora os inclua). Segundo ele, uma tribo é uma fusão comunitária onde ocorre uma desindividualização, uma união do toque, da interação íntima e da união de pontos esparsos em uma única massa. Como é no âmbito dos pequenos grupos que a magia da sociabilidade se desdobra, esse neotribalismo dá uma ideia de como a identidade cultural torna possível uma relação que se fundeie no gosto, uma espécie de “retorno ao dionisíaco”, como estabelece o próprio mestre francês. E onde eu posso buscar um novo coletivo do qual eu possa fazer parte? Onde haja algum elemento onde eu me identifique.

Hoje, seria esse: lugares onde eu, a patroa e as crianças (se possível) possamos estreitar aquele velho clima de vizinhança que, sim, podemos dizer que assemelhados a tribos, considerando as quatro características delas –  a informalidade das solidariedades orgânicas desvinculadas do racionalismo, o sentimento de pertença, um ativismo sem vínculos a manuais e a fluidez do aqui e ali incessável, que vai com as marés, como é a própria vida. Falando rapidamente sobre cada uma dessas características, podemos dizer que

1. A cultura que brota das relações de uma tribo não é formal, como aquela que é descrita pelos planos de aulas das escolas ou que cristalizam as regras da linguagem, apenas para dar alguns exemplos. Esta cultura informal é permeada de uma emotividade que foge do racionalismo interposto pela sociedade mais organizada em ponto maior. Assim, as relações da tribo surgem “de dentro”, mais orgânicas e naturais que aquelas que observamos no distanciamento da sociedade estrutural;

2. Quando partimos da premissa que um nicho social é maior que o indivíduo isolado, devemos assumir que um homem não vive sem determinados elementos que vão além de si próprio, e que obrigatoriamente ele estará em relação permanente, não só com o outro, mas com o território onde habita. Maffesoli fala sobre a proxemia, que é a distância relacional existente entre as pessoas e que, por proximidade, acaba por agrupá-las em tribos distintas. Nossa noção de pertencimento é tão forte que tanto pode nos alinhar organicamente ao grupo quanto nos distanciar dos demais;

3. Como a tribo tem razão de ser endógena, o seu ativismo não é principal característica quando se observa seu papel na sociedade maior. Quando ele existe, possui parâmetros totalmente particulares, como o escapismo hippie ou a negação à autoridade punk, que fogem ao escopo social normalmente reconhecido, com o ativismo político através de eleições ou pressão parlamentar;

4. Grupos conformes são impermanentes, variando de acordo com o sabor das circunstâncias ou com a própria deterioração do tempo. Essa fluidez permite que tribos distintas se toquem e até se absorvam, se cindam e se fundam, de modo indefinível.

É em um lugar em que eu me sinta de novo pertencente que eu quero levar patroinha e os filhos que para lá quiserem ir, e lá manter os registros que faço aqui constantemente, tentando trazer ao plano físico aquilo que mantenho ainda hoje na dimensão virtual com vocês, meus ainda resistentes leitores. Vamos ver no que vai dar e bons ventos a todos!!!

Recomendações:

Vamos para o habitual: as distâncias das cidades da série da capital. Nenhuma delas leva mais de três horas de viagem, o que permite os famosos bate-e-volta. Talvez Cunha fique um pouco forçado, mas não é impossível. Vão até lá.

Jambeiro – 118 Km
Paraibuna – 123 Km
Natividade da Serra – 185 Km
Redenção da Serra – 163 Km
Lagoinha – 191 Km
Cunha – 231 Km
São Luiz do Paraitinga – 173 Km
Santa Branca – 94 Km
Salesópolis – 115 Km
Guararema – 79 Km

E também segue a indicação do livro de Maffesoli, sociólogo ainda vivo, que desenvolveu o hoje tão propalado conceito de tribo urbana.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. O declínio do individualismo nas 
sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense, 1998.