Marcadores

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Ano velho, ano novo

Olá mais uma vez!

Este ano está na boca de acabar. O clima é festivo, já que acabamos de sair do Natal. Ontem, fui dar um rolê geral pela cidade para ver as iluminações, giro este que eu ainda não tinha dado. Tá tudo muito bonito, mesmo. Em especial a Avenida Paulista, onde o trânsito estava muito complicado, mesmo às 23:00, um pouco pelos carros que observavam os enfeites, um pouco pela organização da festa da virada de ano. Mas o sabor já está um pouco de pizza fria (adoro pizza fria!). O Natal já passou e o ano novo não tem o mesmo charme.



Já dei uma dica do que eu penso sobre a virada do ano. É um tanto desmotivada, não tem muuuuuuuuuuito sentido. Uma vez li um artigo da psicanalista Maria Rita Kehl que definia brilhantemente meu pensamento sobre esta data (Pena, não consegui achar o texto). Em resumo, ela questionava o seguinte: se o ano foi bom, por que estamos alegres pelo seu fim? E se o ano foi ruim, o que há a comemorar? É isso mesmo, a virada de ano tem de fato um componente melancólico, com seus fogos que parecem esconjurar o passado ou comemorar a chegada da incerteza.

Não há como não se reportar a Renato Russo, o nosso compositor mais filosófico: não há amanhã. E, por isso mesmo, é preciso amar as pessoas.
Em cada ato, é preciso colocar o amor. Procuro amar as pessoas ao meu redor, embora nem sempre seja possível ou não consiga fazê-lo como devia. Todos os dias, procuro falar “Boa noite” à minha esposa e meus filhos. Faço questão de levá-los até a porta quando vão sair, ou que façam o mesmo comigo. Beijo e abraço meus afilhados efusivamente, cumprimento pessoa por pessoa de meu convívio, tento exemplificar o que espero de cada um deles. Procuro, enfim, estabelecer o melhor convívio ao meu alcance. Tento ajudar a todos os que me pedem. Não sei até quando isso será possível, não há amanhã. Por isso, é imprescindível que o amor seja manifesto hoje.

Sou meio crianção, às vezes perco os parâmetros, mas quando alguém me impõe um limite eu procuro respeitá-lo. É preciso saber que não somente eu tenho sentimentos, e é preciso cuidado para não ultrapassar o ponto.

Ah, Schopenhauer e suas representações... Como é complicado adequar o que é desejado ao que é possível! De toda forma, e já que a data existe e é considerada tão importante, também me vestirei de branco, também brindarei, abraçarei às pessoas que estiverem comigo, as beijarei e desejarei um ano novo melhor. 2011 não foi grande coisa, 2010 foi terrível, é melhor crer que 2012 será verdadeiramente bom, que o amanhã haverá, que me será dada a possibilidade de continuar amando as pessoas como se não houvesse amanhã. 

Não adianta ficar especulando sobre a vontade inesgotável, sua insaciabilidade e conseqüente angústia. Não tenho vocação para asceta.

Um feliz 2012 a todos, fiquem com Deus!

Cultura coletiva e psicopatia

Olá,

Tenho recebido através de e-mail algumas manifestações sobre a conveniência e até mesmo a necessidade social do porte de armas. Compreendo essa posição, em especial em um país com leis frouxas e ineficiência estatal na gestão do combate à violência. Nessas circunstâncias, a defesa pessoal é a única coisa a ser feita mesmo. Porém, é preciso tomar cuidado com o uso indiscriminado de armas e com o acesso da população em geral a elas. As causas da violência são tão amplas que nenhuma lei ou regra será capaz de prever todas as circunstâncias possíveis.

Em abril deste ano, escrevi o texto abaixo em outro blog, baseado nos acontecimentos de triste memória em uma escola fundamental do Rio de Janeiro. Procuro correlacionar o desmanche das instituições coletivas com os casos de violência movidos pela alienação do mundo moderno. O texto está praticamente na íntegra. Vamos a ele:

"Já foi decidido o que será feito com relação à procissão do Domingo de Ramos: não haverá procissão de Domingo de Ramos. Teremos a Virada Cultural.
Peço, no entanto, cinco minutos de atenção.


Será que podemos fazer algum tipo de relação entre o que não acontecerá mais no próximo domingo e o que aconteceu esta semana no Rio de Janeiro?
(Abro parênteses: no dia 07/04/2011, um jovem de nome Wellington Menezes de Oliveira matou 11 crianças em uma escola no Realengo, bairro da cidade do Rio de Janeiro, em um ato muito semelhante a vários casos ocorridos pelo mundo afora, em especial nos EUA).

Infelizmente sim.

Em todos os casos semelhantes ao que aconteceu na escola carioca, só conseguimos achar um ponto em comum: foram delitos praticados por pessoas solitárias. Não é a solidão de quem contempla uma obra de arte, ou se absorve em um livro, ou se põe a refletir seriamente sobre uma questão. É a solidão de quem fracassou.

Que fracasso seria esse? Ora, vivemos em uma sociedade baseada na dicotomia individualismo-sucesso, um sucesso que precisa ser alcançado cada vez mais cedo, sem maturação, sem considerar a hipótese de que as coisas podem não dar certo. E são gerados ídolos como Justin Bieber, Neymar, Sebastian Vettel, Luan Santana, Miley Cyrus. Será que todos nós conseguimos nos enquadrar em um perfil desses?

A verdade é que o sucesso do indivíduo não representa o sucesso do coletivo. E nós perdemos a dimensão do coletivo. A maior prova disso é a Virada Cultural, que será realizada em pleno Domingo de Ramos.

Toda liturgia é realizada por uma comunidade, não existe celebração de uma pessoa só. Nas igrejas, resta um dos últimos espaços públicos que ainda temos ao nosso dispor. Uma cerimônia é sempre a realização de uma coletividade, de uma comunidade, como eram as partidas de futebol feitas na rua, ou uma festa junina, ou um cordão carnavalesco, coisas que já não existem mais. Lá, as gerações mais antigas transmitiam seus valores e seus costumes às gerações que estavam chegando, e assim era escrita a história de uma cidade, de uma etnia, de um povo.

Hoje, temos a Virada Cultural. Cultural... Não creio que veremos os pais levando seus filhos à uma rave, os avós levando seus netos à uma balada. Há uma desagregação, que nem mesmo o fato da formação de grupos de amigos resolve. A tradição se quebrou, a história se rompeu. Uma pista de tecno não é um salão de dança. Cada um dança por si, não há um entrosamento entre pares ou trios, ou pequenos grupos. Podem rir à vontade, mas uma quadrilha caipira contava uma história, era uma dança com significação, por mais ingênua que fosse. E uma rave, o que nos diz? Que legado nos deixará?

Deixará o legado da individualidade. Quem não deixará de participar do começo da Semana Santa por causa da Virada Cultural? Quem participará do coletivo, do comunitário, do compartilhado? A regra será se divertir ao máximo, conseguir tanto prazer quanto for possível. Qual o espaço do coletivo, se a satisfação é individual?

A quem não tem para si a comunidade, só resta o individualismo. Só que o individualismo traz consigo a solidão. Confundimos individualidade com individualismo. Um homem procura se formar sozinho, mas tem necessidade de se relacionar com o meio, um meio que cobra sucesso a qualquer preço. É preciso saber o quanto cada um consegue suportar de fracasso e solidão. Este rapaz carioca não suportou o peso de sua desgraça. Tenho muito dó do que aconteceu com as crianças, é inevitável que eu me coloque no lugar dos pais delas, tenho filhos e afilhados que acabaram de deixar de ser crianças. Morro de raiva dos Nardonis, do Misael, do Pimenta, do Chambinha e de muitos outros, mas não consigo ter raiva deste rapaz. Parece-me (veja, estou falando de um fato 'fresco', podem aparecer desdobramentos que mudem minha opinião) que o Wellington não teve suporte psicológico para fazer frente às suas dores, enlouqueceu. Não agüentou o fracasso que uma sociedade baseada no valor do indivíduo lhe impôs.

O que teria acontecido se este rapaz tivesse consciência de sua função na comunidade? Será que teríamos assistido a este ato tresloucado?

Uma comunidade tem a força de seus indivíduos somados, adicionado ao que ela por si só representa. A soma das partes, assim, é maior ainda que o todo. Impedir uma procissão de domingo de Ramos não representa apenas um insulto a uma coletividade religiosa. Significa, principalmente, que o nosso organismo social vive de fragmentos esparsos, que não se considera mais em seu todo. A Prefeitura tenta reunir as pessoas uma vez por ano, e, quando o faz, mete os pés pelas mãos, simplesmente desprezando um dos últimos atos que as pessoas ainda tem o prazer de realizar juntas.


PS: não sou contra a Virada Cultural, tanto que pretendo ir a alguns shows, mas lamento profundamente que a política de cultura da Prefeitura se limite a um evento anual, que se baseia mais na resistência física das pessoas do que na formação intelectual e na constituição de uma tradição cultural."

Recomendação de filme:

Por fim, recomendo um filme que investiga a fascinação dos estadunidenses com relação às armas de fogo, e dá enfoque aos casos em que são realizados grandes massacres por psicopatas. A semelhança é mais do que evidente.

MOORE, Michael. Tiros em Columbine. Filme. EUA, 2002. 180 min.

Selvageria e bailes funk

Mas a multidão não acompanhou a canção da garota. (...) A massa se movia devagar, como um único corpo, em direção à máquina que cintilava como prata. No rosto da multidão havia ódio. No rosto da multidão havia  um temor supersticioso. O desejo de aniquilação final estava no rosto da multidão. - Thea Von Harbou, in Metrópolis

Olá!

No final do mês passado, tivemos um caso muito triste que ocorreu em nossa cidade, o linchamento do motorista de ônibus Edmilson dos Reis Alves. Tive uma surpresa muito grande ao ver sua foto estampada nos jornais: eu o conhecia, dos tempos em que morava no Jardim Elba. Não associei seu nome de imediato; existem muitos Edmilsons e, na verdade, conhecia-o por seus apelidos: Paraná, Maringá ou Palmeirense. Peguei ônibus muitas vezes com ele, conversávamos em alguns momentos. Era um cidadão de boa paz, veterano daquela linha (314J – Liberdade/Parque Santa Madalena). Foi arrancado de seu ônibus e espancado porque se sentiu mal ao volante e colidiu com alguns carros e uma moto. Parece que chegou a ferir uma pessoa, o que motivou a barbárie.

Vamos tentar recorrer novamente a Freud para buscar uma explicação (Devo lembrar que escrevo, principalmente, para a juventude. Isso acaba por me levar a falar sobre alguns conceitos básicos. Àqueles mais letrados, peço um pouco de paciência).

Freud desenvolveu uma importantíssima teoria acerca do funcionamento psíquico. Para ele, o equipamento mental possui três divisões, com diferentes funções, a quem denominou de instâncias. A primeira, a mais ancestral, depositária dos instintos e desejos, foi chamada de Id. Nele residem os impulsos inconscientes, sede das atitudes impensadas, do imediato, das taras. É lá que estão situados os desejos, as pulsões agressivas e tudo o mais que nos torna semelhantes aos seres instintivos, que se movem sem articulações abstratas.

Em oposição à impulsividade do Id, temos o poder refreador do Superego, formado pela interiorização dos princípios e regras morais impostas pelo meio em que se vive. Também esta instância é inconsciente, e participa com um sentido de punição e de limitação à ação do Id.

Entre ambos, habita o Ego. Esta é uma instância consciente, racional, que busca estabelecer um equilíbrio entre o poder impulsivo do Id e a ação restritiva do Superego. Com isso, o Ego impede que haja o predomínio de uma das instâncias inconscientes sobre a outra. Um indivíduo com preponderância do Id assemelhar-se-ia a um animal, que busca atender seus instintos impensadamente; se fosse dominado pelo Superego, sofreria uma tal imobilização de suas ações que provavelmente procuraria a ocultação. Nesse sanduíche, portanto, o papel da fina camada de recheio do Ego é tornar a vida possível.



Ora, onde estavam a racionalidade do Ego e a repressão do Superego nesta hora? O assunto é muito complexo, e necessitaria de uma leitura muito mais profunda do que agora, mas vamos lá assim mesmo!

Como disse anteriormente, o Superego se forma a partir das contingências morais impostas pelo ambiente. Elas são absorvidas pelo indivíduo na medida em que suas ações, prioritariamente estabelecidas pelo Id, vão sendo reprimidas no decorrer de sua vida. O Superego breca o Id, e o faz de maneira inconsciente. Como nasce de circunstâncias externas ao indivíduo, é sumamente importante ter em mente que os freios do Superego dependem da sociedade em que se vive, e nesse ponto precisamos ter um olhar antropológico sobre a causa em questão. E, neste ponto, é preciso reconhecer que vivemos em uma cultura da violência. Vejamos alguns exemplos:

1. Em 2005, foi realizado um plebiscito para que se decidisse sobre o desarmamento. Em linhas gerais, sou contrário à consulta popular sobre temas tão pontuais, mas o recado passado foi tremendamente claro: a população brasileira prefere continuar ter à sua disposição um instrumento de defesa do que confiar na eficiência do poder institucionalizado para efetuar essa tarefa. Não discuto o resultado, mas tenho medo de que esse pensamento seja oriundo de uma tendência à violência residente no inconsciente coletivo do brasileiro;

2. Os filmes de ação estão prenhes de derramamento de sangue, de uma forma como nunca se viu antes. Não basta mais supor a situação de violência, é preciso que esta seja escancarada. Se as tripas não estão visíveis, se a cabeça não foi arrancada, se a arma não varou o corpo da vítima, não há satisfação, o filme é fraco, não é para “machos”;

3. O esporte da moda é o MMA, tanto que a própria rede Globo engoliu seus princípios e passou a transmitir estas lutas como eventos grandiosos, em que seu principal locutor é escalado para narrar as lutas. Não compreendo como esses espetáculos podem ser considerados esportes. O grande mérito do esporte está justamente em sua capacidade de exercer um combate simulado, onde a vitória não representa o massacre do adversário, mas sim a superioridade de uma das partes. Esse não é o objetivo do MMA, UFC ou coisa que o valha. O gozo só é atingido se o adversário cai desfalecido no chão. Se isso não é cultura da violência, então não sei qual é o nome.

Diante desse conjunto de circunstâncias, não é de se estranhar que as instâncias psíquicas limitadoras sejam mais laceadas, mais frouxas. E, em um grupo de funkeiros enfurecidos, basta que um deles saia do limite do razoável para que os demais o sigam, em um processo comum no ser humano chamado de mimese.

Mimese quer dizer imitação, e desta palavra originou-se o termo mímica. Já notaram que quando uma pessoa boceja várias outras também o fazem? É a mimese agindo, inconscientemente. O mesmo se presta à moda, às atitudes, é assim que se forma o inconsciente coletivo. Cerca de 20 pessoas, segundo os jornais, agiram no espancamento. Estas 20 pessoas agiram desmedidamente, desproporcionalmente, irracionalmente. E aí vem a minha grande questão: em um grupo de 300 pessoas, 20 foram para a porrada. Ok. E as outras? Por que não intervieram? O motivo é claro: também elas concordaram com a selvageria. E isso é o que mais me preocupa no caso.

Recomendação de leitura:

Como já disse anteriormente, Freud possui uma obra muito completa e complexa sobre a mente humana. Recomendo o seguinte livro para que se possa aprofundar um pouco mais em suas teorias:

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. São Paulo: Círculo do Livro, 1985.

PS: que pena que o termo "funk" tenha se vulgarizado de tal forma. Tivemos excelentes artistas do gênero, como Parliament-Funkadelic, Earth Wind & Fire, Tim Maia e seu sobrinho Ed Motta...

Sobre as ilhas esparsas pelo oceano da indigência televisiva

Olá!

Eu tinha praticamente acabado este texto, mas dei uma recuada por conta do já famoso caso Rafinha Bastos X Wanessa Camargo, para aguardar os desdobramentos. Exageros de lado a lado e um final mais ou menos triste, na minha opinião. Os defensores do Rafinha dizem que o humor não pode ter limites, ele é transgressivo por natureza. Discordo.

Há alguns parâmetros que precisam ser seguidos, sim. Mesmo na guerra, os combatentes não bombardeiam as unidades da Cruz Vermelha, sob a desculpa de que estão tentando atender soldados inimigos. Idem quanto à honra e a segurança das pessoas. Espalhar um boato maldoso sobre uma pessoa, causar o mal a ela e depois se desculpar sob o escudo da liberdade do humor não é algo admissível. É irresponsável. Portanto, é preciso ter consciência de que se deve pagar o preço ético por sua subversão.

O pior de tudo é que foi apenas uma piada de mau gosto, sem propósito algum. Foi uma piada que, se feita em um boteco (e é feita aos milhares, sabemos disso), não teria consequência alguma, pois não sairia do campo do privado. Não procurou atingir a pessoa como artista (?), como filha de um famoso, como uma patricinha ou outra coisa qualquer. Atirar contra os políticos em questão de honestidade, por exemplo, tem todo o sentido. A classe faz por merecer, como podemos observar desde sempre nos noticiários. Mas não é o caso em questão. Por isso, vejo excesso em ambos os lados. Bastaria Rafinha pedir desculpas pelo inconveniente (como ele mesmo fez com a Daniela Albuquerque), e não precisaria gerar um processo judicial, sempre dolorosos, se houvesse alguma complacência do lado da Wanessa.

Bom, mas vamos ao texto em si. Há uns tempos atrás, comentei neste e neste post que gosto da programação da TV Cultura, e que os melhores programas da televisão brasileira são produzidos lá. Há vida inteligente fora do canal 2?
Há. Pouca, mas há. E o principal representante destes oásis nos desertos das idéias é capitaneado pela argentina Eyeworks, pelo CQC e seu melhor derivado: A Liga.


Vejam bem. Não há novidade propriamente dita nestes programas. Começando pelo Marcelo Tas, que desde o começo da década de 80 já fazia seu personagem Ernesto Varela embaraçar políticos, empresários e dirigentes esportivos com as perguntas mais cáusticas e inconvenientes. O mesmo vale para A Liga, importada do modelo argentino utilizado pela citada Eyeworks.

Qual é a mágica do formato, então?

Evidentemente, não há apenas um fator que influencia a qualidade dos programas. O fato de aliar humorismo e jornalismo abre aos repórteres/comediantes do CQC a possibilidade de chegar em pontos onde o jornalismo convencional não se permite. A reportagem sobre a televisão doada a uma escola em Barueri, que foi desviada para a casa de uma funcionária é um exemplo bem acabado do que estou falando. Procurem no Youtube e vejam. Não dá para imaginar a Globo mostrando uma reportagem deste tipo no Jornal Nacional. O reverso da medalha é que estas reportagens não são levadas tão a sério quanto deveriam, justamente por sua veia humorística. Acho que ainda vemos a realidade nacional pelos olhos da Vênus Platinada, e qualquer modelo que se oponha é visto com descrença. Mas os fatos são graves e reais, deveriam ser levados mais a sério, independentemente da abordagem ser sisuda ou humorística.

A Liga é mais temática, mais investigativa e melhor ainda como programa de televisão. Suas matérias investem no submundo de maneira menos sensacionalista do que fazem os Datenas da vida, mas muito mais próximas de nosso dia-a-dia do que as abobrinhas dos Domingos Espetaculares e Fantásticos (eca!). Afinal, a reportagem de relevo é aquela que gera conseqüências, como ocorreu na fantástica matéria sobre o trabalho escravo de bolivianos para as grandes confecções, inclusive multinacionais (pincelei esse assunto mui rapidamente neste post). A Zara, empresa espanhola que subcontratava prestação de serviços para sua marca, passou a ser muito mais criteriosa na escolha de seus parceiros após a exibição do programa, e essa é uma função social importante do jornalismo: denunciar à opinião pública que há crimes e contravenções sendo cometidas contra seres humanos.

Mas como A Liga consegue aproximação e desenvolvimento em temas tão polêmicos? Penso em muitos fatores, mas acho que a grande sacada é a inclusão do rapper Thayde na equipe de apresentadores. Com sua experiência nos diversos guetos oriunda de sua cultura rap, é de se supor que a sua opinião é decisiva no momento de conduzir a pauta. Isso é muito inteligente, principalmente se levarmos em conta que uma equipe jornalística/artística é composta em sua maioria por membros da classe média. Imagino que Thayde sabe, ao menos intuitivamente, os lugares e os momentos certos de encontrar os elementos adequados para desvencilhar os nós das reportagens às quais eles se propõem. Basta observar que muitas das matérias passam pela periferia, pelo centro degradado, pelo cortiço e pela favela. Ele fornece, desta forma, o “rebolado” necessário para pensar estas situações.

É por essas e por outras que a diferença entre as reportagens pasteurizadas do Globo Repórter e as desafiadoras d’A Liga são tão abissais.

Recomendação de audiência:

Procurem trechos dos programas citados no Youtube, em especial a reportagem sobre o sumiço da televisão na escola de Barueri. É nojento.

http://www.youtube.com/watch?v=8JEPp758JDE


PS: A bela ilhota que peguei para ilustrar este texto vem do endereço abaixo:

http://www.italia.it/fileadmin/src/img/cluster_gallery/mare/elba/Isola_d_Elba_-_Isola_di_Palmaiola.jpg

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Natal: três pontos para serem debatidos

Olá!

Tá chegando o Natal, época festiva em que a cidade fica ainda mais virada de cabeça prá baixo do que já é normalmente, por conta da correria das compras de presentes e guloseimas, já devidamente aí embutidas aquelas destinadas à virada do ano. Muitas atitudes, muitos modos diferentes de comemorar a data. Uns gostam mais, outros ligam pouco, mas quase ninguém é indiferente. O que o Natal representa para você?




Hoje vou mais de opinião e menos de Filosofia metódica. Para mim, há três pontos interessantes para observar nessa época do ano.

Primeiro: Há tempos que o Natal recebeu uma nova significação. Os princípios religiosos foram meio que deixados para trás, como exige nossa sociedade que vai a caminho da secularização. O grande barato agora são as regras de consumo, nossa nova (tá bom, nem tão nova assim) divindade. Vamos relembrar nossos cadernos de catecismo (não os do Carlos Zéfiro): o Natal é a data de nascimento do menino Jesus, que o cristianismo coloca como ente divino. O que é feito para celebrá-lo? Quase nada, percebo eu.

Em tempos em que a religião católica era preponderante no Brasil, a chamada “missa do Galo” era uma das comemorações mais centrais do ano litúrgico. Era celebrada à meia-noite, e estendida aos primeiros minutos da madrugada, em uma ritualização semelhante à espera do nascimento do Filho tão esperado. O culto espelhava a história do acontecimento, imbuía nas pessoas um espírito de pertença a essa história. A protestantização e sua conseqüente iconoclastia tiraram muito do caráter coletivo da celebração memorial do nascimento de Cristo, e minou as defesas do sentimento religioso para sua manutenção. O Catolicismo se enfraqueceu diante de um mundo cada vez menos espiritualizado, se desatualizou e já não consegue oferecer uma resposta atual à mecânica liberal-capitalista, que tomou de assalto esta e outras celebrações, como a Páscoa e seus chocolates. A distribuição de presentes era coisa secundária, derivada da visita dos Reis Magos, mas é isso que restou de fundo religioso, devidamente acomodada aos ditames comerciais. A própria figura do Papai Noel é originada de um santo, Nicolau de Mira, mas da figura original só resta a cor predominante das roupas, o vermelho.

Segundo, já que falamos de presentes: Tenho observado uma relação diferente entre o imaginário das pessoas e sua efetiva aplicação. Trocando em miúdos, percebo que as pessoas desprezam seus sentidos de criatividade e de ousadia em detrimento de uma maior segurança. Vamos ser claros, vai! As pessoas arriscam muito menos com presentes. Os amigos secretos das empresas são constituídos por um sem-fim de vales: vale-livro, vale-CD, vale-compras, vale-isso, vale-aquilo... Por que será, hein? Eu entendo que grande parte da graça em dar um presente está justamente em tentar adivinhar o que agrada à pessoa que o recebe, mede a percepção que eu tenho sobre os gostos e hábitos do outro e, no limite, demonstra uma preocupação maior de mim para com o próximo. Não é o caso de procurar, por exemplo, “puxar o saco” de determinado cidadão, mas de procurar respeitar um determinado modo de ser, de “esvaziar” meus gostos e preferências para tentar entrever a visão alheia. Creio que esse é um excelente exercício! Já pensou se tentássemos pensar um pouco mais com a cabeça dos outros, quantos problemas não conseguiríamos evitar? Mas estamos cada vez mais preferindo evitar um risco que PODEMOS correr. Errar um presente não é uma desgraça, é um aprendizado. É, de certa forma, um recado que mandamos, uma sugestão que damos. Por que não posso comprar um perfume para uma pessoa? Ah, perfume é pessoal demais. Ora, o que não é pessoal, cara-pálida? Mesmo na ditadura dos vales nós corremos riscos. Vale-livro para quem tem tio dono de livraria, já pensou que bacana?

E terceiro, já que falamos de Papai Noel: não tenho nada de especial contra o bom velhinho, por isso mesmo acho bom deixar bem claro à criançada seu verdadeiro papel no Natal: o legendário. Nunca me agradou a idéia de iludir meus filhos com a história de um senhor de barbas brancas vindo do pólo Norte que traz um saco de presentes para dar para as crianças boazinhas. Em primeiro lugar, isso é uma chantagem para exercer a (falta de) autoridade: eu compro sua obediência e você não precisa fazê-lo por minha ordem, mas em troca de um presente. Em segundo lugar, há o eterno problema da realização de um desejo que nem sempre é tangível. Não me refiro à arapuca do presente caro – isso se remedeia com o aumento da mentira, basta dizer que o Papai Noel estava com dificuldades financeiras – mas ao “presente” que o afeto pede: as crianças não têm articulação intelectual suficiente para discernir que é inócuo pedir concórdia entre os pais, ressurreição dos avós mortos, carinho do genitor ausente, mas a criança coloca tanta fé naquele mito que uma decepção pode marcá-la para o resto da vida. E não devemos subestimar a capacidade da criança em odiar. Tanto quanto o Papai Noel, a criança desprovida de sentimentos negativos é mítica. Para que, então, tratar da criança com uma mentira?

Ah, mas isso é estimulador para a fantasia da criança! Ora, que besteira. A criança CRIA as suas fantasias e articula com elas, SEM necessidade de que as incutamos em suas cabeças. O efeito é contrário. Vender uma ilusão pré-fabricada é justamente apostar na incapacidade da criança em produzir seu próprio imaginário.

Por esses motivos, optei por não atribuir ao Papai Noel o presente de Natal aos meus filhos. Prefiro fazer um agradecimento a Deus pela oportunidade de termos aquilo que pudemos ter.

O que eu acho do Natal, portanto? Ora, eu adoro o Natal. É um momento lindo, em que pensamos na caridade e na solidariedade, na união. Não repilo o Papai Noel neste sentido. É um símbolo belíssimo, se remontarmos suas origens: a da doação gratuita, sem necessidade de um relacionamento íntimo para a obtenção do amor. Gosto muito da alegria das luzes e dos enfeites, do espírito de reconciliação, do eterno recomeço, das pessoas reunidas em torno da mesa, da consciência do alimento como manifestação do sagrado. Gosto demais dos presépios, representação maior do Natal, último resquício material da religiosidade destes tempos de compras apressadas.

Por tudo isso, desejo sinceramente aos meus colaboradores, leitores, visitantes eventuais e a toda humanidade um feliz Natal. Em especial, aos jovens que lêem estas mal traçadas linhas e encontram nelas motivos para pensar, concordar, discordar, pedir mais. Que todos possam se encontrar mais felizes, e que possam visualizar na alegria alheia uma parte integrante da sua própria alegria.

Recomendação de leitura:

Para não passar em branco, indico um grande clássico de motivo natalino para meus seguidores. Trata-se de um conto de Charles Dickens, muitíssimo conhecido, e que talvez não seja novidade, mas que tem uma abordagem interessante na medida em que reputa como secundária a chave monetária para um bom convívio com o outro.

DICKENS, Charles. Um conto de Natal. LPM: São Paulo, 2003.

Agradeço à Ná, à Rê, ao Lucas, ao Azul, ao Bruno e ao Felipe por comporem o presépio que ilustra este texto.

sábado, 19 de novembro de 2011

Banquetes e filmes de arte

Olá!

A Filosofia tem a capacidade de dialogar com qualquer tipo de assunto. Sendo assim, quando falamos em obra de arte, tudo é passível de análise, desde a mais primorosa sinfonia até o mais medíocre fanque (recuso-me a chamá-lo de funk, estilo de gente como Parliament, Tim Maia, Earth Wind & Fire e até mesmo Red Hot). Para detectar se uma peça tem real valor artístico ou não, é simples. Quando a obra é boa, discute-se seu valor intrínseco, ela é o próprio objeto do debate (concordando ou não). Se é ruim, discute-se o contexto em que ela surgiu, como foi possível gerar uma porcaria deste naipe, que sociedade é essa que produz tal aberração e outras avenças. O importante é: em minhas andanças acadêmicas, deparei-me com uma série de obras de arte surpreendentes. De fato, a arte é o grande campo da liberdade, e sem dúvida é irmã de sangue da Filosofia, no sentido em que consegue dar modelos às doutrinas filosóficas (e, em uma relação dialógica, ser objeto de estudo mútuo) e tratar dos temas filosóficos de maneira mais, digamos, compreensível. Por isso, a obra de arte é imprescindível ao professor de Filosofia que leva a sério sua área de conhecimento e seus alunos.

Muitos filósofos, como Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche levaram a arte tão a sério que julgaram impossível viver sem ela, reputaram-na como método para sobreviver, para não justificar o suicídio. A arte teria o papel de oferecer suporte a uma vida que deve ser negada, dominada pela vontade e suas imprecisas representações, para ficar no exemplo de Schopenhauer.

Um bom exemplo para ilustrar como a arte pode dar significado à vida é dado pela obra-prima do dinamarquês Gabriel Axel, “A festa de Babette”. É um filme que contém alguns elementos típicos do cinema europeu: ritmo contido, leitura psicológica dos personagens, relação coerente entre a ficção e os fatos históricos. Mas o filme vai além. É uma belíssima interpretação das amarras dogmáticas e do quanto um artista dá valor à sua criação. Nietzsche amaria, com certeza.


(Atenção: daqui para baixo vou revelar itens importantes do enredo do filme – é o famoso spoiler – se alguém se interessar em assisti-lo, é melhor parar por aqui, e depois continuar a ler o texto).

O cerne do enredo está na fuga da personagem central, a precitada Babette, cozinheira francesa, por conta dos combates oriundos da Comuna de Paris (vide abaixo um pequeno resumo do que foi este evento). Ela se desloca à Escandinávia, onde é acolhida por uma pequena comunidade luterana ultraconservadora, que vive em um sistema de reclusão quase eremítico, de relações endêmicas e avesso ao externo. O ambiente é opressivo, mas as pessoas parecem conformadas com sua situação, temerosas que são de incorrer nos menores pecados. Tal ambiente não é especialmente propício a Babette, oriunda de um país católico e tido como “moderno demais” para comunidade tão diversa.

Acontece que, após 14 anos de convívio, Babette fica sabendo que ganhou um prêmio na loteria francesa, solucionando assim seus impedimentos para regressar a Paris. No entanto, como modo de agradecer sua acolhida, decide preparar um autêntico banquete francês para os membros do povoado, que se preparam para a homenagem do centenário de seu fundador.

O efeito inicial é uma desconfiança generalizada. A dogmatização faz com que os moradores da aldeia tenham certeza de que estarão cometendo pecado mortal ao se entregar aos prazeres terrenos. Alguns chegam a pensar em sortilégios, em ação demoníaca.

Curiosamente é do próprio externo que chega a solução. O militar oriundo da comunidade, de tanta confiança de seus co-irmãos, quebra a resistência dos comensais, que lentamente começam a desturvar sua visão, até atingir um clima de catarse geral. A festa inicia-se de verdade, uma verdadeira celebração à vida. Nietzsche, neste momento, certamente choraria de emoção.

O desfecho do filme se dá com o clima de despedida após o banquete. Mas Babette não vai mais embora: ela gastou todo o prêmio na confecção das iguarias, na compra do melhor vinho, até mesmo na decoração. Questiona-se que motivos a levaram a fazê-lo. A resposta é desconcertante. O que importa para ela é executar sua arte, disponibilizar seu talento. Isso vale mais do que qualquer dinheiro. Sua gratidão vai além da acolhida recebida – a aldeia é sua platéia, o receptor de uma estética que lhe é cara. Todos os valores típicos – o dinheiro, a pátria, a liberdade – são secundários para o verdadeiro artista. São passageiros, a criação é o que fica. Mais ainda: é a visão de mundo particular, única, personalizante, sua marca no mundo, exclusiva. É a arte reconhecida como motivo da vida. Agora sim, Nietzsche desmaiaria.

O filme, no final das contas, é um libelo contra o preconceito, contra as posições dogmáticas, a favor da vida e da estética. Belíssimo.

Recomendação de cinema:

AXEL, Gabriel. A festa de Babette. Filme. Dinamarca, 1987. 102 min.

(A Comuna de Paris foi um governo de origem proletária que assumiu o poder após a queda do imperador Napoleão III. Teve a duração de 40 dias, e teve seus membros massacrados em sangrentos combates, que resultaram em cerca de 80000 execuções).

Sobre o envelhecimento e a sensação de que a morte nem é tão ruim assim

Olá!

Tenho duas sensações bastante estranhas em minha vida. A primeira é que, de alguma forma, não agrada ao universo que eu vá à praia. Não é possível um tempo frio e chuvoso destes no meio de novembro, por quatro dias seguidos. A segunda é a sensação de envelhecer. Tenho uma série de idéias soltas, que, em seu conjunto, acabam por pautar minha vida e minha conduta, mas que não são exclusividades minhas. Outros já as pensaram e sistematizaram. Quantas delas não são derivadas da intuição de que o tempo passa?

Percebo que os dias correm incessantemente todas as vezes em que vejo aumentar a distância que há entre minhas velhas opiniões e o modo de ser dos mais jovens. Também ocorre o mesmo quando não mais consigo acompanhar seus ritmos frenéticos, ou quando não posso corresponder às suas expectativas. Uma das experiências mais curiosas tem paralelo com a estética: há momentos em que você fala como um poeta e é visto como um quadro – olhares voltados para você, mas silenciosos, inertes, como se nada do que você fala estivesse sendo absorvido. Há um descompasso de linguagem, de interesses, sei lá. É um desnível de épocas, quer me parecer. Envelhecimento, para sintetizar.


Pensar na vida é, essencialmente, pensar em seu vazio. É melhor não fazê-lo muito seriamente, sob a pena de concluir que seu motivo é uma dialética entre a busca e a fuga da morte. Falamos muito sobre o futuro, mas o que é ele? Podemos falar em objetivos, em etapas da vida, em planos; é interessante como todos estes projetos se modificam com o passar do tempo. Já tive a oportunidade de falar sobre a angústia dos pais diante da crescente independência dos filhos, neste post. E essa angústia amplia-se na medida em que os marcos característicos de uma existência vão passando. Por exemplo: uma criança, ao nascer, tem diante de si uma série de eventos típicos para ocorrer no transcurso de sua vida – a tomada tresloucada de informações na primeira infância, a primeira ida à escola, os primeiros namoros, a entrada na faculdade, os primeiros encontros sexuais, a formatura, o primeiro emprego, o casamento, os filhos, a compra da casa... São marcos, objetivos traçados que vão sendo cumpridos, não necessariamente nesta ordem. Eu já passei pela maioria deles. O que resta de referências, de pontos a chegar? São poucos os que vão restando, e o maior deles, o único inevitável, vai se aproximando.

Já tive muitos momentos em que a morte me causou medo, e outros em que ela me pareceu uma solução. Não, não penso em suicídio neste momento, longe disso. É algo como se eu não me importasse muito se um médico me dissesse que eu tenho uma doença incurável, que eu tivesse pouco tempo de vida.

Será que só eu tenho essa sensação? Ela é algo anormal? Para Freud, não.

Freud pensa o psiquismo em termos de pulsões. A mais característica e conhecida é chamada de princípio do prazer. O homem busca, instintiva e inconscientemente, a satisfação de seus desejos, ou seja, ainda que não tenha plena consciência de seus atos, eles são guiados para a obtenção de prazer, um distintivo que valida sua razão de existir.

(Aqui, apenas para recordar, Freud nada mais faz que aperfeiçoar idéias de Schopenhauer, ainda que não o admita).

Os desejos têm objetos. Não existe um desejo de “nada”. Portanto, a satisfação de um prazer é a realização de um objetivo. Ocorre que um objeto pode ser perdido, um desejo pode não ser satisfeito. Essa perda é trabalhada pela estrutura mental através de uma busca de reequilíbrio, um restabelecimento da paz anterior ao fenômeno em questão. Ora, se há um princípio de prazer que impulsiona a pulsão sexual (Eros – Deus do amor e da vida na mitologia grega), que Freud considerava como a ativadora do processo psíquico, há um princípio de destruição do desejo não realizado, que é a pulsão de morte (Tânatos – Deus da morte – Freud era cheio dessas gracinhas).

Essa pulsão trabalha em oposição à incessante atividade do Eros, de busca de satisfação de desejos. É disparada, em geral, diante de um choque de realidade: a consciência capta a não-realização do prazer, sua extrema dificuldade ou sua impossibilidade. Há, então, uma busca por estabilização, por um retorno ao status original, uma destruição dos resíduos do desejo, em geral por uma transferência do fracasso. Nada é mais estável do que a morte, do que o inanimado. É por isso que esta pulsão tem este nome. Em última instância, e de certa forma, a morte é uma garantia de obtenção de sucesso pelo Eros: não há desprazer onde não há vida.

Esta é uma das teorias mais controversas de Freud, que foi contestada, revista ou complementada por cientistas como Wilhelm Reich e Jacques Lacan, mas que parece ter seus reflexos em nossas vidas. De fato, esta “vontade de morrer” nada mais me parece do que um misto de fuga e de defesa diante de uma vida que já não possui os mesmos índices de expectativa de tempos passados. Não tem relação (necessariamente) com depressão ou coisas do tipo. É fruto da tensão natural existente em nosso equipamento psíquico, que se expande quando os projetos de vida são mais breves e mais incertos.


Recomendação de leitura:

A teoria é muitíssimo mais complexa do que as poucas palavras que coloquei aqui podem fazer supor, e lembrando que a interpreto livremente. É muito interessante ler o seguinte livro para compreendê-la melhor.

FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Sobre Lula, SUS e autoritarismo

Olá!

Tenho acompanhado com apreensão o desenrolar da campanha "Lula, vai se tratar no SUS" que tem se desenvolvido nos últimos tempos em redes sociais. O caso merece uma análise, porque tem alta adesão e traz uma amostra do pensamento de nossa sociedade. Poderia dizer que a campanha é injusta, nojenta e burra, porque em última instância trata-se de um ser humano que vive uma situação difícil, da qual muitos de nós já passamos, direta ou indiretamente. Mas prefiro ver a atitude por um outro ângulo: ela é autoritária.




Em primeiro lugar, precisamos levar em conta a trajetória política do ex-presidente. Não é preciso amá-lo nem odiá-lo, mas sim levar em conta que se trata de um retirante nordestino, com pouquíssima formação acadêmica, que passou pela dificuldade de ser um operário, e que vem influenciando nossa política desde o tempo em que era um líder sindical, ainda nos tempos da ditadura, quando manifestar seus pensamentos e objetivos constituía ainda um perigo real, físico mesmo. Esse mesmo homem chegou à Presidência, foi reeleito e fez sua sucessora, e ainda hoje é referência quando se pensa na política do Brasil. Nesse sentido, sua carreira é absolutamente brilhante, a despeito do que se pense de suas ideias e de seus resultados. Espero ter sido compreendido.

Já tivemos inúmeros políticos que se trataram de doenças graves em hospitais particulares, no Brasil e no exterior. Por que o seu caso provoca tanto escândalo?

Quem pensou em luta de classes acertou em cheio. Nossas elites ainda não são democráticas no sentido pleno da palavra, ainda não estão preparadas para suportar a ascensão social dos mais pobres, e Lula é um modelo perfeito e bem acabado daquilo que não conseguem compreender. Ao recomendar que Lula faça seu tratamento no SUS, acabam revelando que é este o lugar que desejam para toda uma classe social. E essa atitude é autoritária, porque reflete uma efetiva demonstração de desejo da manutenção de seu status quo. E apenas para ela. Não se deseja uma nova elite, ou uma elite mais numerosa. É uma atitude extremamente agressiva, e, como tal, portadora de uma verdade por vezes indesejável, inconfessável, mas inevitável, como pensava Michel Foucault (vide este post).

Isso revela dois problemas. O primeiro é o próprio fruto do autoritarismo. Nosso último período ditatorial foi derivado de um ledo engano da classe política. Achava-se que os militares tomariam o poder constitucionalmente eleito para entregá-lo de mão beijada. Triste ilusão, de igualmente tristes consequências. Vivemos um período sangrento, cuja real dimensão não conhecemos de todo até hoje. Ora, o autoritarismo atrai autoritarismo. Os acontecimentos no mundo árabe estão aí, para não deixar ninguém mentir. É que, ao admitir-se a violação da ordem legal, derruba-se o estado de direito e valida-se a exceção, a violência e a insegurança jurídica. Acho engraçado que existam pessoas que elogiem o regime ditatorial, em especial aqueles que não o vivenciaram. Talvez não reflitam adequadamente. Nossa elite intelectual não coincide com nossa elite econômica, seus anseios são diferentes. Esse SUS que reputam por ineficiente e inadequado é fruto direto do desmonte das políticas sociais ocorrido justamente na ditadura. Os militares entregaram aos civis um país quebrado, próximo da ingovernabilidade. Só pudemos encontrar algum respiro verdadeiramente democrático a partir do governo Fernando Henrique, que, apesar de minhas grandes restrições, começou um processo de estabilidade econômica que tem permitido algumas melhorias sociais. É bom lembrar que a transição de seu governo para a gestão Lula foi feita de maneira absolutamente republicana e democrática, ao permitir que os técnicos do novo governo se instalassem e tomassem pé da situação ainda antes do início de seus mandatos.

O segundo problema diz respeito às reais condições de atendimento do SUS. Conhecemos as filas e as denúncias, e não ficamos satisfeitos com elas. Mas, em alguns aspectos, somos exemplos para outros países. Para tanto, peço a leitura atenta deste depoimento. Não preciso acrescentar mais nada, mas gostaria de mencionar estes dois exemplos extraídos de minha vivência, quem vem ao encontro dos objetivos deste blog.

O primeiro diz respeito a alguns hospitais que são referências, e que atendem pelo SUS: o HC, o Dante Pazzanese, o Pérola Byington. Estivemos em visita ao Hospital A. C. Camargo, o famoso hospital do câncer, em sua ala infantil. Lá há atendimento a particulares e ao SUS. Não há nenhum, mas nenhum mesmo, tipo de diferença entre o tratamento oferecido para um ou para o outro. Um quadrinho aqui, uma mesinha lá: é todo o privilégio adicional que os particulares tem em relação ao atendimento público.

Já o segundo é mais pessoal. Minha mãe começou tratamento contra o câncer enfrentando um monte de dificuldades: começando por exames não cobertos pelo convênio, passando por processos judiciais para conseguir uma porcaria de uma alça de ressecção e horas e mais horas de telefone, internet e visitas pessoais para conseguir a autorização para a aplicação da imunoterapia. A única participação do SUS nesta história toda foi o fornecimento dos medicamentos, que foram conseguidos NA HORA, sem nenhuma burocracia.

As pessoas tem a tendência de achar que as coisas administradas pela iniciativa privada são mais eficientes, o que não é uma verdade absoluta, principalmente quando há risco de prejuízo. Aí, sim, a grande roda do capital gira e o ser humano é posto em um plano inferior. Passa-se, então, do autoritarismo para a burrice, a nojeira e o preconceito sobre os quais não quis falar no começo desta postagem. E, então, nascem campanhas como estas, onde as pessoas acham divertido zombar da desgraça dos outros.

Recomendação de navegação:

O link acima aponta para um texto de Nina Crintzs, que escreve bem prá burro e que eu gostaria de deixar recomendado, ainda que suas postagens sejam relativamente raras.

Purple Sofa
https://purplesofa.wordpress.com/

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Continuando: sobre o tempo e as relações entre ética e metafísica

Olá!

Em meu post anterior, comecei a discutir a questão do tempo e da memória a partir do filme "O fabuloso destino de Amélie Poulain". Coloquei a visão patrística de Santo Agostinho, que compara o tempo à música, e que reputa-o como eminentemente psicológico ou espiritual.

O mesmo faz o pensador francês Henri Bergson, que traz interessantes teorias sobre o tempo que, a bem da verdade, complementam e enriquecem as ideias de Santo Agostinho. Para ele, na maneira como olhamos o tempo há um equívoco: procuramos observar espacialmente algo que não tem dimensões. Dividir o tempo significa dividi-lo em anos, meses, semanas, dias, horas, minutos, segundos. Essa segmentação é precisa - cada segundo é igual a outro segundo, seguindo assim uma premissa científica. Ok, o tempo assim dividido realmente se presta à ciência, que necessita de métricas para o estudo dos fenômenos. O problema é para quando vamos além dos limites das ciências.

Um exemplo, então: já leram Machado de Assis? Gostaram de "Memórias Póstumas de Brás Cubas"? É um dos livros mais adotados nos exames vestibulares. Pois bem, como a maioria das pessoas o lê por obrigação, costuma ser uma leitura arrastada, demorada, empurrada goela abaixo. Como seria se a pessoa obtivesse prazer nessa leitura? Ora, haveria fluência, atenção. Digamos que duas pessoas com o mesmo nível de leitura se colocassem a ler este livro ao mesmo tempo, e terminassem também juntos. Falando em termos científicos, os tempos são iguais e pronto. Mas para a pessoa que leu com prazer o tempo percebido é bem menor. De onde vem essa impressão? Que tempo interior é esse, que faz com que o mesmo fenômeno seja tão distinto em circunstâncias iguais?

Para explicar essa situação, Bergson pensa nas instâncias da consciência; temos, em primeiro lugar, o instinto. Este é uma espécie de regra pronta para a solução imediata de um problema. É como quando um piano cai sobre nossa cabeça: não adianta nada, mas erguemos os braços para nos defender. Depois, temos a inteligência, que procura avaliar as relações entre as coisas antes de atuar. Para tanto, a inteligência espacializa o tempo, procura dispô-lo em compartimentos contínuos e separados. Voltando ao piano, se houver tempo suficiente, a inteligência avalia a distância, impede a ação do instinto, formula a hipótese do desvio, compreende qual o melhor ponto para a fuga, a velocidade com a qual isso deve ser feito e aciona os membros competentes para a execução da tarefa (óbvio que, para tanto, o piano deve cair de um prédio beeeeeeeeeeeeem alto). Em ambas as instâncias, podemos fazer uma medida do tempo, normalmente em segundos. Mas quem diz à consciência que tudo se deu rapidamente ou foi demorado? Quem diz quanto a experiencia "durou"? Essa percepção é a intuição. Somente com ela podemos dizer qual foi a duração (durée) do fenômeno. No caso do livro de Machado, podemos dizer que é a intuição que diz se a leitura foi breve ou demorada. A intuição não é espacializadora, ela capta o evento como um todo, e assim o transmite à consciência. Como a intuição é diferente de pessoa para pessoa, podemos dizer que ela é única, personalíssima, identificadora.

Para ilustrar a diferença entre a inteligência e a intuição, Bergson lança mão de um exemplo maravilhoso: a inteligência assemelha-se a um colar de pérolas, que são ligadas por um fio, mas são compartimentalizadas. Cada pérola é um evento, bem delineados e distintos entre si. Há um espaço que as delimita e sequencializa, isoladamente. Já a intuição é como um novelo de lã, contínuo, sem interrupções, compõe um todo, onde as experiências passadas estão sobrepostas pelos acontecimentos mais recentes, mas em um continuum: em nenhum momento o passado mais interiorizado deixa de estar à disposição da consciência, e pode, inconscientemente, ser resgatado. Como em Santo Agostinho, essa presença perene dos tempos no presente é psicológica, espiritual, inerente ao ser humano.



É nesse ponto em que podemos voltar ao filme, e com uma novidade: o cruzamento entre memória e conduta.

No campo ético, o resgate da memória motiva um momento de decisão para Amélie. Para tanto, ela acompanha de que modo se dará a reação de Dominique (o menino que ocultou os pertences, agora um homem maduro) ao rever seus objetos perdidos. Caso essa reatividade seja positiva, Amélie tomará como valor a contribuição ao próximo como chave de sua atitude ética. Nesse caso, podemos fazer remissões à ética judaico-cristã de amor ao próximo e também ao imperativo categórico da ética do dever de Kant, já que a escolha de Amélie terá por fim a constituição de uma verdade universal para si própria, mas é melhor se prender à grande sacada do filme, que é a seguinte: A escolha ética de Amélie será tomada em cima de uma constatação metafísica: qual é a importância do tempo nas escolhas do indivíduo? A memória eternamente presente é uma chave para se desvendar a verdade sobre a conduta das pessoas, inclusive daquelas que não estão diretamente implicadas com meu próprio resgate, ou minha própria expectativa. Afinal, sobre a decisão de um terceiro com relação ao seu próprio passado ela pautará sua conduta ética. Os desdobramentos seguintes em sua vida já são uma consequência desta decisão.

O filme não se limita a isto. É visível, no decorrer do filme, o desenvolvimento das habilidades sociais da personagem central, ao construir por si mesma a sua rede de relacionamentos, embora seja inevitável a percepção de suas dificuldades em virtude do déficit educacional ocorrido em sua tenra idade. Mas vou ficar na questão do tempo e deixar os demais assuntos para outra oportunidade.


Recomendação de audiência:
Esse entrelaçamento entre metafísica e ética é absolutamente original, por isso recomendo fortemente o filme.

JEUNET, Jean-Pierre. O fabuloso destino de Amélie Poulain. Filme. França, 2001. 120 min.


Recomendação de leitura:
Henri Bergson, além de grande filósofo contemporâneo, é também excelente escritor, tanto que foi agraciado com o prêmio Nobel de literatura em 1927. Sua principal obra com relação a problemas metafísicos é:

BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Sobre o tempo e atividades acadêmicas

Olá!

AACC's são maneiras interessantes de avaliar o conhecimento de um aluno. Gosto delas. Tá certo, dão muito trabalho. Precisei fazer uma série, que são exigências da minha facu. Claro, umas são mais interessantes do que as outras, mas algumas delas me chamaram especialmente a atenção, como a análise que fiz do filme "O fabuloso destino de Amélie Poulain".



A análise de obras de arte em Filosofia não é uma mera resenha. É preciso fazer ligações com as principais linhas de pensamento, citar autores e blá, blá, blá. No filme em questão, é possível ver dois focos principais: a personalidade construída sob um prisma educacional anti-convencional e os conflitos éticos estabelecidos para uma pessoa cuja formação foi delineada em um ambiente de isolamento.A narrativa é construída sobre a história de Amélie Poulain, uma menina tida como doente pelo pai, que resolve atribuir sua educação unicamente à responsabilidade da mãe. A metáfora do peixe suicida é uma referência ao ambiente neurótico que se forma de maneira sufocante. A progressão deste fato se dá até a morte prematura da mãe (ironicamente, atingida pelo salto mortal de um suicida). Os laços entre pai e filha, ao invés de se aprofundarem, tornam-se ainda mais superficiais. A tensão se alastra até culminar na saída de Amélie de casa, tão logo tenha atingido a maioridade.

O centro dramático da obra se dá no momento em que Amélie descobre escondidos em seu apartamento alguns objetos pertencentes a uma criança que por lá habitou antes dela. Nesse ponto, é possível discorrer sobre a função da memória e, principalmente, do que representa o tempo. O debate é sobre a existência tangível do tempo passado, ou seja, de que forma as recordações tornam o passado eternamente presente.

E aqui, é inevitável mencionar dois autores, donos de teses maravilhosas sobre o tempo: Santo Agostinho e Henri Bergson.

Demos preferência a Santo Agostinho, senhor mais idoso. Para ele, o tempo pode ser definido com a seguinte frase: "Se ninguém me perguntar o que é o tempo, eu sei; se eu precisar explicá-lo, já não sei". Poesia à parte, é na sua obra "Confissões" que será feita uma das mais belas definições sobre o tempo. Agostinho especula sobre onde se dá existência real do tempo, problema aparentemente insolúvel: o passado já se deu, o futuro ainda não veio e o presente é um ponto indefinível, que pode ser subdividido ao infinito. Portanto, não adianta procurar o tempo no universo imanente, ele é espiritual. Vejam: tanto a memória (passado) quanto a espera (futuro) são fenômenos intelectuais. Observar um álbum de fotografias, por exemplo, é um ato presente de reacender a memória, trazer o passado de volta. Fazer um orçamento é um ato presente de exercer uma previsão, de antecipar o futuro. Ambos são atos abstratos, psicológicos, espirituais, eminentemente humanos. A abstração se estende pela memória para resgatar o tempo passado e trazê-lo de volta ao presente. Também se estende para o futuro para trazê-lo ao presente e antecipá-lo. Esse movimento é elástico - há momentos em que se estica (extensão) e há momentos em que se condensa (distensão).

Santo Agostinho faz uma comparação muito bela para explicar sua teoria da interpenetração dos tempos: vê a interpretação de uma música como melhor exemplo. Para ele, tempo e música tem em comum a medida, o ritmo, o fluxo. Antes de se iniciar a música, todo ato temporal está no futuro. O tempo então dilata-se para a frente e começa a cumprir os compassos sonoros. A cada execução, a expectativa do que estava por vir tranforma-se em passado. Ao recordar-se da execução, o tempo muda de lado: estica-se todo para trás. Então o ciclo recomeça: começamos a cantarolar a música. A cada novo arranjo, uma nova extensão para o futuro; a cada nova execução, uma nova condensação no presente; a cada vez que se recordar da música, uma nova extensão para o passado. Este estica-e-encolhe é o próprio fluxo do tempo na consciência ou no espírito, onde passado, presente e futuro se entrelaçam e se apresentam ao sujeito.

Tá ficando comprido, e ainda tem bastante prá dizer. A complementação de Bergson e as ligações com a ética aplicada em Amélie Poulain vão ficar para o próximo post.


Recomendação de leitura:

Santo Agostinho é um doutor da Igreja. Como tal, a indicação que faço aqui é repleta de referências religiosas, mas seu fundo filosófico é bastante interessante. E, mesmo na composição doutrinária, nosso filósofo é brilhante.

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1977.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Sobre Cosme e Damião, seja com relação a balas, seja com relação à antropologia

Olá!

Há coisa de um mês atrás, eu estava andando pelo Glicério quando me ofereceram umas balas, assim do nada. Era uma mocinha, de seus 12 anos no máximo.

- É de São Cosme e São Damião, disse-me ela.



Apesar das limitações diabéticas, aceitei de bom grado. Houve uma época, em minha infância, que na festa de Cosme e Damião, corríamos por todos os terreiros de umbanda da região, atrás de balas, doces e pipocas. Tinha bem uns quatro, mas lembro em especial o da mãe Sabrina, que ficava no final da rua onde morava minha avó. Ele ficava a beira-rio e tinha um monte de amoreiras, onde eu pretejava minhas mãos e minha boca (sim, minha roupa também, para desespero de minha mãe). Fazia parte de nosso espaço comum, não havia restrição para entrada ou saída, mesmo durante os cultos.

Os católicos do pedaço tinham uma relação de tolerância com os terreiros, já que o sincretismo propiciava alguns pontos em comum. Sacumé, santos e orixás, benzedeiras e rezadeiras, enfim. Já para os evangélicos (na época dizíamos: crentes) eram antros de adoração do diabo, qualquer um que pusesse os pés lá dentro era amaldiçoado e outras patranhas deste estilo.

Onde será que foram parar? Não conheço mais quase nenhum. Por que será que estão desaparecendo?

Penso que há um grande mal em hierarquizar-se as religiões, como se uma fosse melhor que a outra. Não são. Porém, tenho motivos para acreditar que as crenças de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé, são mais vilipendiadas que as outras por motivos tão simples quanto abomináveis.

Vamos exemplificar: o lugar de culto destas religiões são chamados de "casa de encosto" ou "terreiro de macumba" pelos praticantes de outras crenças. É para lá de evidente que o olhar de quem lança um tratamento destes não tem nenhum caráter antropológico, nenhum distanciamento crítico. Outra crítica é a de que se trata de uma religião primitiva, muito próxima ao animismo praticado desde os tempos pré-históricos. É um olhar absolutamente parcial, contrário ao espírito filosófico. Senão vejamos.

Uma das maiores dificuldades do Cristianismo é explicar a existência do mal. Se Deus é bom, por que permite que o mal aconteça? As explicações não são boas, em geral. A mais razoável é a do catolicismo - o mal existe porque Deus não cria robôs, porque o livre arbítrio do homem o leva para o mal. Mesmo assim, o problema persiste, porque nem tudo está sob controle do homem. Se pensarmos em predestinação - tão cara aos evangélicos - essa teoria cai por terra. Nesta linha de pensamento, Deus já criaria seus filhos com destino certo, para gozar ou para sofrer, para ir para o céu ou para o inferno. Só os eleitos teriam lugar no paraíso. Deus estranho, esse. Quanto à Umbanda, sua visão é de que o mal existe e devemos saber lidar com ele. Não há como negar que todos possuem variações psicológicas e diversidades de comportamentos. Aos momentos ruins, um evangélico típico atribui a ação demoníaca. Os umbandistas, ao contrário, verificam um desequilíbrio no próprio ser.

Os umbandistas são mais telúricos, ligam-se mais fortemente à natureza e sua inconstância. Os fenômenos naturais estão ligados à divindade de seus orixás, que controlam sua ocorrência e características. Ao contrário de ser meramente uma tendência ancestral, o fato é que eles são mais ecológicos, respeitam mais o meio ambiente, afinal lá está a morada de suas divindades. O que é mais moderno que isso?

Outra questão que os umbandistas tiram de letra e que perturbam outras religiões é a questão do sentimento de culpa. Por exemplo: enquanto na maioria das religiões a homossexualidade é encarada como erro, como desvio, como pecado, e quem possui uma tendência desta carrega o peso de uma auto-condenação, no umbandismo e no candomblé isso é uma decorrência espiritual, não há fardo a carregar.

A grande resposta à questão é: as religiões afro não são respeitadas por puro preconceito. São religiões de negros, esta é a verdade. Trata-se do antiquíssimo preconceito de raça, ele mesmo, o racismo. Que continua trazendo seus danos: estamos perdendo parte significativa de nossa cultura como um todo ao diminuir o valor da cultura trazida pelos africanos e pelos indígenas.

Não estou aqui desfazendo da fé e das convicções de ninguém. Só queria lembrar que é saudável e até mesmo necessário que tenhamos um olhar mais crítico e menos dogmático sobre a cultura do outro. Gostaria de mencionar dois eventos que demonstram a inter-religiosidade levada ao seu grau mais elevado: o primeiro é a lavagem da escadaria do Bonfim, que ocorre anualmente na Bahia, mais por força da tradição dos negros, que fizeram deste evento um sinônimo de ecumenismo. O segundo é menos conhecido, mas talvez mais impressionante: o presépio dos orixás, que fica em um convento franciscano em Guaratinguetá. Esses são sinais de respeito pelo conhecimento do outro, do reconhecimento da validade de sua cultura.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Abrindo a caixa de ferramentas

Olá!

Praça da Liberdade. Lugar interessante, geléia cultural que agrega e mistura muitas tribos, em especial os divertidíssimos cosplayers. Terra invadida pelos jovens, novíssima Ágora repleta de cores, música e... palavrões!!! Infinitos, variados, ditos em alto e bom som, capazes de arrancar a casca de um carvalho, principalmente quando saídos dos delicados lábios carmins das frágeis e indefesas jovenzinhas, prontas para dar aula ao mais carrancudo dos carroceiros.


Tá na cara que o assunto me causa um certo... espanto, mas não chega a atravessar minha capacidade crítica. Vamos lá!

Em primeiro lugar: o palavrão é, antes de mais nada, um recurso da linguagem. E dos mais legítimos. Lembremos que a função da linguagem ultrapassa muito a racionalização do pensamento. Ela também tem a tarefa de exprimir estados de espírito, emoções, sentimentos. E, neste posto, temos uma grande dificuldade: por um lado, os impulsos irracionais são, por si só, caóticos. Por outro, a linguagem tem problemas para traduzir com exatidão as relações que são a ela propostas. Apenas como exemplo, podemos mencionar o caso dos paradoxos. Que tal o mais tradicional de todos - o "paradoxo do mentiroso"?

"Um homem diz: - Estou mentindo.O que ele diz é verdadeiro ou falso? Se for verdadeiro, significa que ele está mentindo, e portanto não poderá estar dizer o verdade. Se for falso, significa que está dizendo a verdade, o que quer dizer que está mentindo".

Os paradoxos circulares, como esse, são uma mostra de que a linguagem é repleta de alçapões. Vários filósofos já se debruçaram sobre a questão da capacidade que a linguagem possui para refletir (ou não) a verdade. Existem as mais diversas concepções, mas duas delas são particularmente interessantes e atuais: a de Theodor Adorno e a de Michel Foucault. Vou mencioná-las rápida e genericamente, para embasar minhas hipóteses.

Adorno diz que a verdade é algo que trafega no espaço que há entre o sujeito e o objeto, ou seja, o contexto ambiental e histórico influencia na formação da verdade. Vejam: entre o sujeito "Eu" e o objeto "faca", há uma relação que transcende a mera observação. Assim, se estudo uma faca em uma selva, ela significa um meio de sobrevivência; se a observo em um julgamento, pode ser a arma de um crime; em um açougue, é uma ferramenta de trabalho; em uma cerimônia religiosa, pode ser um acessório ritual. Também o aspecto temporal é relevante: a bússola que hoje está no museu já foi o único recurso do navegante para empreender suas expedições. Desta forma, e com perdão aos conservadores e dogmáticos, verdade é contexto. E, portanto, extremamente relativa.

Evidentemente, esta é apenas uma das interpretações da verdade, mas há muitas outras. A de Foucault, por exemplo, articula-se e complementa a teoria de Adorno, com uma tese absolutamente simples e original. Para ele, a verdade na relação entre dois sujeitos emerge a partir da agressividade.

Isso ocorre assim: convivemos com nossos amigos até que uma situação de conflito se estabeleça, seja uma opinião contrária, uma brincadeira de mau gosto, uma frase mal colocada, uma atitude impensada. Enfim, uma agressão. A reação que meus amigos tiverem em relação à minha atitude estabelecerá qual é o real alcance de nossa amizade. Se a reação for de procurar saber o que está havendo, poderemos dizer que temos uma amizade real, há preocupação com a continuidade da relação; se for igualmente ou mais agressiva, vemos outra situação surgir: a minha agressividade engessou a capacidade de meu amigo de colocar a amizade acima da desavença. Se meus amigos virarem as costas, surge outro aspecto da verdade da nossa relação - a amizade inexistia, ou não foi possível suportar minha agressão - eu colocado como de fato sou. Concluo que a agressividade é o grande disparador da verdade.

Há momentos em que tudo o que resta é a reação agressiva. E neste momento, temos duas expressões legítimas da linguagem: o grito e o palavrão. E, como tal, são expressões máximas de uma verdade contingente: aquela primal, visceral. Entre os dois, o palavrão é menos imediato e mais informativo - ele não é apenas uma reação fisiológica, há alguma articulação intelectiva nele, ainda que bem pouca. Claro, o exemplo mais rápido é o da topada na pedra. Pouca gente faria outra coisa que não fosse gritar ou berrar impropérios.

Também a expressão da reação contra aquele que, de alguma forma, nos contrapõe, é campo compreensível para a utilização do palavrão. É o xingamento, expressão da raiva - atitude de ação ou reação agressiva, fundeadora da verdade. Manja?

_ Quem te fez isso?
_ Aquele f... da p...!

É isso. O palavrão tem uma importante função na linguagem - canalização da agressividade. Não precisamos ser falsos moralistas. O caso todo é que sua utilização exagerada acaba produzindo um desvio de função e, no limite, seu esvaziamento. Não há uma medida sobre o local em que se dispara a metralhadora, nem hora de soltar o berro. Há um descompasso entre o uso e a necessidade do uso do palavrão. Há a justificativa do desafio ao establishment adulto, do desafio à autoridade paterna, que preza a disciplina e bom comportamento. Também é possível pensar em um desafio à hipocrisia social, que acoberta com palavras bonitas as muitas mazelas que se deixam ocorrer, muito mais pornográficas que qualquer piada suja. Há ainda um desajuste, ou melhor dizendo, uma fase em que o jovem ainda está fazendo a "sintonia fina" de sua adaptação às convenções próprias de quem está saindo da infância e ainda não chegou ao mundo adulto. Mas, no geral, das duas, uma: ou as gerações atuais são mais agressivas ou o palavrão foi banalizado. Talvez ambas as coisas sejam verdadeiras.

Recomendação de leitura:

Para a noção de parresia em Foucault, recomendo o seguinte livro:

FOUCAULT, Michel. Sexualidade, corpo e direito. MAGALHÃES, Bóris et al [org.]. Marília: Cultura Acadêmica, 2011.

Quanto à questão da verdade em Adorno, esta é a leitura fundamental:

ADORNO, Theodor. A dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Especismo

Olá!

Conforme solicitado a mim anteriormente, vou retomar o tema deste post, sob outra ótica. Nele, menciono um texto de Robson Fernando, estudante de gestão ambiental que trata do tema do especismo. O autor o trata como um novíssimo preconceito, que se refere à questão da superioridade da espécie humana com relação aos demais animais. A pergunta central é: O que legitima a posição humana de domínio no mundo? A racionalidade é suficiente para embasá-la? Ou ainda: é racional colocar-se em um plano superior?


A questão é difícil, e confesso que ainda hoje não consegui firmar uma posição definitiva sobre o assunto.

Os argumentos dos anti-especistas são bons. Em primeiro lugar, eles têm razão ao dizer que os preconceitos surgem sem que percebamos. Eles não são criados, são descobertos. A história conta-nos que em determinadas épocas, algumas posturas que hoje reputamos por inaceitáveis estavam perfeitamente sedimentadas no senso comum. O autor do texto menciona as diferentes formas de escravidão para justificar suas posições.

(Se bem que é preciso raciocinar se todas as formas de escravidão estão verdadeiramente extintas. Ao atribuir um baixo salário à classe trabalhadora, a elite tira de si a responsabilidade pela tutela de seus empregados - que os senhores de escravos tinham - sob o dissimulado escudo da liberdade, e mantém seus ganhos em alta. Bom, isso é marxismo. Deixemos o assunto para outro momento).

O preconceito, desta forma, instala-se no organismo social na forma de ideologia, e, imperceptivelmente, é tomado por natural e desejável, sendo desta forma perenizado (lá vem Marx de novo). O comércio de animais é hoje tão admissível quanto o tráfico negreiro foi um dia. E se hoje o racismo, o sexismo e a xenofobia são condenáveis, o especismo também deve ser. Não há nenhum sentido em desrespeitar os animais se queremos ser respeitados em nossa condição humana.

Concordo em boa parte com as razões colocadas pelo anti-especistas. Práticas como rodeios, touradas, caças predatórias e utilização de animais em circo são abomináveis. Quanto a isso, ponto final. Toda vida merece um mínimo de dignidade. Usá-la para satisfazer um instinto perverso não tem justificativa. Também a comercialização de animais para fins meramente estéticos pode ser entendida como abusiva. O problema é quando chegamos na questão da sobrevivência. E então, finalmente, podemos encontrar algumas contradições nas justificativas anti-especistas.

Em primeiro lugar, não é verdade que os homens não se vendem mais. Fazem-no sob o nome de "força de trabalho" (sai, Marx!), como mencionei nos primeiros parênteses. Ficamos comovidos com a situação dos bolivianos no Brás*, mas se eles tivessem carteira assinada e situação civil regularizada, nem perceberíamos a sua presença - a não ser para notar que eles tomam postos de trabalho, como se este país não tivesse sido constituído basicamente de imigrantes. Também creio que sua situação de miséria não estaria tão melhor. Portanto, antes de observar se somos especistas, é preciso ver o quanto ainda somos racistas, xenófobos, elitistas.

Depois, é preciso achar uma chave para a solução, e esta encontra-se, mais uma vez, na consciência ética. Tudo começa por um olhar não fundamentalista. Significa que não podemos repudiar pura e simplesmente o comércio de animais por dois motivos básicos:

1º - A sociedade ESTÁ constituída desta forma. Simplesmente TUDO é comercializado. Não se trata aqui de defender o comércio indiscriminado de animais, mas lembrar que desde o mais sagrado até o mais profano é objeto de valor. Vendem-se corpos, vendem-se ideias, vendem-se bênçãos, vende-se conhecimento, apropriam-se de nomes utilizados a séculos, tudo isso aceito com naturalidade. Não estou fazem nenhum juízo purista, esta é apenas uma constatação;

2º - Como mencionei anteriormente, há uma questão de sobrevivência. E nesse momento, é impossível não se tocar na questão alimentar. Não acho indigno que se use os animais para consumo. Muito pelo contrário. O mundo tem imensos bolsões de miséria, não se pode menosprezar as fontes animais de alimentação.

A conduta ética é, como sempre, baseada no respeito. O leão não me desrespeita se matar para comer. Ele está atendendo uma necessidade, e não o fará se não tiver fome ou se sentir ameaçado. A recíproca é verdadeira. É justificável abater um animal para consumo, mas de maneira a causar-lhe o menor sofrimento possível. Voltando ao leão, ele não me matará com requintes de crueldade. Vai me matar e me engolir, pronto. Portanto, o mínimo que se pode fazer é aplicar a tecnologia para mitigar um ato traumático.

Se eu souber que um determinado animal foi morto de maneira indigna, começarei pelo básico: não consumirei estes produtos. Enquanto eu estiver nestes limites, imagino que não estarei fazendo nada de errado, nada de anti-ético. Mas, como disse anteriomente, não tenho ainda uma posição definitiva sobre a questão, o que quer dizer que estou aberto a sugestões de leituras e argumentos contrários.

* Para quem não conhece, o Brás é um dos bairros mais tradicionais da cidade de São Paulo. Formado por famílias operárias vindas de toda parte do mundo (principalmente italianos e sírio-libaneses), na região central da cidade, teve sua história radicalmente transformada com a construção da estação de metrô e expansão da estação de trem, que derrubou a maior parte da área residencial, conforme eu já havia observado aqui. O resultado foi a sua desnaturação. Em outros bairros tradicionais, como a Moóca, o Bexiga, a Barra Funda e o Bom Retiro, ainda é possível encontrar muitos pontos que contam o transcurso do tempo e as suas modificações. Isso quase é imperceptível no Brás. O que sobrou foram as lojas, pequenas tecelagens e seus porões, onde ficam alojados imigrantes andinos (principalmente bolivianos), e que trabalham em regime de semi-escravidão, em especial sob a ameaça de denúncia de suas situações ilegais. É uma pena que sejam mal vistos; são famílias unidas, bastante religiosas. Os pais sempre estão juntos dos filhos, com quem costumam brincar pelas ruas apertadas do bairro. A pobreza não os desnaturou, como ocorreu com o bairro onde hoje vivem.