Marcadores

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Navegações de cabotagem – O Soca Paçoca de São Luiz do Paraitinga e os momentos em que tradição é diferente de conservadorismo

Olá!


A vida é um eterno devir, já dizia nosso bom e velho Heráclito. Ainda que Parmênides não concordasse muito, o fato é que aqui não tratamos de Metafísica, mas de quotidiano mesmo. E este não para, como o tal rio no qual não nos banhamos duas vezes, seja porque ele não é mais o mesmo, seja porque nós não o sejamos. Digo tudo isso porque, hoje em dia, e dados todos os turbilhões pelos quais minha vida passou no recém findo decênio*, minhas redes de amizades ficaram muito mais restritas ao pessoal que conheço e mantenho contato em cidades do interior do que na capital da brava gente paulista. São coisas da vida e resisto estoicamente à melancolia, fazendo justamente o que? Visitas in loco a essa galera. É o que fiz no último inverno, na virada de agosto para setembro, quando fui mais uma vez a São Luiz do Paraitinga, terra que já visitei mais de dez vezes desde a primeira vez que lá fui, no contexto da série do cesto da gávea de onde observo o mundo, lá pelos idos de setembro/2016. Meio que me empolguei com a cidade, tanto que tomei a inédita e ainda irrepetida atitude de dedicar três textos à dita cuja (legíveis aqui, aqui e aqui). Fomos à loja nova da Neca, costureira e agitadora cultural que mora na Vila do Rosário, mas que finalmente se convenceu a descer o morro e transferir seus artesanatos para o miolo onde as coisas acontecem. Antes de ir até a casa da Dani, a Neca perguntou se a gente tinha vindo para a festa. Festa? Que festa?

São Luiz do Paraitinga não passa duas semanas sem ter algum tipo de evento, seja ligado ao folclore, seja ligado à religiosidade, seja ligado à história, seja por pura farra. Portanto, é muito difícil dar com as costas por aqui e não pegar algum tipo de agito em andamento. No caso, estávamos no meio da temporada de inverno, e a festa em questão tinha o curioso nome de Soca Paçoca.



O festival é extremamente simples. Os sitiantes de todas as partes do município se juntam na praça da Matriz com amendoim e outros ingredientes para que as pessoas aprendam a fazer paçoca, um dos doces mais populares da culinária brasileira, dada sua simplicidade e baixo custo. Porém, ao contrário das paçoquinhas Amor e Paçoquita, feitas em maquinário moderno, aqui a coisa se desenrola no método tradicional, ou seja, no pilão.



E o que é um pilão, além de uma marca de café, meus jovens? É um artefato de madeira escavado em uma única peça, que dá ao pedaço de tronco o formato aproximado de um cálice. Deve ser feito com uma árvore suficientemente seca e cuja madeira não interfira no sabor dos alimentos que serão processados em seu interior.



Sua função é produzir a moagem de alimentos, preponderantemente grãos. Esse trabalho é feito através de uma haste contendo uma ponta arredondada, chamada de mão. O material desta haste precisa ser mais duro do que o do pilão, para que tudo se dê como manda o figurino.



Esse labor é chamado de “soca”, pelo óbvio motivo de que os grãos são socados na cuba do pilão até ser reduzidos a pó. Não serve só para moer amendoim, mas para separar cascas de arroz, limpar grãos de café e qualquer outro trabalho que dependa de golpes sucessivos.



Mas, como estamos falando de paçoca, o Soca Paçoca se restringe ao amendoim e demais ingredientes. Os próprios produtores rurais se encarregam de trazê-los para a festa, com o apoio do pessoal que se voluntaria para fazer as medidas e distribuições.



A soca produz um ruído ritmado característico, que não pode ser muito rápido para não cansar, nem muito lento para não render. Quando há pilões maiores, a soca pode ser feita por mais pessoas de uma só vez, e, neste caso, o sincronismo é de rigor. É aí que a coisa começa a ficar mais interessante. Ao som das pancadas, temos um fundo rítmico com o qual os antigos colonos podiam entoar canções para acompanhar a lida, como já era comum com as lavadeiras e outros ofícios cadenciados e monótonos.



No caso do produto doce, os ingredientes são muito simples: amendoim, açúcar mascavo (de preferência) e farinha de milho. É bater, bater e bater até que o próprio óleo do amendoim se encarregue de fazer a liga, dando uma consistência mínima para o granulado.



Já a paçoca salgada, feita com carne, é um pouco mais trabalhosa. Além do amendoim e da farinha de milho, é colocada carne já temperada e cozida na mistura, além das pimentas usuais para quando os antepassados queriam dar uma disfarçada no sabor já meio “passado” da carne guardada por dias. Era uma maneira de se defender dos recursos escassos de outrora. O preparo também é mais longo, e o resultado final é semelhante a uma farofa.



Tudo é muito saboroso, e, novamente ao contrário das Paçoquitas, não se tratava de uma guloseima infantil, mas de uma alimentação consumida como desjejum ou almoço. Por isso, o seu acompanhamento mais célebre era café passado em coador de pano, que também é preparado aos litros durante a festa.



Como eu disse, conforme o pessoal vai pegando compasso, a soca perfaz um fundo percussivo, e os violeiros o utilizam para compor seu som. O grupo Orgulho Caipira já realiza essa tarefa no Soca Paçoca há anos, quando comandam as festividades e reproduzem antigas canções de ofício, além de sucessos bem conhecidos da música de raiz.



À medida que o pessoal da cidade vai chegando, e os turistas vão se reunindo a eles, a praça vai ficando cheia, e já não há pilões livres (na verdade, já há filas neles). Ninguém se aborrece: a dinâmica da festa é que a galera comece naturalmente a dançar neste momento. Algumas das danças são bem típicas, como o sabão e o catira.



Mas o que há de pano de fundo nessa festa? É que São Luiz do Paraitinga é uma cidade que foi fundada por tropeiros, os responsáveis pelo transporte entre os portos e as regiões das minas, situadas no atual estado de Minas Gerais, através do conjunto de caminhos e ramais conhecido como Estrada Real. Tudo isso era feito no lombo de burros, o bicho mais forte e adaptado ao terreno acidentado que caracterizava o trajeto.



Em tempos em que não existiam geladeiras, era necessário obter alimentos que combinassem alto valor nutritivo, boa capacidade de conservação, facilidade possível no preparo e, claro, um mínimo de sabor aprazível. Tudo isso podia ser conseguido com as simpáticas paçocas, tanto a doce quanto a salgada.



Sua origem é indígena, cujo nome remete justamente ao seu modo de preparo. Há uma variação bastante grande por todo o país, sendo que em algumas regiões é utilizada a farinha de mandioca, ou compactada em forma de barras e rolhas, quando é necessária uma compressão maior. Todas as paçocas produzidas no evento são do tipo pulverizada, daquelas que são vendidas em saquinhos, e distribuída livremente para os comilões.



No final das contas, podemos lançar olhares diferentes sobre este divertido evento. Para quem passa de passagem, é pura gulodice de um povo que adora uma festa. Para quem entende haver ali uma manifestação cultural um pouco menos rasa, já é possível entender que temos um pouco da história daquele povoado sendo contada, mas esse é um alheamento que impede de ver um pouco de nossos próprios traços sendo descritos ali. Afinal de contas, em toda a região do Vale do Paraíba podemos encontrar inúmeros referenciais que remetem à época em que o costado das mulas era o principal meio de transporte de mercadorias, que incluem os mercados, os marcos, os aguadouros e tantas outras peças, e são aproveitados casarios para se constituir museus, e os logradouros e estabelecimentos relembram esta época, e acabamos por esquecer que nós mesmos, paulistanos da garoa, somos também habitantes de uma terra de tropeiros. Infelizmente, sobraram pouquíssimos testemunhos físicos desta época, e que não são suficientes para formar contextos que satisfaçam a memória. Na Ladeira da Memória resta uma figueira e um painel de azulejos que representam a atividade de coleta de água que ocorria poucos metros abaixo; havia inúmeros tanques, como no Bixiga, no atual Largo do Paissandu e no Cambuci. Aliás, a Rua dos Lavapés tem esse nome não por uma homenagem à solenidade católica, mas porque era ali o local onde os tropeiros vindos de Santos podiam se acomodar e lavar seus pés antes de entrar no trecho urbano da Capital. A construção melhor conservada que marca a presença tropeira é o antigo Matadouro Municipal, que hoje abriga a Cinemateca Brasileira. É tudo tão pouco e tão disperso que é preciso procurar com uma lupa para achar, e, pior ainda, sem nenhuma possibilidade de criar um conjunto sem muita pesquisa e esforço mental.

Marcas do progresso, é possível pensar. Progresso desordenado, certamente, e com uma boa possibilidade de cometer o bisonho erro de achar que São Luiz do Paraitinga e outras são cidades que pararam no tempo: se por um lado mantém boa dose de suas tradições, por outro estão em um estágio anterior de desenvolvimento. Essa foi a roupagem que os primeiros antropólogos deram ao fenômeno da cultura, uma espécie de Teoria da Evolução aplicada ao modus vivendi dos diferentes povos. Dessa forma, olhamos com estranheza para cidades onde a vida é menos corrida e com menos recursos, traduzidos em toda aquela galera mandando braço no amendoim como se aquele modelo cultural fosse menos avançado do que nossa paçoca industrial*. Eles estariam, por esta via de pensamento, em um estágio anterior ao nosso, e seriam uma espécie de “registro fóssil” do que viria a ser tornar uma grande cidade.

O erro neste pensamento é o uso incorreto do termo “evolução”. Mesmo na teoria biológica, ele é inapropriado, porque um organismo que não possuir pressões ambientais para passar pelo filtro da seleção natural tenderá a se manter o mesmo, ad aeternum. Por conseguinte, as culturas se modificam de acordo com as pressões que sofrem, sem possuir uma escala hierárquica que diz qual é mais primitiva e qual é mais avançada. Por isso, falar em evolução no sentido de melhora é uma impropriedade. Comparar culturas é válido apenas quando não adotamos uma delas como parâmetro de superioridade.

Nós, paulistanos, fomos tão tropeiros quanto os luizenses, mas houve um momento tal em que o mundo girou e o café bifurcou o destino de ambas as cidades. E as condições materiais de cada uma estabeleceu o que elas são hoje. Desta forma, há valores diferentes em jogo. O paulistano médio, por exemplo, não gosta do Carnaval*** que o luizense adora. Só os católicos paulistanos mais carolas dão bola para a solenidade do Pentecostes, enquanto em Paraitinga a cidade inteira se mobiliza, se bobear até mesmo os não-católicos. A régua da cultura não é uma só – é múltipla, na proporção de uma para cada nicho de povo.

É o que ensina a antropologia do Relativismo Cultural, que nasceu especialmente de Franz Boas, um estudioso alemão que emigrou para os Estados Unidos no final do século XIX. Após participar de uma expedição entre os esquimós do norte do Canadá, convenceu-se de que não fazia sentido estudar as culturas sentado em um escritório, a meio de cafezinhos e cigarros. Somente com contato seria possível obter definições importantes. Uma delas é central na obra de Boas: não existe o conceito de raça. Se há raça, ela é humana. E, para isso, a ideia de evolução cultural é totalmente desprovida de sentido. Isso porque o mundo se apresenta a cada uma das sociedades de maneira diferente, e cada uma delas trata de arrumar uma solução para cada problema. Vejam que as dificuldades, apesar de serem as mais variadas possíveis, costumam ser assemelhadas entre diferentes regiões. Todos precisam de alimento, de refúgio, de território, de reprodução, de organização política e assim sucessivamente. Mas o modo como cada uma das etnias vai trafegar por essas necessidades é que dá especificidade para suas culturas. Por exemplo: obtida a alimentação, é preciso encontrar meios para preservá-la pelo maior tempo possível. A salga é uma dessas maneiras, mas é muito mais fácil de obter para povos litorâneos e ilhéus; outra é o resfriamento, mas como falar disso para povos equatoriais? É mais típica em regiões árticas. Os povos tropicais podem utilizar a desidratação, mais eficiente neste pedaço do globo. Salgar, gelar ou secar não possuem uma hierarquia de importância, porque resolvem eficientemente o mesmo problema da conservação de comida, e assim é também com todos os demais componentes intrínsecos a cada etnia, por isso não se pode dizer que uma cultura é mais avançada que a outra, porque cada uma delas usou o meio material que tinha à mão e conseguiu solucionar uma questão. Por esse exemplo simples, que pode ser estendido a qualquer outro aspecto onde a cultura aja, percebemos que é incongruente especular qual das etnias está em um ponto mais avançado que as outras. Ninguém quer que o luizense continue a preparar sua paçoca nos pilões, sem utilizar de tecnologia, mas que nunca perca de vista o quanto ela simboliza de importante na sua formação como povo. O paulistano perdeu muito disso na imensidão da metrópole impessoal. Desta forma, a tradição da forma que é demonstrada na praça da matriz de SLP não é uma questão de conservadorismo, de elementos imutáveis que, por uma razão ou por outra, faz com nos achemos melhores do que os outros, mas a exibição de um componente de nossa história, que é sempre atual, que é sempre renovada, e que explica o que somos hoje. A tradição só é conservadora quando nos prende ao passado, quando nos impede de avançar como seres humanos.

Boas, da forma que pudemos observar, prefigura duas nuances que serão vitais para as correntes da Antropologia que lhe seguirão. Ao sair dos gabinetes para tomar contato direto com determinada cultura, antecedeu a etnografia que caracterizou o Funcionalismo de Malinovski; ao detectar que os diferentes povos possuem as mesmas necessidades e desenvolvem soluções com as mecânicas que tem ao seu dispor, iniciou o pensamento que iria desembocar no Estruturalismo de Levi-Strauss, que defendia a existência de uma estrutura comum a todas as sociedades. Com isso, e pensando ainda mais na abolição do conceito de raça, não podemos deixar de considerá-lo um grande precursor do pensamento antropológico contemporâneo.

Quanto a mim, dei uma forrada básica no estômago, inclusive com um lote especial sem açúcar. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Para quem curte a cultura vista do lado de dentro, Franz Boas é um autor muito respeitável, e, embora já não esteja na crista da onda, é imprescindível para entender para onde caminhou essa Ciência. Não se entende a Antropologia sem Boas, assim como não se entende o presente sem a tradição.

BOAS, Franz. A Mente do Ser Humano Primitivo. São Paulo: Vozes, 2011

E tem o Soca Paçoca. Acompanhem pelo site da Prefeitura de São Luiz do Paraitinga. Geralmente acontece durante o inverno.

* Vamos tomar cuidado com as confusões. A década atual se iniciou em 2011 e só vai terminar em 2020. Quando falamos em anos 70, por exemplo, estamos falando de um período de dez anos (decênio) que começa pelo ano que os denominam e terminam quando essa denominação acaba. Em miúdos, começa em 1970 e termina em 1979.

** Queria lembrar que estou apenas usando a força do exemplo. Eu sei que há paçocas industriais em SLP.

*** É bem verdade que o Carnaval de rua tem crescido bastante nos últimos tempos em SP. No entanto, é um fenômeno que vem meio na carga das ações da Prefeitura, e precisamos ver quanto tempo levará para que tal movimento se torne legitimamente espontâneo. Ainda há muita cagação de regra censura no imaginário quatrocentão.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Navegações de cabotagem – O Vale dos Templos de Itapecerica da Serra: sobre cerejeiras e Filosofia budista

Olá!


Eu tenho uma afilhada chamada Bia, doente pela cultura japonesa, representada pelos mangás e animês em sua maioria. Ela tem talento para o desenho, e insisto com ela para que não se prenda ao estilo reconhecível a quilômetros de distância, aproveitando mais criativamente essa sua aptidão. Não adianta muito, mas sua admiração vai além, de modo a ter um namorado sansei e estar aprendendo a língua do sol nascente, inclusive os misteriosos caracteres da escrita kanji. Todo ano, na altura da virada de agosto para setembro, ela pega seu busão e seu japonesinho para ir ao Parque do Carmo, onde se dá a florada dos sakurás, a cerejeira que é a flor nacional do Japão. Eu já tinha visto como o parque fica bonito em fotos, mas faltava vê-lo ao vivo. Falta ainda, na verdade. Preferi ir a outro lugar, onde o mesmo fenômeno se repete: o Vale dos Templos, na vizinha cidade de Itapecerica da Serra. Tomemos nosso rumo.


Trata-se de um parque que contém dois templos em sua área, ambos de raízes budistas: o Kinkaku-ji, mais voltado para os cinerários, e o Enko-ji, de orientação zen-budista. Embora compartilhem o mesmo espaço, ambos são completamente independentes entre si, incluindo os horários de funcionamento. Paga-se uma módica quantia para acesso, com direito a dar comida para as carpas.


Desde fora já se pode observar o cuidado estético e os fundamentos artísticos típicos da cultura oriental, todo cheio de simbolismos, conforme discorri no meu post sobre o Templo Odsal Ling. O portal sempre tem um significado de passagem, de mudança para um novo estatuto. Essa passagem pode ser de uma encarnação para outra ou da saída da ignorância para a sabedoria.


Logo na entrada, temos uma maquete do templo Kinkaku-ji de Kyoto, do qual o templo homônimo é reprodução. Trata-se de um edifício totalmente revestido por folhas de ouro, o que lhe deu o nome, que significa “templo do pavilhão dourado”.


No corredor que dá acesso às escadarias, em uma cavidade pentagonal na parede, há um sino de badalo e uma imagem provavelmente do bodhisattva da compaixão, Avalokiteshvara, com o sino de pancadas e as moedas costumeiras. Algo semelhante ao que existe no templo Zu Lai (relato aqui), onde a versão feminina, Kwan Yin, está localizada em uma fonte, com o mesmo sino de doação colocado à sua frente. Calma, eu ainda estou aprendendo esses ritos. Caso eu esteja falando besteiras, não se furte de me corrigir nos comentários.


Daí para frente, é morro abaixo, em uma trilha composta especialmente por escadarias. Não se aflija com o retorno, porque o ambiente é formidável, com alguns pontos de parada e fôlego que nos ajudam a apreciar melhor todo o capricho do espaço idealizado por Takeshi Suzuki, o arquiteto encarregado da paisagística.


Uma boa parte do terreno se aproveita da Mata Atlântica que o circunda, o que influencia diretamente no frescor, ainda que o dia esteja muito quente. Mas uma outra parte significativa é elaborada pela mão humana, algumas vezes com elementos construídos, outras com o uso de elementos naturais, como os bosques de bambu.


Embora levando em conta todo o primor estético e potencial turístico, é preciso lembrar que o Kinkaku-ji é um cinerário. Isso significa que seu principal propósito é disponibilizar um espaço onde as famílias possam cumprir a tradição de guardar as cinzas de seus parentes falecidos. Sim, o Kinkaku-ji é algo muito próximo de um cemitério, seu cagão.


Isso quer dizer que há um monte de fantasmas espalhados por aí? Eu não vi nenhum, e, se visse, convidá-lo-ia para um saquê lá fora. O que eu vi bastante foram os diferentes modelos de nicho, que são feitos de acordo com o tamanho necessário e o luxo desejado. Há aqueles mais simples, feitos de cimento, e os mais rebuscados, em pedra...


... bem como há alguns individuais, onde é possível visualizar a urna que contém as cinzas através da janelinha do nicho.


Como o vale é caracterizado pelo ecumenismo* e os cristãos (pelo menos os católicos) também fazem uso da cremação, é possível verificar a presença de vários símbolos religiosos não-budistas, sendo que alguns cinerários são acompanhados de cruzes, além de haver locais onde podem ser acesas velas e colocados santos.


No meio da descida, há uma praça que é mais interessante do que o mero pouso faz supor. Em seu centro, há uma rocha que representa a pedra fundamental do Kinkaku-ji, o que aconteceu na década de 1970. Seu fundador, o norte-americano Alonzo Bain Shattuck (que viveu um bom tempo no Japão), fez encapsular em um recipiente um jornal do dia da fundação e algumas moedas correntes no país tropical deste mesmo momento, e os mandou enterrar sob esta pedra.


Há ainda outros elementos carregados de simbolismo e beleza, como as lagoas de carpas e os ishibashis, as pontes de pedra que expressam vida nova. As carpas são vorazes: é preciso um pouco de cuidado se você decidir comprar um pacotinho de ração para alimentá-las. Elas estão lá como símbolo de longevidade, já que duram um bocado de tempo.


A visão do templo é inebriante. A imagem fala por si só.


Como eu já falei, o templo é uma cópia de um original de Kyoto, no Japão. Evidentemente, não está forrado de folhas de ouro, mas reproduz as três arquiteturas distintas em cada um dos pavimentos. No térreo, um estilo que segue a nobreza da China medieval. No primeiro andar, a corrente comum das moradas dos samurais, e, no segundo, um formato mais budista, com uma fênix dourada no vértice do teto.


O conjunto se completa com um lago bem maior e com o pequeno bosque de cerejeiras ao fundo, que também pode ser observado pelos diferentes pavimentos do templo.


Do ponto mais alto, no pavilhão budista, a visão do entorno ganha mais profundidade, incluindo o desenho em leque do nado dos cisnes. Poético.


O interior do templo também tem a função de armazenar cinzas, do mesmo jeito que lá fora. Só que aqui são compartimentos bem mais simples, semelhantes a gavetas, muito parecidos com os que vi no templo Zu Lai. Percebam que neste pedaço o ambiente está preparado para ritos cristãos, dada a presença da cruz e do rosário.


Mas é óbvio que também há espaço para cultos budistas. Como estamos em um templo japonês, há uma imagem dedicada à bodhisattva Kannon, que é a mesmíssima Kwan Yin da misericórdia mencionada anteriormente.


No mesmo conjunto, mesmo sendo independente, há também o belíssimo templo Enko-ji, cujo significado é “templo do círculo luminoso”, bem mais recente. Ele possui algumas outras obras que ajudam a compor seu grupo específico.


O templo em si é da linha zen-budista, tipicamente japonesa, com fortes influências do taoísmo. Faz parte da tradição mahayana, embora haja contestadores minoritários de seu legítimo pertencimento ao budismo, o que não será importante neste texto.


Há um incensário inserido em uma cabine perante um pequeno buda. Não consegui maiores informações sobre esta estátua, mas, francamente falando, achei-a meio fora de contexto.


Há também uma estátua de uma divindade materna e das costumeiras lanternas orientais. Acho que se trata de Maya, a mãe do Buda Shakyamuni, o fundador da religião, mas não consegui ter certeza.


Mais clara está a situação do túmulo da família do monge Tensho Ohata, o fundador do templo Enko-ji, que inaugurou suas funções em 2001. É o típico pagode, com seus telhados múltiplos e formato de torre.


Há ainda uma curiosa pedra lapidar no jardim do templo que, pelo que pude deduzir, homenageia uma sociedade de assistência mútua para jovens japoneses, algo meio comum em colônia de imigrantes que visa preservar cultura e costumes.


Por fim, meu objetivo central: as cerejeiras em flor, um acontecimento para se ver rápido, porque dura bem pouco. Eu até desconfiava que chegaria aqui com as pétalas já caídas, mas me enganei para o bem.


As flores são lindas. Sua metáfora com a brevidade da existência é tão significativa que dá origem a diversas lendas e simbologias. Uma delas as liga aos samurais, que entregam suas vidas pelos seus protegidos. Suas existências são tão efêmeras quanto as das pequenas flores das sakurás.


No Japão, existe o costume de contemplação dessas flores, chamado de Hanami. É preciso atentar para o fato de que, no hemisfério norte, as estações do ano são trocadas em relação à Ilha de Vera Cruz, sendo que a época da floração se dá entre o final de março e começo de abril.


Há muito lirismo contido nos ambientes na matriz oriental, especialmente quando pensamos nas representações simbólicas ligadas às suas crenças. E há muita filosofia também, como já disse desde o primeiro texto em que me remeti a esta área específica, quando inaugurei a série Navegações de Cabotagem com o templo Kadampa de Cabreúva. Nesses estudos todos, percebi muitas semelhanças com outras religiões, se não na estrutura, pelo menos no desenvolvimento histórico, notadamente com o Cristianismo. Muito embora o Budismo se acomode bem melhor com a questão das diferenças interpretativas, o fato é que em ambas temos um corpus deixado pelo fundador que, aos poucos, vai sendo discutido e reinterpretado por filósofos que se voltam especificamente para seus pontos dúbios. No Cristianismo, por exemplo, tivemos grandes filósofos que abordaram temas difíceis de sua doutrina, como a questão da Santíssima Trindade, da cláusula Filioque, do livre arbítrio e da predestinação, entre tantas. São temas que não são abordados de maneira inequívoca em seu livro sagrado, e que precisavam constituir uma exegese robusta para lhe dar embasamento. É por esse fio condutor que são puxados Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Santo Anselmo e tantos outros. Com o Budismo acontece o mesmo. Assim como Jesus, Buda deixou seus ensinamentos transpostos de forma oral, e mesmo com uma sistematização, há uma série de questões que se mantiveram em aberto, o que teve por consequência o surgimento de vários filósofos ligados a esse conjunto de pensamentos. São nomes como Bodhidharma, Atisha, Padmassambhava e Nagarjuna. Vamos falar um pouco sobre esse último.

Em primeiro lugar, os ensinamentos de Buda preconizam a vacuidade. Em um olhar apressado, poderíamos pensar que se trata do nada, de uma extinção total do mundo e, especialmente, do eu. Mas esse não é o sentido do termo dentro da doutrina budista. A vacuidade diz respeito à impossibilidade de que as coisas, os fenômenos, o mundo e o eu existam por si mesmos, como essência unitária.

Vejam bem. Quando falamos em um processo de causa e efeito, não estamos falando de nada errado, mas apenas simplificando a questão em excesso. É sempre tentador falar que isso aconteceu por causa daquilo, que aconteceu por causa do outro e assim sucessivamente. Mas a realidade é uma longa cadeia de acontecimentos intervenientes, com graus de capacidade de modificação diferentes entre si. É algo que se assemelha à moderna Teoria do Caos, que estabelece a impossibilidade de conseguir fechar previsões, tendo em vista a falta de linearidade nos acontecimentos. Assim, quando uma lata é chutada na rua, há uma verdadeira teia de acontecimentos que levou à ocorrência daquele fenômeno, a ponto de não se conseguir recuar o suficiente no tempo para registrar absolutamente todos os passos que o desencadearam. A correlação direta é simples, a lata foi chutada porque um sujeito qualquer estava aborrecido, e isso nos ilude. Por trás dessa relação simples há motivos no sujeito irritado, na lata e no ambiente que os rodeia.

A coisa fica mais complexa ainda quando colocamos a nós mesmos na parada. Qual é o papel do self em um mundo cujos fenômenos estão em permanente interdependência? Temos a nítida sensação de possuirmos uma realidade interior e exclusiva que é paralela ao restante do universo, o que não é verdade. Nossa própria existência está condicionada, interiormente, ao mesmo turbilhão de causas e efeitos que toda a realidade circunstante possui. Isso resulta na conclusão de que não existe uma essência permanente do Ser, algo que nos designe de maneira indivisível. Pensem no seguinte: no que consiste nosso ser? É nosso corpo? Mas qual parte dele? O cérebro, o coração, o sangue, os ossos? Mas a vida é impossível sem qualquer um deles. Seria então a mente? Mas qual parte específica dela? As memórias com as quais construímos nossos pensamentos? Os raciocínios que nos levam a deduzir o mundo? As intuições que captam a realidade ao nosso redor? Os instintos que são a nossa fonte primária de animalidade? Tudo são aspectos da psique, que a formam e não existem isoladamente. Será então nossa alma? Mas para qual de nossas experiências de vida devemos identificá-la? É na encarnação humana? Nas fases menos esclarecidas? Nas iluminações? Se respondermos que somos tudo isso, então reconheceremos que estamos na mesma cadeia ininterpretável de interdependências, e que não existe um eu separado do todo cósmico. As coisas se originam umas das outras sem que se possa separar causa de efeito e em ampla correlação de dependência, influindo no que ela é. É o que se chama de cooriginação dependente. Nada existindo por si só, mas no âmbito da dependência, temos que a essência das coisas é, in extremis, vazia. A vacuidade é isso.

O grande problema na vacuidade está em uma dupla perspectiva niilista e substancialista. Se tudo é impermanente, é preciso aceitar que mesmo as construções teóricas são povoadas de vazio. Neste caso, a verdade se torna impossível, mesmo para os fundamentos mais viscerais dos próprios ensinamentos do Buda, como as Quatro Nobres Verdades. Nagarjuna contesta essa assertiva com uma tese de dupla verdade. Uma delas seria uma verdade suprema, expressa pela lógica da vacuidade, e outra obtida por convenção, a partir de padrões acordados pelos seres humanos. Essa convenção, basicamente, se funda na linguagem e na cultura para que haja uma ferramenta em que a verdade suprema possa ser expressa. Sua assertiva mais clara é a que diz que a convenção permite ao supremo ser mostrado. Sem ela, a verdade última é inefável; e a verdade convencional sem a verdade suprema não tem significado. Em resumo, sem construções humanas não há como se compreender verdades divinas. A ideia de que os entes não existem por conta da vacuidade, dessa forma, se explica. Estes fazem parte da verdade convencional, sendo tomados pela vacuidade ao se transpor para a verdade suprema.

Por outro lado, tendo em mente que todos os fenômenos são vazios, a substância da realidade seria a própria vacuidade. Se esta é a única verdade essencial, como se chegar a ela, se ela suplanta a verdade convencional? Nagarjuna argumenta que é errado pensar em um dualismo metafísico, onde vacuidade estaria de um lado e verdade convencional do outro. Para ele, a própria vacuidade não tem essência, algo imutável, universal e necessário. Ela também é cooriginação dependente e depende da verdade convencional apenas para ser expressa. A própria vacuidade não tem essência, não podendo ser substância. Verdade suprema e verdade convencional seriam, assim, uma mesma e única coisa.

Nunca ninguém disse que é simples. Mas são as dificuldades típicas de um tema intrincado, como é qualquer sistema religioso. Mas o que importa agora é que certamente os budas e bodhisattvas estariam bem satisfeitos com este lugar. Ou não. Bons ventos a todos!!!

Recomendações:

Venham conhecer o Vale dos Templos, seja lá de qual religião vocês forem. É lindo à beça.

Também recomendo aqui a principal obra de Nagarjuna:

NAGARJUNA. Versos fundamentais do caminho do meio. Campinas: Phi, 2016.

* Ecumenismo é, grosso modo, a admissão de ritos de diferentes religiões em um mesmo espaço.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Navegações de cabotagem – Um campinho de futebol em Pedro de Toledo e a pergunta que perturba: nós existimos de fato ou somos frutos de alguma percepção?

Olá!


Esta aqui não foi tão recente. E, na verdade, quase ia caindo no esquecimento. É que aquelas velhas promessas de ano novo fazem a gente revirar as gavetas para jogar coisas fora, mas o que acontece muitas vezes é que achamos coisas importantes que ficaram jogadas em seus fundos. Transponhamos tudo isso metaforicamente para a memória de um celular, e lá encontraremos algumas fotos, como foi o caso que deu início ao presente texto. Estou limpando minhas pastas e reencontro algumas que me fazem franzir o cenho e olhar para o alto: onde é isso?

Relembrei ao seguir folheando-as digitalmente. Ah, é... Foi ainda em 2018, quando meu filho mais velho se desesperava atrás de concursos públicos, e ir para o Paraná não estava incluso em seus planos. Foi um domingo em que precisamos sair bem cedinho, ainda de madrugada, porque o tal concurso era pela manhã. Já devo ter contado por aqui que o gajo é motorista e dos bons, mas também já devo ter contado de seu espírito de morcego, e de como fica imprestável pela manhã cedo. Desta forma, ficava a meu encargo arremessá-lo no banco de trás do carro, ainda o velho Bedelho, para que prosseguisse seu culto a Morfeu enquanto eu me encarregava da pilotagem. Bons tempos, no final das contas.

Mas como essas fotos foram cair no esquecimento, se a todo lugar que vou consigo encontrar algo de relevante para filosofar? Na verdade, há um pouco de desencontro aqui. As partes mais interessantes da cidade para qual me encaminhei neste episódio ficam no seu meio rural, e não dá para se afastar tanto em um período de tempo imprevisível. Por isso, não pude incluir no horizonte nenhuma trilha ou cachoeira. E o que há disponível na mancha urbana não é muita coisa. Mas, como eu sempre preconizei, não há lugar no mundo de onde não se possa extrair Filosofia, e não seria exceção aqui também. Estou falando de Pedro de Toledo.



Pedro de Toledo é uma cidade do Vale do Ribeira, a região menos desenvolvida do estado de São Paulo. Esse fato se dá pelo relevo acidentado tipicamente serrano (estamos próximos à beira do mar), o que fez com que a região não se industrializasse. Mais difícil ainda agora, quando a preservação ambiental impede de vez esse tipo de atividade (que assim se mantenha). Com a ausência de políticas públicas de exploração do turismo e extrativismo sustentável, o pouco desenvolvimento que se obteve com a construção da linha férrea no começo do século XX tem se esvaído. A estação de trem se encontra abandonada, apesar de estruturalmente estar bem razoável.



A estação ferroviária coincide com o marco zero da municipalidade. É a partir desta pequena estação que o agrupamento urbano começou a se desenvolver, com a visita cada vez mais constante de caixeiros-viajantes, instalação de hotéis, bares e demais circunvizinhos. Quando o fluxo dos trens da linha Santos-Juquiá foi interrompido, o motivador de boa parte do giro econômico deixou de existir.



A linha foi desativada por completo em 1999, mas bem antes já havia deixado de transportar passageiros. Algumas ameaças de reativação têm sido feitas, sem efeitos práticos. Bem ao lado da antiga gare, ainda restam alguns dos trilhos como uma espécie de vestígio de outrora.



Outros remanescentes são a praça da Rua Ubirajara, com seus bancos e fonte, e que dava acesso à estação para quem aguardava o trem...



... o antigo edifício dos Correios, muito bem preservado, e que hoje abriga uma comunidade espírita...



... e o velho prédio que abrigava o cinema, hoje já bem estragadinho, que possuía sua sala de projeção no andar superior, enquanto no térreo ficavam as bilheterias e uma bomboniére, que vendia as tradicionais pipocas.



Eu tinha dado um pulo neste pedaço em busca de um pão com manteiga. Depois de obtê-lo, fui andar de namoro com a patroa, esperando o tempo passar. Realmente, é uma cidade bastante pobre, representativa do Vale, mas que guarda algumas caraterísticas que lhe são favoráveis. A paz, por exemplo, de ficar espiando o parco movimento de pessoas da praça Guarani, bastante próxima da igreja matriz.



De lá, pude observar o campo de futebol que fica ao lado da prefeitura, e vi dois times se perfilando para iniciar o prélio dominical. Foi imediato o resgate de memórias afetivas ligadas à minha infância (vide aqui), e atravessei a rua para fazer minhas resenhas e críticas esportivas, ainda que a audiência se compusesse unicamente da paciente cara-metade.



Eram dois times daqueles com nome genérico, impossíveis de ler à distância nos respectivos distintivos, e eram patrocinados por bares. Se não me engano, Bar da Zi o azul, Bar do Pedro o branco. O campo estava com um bom gramado para uma várzea, e há até uma arquibancada de concreto bem decente, protegida das boladas pelo alambrado. De lá, era possível enxergar a matriz que mencionei, dedicada a Sant’Ana. Detalhe: em pleno domingo, a igreja estava estranhamente fechada.



Um belo joguinho, que quebrou beníssimo o galho. Apesar dos abdomens proeminentes, o jogo foi muito agitado, lá e cá, sendo impossível determinar quem seria o time “da casa”. Talvez os dois. É claro que os varzeanos são saudosistas irremediáveis, e os jogadores guardam posições sem aquela grande consciência tática dos dias hodiernos, mas não deixa de ter sua beleza poder explicar sem grandes dificuldades a um desconhecedor o que é um ponta, um meia ou um zagueiro.



Por fim, o jogo estava 1 X 0 para os brancos no momento em que recebi o telefonema do primogênito noticiando o término de sua sabatina. Uma bola enfiada pela esquerda para o arremate ainda fora da área pelo meia-atacante anônimo (para mim). Na comemoração, o fato curioso. O atleta eventual sai correndo em direção ao alambrado na direção da arquibancada, deslizando de joelhos alla Neto, erguendo o punho direito em direção a um público inexistente, como se só ele pudesse ver a organizada vibrando e pulando. Eu e a patroa, que não tínhamos nada para fazer, soltamos um grito de gol real, plenamente audível em uma plateia tão pequena. Nem que fosse para fazer farra, o felizardo jogador poderia mandar um salve qualquer, mas não. Estávamos invisibilizados pela geral fantasma.



É de todo estranho não ser notado quando você é o único objeto móvel em um espaço. Mas atribuo o fato à absorção de nosso atleta amador, e, por meu lado, compreendo um pouco melhor a assertiva mais conhecida de George Berkeley, filósofo norte-irlandês: ser é ser percebido. Vamos tratar melhor do assunto.

Berkeley foi contemporâneo dos debatedores do primado do conhecimento. De um lado, os racionalistas capitaneados por gente do naipe de Descartes, Leibniz e Espinosa. Do outro, os empiristas liderados por Locke, Hume e Hobbes. Gente grande, como se pode perceber. Em todos eles, com maior ou menor intensidade, Berkeley percebeu que havia um escapismo de teses metafísicas para se aproximar a um materialismo sempre crescente, seja nas propriedades da mente como construtoras do conhecimento, seja nas capacidades dos sentidos de obter informações a partir do mundo exterior. Como era um bispo anglicano, ele precisava desenvolver uma hipótese em que não se excluísse uma divindade das equações. Esse é o norte geral do imaterialismo.

Em primeiro lugar, precisamos dizer que Berkeley estava alinhado com os empiristas. Isso implica em dizer que, para ele, nada que estivesse na mente não esteve primeiramente nos sentidos. No entanto, sua abordagem tem muitas novidades. Ele se questionava, por exemplo, se os objetos que rodeiam um sujeito têm existência independente dele, ou se a doação de sentido de cada um desses objetos depende exclusivamente de quem o percebe. Só que essa relação é muito mais radical do que pode parecer em um primeiro instante. Uma coisa qualquer só existe materialmente enquanto estiver no campo de percepção de alguém. Isso significa que a queda de uma árvore perdida no meio de uma floresta não terá nenhum sentido se estiver fora da percepção de alguma pessoa. Não existe essa coisa que chamam de matéria.

Como assim?!?!?! Berkeley entende que tudo aquilo que chamamos de matéria nada mais são do que percepções, e estas se caracterizam pela individualidade. Cada um de nós percebe o mundo de maneira única, a partir da perspectiva que se tem. Estas dependem de inúmeras circunstâncias, de forma a ser abertamente contraintuitivas, em certas condições. Pensemos, por exemplo, na sensação que temos da temperatura. Ainda que estejamos de acordo de que há calor, qual será a sensação que teremos ao sair de um banho muito quente? Certamente, sentiremos um frio que não existe. Podemos ainda pensar nas ilusões de ótica ou na pareidolia (leiam aqui), o fenômeno humano de perceber um objeto pelo outro. Essas falhas nas percepções, de acordo com Berkeley, são efeitos de um véu de sensações que nos impede de chegar à coisa-em-si (fato que foi melhor determinado por Kant). Portanto, o que temos são informações obtidas sensivelmente, e que são idealizadas na mente de cada um de nós. A matéria é indeterminável, e só existe no momento em que estiver no campo de percepção de um sujeito. Esse est percipi, ser é ser percebido.

Ainda não está claro? Ok, reconheço. Fundamentalmente, Berkeley diz que o que temos são ideias, e não fatos, porque estes são inatingíveis, haja vista a multiplicidade de pontos de vista a partir de cada perspectiva individual. Essas ideias, invariavelmente, são construídas a partir dos sentidos. O conhecimento de objetos parte da combinação dessas ideias formadas na mente oriundas da experiência de mundo obtida pelas percepções dos sentidos. Assim, combinamos a percepção visual de algo arredondado e vermelho, com a percepção olfativa de um cheiro suave e característico, com a percepção tátil de algo liso, com a percepção palatal de um sabor adocicado e temos uma maçã. Não sabemos que este objeto é uma maçã se não conhecemos alguma dessas sensações. Portanto, ideias abstratas são ilusórias. Quando Locke diz que parte de nosso conhecimento provem da abstração, ele quer dizer que há um conjunto de sensações primárias, como a ideia geral de forma, de extensão, de cor e assim por diante - uma ideia geral de maçã. Assim, perceberíamos que todo espaço tem uma extensão, todo objeto tem uma forma, ou seja, uma espécie de gabarito onde se encaixarão os casos particulares. Mas se é justamente o particular que nossa percepção tem acesso, a maçã de verdade, diz Berkeley, procurar uma ideia geral de cada objeto é um engano, um exagero metafísico que vem desde os tempos dos antigos gregos e que os empiristas modernos estavam insistindo em repetir.

E é justamente com a ideia de substância geral que Berkeley implica. Matéria é uma das ideias primárias que ele combate. Sempre que se pensar em matéria como um substrato da realidade, pensa-se em uma ideia geral e primária. Há um material para cada coisa que exista no universo, esse é o princípio. Mas, se não se pode pensar em necessariamente existir qualquer coisa que vá além da particularidade, como podemos afirmar que a matéria existe? É uma questão privada de sentido: todas as qualidades de um objeto, seja ligada a substrato primário, como forma, extensão e número, quanto secundário, como cor, tamanho e aspecto, estão na mente, ou seja, na ideia que fazemos dele. Não há nada que o obrigue a matéria a existir.

Parece loucura, mas na verdade é um desafio. Como somente podemos nos assegurar da existência de algo a que lançamos nossa percepção, é sobre esse algo que recaí o Ser como objeto existente. O mundo é, na verdade, aquilo que percebemos, e fora da percepção não há nada.

E por que Berkeley fez todo esse esforço? Como eu já disse, o pensamento filosófico moderno tendia fortemente para o materialismo, o que tirava progressivamente um deus da jogada. Se parece absurdo dizer que qualquer coisa some e reaparece durante um intervalo em que não é percebida por ninguém, como a maçã que está trancada na geladeira e que sabemos que está lá, e que nos certificamos ao reabrir o aparelho, é porque, apesar de ninguém de carne e osso estar a percebendo, há um deus que o faz. Sendo onisciente, Deus percebe a maçã dentro da geladeira e isso faz com que ela se mantenha materializada. Dessa forma, Berkeley recupera o estatuto metafísico de uma deidade como doadora de sentido ao mundo. Deus é a emenda da vida que não pulula aqui e ali apenas quando são percebidas, mas estabelece um continuum chamado vida.

É claro que as teses de Berkeley são cheias de problemas, principalmente por conta deste último elemento ad hoc. Eu mesmo penso aqui: se há um deus onisciente, que diferença faz a materialidade ou não dos objetos? Se tudo estará sempre presente pela percepção divina, não há nenhuma contradição em se considerar as coisas efetivamente materiais. Mas suas ideias não são vazias, principalmente porque prefiguraram a fenomenologia kantiana e a representação de Schopenhauer, dentre outras loucuras filosóficas. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

Aqui segue um compêndio quase completo dos textos de Berkeley:

BERKELEY, George. Obras Filosóficas. São Paulo: UNESP, 2010.