Marcadores

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Navegações de cabotagem – O Jardim Botânico de Sorocaba e o início que todas as coisas têm, seja um jardim, seja um método de conhecimento

“A verdade somente se põe a quem a procura”
Roger Bacon

Olá!


Nos últimos tempos, tenho parado para pensar em questões habitacionais. Até pouco tempo atrás, muita gente vinha na minha casa, para comer, beber e celebrar a vida, mas meu pessoal se tornou cada vez mais raro. Meus pais morreram, assim como todos os meus tios; meu filho se mandou para o interior do Paraná, os afilhados cresceram e se espalharam pelo mundo, e o fato é que a vida está cada vez mais solitária, como eu já havia previsto faz poucos anos. Cogito uma mudança de ares.

Há impeditivos, entretanto. Não tenho boas perspectivas com relação à aposentadoria, pioradas pelas reformas que insistem em pairar sobre nossas cabeças. É coisa que demora; não sei quanto, mas demora. Eu poderia pensar em uma transferência para lugar mais calmo, o que não é exatamente simples: é preciso achar quem queria permutar, além de se ter o aceite de gestores de cá e de lá. O tiro de misericórdia vem na forma de senilidade de sogros. Não posso esquecer que a patroa tem seus pais, e que ela é filha única. Ainda que as promessas feitas a padres sejam vazias, ficar junto na saúde e na doença não é uma obrigação diante de uma equívoca divindade, mas de seu cônjuge de carne e osso, e esse não é um problema que eu possa simplesmente descartar, como se fosse um chinelo velho.

Resta a mim pensar nas redondezas. A região metropolitana, com todo o respeito, é ela toda uma extensão da Terra da Garoa, com continuidade geográfica e urbana, e a infeliz diferença das distâncias agravadas. Também já passei da idade de encarar as sazonalidades da Baixada, de onde já me desiludi. Que tal Sorocaba? É grande, bem estruturada, próxima e a cara-metade gosta de lá. Em hora e meia, estamos na porta da casa do sogrão, o que dá bem para prestar socorro. Aproveito a improvável manhã de sol de um desses domingos invernais para almoçar por lá e ver se acho alguma camisa do São Bento. Não consegui, porque não sou de shopping, mas encontrei o Jardim Botânico, e fui lá visitá-lo.



O parque tem um nome, que é Irmãos Villas Boas. Os homenageados são daquelas personalidades que certamente ouvimos falar, mas não sabemos bem o que fizeram. No caso, os irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo eram sertanistas que participaram das primeiras experiências de internalização do Brasil, que era como um imenso quintal que ficava nos fundos de casa, mas que nunca tínhamos explorado sei lá por quê, por medo das aranhas e dos bichos-papões. Ao contrário dos bandeirantes, não buscavam pedras e metais preciosos, mas conhecer o imenso território nacional ainda virgem. Graças ao seu trabalho, os índios deixaram de ser vistos como obstáculos, mas como parceiros que poderiam trazer muitas informações sobre um ambiente incerto ao branco: caminhos, perigos, alimentos, remédios. Por sua ação foi criado o Parque Nacional do Xingu, o primeiro a associar preservação ambiental e proteção aos indígenas, coisa meio fora de moda ultimamente em Terra Papagalli.



Um jardim botânico, conforme já havia dito em meu texto sobre o Plantarum, é uma área instalada em meio urbano com elementos típicos de áreas preservadas, nativas ou extravagantes. Não se trata de um espaço de vegetação original, embora possa estar combinado a algo do gênero. Percebam pela linha do horizonte como este jardim está inserido no contexto urbano, ao se visar os prédios ao fundo.



Embora o radar de um jardim destes esteja na disposição de materiais para estudos, o fato é que há muito de belo no que um visitante busca nele. Sendo assim, um dos propósitos de um jardim botânico está na sua essência estética. O roseiral, por exemplo, foi construído de modo a reproduzir uma flor estilizada em seus canteiros, circundando uma espécie de pérgola circular, muito embora a época não seja muito propícia à floração das rosas.



Outros elementos são espécies botânicas do nosso dia-a-dia que, cada vez mais afastados do meio natural que estamos, nem sabemos como são. Por exemplo, quando utilizamos algum xampu ou creme à base de babosa, não sabemos que é esta planta alongada e de bordas serrilhadas (tenho um pé de babosa em casa). Esse é um dos aspectos de curiosidade que o jardim explora.



A região tem uma pequena reserva de Mata Atlântica preservada, conhecida como Floresta Ipanema. É realmente bem pequena, mas que pode garantir um bom tanto de frescor. Essa mata faz fundos com o espaço, onde fica localizado também o apiário, com caixas de abelhas miúdas, como as jataís, que não oferecem eventual perigo aos visitantes.



A construção que mais chama a atenção fica no topo do morro e é a sua estufa em estilo inglês, bastante apessoada com a do célebre Jardim Botânico de Curitiba. Aqui, recebeu o nome de Palacete de Cristal.



A característica mais marcante de uma estufa nesta arquitetura é a utilização de vidros e outros materiais transparentes nas paredes. Isso possibilita a utilização da iluminação natural com o controle de temperatura em seu interior, protegendo ainda os espécimes das intempéries. Isso ajuda a manter seu conteúdo estável por todas as estações.



Estava notavelmente mais fresco lá dentro, mesmo com um sol de rachar mamona. Como qualquer ambiente controlado, vários aspectos precisam ser cuidados, incluindo seus níveis de umidade. Isso é conseguido em parte pela paisagística interior (existe esse termo?), com a inclusão de tanques e fontes.



O Palacete de Cristal busca unir natureza e estética no mesmo espaço, fazendo várias referências artísticas e exemplificando como ação humana e preservação podem andar de mãos dadas. Essa associação está em elementos poéticos...



... na ornamentação de ambientes...



... na integração entre os andares...



... no ikebana, a arte floral de origem nipônica...



 ... nas interações fortes entre elementos naturais e construídos...



... nos elementos colhidos in natura (belo exemplo de pareidolia)...



... e nos exemplos de reaproveitamento de recursos, ainda que em caráter simbólico, como este tronco feito de restos de madeiras processadas.



Há ainda a questão da ambientação, que produz alguns jardins temáticos. Optei pela foto destes mandacarus, que compõe um arranjo desértico, por uma questão afetiva. Na minha infância, havia um jardim na frente de casa que tinha bem uns três ou quatro destes.



Sabem onde eu perdi boa meia-hora? No sementário que fica no nível superior do Palacete, com um monte de amostras de coisas que eu poucas vezes tinha visto. Fica a homenagem à minha filha mais nova, por motivos evidentes.



Sendo um local eminentemente voltado ao saber científico, senti falta das grandes estufas do Jardim Botânico de São Paulo ou das matas artificiais do Plantarum, onde as coleções podem ser estudadas a fundo. Sem dúvida, a Prefeitura de Sorocaba pensou primordialmente no aspecto recreativo da coisa, um lugar bonito de se ver, que pudesse atrair a população como um todo, para depois estender o uso a um público mais de nicho, que procura uma instituição para aprofundar estudos. Nessas iniciativas, o importante é começar e manter, para depois ampliar seus escopos. Se a ideia é essa mesma, está bom.

Afinal de contas, tudo tem que ter um início, não é verdade? Assim como este jardim, o próprio conceito de Ciência Moderna um dia surgiu, aos poucos. Isso significa que o primado científico não caiu do céu, de uma hora para outra, como se fosse um meteoro. Costumamos nos referir à dúvida metódica de Descartes ou às tábuas de experimentos de Francis Bacon como marcos iniciais do pensamento científico do Renascimento, estando o racionalismo de um lado e o empirismo de outro, mas o fato é que houve toda uma Filosofia voltada para uma busca da verdade baseada no conhecimento experimental que nasceu no próprio seio da dominante igreja de então, e que se constituiu nos primeiros passos da transição do teocentrismo para um novo humanismo. Como eu já dissertei neste texto, a Idade Média é menos monotemática do que a visão superficial nos faz supor, e gente como Guilherme de Ockham, Roberto Grosseteste e Roger Bacon eram religiosos, que viviam em ordens clericais e, mesmo com as costumeiras restrições hierárquicas e dogmáticas, deram os primeiros passos no sentido de pôr a cabeça para fora da casinha. Vamos abordar um pouco melhor o pensamento deste último.

Roger Bacon era um frade franciscano que ficou conhecido, no começo do século XIII, como Doctor Mirabilis, dada sua proverbial inteligência. Sendo um religioso, deveria se ater com muito mais rigor a um sistema circunscrito do que um livre-pensador, mas soube colocar a claro seu ideário, ainda que passando por alguns dissabores da censura.

Embora o vulgo tenha-lhe mais em conta como um alquimista, suas teses sobre a aquisição do conhecimento são incrivelmente próximas à metodologia científica aplicada nos dias de hoje. Para ele, todo saber nasce da observação. Colocamo-nos diante da natureza e percebemos fenômenos que clamam por explicações. A racionalidade humana encarrega-se de compor pressupostos que possam constituir esclarecimentos a aquilo que presenciamos. Uma vez enumeradas, passamos a buscar comprovações destas hipóteses, começando pelas mais simples, como enuncia o princípio da navalha do precitado Ockham, e, quando necessário, testando as mais complexas gradativamente. Um exemplo banal para ilustrar: da cadeira onde estou sentado e escrevinho estas mal traçadas, vejo um bando de pintinhos correndo assustados sob a mesa dos frequentadores do parque. Este é o fenômeno, que me causa certa estranheza. Passo a elucubrar racionalmente. Não estariam desperdiçando energia inutilmente sem um bom motivo, então não se trata de um mero hábito, o que é corroborado pelo desordenamento com que se dá a desabalada carreira. Isso me demonstra mais ainda – a falta de unidade não comprova uma procura pela mãe, mas somente um desespero. Temos então uma fuga. Mas de que? Penso em 1. uma criança travessa; 2. um gato; 3. uma enchente se aproximando; 4. um espírito de treva que só os pintinhos conseguem enxergar. A partir daí, começo a investigar pelas redondezas para buscar elementos que ratifiquem algumas de minhas hipóteses. Pensando nas mais simples, tenho a criança e o gato, já que estou em um parque. A enchente é improvável porque não chove há dias e não tem rio próximo, e o espírito é inobservável (mais tarde do que com as teses de Bacon, a falseabilidade retira as hipóteses puramente metafísicas do âmbito científico). Portanto, só serão levadas em conta se o teste com a criança e o gato falhar. Olho ao redor e as crianças desta manhã aparentemente são boazinhas e gostam de animais. Não vejo nenhuma delas correndo atrás dos pobres projetos de dinossauro ou fazendo grandes algazarras. De repente, uma repetição do fenômeno e centro mais a minha atenção, analisando de onde correm os pintinhos. Vou até a direção da capoeira e lá eu vejo, rolando pela areia, o gato fanfarrão. Está comprovada a segunda hipótese, empiricamente.

O que há de mais belo no pensamento de Bacon é a ausência de um pertencimento à Ciência, ou, melhor ainda, como um produto do tempo que pode ser transformado por qualquer pessoa que reproduza e renove a experiência. Dessa forma, a Ciência não pertence a grupos, mas à humanidade inteira. Essa é a garantia de que a Ciência sempre progredirá; o conhecimento não é algo fechado e definido, encerrado em cânones imutáveis, como ocorre com as religiões.

Não parece que todo esse sistema está no substrato de um materialismo que dispensa um deus? Isso não é esquisito em um frade? É que Bacon não se desvencilha completamente de uma espécie de “empirismo metafísico”, que pode dar estatuto de cientificidade às coisas espirituais. Ele estabelece uma diferença entre experiência exterior e interior, sendo que nessas últimas podiam ser encaixadas as manifestações divinas, e devidamente comprovadas. Um estado de êxtase divino teria o mesmo valor de uma investigação devidamente anotada, reprodutível e refutável. Dispensando uma concreção das provas materiais de existência divina, Bacon se põe a salvo da sanha inquisitória daqueles duros tempos.

Por fim, Roger Bacon retoma a ideia pitagórica de que o cosmos é redutível à Matemática, e que a descoberta da lógica por trás de um determinado fenômeno pode ser aplicada para prever suas repetições ou para decifrar outros fenômenos, como se tudo obedecesse a uma espécie de estrutura que pode ser codificada através de formulações. A definição de Ciência, portanto, já foi bem sistematizada a partir deste conjunto de pensamentos, sendo que seus aperfeiçoamentos posteriores continuaram obedecendo esse mesmo esqueleto. Isso desde a Idade Média...

Bom... é isso. Para finalizar, informo que ainda é cedo para cravar o lugar onde pretendo viver o que ainda resta para viver, e mesmo se vou ou não sair de meu louco centro de São Paulo. Assim como em Sorocaba, ainda pretendo dar voltas por aí, e talvez algum lugar me seduza em definitivo. Mas aqui existe uma candidatura séria. Bons ventos a todos!

Recomendações:

A maioria das informações deste texto eu retirei de compêndios. Para quem for corajoso, há a versão em latim do capolavoro baconiano disponível na internet. Segue sua referência:

BACON, Roger. Opus Majus. Londres: Williams and Norgate, 1900. Disponível em http://capricorn.bc.edu/siepm/DOCUMENTS/BACON/Bacon_Opus%20Majus%20I.pdf. Acesso em 11/07/2019

Também recomendo a visita ao Jardim Botânico Irmãos Villas Boas, naturalmente. Fica a cerca de 100 Km de São Paulo. Pertinho.

Rua Miguel Montoro Lozano, 340
Jd. Iguatemi – Sorocaba – São Paulo