Em fins do ano passado, meu amigo Vithor teceu, neste mesmo
espaço, uma série de considerações com relação à concepção de boa arte, em um
texto denominado (oh!) “A concepção da boa arte”. Em seus argumentos,
maciçamente focados nas teses de Pierre Bourdieu, chegou à conclusão de que é
impossível estabelecer uma barreira digna entre o que pode ser considerado como
arte verdadeira e produto de consumo. Leiam lá e depois voltem aqui.
Vou tentar refutar estas teses, lançando mão de outros
pensadores da Estética, em especial os alemães, aqueles que sistematizaram o
estudo do conhecimento sensível. Iniciarei com um cara um pouco mais longínquo
e com uma visão mais romântica da Filosofia. Trata-se de Friedrich Schlegel.
Esse alemão pensa a arte em termos de transcendência. A seu
ver, há uma clara intenção do homem em buscar e atingir o infinito, mas,
evidentemente, só possui meios finitos para tanto. Não é possível saltar o
arco-íris, viver no reino das águas, regressar no tempo, rever antepassados
mortos: tudo é marcado por limites físicos, temporais, espaciais. Daí que há um
império da contingência; não conseguimos estabelecer a universalidade das
coisas. Também estamos presos na imanência, sendo-nos defeso conhecer como se
forma e que leis regem o metafísico espaço transcendental.
Não há nada a fazer, então? Há, sim. Segundo Schlegel, o
gênio artístico é o único capaz de produzir uma síntese entre o finito e o
infinito. A arte é ferramenta capaz de conectar os mundos do finito-infinito,
contingente-necessário, particular-universal, imanente-transcendente, porque,
apesar de se prender a ferramentas tangíveis (pincéis, instrumentos musicais,
papel, pedras), consegue ir além destes materiais, ressignificando-os em
pintura, música, literatura, escultura.Ok. Mas é qualquer obra de arte que consegue produzir essa síntese? Não, evidentemente. É preciso que se consiga transcender, que se migre o significado, que se consiga intuir que aqueles materiais empregados tenham sido suficientes para produzir uma catarse semelhante àquela preconizada por Aristóteles. Só que essa catarse não é coletiva. A arte é apreendida individualmente. Então, haverá pessoas que conseguirão ser ligadas ao infinito, outras não. Para as primeiras, teremos a boa arte; para as demais, não.
Pois é. Schlegel não serviu para derrubar a tese do Vitor.
Vamos tentar Baumgarten.
Para Baumgarten, a Filosofia ocupou-se muito pouco em
investigar os sentidos, ao contrário do que fez com a razão através da lógica e
da vontade através da ética. Isso porque os sentidos apreendem o mundo de
maneira dúbia e pessoal, ou seja, com imprecisão. No entanto, o conhecimento
sensível tem a possibilidade de perceber a perfeição, e isso acontece quando é
captada a perfeição do belo. Assim nasce a Estética, e a sua plenitude é a
apreciação da obra de arte.A arte, em seu entender, tem a possibilidade de operar uma
transmutação: pode transformar um objeto feio em uma obra bela, e isso se dá
pela perfeição do conhecimento sensível. O sentimento que denota essa
característica é o prazer, pedra basilar da apreciação estética. É através dele
que se opera o milagre da percepção intelectiva da genialidade do artista. Simplificando,
a boa obra de arte é aquela que ocasiona prazer a quem dela obtém a
contemplação.
Parece que de fato só podemos considerar uma obra de arte
como tal se dela extraímos uma sensação de prazer. Mas vamos analisar o quadro Guernica, de Pablo Picasso:Em um primeiro instante, podemos falar em prazer em sua apreciação? Certamente não. Trata-se de um retrato cru e distorcido de uma cena de guerra: o bombardeio da cidade de Guernica pela aviação nazista alemã, em plena guerra civil espanhola. Não se trata de um objeto feio modificado em cena bela. A feiúra, a destruição, a desgraça, todos permanecem. E, no entanto, sabemos se tratar de uma exuberante obra de arte, plena de significados. Sua beleza reside na ideia que transmite, não na beleza plástica. O fato de expressar o feio pela feiúra não a diminui em nada. Como essa ideia de comunicação não se destina à beleza, a concepção de boa arte de Baumgarten não se aplica ao caso, e a teoria do Vithor permanece.
Vamos tentar com Johann Winckelmann, então. Para este
filósofo da Estética Clássica Alemã, a arte extrai sua beleza das proporções
observadas na natureza, mas a transcende. Da arte, podemos obter o ideal. Isso
é conseguido porque o artista não é só hábil em sua técnica, mas é sábio;
consegue realizar aquilo que não é obtido diretamente da contemplação natural,
mas aperfeiçoá-la de maneiras impensadas anteriormente. Desta forma, vincula os
sentidos à razão. A beleza é mensurável, é passível de comparação, porque é
possível estender uma régua entre o quanto duas obras contêm de idealização e
perfeição.
Será mesmo? Vamos tentar comparar dois pintores
contemporâneos: René Magritte e Henry Matisse.Como é possível estabelecer uma divisão entre ambas que
identifique qual é mais bela. Esbarramos na subjetividade e constatamos que, se
Winckelmann for levado plenamente em conta, toda a arte moderna deve ser
descartada. Aqui também não deu.
Aproximemo-nos de Friedrich Hölderlin agora. Vamos ver o que
é possível fazer com suas idéias. Para ele, que analisou profundamente a
tragédia grega, a natureza é aórgica, ligada ilimitada e universalmente ao
transcendente, enquanto a arte é orgânica, passível de compreensão e
racionalização. A natureza aórgica é origem e fim, a arte é meio que atua neste
espaço. A arte é princípio de harmonia entre o real palpável e o Absoluto
divino. A boa arte aproxima o mundo da infinitude do universo sem, no entanto,
tocá-lo. É através da intuição intelectual que essa aproximação se dá. A
tragédia consiste exatamente nessa impossibilidade de preencher o espaço que há
entre finito e infinito, ou seja, a transcendência absoluta é inalcançável em
termos humanos e só se dá através da morte. Esse é o destino inexorável do
herói trágico.Então vamos pensar no concretismo, que, como o próprio nome induz, trata do material. A tela abaixo é de Piet Mondrian:
Quanta simplicidade, não? Se a compararmos com uma obra do
Barroco, ela parecerá até mesmo ingênua. Dá a impressão de se tratar de uma
maneira menor de se expressar. Nada há que denuncie uma aproximação
transcendental, ou uma ocupação do espaço que nos é permitido pela imanência,
servindo de ponte ao infinito, do modo que disciplinou Hölderlin (e Schlegel
também). No entanto, este holandês fundou uma nova escola, capaz de conduzir à
abstração com pouquíssima linguagem. Já volto a falar dele, mas, por enquanto,
ponto para o Vithor.
Poderia continuar tratando da questão e trazendo pensadores ad infinitum, ou mesmo me aprofundar
mais nos estetas aqui cuidados, mas sempre vamos esbarrar na questão da
subjetividade. E, a bem da verdade, o problema do desvio dos sentidos foi
tratado à exaustão na Filosofia, desde a Grécia antiga. Se a Estética é
exatamente o estudo do conhecimento sensível, tentar colocá-la em termos
objetivos é uma grande armadilha. A solução, a meu ver, é conceituar a boa arte
como algo subjetivo. E como fazê-lo?Imagino que a boa arte deve ser pensada em termos de experiência cultural, ou seja, quanto mais a contemplação estética me traz conhecimento, melhor ela será para mim. Assim, a boa arte é boa arte PARA MIM.
A arte, para ser considerada boa para mim, não pode se
limitar unicamente ao prazer proporcionado, mas deve ser indissociável do
conhecimento, sob pena de se tornar vazia. Só posso compreendê-la adequadamente
se eu procurar me aprofundar nos motivos e circunstâncias que levaram o artista
a se expressar daquela forma. Retomando Mondrian, pergunto-me porque ele
resolveu elaborar telas tão simples. Mondrian era um pintor convencional, que
pintava retratos e paisagens de modo semelhante a tantos outros...
... mas com o passar do tempo, percebeu que alguns dos
elementos que queria retratar eram mais significativos que os outros, e passou
a enfatizá-los em suas composições...
... e acabou percebendo que em poucas linhas e cores era
perfeitamente possível dar luz ao ambiente que gostaria de expressar...
... até chegar à conclusão que os elementos verdadeiramente
essenciais podiam ser totalmente reinventados, através da sua desconstrução, do
endireitamento das curvas, do espessamento dos contornos e da decomposição das
cores, chegando aos seus elementos mais primitivos.
Pois aí está. Temos, a partir de agora, uma visão
completamente diferente da arte de
Mondrian. Tivemos uma experiência cultural, que nos agregou conhecimentos e
ampliou nosso próprio olhar sobre o mundo. A partir de agora, podemos deixar de
ver Mondrian como um fazedor de rabiscos que as pessoas adquirem apenas para
parecer diferentes e passar a entendê-lo em sua genialidade – ou não, a arte
não pode ser tirânica.
Isso quer dizer que devemos considerar os
le-leque-leque-leques da vida como autênticas obras de arte? Depende de cada um.
Para mim, individualmente, não. Isso porque ela não me agrega nada. Trata-se da
repetição de fórmulas condicionantes que os pensadores da Escola de Frankfurt
tão bem delinearam. Mas se eu já passei dessa fase, não quer dizer que um garoto qualquer não lhe considere útil e prazerosa. A partir dessa “música”, o jovem em questão pode tentar descobrir o que é funk de verdade, sofrer uma sensação de estranhamento, gostar. Pode procurar autores melhores, mais elaborados, ampliando seus horizontes. Pode conhecer novas linhas melódicas, harmonias cada vez mais complexas. Pode tentar supor como seria se estas melodias fossem executadas por instrumentos cada vez mais incomuns, apreciando os novos timbres e sonoridades, em uma escala propedêutica ilimitada. E, não mais do que de repente, se veja em uma sala de concertos, em atenta audição de uma sinfonia de Dvorák. Isso tudo se souber o quanto a mídia é massificante e resistir ao seu ataque. Nesse sentido, a arte não é apenas ferramenta do conhecimento, mas é ferramenta da liberdade.
Resumo final: concordo com as teses bourdieunianas do
Vithor, assino-as embaixo e acrescento que é muito despótico de nossa parte
querer estabelecer uma linha divisória entre boa e má arte para além de nós
mesmos.
Recomendações de leitura:
Para saber mais sobre Schlegel (que não tem obras traduzidas
para o português):
BECKENKAMP, Joãozinho. Entre
Kant e Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
Obra-prima de Baumgarten:
BAUMGARTEN, Alexander. Estética: a lógica da arte e do poema. Petrópolis: Vozes, 1993.
BAUMGARTEN, Alexander. Estética: a lógica da arte e do poema. Petrópolis: Vozes, 1993.
WINCKELMANN, Johann J. História
da arte antiga. Porto Alegre: Movimento, 1975.
HÖLDERLIN, Friedrich. A
morte de Empédocles. São Paulo: Iluminuras, 2008.
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