Chuva... Boa nos tempos duros de estiagem, mas não tenho
como negar que fiquei meio puto em pegar um dia inteiro de chuva no meu raro
período de férias. O jeito é partir para a área cultural, que não enlameia os
pés e nem causa gripe. Conforme recebemos recomendações, partimos novamente
para o estado de Minas Gerais e fomos conhecer Monte Sião.
Como se pode ver na foto abaixo, o dia se afigurava entre o
depressivo e o tenebroso. Com o céu do jeito que estava, não havia grande esperança
de se desvencilhar do guarda-chuva. Até o pórtico da cidade, ainda tínhamos
alguma esperança de tempo estável, mas foi só ultrapassá-lo para que a tímida
garoa ganhasse proporção.Monte Sião se notabilizou por um tripé composto por pano, reza e caco. Explico melhor: a cidade é muito conhecida por ser um grande polo têxtil, mais especificamente na produção de peças de tricô. Apesar da imensa tentação da patroa, passamos praticamente incólumes, após eu proferir um discurso, entre comovido e patético, acerca das vantagens da economia de recursos e do afastamento das tentações.
... que, por acaso, vem a ser essa daí (um modelo, evidentemente):
São atribuídos muitos milagres a essa medalha e à intervenção de sua maior entusiasta, Santa Catarina Labouré, uma freira francesa. O santuário é uma espécie de basílica de Aparecida em ponto pequeno. Tal como na sede da padroeira de nosso judiado país, há uma concentração significativa de artigos de fé, reunidos em um cômodo denominado “Sala das Graças”.
Neste lugar, estão expostos itens que representam os apelos das pessoas em desespero, que não veem outra alternativa a não ser recorrer à divindade. Há muitas fotos espalhadas pelas paredes...
Também há peças de roupas, muitas peças de roupas. Há peças de dois tipos: os tricôs típicos da cidade, preparados especialmente para remir promessas, e roupas usadas pelas pessoas que pedem socorro. É muito comum ser inserida uma grande oração de agradecimento, acompanhada pela descrição da graça recebida. No caso abaixo, temos uma roupa de criança enquadrada pelos pais (há vários outros semelhantes).
E por último, mas não em último, temos a porcelana. Porcelana azul. Linda de verdade. Próximo à praça central da cidade, há uma grande loja que fornece seus produtos a pessoas que vêm de toda parte, anexa à fábrica que as produz.
A variedade é absurdamente grande. A grande especialidade é a utilização de coloração branca e azul, que representa pelo menos 95% de sua produção. É possível montar conjuntos de presente (bons para casamentos) ou cair de cabeça na banca de liquidações, composta por peças com pequeninos defeitos vendidas por menos da metade do preço de prateleira. Caçando com especial paciência, é possível montar uma bela bateria, sem causar grandes percalços ao tesouro.
Curiosíssima característica: é permitido aos clientes visitar a fábrica, que ocupa o mesmo terreno da loja. Para crianças (como eu), um atrativo e tanto, mesmo com a expressa proibição de tocar nas peças. É um ambiente tipicamente fabril, e, mesmo com muito de artesanato, é possível perceber com clareza o sistema de linha de produção, com suas especialidades.
Algumas das tarefas desempenhadas têm a necessidade de lançar mão de cuidados especiais. Há que se fazer algumas “usinagens”, que produzem boa quantidade de poeira, obrigando o uso de máscaras. Esses desbastes e raspagens são feitos com material cortante, o que aumenta o risco.
Uma das principais atrações é observar o funcionamento das marombas. São grandes tanques circulares que possuem, em seu interior, pás que batem a massa, até torná-la homogênea e apropriada à manipulação.
Depois de pegar o ponto, a massa é inserida em moldes de madeira esculpidos internamente no formato desejado, e, uma vez acomodados, são selados com anéis de borracha até que sequem bonitinhos, o que pode demorar um bocado.
Mas o que há de mais impressionante é o forno, tocado a carvão. As peças são colocadas lá dentro e dá-lhe fogueira, com as paredes devidamente entijoladas. Cara, é quente!!! Tive vontade de pedir adicional-insalubridade só de chegar perto.
A parte realmente artesanal vem depois, com a traçagem e a pintura dos detalhes das porcelanas. É um trabalho de atenção e delicadeza. A menina abaixo está fazendo o trabalho de desenhar os arabescos de uma terrina:
São utilizados uns pratos circulares, uma espécie de bailarina que auxilia no trabalho com os pincéis, como é o caso do preenchimento dos desenhos...
É uma estrutura fabril interessante, mas que não despreza o aspecto artesanal. Há, como eu disse, uma mistura de linha de produção com trabalho artístico, já que toda a parte de pintura é feita a mão, e mesmo outras tarefas, como o ponto da massa e o controle da temperatura, são feitas de modo bastante empírico. É serviço de atenção e esforço, um ofício daqueles que, aparentemente, passa de pais para filhos.
As condições de trabalho me pareceram bastante boas, com
todos os equipamentos necessários e nenhum grande sofrimento por parte dos
operários, pelo menos nada além do essencial. Gostei bastante da visita e
recomendo, mas um ambiente fabril não permite evitar uma lembrança para quem
estuda e gosta de Filosofia e Sociologia.
Bora... Chegou a hora de falar de Karl Marx!!!
Em primeiro lugar, é preciso dizer que há necessidade de se ter cuidado ao tratar deste filósofo, que se assemelha ao Corinthians no quesito amor e ódio. Ele não é um salvador da pátria, assim como não é um demônio. Ele errou em cheio ao apostar no comunismo como forma de “salvar a humanidade”, e isso foi comprovado pelas experiências desastrosas do Leste Europeu e ponto. Também não mandou bem ao considerar a propriedade como algo a ser eliminado, praguejando imprecações contra a burguesia sem tentar humanizá-la. Mas também é inegável que a maioria dos direitos sociais dos quais usufruímos tem o dedo de seu pensamento. E, no quesito análise social, só os protestatários de Facebook não sabem reconhecer seu vigor, provavelmente pelo mais absoluto desconhecimento e adesão imponderada aos memes produzidos por seus papas. Vamos tentar falar sério e aprender um pouco sobre o surgimento das teses marxistas.
Marx constrói sua filosofia com duas fortes influências de base: a dialética hegeliana e a teoria da alienação de Feuerbach. Já falei sobre ambos, aqui e aqui. A leitura destes textos pode facilitar as coisas por aqui.
Com Hegel, Marx concordava que a história era construída por movimentos que se dão entre polos opostos, ou seja, uma determinada situação já contém em si mesma a sua contradição. Essa tensão entre posições antitéticas conflui para terceiras soluções, que, uma vez estabelecidas, novamente carregam uma oposição, que em confronto conduzem a outra síntese, ad aeternum. O grande diferencial entre ambos os filósofos residia no que eles pensavam ser a mola propulsora do processo dialético. Hegel atribuía o navegar dialético ao Espírito Absoluto, uma espécie metafísica de totalidade da realidade. Tudo nasce de uma ideia, onde são trabalhados os conceitos abstratos; em seguida, essa ideia é exteriorizada, sendo colocada em prática na natureza, e, por fim, uma vez sintetizada, retorna ao Espírito, já unificada entre teoria e prática, de onde novamente poderá partir como ideia em um novo processo.
Marx também encarava a realidade como um processo dialético,
mas abandona qualquer tentativa de atribuí-lo a uma instância exterior à
própria realidade palpável. Enquanto Hegel leva o Idealismo ao ápice, Marx
registra todo o seu pensamento na Terra. O mundo é só natureza. É o materialismo histórico dialético.
Vou elaborar aqui um pequeno exemplo de como funciona esse processo. Para tanto, usarei o curso histórico das correntes literárias, partindo do Barroco. Como sabemos, esse estilo era caracterizado por um derramamento exacerbado, repleto de firulas e volutas. Era representativo do ápice da aristocracia, cheio de referências à religiosidade.
Dos excessos do barroco, partiu-se para a sua simplificação, o Arcadismo, que pregava uma vida pastoril e recatada, com uma retomada das estruturas clássicas. A literatura sai dos meandros palacianos e se volta para a natureza, buscando uma valorização do quotidiano e das coisas comuns a todos os homens, estabelecendo uma crítica à aristocracia despicienda.
Desse despojamento estrutural, brota um novo movimento, que busca dar nova ênfase ao indivíduo, em detrimento da comunidade. Surge o Romantismo. É o tempo do individualismo e do idealismo, dos objetivos inalcançáveis, do desejo por aquilo que está além do alcance, do novo homem ideal. Eram tempos da queda de déspotas, um novo horizonte estava sendo traçado, com homens que buscavam o exótico e o com a exacerbação dos sentimentos. Sua radicalização gerou o Ultra-romantismo, onde se entrevia um fracasso do ideal, e surge o mal do século, representado pelo desejo de fuga temporal e espacial.
Como o Romantismo estava caminhando por sendas cada vez mais divorciadas do mundo que o rodeava, um novo movimento conduz o cenário artístico de volta à terra firme. Já estamos nos tempos de intenso progresso científico e da Revolução Industrial, com a ascensão da pequena burguesia, conduzindo os espíritos para um pensamento mais pragmático e utilitarista, com foco na realidade perceptível. Temos então o Realismo, escola que buscava retratar as condições sociais como elas eram, sem ideais. Mas também dele resultou uma radicalização, o Naturalismo, que passou a ver o homem como objeto de estudo, condicionado por leis naturais dos quais não podia escapar (falei um pouco sobre essa corrente aqui). A análise das classes sociais mais baixas pode ser vista tanto como um protesto por suas difíceis condições de vida quanto por um prisma de conformismo, já que os fatores de determinação de suas condições escapam ao controle dos homens.
Como não poderia deixar de ser, há também uma oposição a esse pensamento que, no limite, desumaniza o proletário, o negro, o homossexual e o homem como um todo. Vem o Simbolismo, uma autêntica expressão de desenlace do homem com a realidade através do uso profuso do símbolo, da linguagem figurada, do misticismo e do subjetivismo. Não chega a ser um retorno ao Romantismo, porque não busca ideais, mas instâncias oníricas e um forte teor lírico, aproximando a literatura da música, com uso intenso de figuras de linguagem, tornando a própria leitura um ato de mistério. É uma reação ao racionalismo realista.
Por fim, as dificuldades de compreensão da estética simbolista levam a um novo movimento, em que as línguas locais e vernáculas passam a ser valorizadas. É criada uma estética do povo, desprendida dos tradicionalismos subjacentes às demais escolas, considerados ultrapassados. O interesse se volta para o aqui e o agora, com as palavras que utilizamos no dia-a-dia, olhando para o interior das próprias comunidades; não para vê-las como objeto de estudo, mas para promovê-las a produtoras de meios de expressão legítimos e insubordinados. É o Modernismo, o mais eclético de todos os citados.
Conseguem enxergar a dialética operando? Percebem como cada movimento traz em si mesmo a sua oposição, e como o curso das tendências conflui para o outro lado da dicotomia? Percebem também como esse movimento modifica a história da própria arte? Do exagero barroco, brota a simplicidade arcádica; da simplicidade arcádica, brota o idealismo romântico; do idealismo romântico, brota a crueza realista; da crueza realista, brota a abstração simbolista; da abstração simbolista, brota a usualidade modernista.
Hegel e Marx concordam até esse ponto, mas é aqui que nasce a bifurcação entre o pensamento de ambos. Para Hegel, o que movimenta estas mudanças é o Geist (Espírito), uma espécie de instância superior ao ser humano que conduz a sua história. Podemos ter mais ou menos uma ideia do pensamento de Hegel quando falamos algo como “o espírito brasileiro”, o que significaria uma espécie de destino e substrato intelectual comum a todos os que habitam nesta terra, ou seja, uma instância que nos conduz sem que percebamos. Sua via de concretização é a ação dos homens, e somente conseguimos percebê-lo em perspectiva, quando os acontecimentos já se deram e podem ser descritos. Foi assim que Sérgio Buarque de Hollanda enxergou no brasileiro um povo cordial, e que Gilberto Freyre nos viu como democratas raciais – analisando o nosso “espírito”.
Já Marx tem os pés no chão. Não é um espírito abstrato que conduz a marcha da história, mas sim os aspectos materiais, expressos principalmente na luta entre classes. Foi a oposição do corpo artístico aos enlevos aristocráticos que fez a literatura migrar do barroco para o arcadismo. Foi a necessidade de afirmação individual derivada do liberalismo que conduziu ao Romantismo. Foi a necessidade de analisar a sociedade como objeto científico que levou ao Realismo, e assim sucessivamente. A história é eterno movimento e este se dá a cada vez em que uma classe social dominada entra em confronto com outra, dominadora.
A outra coluna do pensamento marxista original vem de Ludwig
Feuerbach. Para este alemão, de obra muito mais modesta em relação a Hegel, o
homem constrói suas divindades a partir de uma análise antropológica
inconsciente. As melhores virtudes humanas são atribuídas a um ser, a
divindade, e a humanidade já não reconhece esses predicados em si mesmos; são
deslocados ao deus, ao outro, ao alienus.
Essa é a tese da alienação, com a
qual Marx concorda, mas critica, porque, para ele, era algo como gastar vela
boa em defunto ruim. De fato, Marx
reconhece a existência da alienação religiosa, mas entende que Feuerbach perde
um enorme tempo e uma preciosa oportunidade de aplicá-la a outras esferas,
deixando de sair para o mundo material. A análise de Feuerbach é incompleta,
porque não reconhece a religiosidade como um fenômeno social gerado pela
opressão e desencanto do sistema. A religião é um lenitivo, o “ópio do povo”,
que se aliena em um universo perfeito porque não consegue encontrá-lo em seu
mundo físico. Neste diapasão, ele desloca o foco da teoria da alienação do
campo religioso para o mundo das relações de trabalho. Vamos ver como Marx constrói
sua análise sociológica.
Marx não reputa o trabalho como uma atividade estranha ao homem, mas como uma característica constitutiva, como ocorre também na natureza, exemplificada pelos animais sociais. O diferencial inerente ao homem é sua capacidade de abstrair o fruto do seu trabalho. Em uma de suas mais belas assertivas, Marx diz que
“... a aranha realiza operações que se assemelham às do tecelão e a abelha envergonha muitos arquitetos com a construção de suas casinhas de cera. Mas o que desde o princípio distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que ele construiu a casinha em sua cabeça antes de construí-la em cera. No fim do processo de trabalho, emerge resultado que no início já estava presente na ideia do trabalhador e que, portanto, já estava presente idealmente”.
Desta forma, o homem é um ser que tem a característica de modificar a natureza de forma a transformá-la na extensão de seu próprio corpo. O trabalho faz parte da construção da humanidade. No entanto, por ocasião da Revolução Industrial, a maneira como o trabalho se imiscuía na vida dos homens teve uma modificação radical. Já não se transformava a natureza para servir aos interesses de uma determinada comunidade, para a concretização de ideias e anseios, mas como um mero meio de sobreviver. Nada é de posse do trabalhador – nem a matéria-prima, nem o ambiente de ofício, nem o projeto do produto, nem o produto final. Tudo pertence a um proprietário, de modo que ele mesmo, trabalhador, nada mais é do que uma das mercadorias necessárias à fabricação.
O trabalho que não diz mais nada a respeito do operário não é seu; o produto que vai ao comércio não tem nada a ver com quem o manufaturou. O trabalhador sente sua produção externa a si mesmo, algo que não lhe pertence, já que não emprega sua criatividade a serviço do suprimento das necessidades que vão além de sua própria subsistência. Em resumo: sendo o trabalho uma característica humana, o homem inserido no meio de produção perde parte de sua completude. O operário alienado de seu produto se aliena de seu conceito de trabalho. E o que é mais grave: aliena-se de sua identidade como homem.
Pensem bem. Um dos maiores desafios aos jovens de hoje é se formar e trabalhar em uma atividade que lhes dê prazer (leiam o que escrevi neste texto). Por que? Porque esse sentimento de ausência de pertença permanece. Não parece certo? Não vivemos reclamando que o fim de semana não chega logo? Não temos até mesmo uma recentíssima depressão pós-férias? Ainda hoje temos certo desgosto com as obrigações contratuais, buscando compensá-lo com viagens incríveis, com happy hours dionisíacos, com as promessas de financiamento, com o sonho empreendedor de se ter o próprio negócio.
Eu não quero aqui estabelecer uma comparação entre as
fábricas visitadas por Marx e as condições de trabalho de hoje. Há MUITA, mas
MUITA diferença. Há limites de jornadas, equipamentos de segurança, direitos
sociais como férias, proteção às gestantes e etc. No auge da Revolução
Industrial, havia crianças trabalhando por dezesseis horas diárias. Não dá para
fazer um confronto entre os dois períodos. E também não é possível afirmar
peremptoriamente que esse modelo de relação de trabalho seja prenhe de
desgraças, que não haja nada de bom nele. Há, por exemplo, a vantagem de não se
ter de ocupar com o todo da produção – como comprar, como vender, como
contratar. Mas é fato que, geralmente, não há um sentimento de prazer no
interior do ambiente de trabalho. E que os conflitos de classe são grandes
usinas de modificação histórica. Alguém discorda?
Vou parar por aqui, porque este texto já está ficando muito
longo. Fica estabelecido que, para Marx, há uma necessidade de revolucionar as
relações humanas construídas em torno da noção de propriedade, de modo a estabilizar
as lutas de classe, mesmo que a sua solução não tenha sido a melhor possível. Voltarei
a ele, assim como voltei a Comte.
Recomendação de leitura:
A obra de maior vulto de Karl Marx, em parceria com Friedrich Engels, foi O Capital. Mas é uma análise muito extensa e complexa. Melhor começar com seu Manifesto Comunista, bem mais resumido, mas que pode dar uma bela ideia de como funcionam suas ideias.
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. O manifesto comunista. São Paulo: Saraiva, 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário