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segunda-feira, 23 de maio de 2022

O café filosófico do quotidiano – senso comum e japoneses que não são japoneses

(O senso comum opera em nossas vidas com uma constância inacreditável, mesmo no mais inocente dos cafezinhos)

Olá!

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Nos últimos tempos surgiu uma modinha no mundo dos cafés: a cafeteira vietnamita. Não é de se admirar que tenha surgido um método de extração próprio deste país. Ele desponta nos últimos tempos como um dos maiores produtores mundiais da rubiácea e, embora seu foco seja primordialmente a exportação, é óbvio que sempre sobra um tanto para abastecer o mercado interno. Procurei um bocado por algum nome técnico que o método possua, mas não achei nenhum. O admirável é o preço, muito barato. Gostamos de métodos e de preços; portanto, não achamos ruim comprar uma delas. Chegou em casa há uns dias atrás.


Ela tem uma cara de xícara que já evidencia sua simplicidade. Seu fundo é pleno de pequenos furinhos, por onde a água passa, e onde o pó fica ensanduichado entre a peneira e o disco da prensa. É bem chatinho de achar o ponto de moagem, porque se for muito grosso, a água passa de passagem, produzindo uma desanimada água de batata. Se for muito fino, por seu turno, o café fica com aquele aspecto de laminha, e não coa nunca, gelando a bebida. Portanto, é ponto médio na cabeça, sem perdão.

Acertando a espessura do pó, não haverá problemas. O fundo deve ser recoberto com um café de boa qualidade e compactado com o artefato perfurado próprio para tanto.


Daí para frente, é colocar a água e tampar. É importante que a temperatura esteja próxima do ponto de ebulição, porque o resultado final tende a ser mais frio que em outros métodos, mesmo com a moagem perfeita.


O equipamento encaixa perfeitamente naquelas xícaras esmaltadas, que recolhem com maestria os 150 ml que são produzidos a cada vez. Como sua limpeza é bastante simples, é ideal para fazer o ideal: uma dose por vez.



Nome do utensílio: cafeteira vietnamita

Tipo de técnica: percolação com filtragem por elemento metálico

Dificuldade: baixa

Espessura do pó: média

Dinâmica: deposita-se café moído em ponto médio no fundo do recipiente, de modo a preencher toda a cavidade perfurada. Prensa-se levemente o pó com um elemento de compactação, que deve ser mantido sobre o pó. Despeja-se a água até completo preenchimento do recipiente e tampa-se o mesmo até a completa filtragem.

Resíduos: quantidade razoável

Temperatura de saída: baixa

Nível de ritual: médio

Eu, como já disse, fiz umas pesquisas na internet para descobrir mais detalhes sobre essa simpática cafeteira. Eu achava que essa história de Vietnã era como o pão francês e o porquinho da índia, que de França e Índia só tem o nome. Mas não. De fato, é típico deste país da Indochina, onde o café é preparado para ser coado diretamente no leite condensado. Fica bem gostoso, reconheço, mas é preciso distinguir bem. Café como obra de arte é puro. As misturas são fenômenos de feira, como aqueles artistas que usam facas como malabares (puro exagero da minha parte, cada um toma seu café como bem entender).

E eu fico pensando naqueles japonesinhos que ficam apreciando seu café com leite, em seus quimonos e getas. Será que gostam de um peixinho para acompanhar? Ou um pão de farinha de arroz com feijão dentro?

Tudo errado. Vietnamitas comungam com os japoneses muito menos do que nosso vulgo pode supor, que fica mais nos olhos rasgados do que qualquer outra característica. Sua culinária é muito mais baseada na carne de porco do que nos peixes tão caros aos japoneses e, embora também os inclua, não podem ser colocados como ingrediente principal da cultura.

Mas o fato é que há algo que nos faz colocar várias coisas em uma mesma vala comum. Por mais que eu diga que vietnamitas não são japoneses, assim como chineses, coreanos, filipinos, indonésios e outras etnias, o fato é que chamamos todos eles de japoneses. Isso não está certo, mas não veio do nada. O Brasil é um país que tem uma de suas principais características em ser terra de imigrantes, que vieram praticamente do mundo inteiro. Em um dado momento, há mais de cem anos atrás, foi a vez dos colonos japoneses chegarem aqui, e irem direto para a lavoura. Em um tempo onde não havia tv, nem internet, sabia-se da sua existência por relatos, ou no máximo fotografias, o que não era a mesma coisa de se ver alguém oriental pessoalmente. Portanto, os primeiros japoneses, com seus olhos estreitos e cor amarelada, eram quase que uma atração turística para os curiosos. Em Terra Brasilis, eles foram por muuuuuuuuito tempo a principal massa imigratória de orientais. Hoje em dia, são pouquíssimos os japoneses que se mudam para o Brasil, sendo muito mais comum o movimento contrário, mas há vários chineses e coreanos ainda rumando para cá. Diante dos poucos elementos que temos para distingui-los, chamamo-los da etnia mais comum que conhecemos, o que não é um fenômeno restrito a eles. Aqui, qualquer loiro é alemão, qualquer narigudo é turco, como se não houvesse loiros/narigudos no restante do mundo. Isso para não falar dos nordestinos, que são baianos para qualquer circunstância, o que é um engano e tanto.

Mas por que agimos assim? O nome disso é senso comum, conceito importantíssimo quando queremos distinguir nosso pensamento do quotidiano daquele mais filosófico, centrado no raciocínio. Eu deveria ter abordado este tema há mais tempo, porque é um dos fundamentos mais basilares da Filosofia, mas há sempre um tempo para tudo, já dizia Qohelet.

É evidente que não ficamos exercitando nossa razão cem por cento do tempo. Isso equivaleria a estarmos sempre fazendo ginástica: não é nem ao menos saudável. Imagine que todas as vezes em que fôssemos cozinhar uma batata ficássemos nos questionando o que é o alimento, porque há resistências culturais em utilizá-lo de maneira distinta da convencional, porque damos tanta importância ao ato de manter a vida e assim por diante. Ou ficar questionando porque a batata, tão rica em carboidratos, e não uma cenoura, mais carregada de fibras, o que favorecerá o funcionamento do meu aparelho gastrointestinal. Eu simplesmente pego a panela, coloco a água que sei ser suficiente e deixo pelo tempo que faz a magia acontecer, e pronto. Eu SEI fazer batata, independentemente do quando me aprofunde em questões metafísicas e científicas. Os devaneios filosóficos e científicos são acontecimentos eventuais, como ocorre com essa série de cafés filosóficos. Eu não penso em filosofia todas as vezes que faço café, mas quando o faço (e for interessante) registro aqui para vocês. 

Mas vamos depurar um pouco. Senso comum é um termo duplo, e deve ser visto em cada uma de suas partes. Senso significa a capacidade humana de fazer juízos. Isso significa que somos capazes de nos defrontar com situações e articular mentalmente para chegar a conclusões, fazer escolhas, apreciar valores. Fazemos isso o tempo todo, a cada estímulo que recebemos.

Entretanto, o senso não é uma coisa única, que se pratica sempre da mesma forma. Ele tem um diferencial qualitativo que vai variar de acordo com o grau de automatismo que aplicamos a ele. E ele é comum quando é partilhado com aquela porção humana que depende menos de atitudes filosóficas ou científicas, que inclusive filósofos e cientistas têm.

O senso comum existe porque não são todas as apreciações que fazemos da realidade que precisam passar pelo crivo da criticidade. Ser crítico, aqui, não significa ser chato ou reclamão, mas colocar critérios para adotar uma posição como reflexo de verdade (ou aproximação a ela). Quando uma situação depende de ponderação, fazemos uma análise que a quebra em pedaços e tenta buscar um resultado mais definitivo para a questão que é levantada. Isso resulta em dispêndio de tempo e de energia, porque o juízo crítico frequentemente demanda conhecimento que não se tem, e que, por consequência, precisa ser buscado.

Nada disso é necessário no senso comum. Este é o tipo de conhecimento que criamos naturalmente para dar conta de demandas imediatas. Normalmente não se prende a metodologias, baseando-se mais em experiências próprias e nas observações de repetições.

Outra coisa a respeito do senso comum, que é o que melhor lhe caracteriza. Como os homens não são seres isolados, existe a necessidade de que construam laços sociais, que garantam um mínimo de convivência estruturada. Para isso, formam consensos coletivos que acabam por ser interiorizados pelos membros individuais daquela sociedade, na forma de conjuntos de valores. Essas convenções deliberadas vão habitar nas mentes do grupo como se ficassem lá gravadas, e vão pautar a reação das pessoas diante do giro das engrenagens sociais. É como se o convívio formasse um gabarito por onde todos os comportamentos individuais devessem passar, de modo a constituir uma certa padronização comunitária. Ocorre que o automatismo do senso comum possui balizas tão fortes que todos aqueles que saem do roteiro são prejulgados pela sua conformidade, o que leva a toda sorte de exclusão.

Vou dar um exemplo prático de como é possível diferenciar senso comum de senso crítico. Sabem aquelas famosas piadas que usam estereótipos? Tem as piadas de português, de loiras, de turcos, e todas elas funcionam através de um padrão comportamental atribuído a cada um dos protagonistas. Em qualquer boteco, aprendemos que portugueses e loiras são burros, que turcos e judeus são mãos de vaca e assim também com outros personagens. É possível discorrer mentalmente porque há a fundação desses estereótipos. Os portugueses, apesar de compartilhar um grande elemento de cultura conosco, que é a língua, não vivem a mesma realidade social, de modo ser estranho a eles certas condutas e fraseologia, tão típicas de cada lugar. Portanto, se você falar a um luso que está "matando cachorro a grito", ele não compreenderá que você passa por situação periclitante, pensando ser impossível que o pobre cão sucumba a garganta tão poderosa. O mesmo aconteceria entre panamenhos e argentinos, sul-africanos e australianos, tunisianos e haitianos e tantos outros povos cujo único ponto em comum é a língua. Com as loiras, a remissão é às meninas que abandonam a escola para seguir carreira de modelo, porque a aparência jovem é requisito imperioso pelo que busca o mercado publicitário. Por isso, diz-se que priorizam a beleza em detrimento da formação intelectual. Já o pessoal do Levante é de uma região milenarmente conhecida pela atividade comercial. Quem trabalha com negócios sabe muito bem que seu rendimento é feito a custas de seu próprio gerenciamento, o que os leva a serem duros nos valores praticados. Mais ainda: há meses em que as vendas vão bem, há meses em que não. Dependendo de si mesmos para sobreviver, é preciso resguardo com os abusos.

Todas essas deduções eu fiz sem consultar nenhuma fonte. Dei tratos à bola e tirei conclusões que podem ou não estar completamente corretas, mas não as fiz por ouvir falar. Usei meu senso crítico, mesmo não tendo à mão elementos mais consistentes. Por outro lado, o senso comum diz a mim que os defeitos encontrados nestas pessoas são inerentes a elas, e com isso me indica características e comportamentos que ele, o senso crítico, me impede de aceitar passivamente.

Mas o senso comum é pura tristeza? É sempre inválido, em qualquer circunstância? A resposta é não.

O senso comum se baseia em aparências, parte da apreensão imediata do mundo, não se preocupa com comparações de ideias, não é reflexivo consigo mesmo e fundeiam-se mais na individualidade do que no patrimônio intelectual coletivo, de modo a juntar um monte de evidências anedóticas para compor seu corpus. Como eu falei até agora, é um juízo não sistematizado e acrítico, mas isso não significa que seja incorreto. Um belo dia, algum índio percebeu que chupar maracujá fazia com que ele dormisse melhor. Talvez sua atitude tivesse algum grau de cientificidade, mas sua comunidade, a de seus descendentes e das demais populações que tiveram contato com esse saber não terão esse mesmo espírito. Apenas saberão que maracujá dá sono, e esse conhecimento é correto, passado a posteriori pelo filtro científico que descobriu a substância exata que causa esse efeito, a passiflorina.

Desta forma, podemos deduzir que o senso comum é um conjunto de conhecimentos acríticos da humanidade, absorvidos por terem utilidade prática. Até aqui, portanto, nada demais. O problema acontece quando a falta de critério se espalha para todo e qualquer fato colocado à nossa frente, mas aí o problema essencial não é do senso comum, e sim de quem o assume como verdade absoluta. Aqui, temos uma espécie de metassenso: é preciso ter ciência de que o senso comum precisa ser visto com o olhar do senso crítico, mas deve cumprir sua função, de ser uma primeira impressão sobre o mundo. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Filósofo e sociólogo argentino imperdível, de vida muito interessante e infelizmente desconhecido no Brasil, ajudou muito a elaborar este texto.

ANDER-EGG, Ezequiel. Introducción a las Técnicas de Investigación Social. Buenos Aires: Humanitas, 1978.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

O ponto cego que nossa autossuficiência nos imputa

(Deixa te contar um segredo: você tem vieses cognitivos. Não acha? Então leia)

Olá!

Eu tenho uma cisma com o número seis há anos, muitos anos. Houve um tempo em que era neura mesmo, mas depois passou a ser só um incômodo. Todas as vezes que alguma coisa redundava neste número, saía da minha cabeça uma espécie de esconjuro, como se o pobre fosse amaldiçoado. “É só um número, uma entidade puramente abstrata que não quer dizer nada desencaixado de um contexto”, tentava eu refletir. Contudo, dificilmente eu deixava qualquer coisa se compor em conjuntos de seis, e ficava com um incômodo transtorno quando precisava me conformar em pegar meia dúzia de bananas.

Apesar do tom jocoso, a coisa ficou meio séria, afetando coisas que não deveria. Meus dois filhos teriam nomes de seis letras, mas dobrei um L de um e meti um H no fim do outro e contornei a questão. Não foi nada que tenha tornado seus nomes esdrúxulos, cheio de consoantes sem propósito (certo, Dhiennipher?), e até ficaram mais próximos dos ancestrais, mas traz algum transtorno para eles, que precisam ficar chamando atenção para cadastros em geral, adicionando isso, colocando aquilo. Não bastasse o sobrenome complicado para a língua mãe, esse sim chatíssimo de explicar.

Ora (direis), não és tu alguém que se diz racional, que alega não tomar parte em superstições, que diz crer na primazia da lógica? Como maculaste até o nome de teus filhos em função de uma crendice inexplicável?

Bem, a resposta não é tão simples. Temos tantas implicações mentais que se devem a motivos que parecem não guardar nenhuma relação entre si, que nem Freud explica. Sempre é possível tentar explicações, mas é difícil cravar na mosca.

O caso do 6. Na nossa cultura cristã, há um múltiplo famoso dele, que é o 666. No Apocalipse, esse número é atribuído à besta, o terror dos evangélicos. Etimologicamente, é uma palavra que não tem nada demais, já que significa meramente “animal selvagem”, só que, na escatologia cristã, ganha outro significado, muito mais soturno. Em um primeiro momento, parece ser uma personificação do diabo, mas uma leitura mais cuidadosa faz perceber que se trata de instrumento do capiroto para dar cabo da cristandade. Seria alguma coisa a quem todos iriam reverenciar (quem reverenciaria um monstro de dez cabeças é o ponto) e que teriam uma de suas marcas, sendo o triplo seis um deles. O porquê desse número é uma coisa que nunca se chegou a um consenso, dada a linguagem completamente alegórica com o qual foi redigido o texto. Com tanto simbolismo, é daqueles casos em que qualquer malabarismo é possível para encaixá-lo a um desafeto qualquer. Já se disse que era o Império Romano, que era especificamente o imperador Nero, que é a Igreja Católica, que é um certo papa ou a própria instituição do papado, que é o comunismo e tantas outras construções. Uma delas, extremamente simplista, chamou-me a atenção na já longínqua década de 80. Dizia respeito ao então presidente estadunidense Reagan. Seu nome completo era Ronald Wilson Reagan - seis letras no primeiro nome, seis no intermediário, seis no sobrenome: meia-meia-meia. Era quase risível, mas fazia sentido para quem não gostava do canastrão. 

Eu já contei aqui que eu era um habitué das igrejas desta metrópole da vertigem, e, naturalmente, ouvi muitas homilias e li um bocado a respeito, embora seja verdade que o Catolicismo não se prenda tão fortemente quanto as diferentes denominações evangélicas às ações do Pero Botelho. Pode ser que o tal número maldito tenha me influenciado a pegar esse ranço com o pobre e vazio de significado número 6? Pode, mas é estranho que ainda hoje, já afastado da fé, o número ainda me perturbe, a ponto de não deixar nunca o malvado seis para o final quando quero resolver um sudoku. Parece coisa de bobo. Não é.

Nenhum de nós está imune a distúrbios psicológicos, sem que isso significa que sejamos loucos (o que, aliás, é muito difícil de definir). Dizem até que todos nós deveríamos manter algum tipo de psicoterapia, no que eu, na minha opinião de leigo, discordo. Não porque não acredite nos profissionais da área psi, ou que ache terapia uma frescura, mas porque certos tipos de desvios são normais. Isso mesmo, normais. Vejamos o exemplo dos vieses.

Se você for meu leitor, já terá percebido que escrevi muitos textos a respeito deles, como o viés de confirmação, o viés de positividade, os vieses de pesquisa, as diversas heurísticas, as dissonâncias cognitivas e outros tantos. Os vieses existem não porque sejam alguma forma de loucura, mas porque somos humanos. Vieses são úteis para a própria sobrevivência. Quando eu vejo confirmada alguma coisa que eu penso, em um momento onde é necessária uma solução rápida, tenho uma vantagem biológica. Idem quando estranho um fato que não coaduna com minha cognição. Não são defeitos mentais, mas propensões que temos como espécie.

Acontece que os vieses são úteis em sua urgência, quase que como instintos, e, a partir do momento em que não necessitamos mais de rapidez de decisão, devemos sobrepô-los, com outra característica inerente aos caniços pensantes: o raciocínio. Ser racional significa ter balizas por onde a lógica opere. Só que uma pequena coisa é necessária para isso - o seu reconhecimento. E nem sempre isso acontece.

Vamos lá pensar. Digamos que eu conte uma piada homofóbica, e você retruque com outra. Eu posso alegar que, no meu caso, é só uma brincadeira, uma babaquice momentânea, mas que você de fato é homofóbico. Isso acontece porque, para mim mesmo, posso verificar os sentimentos que me movem, enquanto para você só consigo enxergar o comportamento. Pode ser que seja real que eu faça a piadinha apenas para enturmar, e não tenha verdadeiros sentimentos de homofobia, mas eu não tenho essa informação do meu interlocutor, só sei que ele adere à homofobia explícita.

Eu já tratei sobre este tema neste espaço, mais especificamente aqui. É um fenômeno psíquico conhecido como assimetria ator/observador, e ela ajuda a explicar porque temos diferenças nos julgamentos que fazemos de nós mesmos e dos outros. Disso deriva outro viés cognitivo, que é o viés do ponto cego, um erro sistêmico do pensamento que impede que reconheçamos em nós mesmos os vieses que conseguimos observar no outro.

O que é um ponto cego? Nossa retina, que fica lá no fundo do olho, é encarregada de receber a luz e as imagens que captamos do mundo exterior. Para além dela, estão os receptores que conduzem os estímulos visuais aos nervos óticos, e daí por diante a coisa é com o cérebro. Entretanto, a maneira como isso é feito não é uniforme, e há alguns pontos onde não há células fotorreceptoras suficientes para decodificar o estímulo vindo de fora. Isso é uma condição natural e é suprimida por um macete que o cérebro faz, juntando a visão que vem do outro olho e de extensões dos objetos ao redor, em processo semelhante ao que acontece com fenômenos descritos pela Gestalt. Mas certos acometimentos oculares, como o glaucoma e a degeneração macular, podem fazer com que alguém tenha “buracos” tão grandes que passam a ser perceptíveis no campo visual.

Esse termo acabou se alastrando para situações do dia-a-dia. Quem dirige sabe bem, porque existem duas circunstâncias que podem levar esse nome. Quando estamos guiando por uma rua qualquer, temos uma visão frontal dada pelo para-brisas, que é o nosso principal meio de controle, e também temos os espelhos retrovisores, que permitem que tenhamos noção dos fatos que acontecem atrás de nós, além de uma boa parte dos acontecimentos laterais. Com isso podemos trafegar com razoável segurança entre as faixas. Acontece que eventualmente ocorre de levarmos uma bela buzinada (emendada por palavras de baixo calão) de um motoqueiro ao tentar fazer a conversão. Não se trata de desatenção, mas de uma falha no aparato visual disponível no automóvel, que não consegue focar cem por cento da área visual necessária ao desempenho seguro da direção. O cachorro louco em questão estava situado exatamente em um dos pontos em que a mera visualização não seria suficiente para detectar sua presença. Outro exemplo de ponto cego são os picos de elevação ou curvas feitas próximas a barrancos. São situações em que a visão prolongada que normalmente temos no plano e nas retas fica prejudicada pela posição do veículo em relação ao relevo. No aclive, nosso ponto de visada está mais para o céu do que para o chão, e nas curvas o morro tampa os pontos futuros. Sendo assim, corremos a arriscada situação de perceber perigos apenas muito em cima da hora, o que demanda cuidados extras. Portanto, ponto cego é uma situação tal em que não nos damos conta de algo que deveríamos.


A instância psicológica do ponto cego pode ser resumida, por equivalência, a uma cegueira com relação aos vieses, aos erros de pensamento, às modificações das memórias e tantos outros caracteres mentais. Um determinado fenômeno que vemos ocorrer em outrem é irreconhecível para nós mesmos, como se atingisse exatamente aquele ponto cego do retrovisor, onde existe algo que não sabemos existir. Melhor dizendo - sabemos que existe nos outros, mas não em nós.

É um exercício a se fazer para saber se nós mesmos não somos vítimas deste viés. Imagine, por exemplo, que você vá ao mercado com seu cônjuge. Todas as compras que você faz são feitas para o bom funcionamento do lar, enquanto o do(a) parceiro(a) inclui uma boa dose de exageros, não é verdade? Podemos ter aqui um belo viés que você não reconhece. A não ser que sua situação esteja muito apertada ou que seja rematado muquirana, o fato é que você também compra coisas que o companheiro acharia desnecessárias. É o efeito ator/observador agindo sem que você perceba.

Outro exemplo: você é corintiano e concorda com tudo o que o Chico Lang fala, acha que por trás de sua crítica bandeirosa está um fundamento bem ponderado e racional. Você acha ainda que seu coleguinha palmeirense deveria se envergonhar das análises tendenciosas e pseudossofisticadas do Mauro Beting? Pois é… os dois são afetados pelo viés de confirmação, mas se você só percebe isso no adversário, tenho a má notícia, além de ser vítima do mesmo viés, você ainda sofre com o ponto cego.

Há armadilhas em não se reconhecer vieses. Se nós conhecemos uma propensão em termos doenças cardíacas, evitaremos comidas gordurosas, faremos exercícios e procuraremos o médico com regularidade. Se sabemos que uma rua é perigosa, evitaremos passar por ela à noite, ou o faremos sempre em companhia. Quando não sabemos nada disso, de repente nos vemos na arapuca, em um belo enfarte ou caindo nas garras do malandro. Por que seria diferente com os vieses? Se eu entendo que estou sujeito a eles, tenho como me defender, seja antecipadamente, seja a posteriori. Evitar vieses de seleção, por exemplo, fará com que minhas pesquisas fiquem mais confiáveis. Lidar bem com vieses de disponibilidade me fará ser mais cuidadoso em minhas compras, e compreender o viés de confirmação pode ser até saudável para reforçar nossas convicções.

O grande problema de não reconhecer vieses é que nos tornamos mais vulneráveis a eles. Há inúmeras situações em que é necessário que façamos julgamentos os mais isentos possíveis, e ser tendencioso em um momento desses é tudo o que não precisamos. Se nos consideramos autossuficientes a ponto de dispensar as observações alheias ou, pior ainda, não reconhecer que podemos ter nosso pensamento dirigido por nossos vieses, estaremos fazendo o exato oposto do que manda as regras do pensamento crítico. Por mais que nossos conjuntos de valores sejam preciosos, é preciso estar com a autocrítica em dia para perceber quando eles nos conduzem a pensamentos errados, especialmente na prepotência de achar que os problemas estão sempre nos outros.

Pensando filosoficamente, perguntamo-nos o que é a mente, o que é um erro e porque este último pode ocorrer na primeira. Em apertadíssima síntese, podemos dizer que um erro é uma quebra de uma expectativa de realidade e que a mente é o mecanismo com o qual um organismo processa o mundo que o cerca. Sendo assim, nosso fluxo de percepções espera receber o mundo de uma determinada forma, que, uma vez cumprida, determina a perfeição. Sendo que o conjunto da humanidade é composto por indivíduos, tendemos a realizar esse fluxo de maneira ainda mais natural para nós mesmos. Só que a nuvem que parece algodão é nuvem, e não algodão. Com isso, temos que o erro está na própria porta de entrada dos sentidos, e que é processado pela mente como se fosse o que não é. Daí por diante, tudo se torna imperfeito, mesmo que vejamos as coisas muito mais belas do que efetivamente são, muito mais corretas, muito mais concertadas, e isso ocorre com todos, mesmo com aqueles que dizem que o algodão, na verdade, é água evaporada.

A chave de ouro é: não existe nada perfeito no universo. Nada. E isso inclui nossa capacidade de nos autoperceber. Os vieses não são fáceis de notar porque a) atentam contra nossa prepotência; b) atuam inconscientemente e c) como são mais fáceis de aceitar nos outros, aperfeiçoam nossa condição de cereja do bolo. Mas, lamento, cerejas também são comidas, e eu, você e todos os seres humanos seguimos vieses. Não notar isso já é um viés, como pudemos notar. O melhor é saber conviver com eles. Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

É um site de estudantes de Psicologia da UFSJ, que contém bons materiais introdutórios, sem grande rigor, mas com abordagens rápidas e interessantes. Vale a visita.

https://psicoativo.com/

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Navegações de cabotagem – o Museu Egípcio de Curitiba e as fronteiras iniciais da Filosofia

(Sempre soubemos que a Filosofia ocidental se originou dos gregos. Mas será que não há princípios ainda mais antigos?)

Olá!

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Preparem-se porque vai ter muita coisa de Curitiba por aqui, assim como de Taubaté. Quem me segue há tempos, sabe que tenho dois filhos, e os dois saíram de São Paulo em busca de melhores oportunidades. A mais nova foi para o Vale do Paraíba, o mais velho para o Paraná. Por isso, fico trafegando para lá e para cá. E isso vai dar muitos textos.

Curitiba é uma cidade reconhecidamente funcional, e que possui muitos atrativos. Todas as vezes em que eu venho para cá, o moleque mais velho se encarrega de me mostrar um lugar novo, sendo que o da vez é o Museu Egípcio e Rosacruz, que fica no complexo pertencente à sociedade de mesmo nome.


Cumpre dar algumas palavras sobre a mantenedora deste espaço. A Rosacruz é uma daquelas sociedades sobre as quais se apontam olhares de mistério e lenda, grupamentos fechados cujos princípios somente seriam franqueados para iniciados, e cujos exemplos próximos seriam a Maçonaria e os quase fictícios Illuminati. Essa aura mistagógica surgiu porque suas reuniões se davam a portas fechadas e tratando de temas de fundo esotérico, coisa que, se por um lado não era bem vista pela cristandade oficial, por outro criava uma aura do desconhecido que é sedutora para muita gente. Formaram confrarias que fundiam o Hermetismo greco-egípcio com o Cristianismo.


Esta ordem está muito relacionada ao Corpus Hermeticum e outros textos atribuídos a Hermes Trismegisto, análogo ao deus egípcio Toth, a quem se confere a criação do alfabeto e o primado sobre a sabedoria. São obras que versam sobre uma visão holística do cosmos e que o colocam como permeado por uma divindade muito semelhante ao nous que é referido por Anaxágoras.

Isso explica duas coisas. A primeira é sua preferência por coisas do Egito antigo, local de onde se origina o pensamento que desembocará no Corpus.

A segunda é o aspecto de sociedade secreta da Rosacruz. Ela surge em um momento onde ainda era perigoso apresentar divergências com o cristianismo então reinante, e, por isso, não era saudável apresentar-se desabridamente como pertencente a campos de pensamento distintos.


Mesmo com origem incerta, os historiadores atribuem a fundação da ordem Rosacruz a Christian Rozenkreutz, que sistematizou alguns manifestos escritos por volta dos inícios do século XVII, e que acabou por emprestar seu nome ao grupo. Já a AMORC, que gere este espaço, foi fundada por Harvey Spencer Lewis e tem seus princípios gerais resumidos na frase abaixo:


O museu trabalha com aspectos históricos, artísticos e culturais advindos do Egito. Um dos itens de entrada é uma reprodução da célebre Pedra de Roseta, um fragmento de rocha que continha escrita hieroglífica. A grande sacada era que o mesmo texto estava também escrito em grego, uma língua conhecida. Sendo assim, foi possível, por comparação, deduzir os significados dos hieróglifos, o que pode ser aproveitado para muitos outros textos que permaneciam envoltos em mistério.


Este artefato foi descoberto nas invasões napoleônicas, que o fizeram chegar a Jean-François Champollion, o autor de sua tradução.


Há duas múmias lá dentro, não egípcias, e colocadas como exemplo do processo de mumificação. Respeitei o aviso de não as fotografar, limitando-me ao modelo situado do lado de fora da câmara onde estavam.


Além disso, inúmeros outros artigos de natureza egípcia estão espalhados pelas salas e nichos do museu, cada um com suas devidas descrições.


No pátio exterior, há o Complexo Luxor, onde fica a Alameda das Esfinges, reprodução do caminho que ligava os templos de Karnak e Luxor.


As esfinges eram seres míticos que combinavam seres humanos e leões, e simbolizavam a proteção inteligente, e por isso era comum vê-las ladeando os templos.


O Pátio do Obelisco contém uma homenagem ao faraó Tothmés III. Estes monumentos eram representações da eterna permanência. O fato de serem encimados por piramidhiuns que apontam para o sol fazia com que sempre resplandecessem durante o dia, reforçando a representação que pretendiam.


O Atrium Romano contém uma estátua do imperador Augusto César, que iniciou a Pax Romana, período em que o Império Romano, apesar do domínio político, procurou manter a cultura e a identidade dos povos conquistados, de forma a ser obtido um intercâmbio cultural sem precedentes na história.


Por fim, o Memorial Rosacruz é uma réplica do existente na Califórnia, e contém inúmeros elementos da cultura egípcia antiga. Em seu interior, há espaços meditativos e uma maquete de todo o complexo.


Fiquei devendo o Museu Tutankhamon, parte do complexo, dado o tempo que fiquei nos dois equipamentos mencionados, mas não faltarão oportunidades. Quando nos deparamos com uma cultura tão avançada e ainda mais antiga que a grega, perguntamo-nos porque os inícios da Filosofia Ocidental estão no Peloponeso, e não no norte da África. Mais ainda: há os povos orientais, tão antigos quanto, e que também possuem um conjunto intelectivo tão sofisticado quanto o grego. Desta forma, precisamos entender os critérios que os historiadores da Filosofia adotam para classificarem sua origem, e concordar com eles ou não. Vamos lá.

Quando observamos o surgimento do pensamento filosófico entre os antigos gregos, nós vamos perceber que o principal ponto estava em trazer uma nova tradução do cosmos. Por que nova? Porque já tínhamos uma interpretação, que vinha da mitologia. As religiões, tanto a pública quanto a mistagógica, faziam uma leitura dos fenômenos que, embora carregasse sentido, baseava-se muito no misticismo, onde uma grande parte era uma "explicação inexplicada". O que quero dizer com isso? Quando eu antropomorfizo um fenômeno natural, atribuindo-o a um deus, como os raios de Zeus, os oceanos de Netuno ou a sexualidade de Afrodite, estou dando uma explicação do porquê eles ocorrem no cosmos e na humanidade. Entretanto, toda a explicação dos originadores destes fenômenos está no campo poético da livre criação humana. Suas gêneses são histórias contadas entre as gerações, sem que possuam lastro no universo observável. Acreditar nessas histórias é matéria de fé, porque não conseguimos observá-las, nem as reproduzir.

Os primeiros filósofos não puseram o pensamento mítico simplesmente de lado, mas iniciaram nele uma transmutação progressiva. Não bastava unicamente as histórias contadas pelos antepassados, mas aquelas que estivessem vinculadas a uma amarração lógica. E nesse caso eles começaram pelo começo: se a explicação mítica é insuficiente para deslindar o princípio de tudo, onde poderemos buscar alternativas? Ora, no mesmo lugar onde está depositada a nossa capacidade de desconfiar das narrativas tradicionais: na razão e em sua ferramenta, a lógica. A água de Tales, que inaugurou esse modelo de pensamento filosófico, não é um mero chute. Ele a indicou porque fez observações e delas tirou deduções que fazem sentido. Se ainda atribuiu aos deuses seu surgimento e funcionamento, é porque nos encontrávamos em uma fase de transição, porque nada se modifica por decreto.

Seus sucedâneos aperfeiçoaram o pensamento, questionando a própria origem da água e propondo outros paradigmas de arché, mas sempre mantendo a nova característica: todo discurso tem agora a necessidade de um encadeamento de raciocínios. Se incluiremos divindades, elas deverão fazer parte da lógica, e não se enfiarem na conversa de modo ad hoc.

Percebam que, por trás das articulações lógicas e da observação do cosmos, há um substrato para a formação de teorias. Fazemos um uso coloquial desse termo confundindo-o com hipóteses, mas ele significa, literalmente, a explicação de um fenômeno concreto. As teorias que estes filósofos propunham vão no sentido de se formar a Ciência, em um tempo onde havia muito pouco instrumental além do cérebro para diferenciá-la da Filosofia. Filosofia e Ciência eram praticamente sinônimos, e a filosofia grega dos primeiros tempos tinha essa magnífica característica: ela já apontava para a Ciência.

Bom… e o que temos do pensamento oriental e norte-africano? Vai no mesmo sentido? Já aqui precisamos balizar que não temos a menor pretensão de classificar validades e hierarquizar importâncias dentre os diferentes paradigmas. Pensando nos povos orientais, não nos referimos a chineses, muito longínquos ainda, ou a japoneses e coreanos, de onde emanaram filosofias ricas, mas com as quais os gregos ainda não haviam estabelecido contato. Pensamos em babilônios, caldeus, hebreus, persas e, mais remotamente, hindus e bengalis. O corpo de sabedoria oriundo desses povos continha o mesmo alicerce sobre o qual os gregos iniciaram sua aventura intelectual: a mitologia religiosa. Entretanto, a guinada grega, como se pode perceber, deixou de levar em consideração um plano puramente espiritual, talvez pelo fato de que a cultura helênica não estivesse tão fortemente influenciada pela religião, ao contrário do que ocorria com as culturas orientais. Enquanto o grego tinha a religião como uma prática secundária, onde os principais encargos eram deixados nas mãos dos sacerdotes, esses outros povos não podiam, como faziam os gregos, relativizar as funções de suas divindades. Uma comparação meio besta: o grego era como os católicos de estatística, enquanto o oriental era como os crentes. Quem tem sua vida mais preenchida pela religião, tem mais dificuldade em escapar de seus ditames. Por isso, vemos uma imensa maioria de católicos que não estão em plena conformidade com o que determinam seus mandatários: camisinha, anticoncepcionais, carnaval e tantos outros. Já o evangélico é mais radical, e é difícil que fuja das predisposições de seus pastores, sob pena da punição eterna. O raciocínio entre as etnias helênicas e orientais é mais ou menos a mesma. Os gregos confortavelmente colocariam de lado Zeus em detrimento de uma boa explicação observável para os trovões, enquanto os hebreus jamais excluiriam Javé de qualquer fenômeno que ocorresse no mundo. Com isso, a filosofia oriental estava muito permeada da religiosidade para que fosse possível afastar a explicação mítica de seus mecanismos, e isso a afasta do paradigma aproximativo da Ciência e do uso puro e simples da razão.

Por outro lado, podemos perguntar sobre qual seria o objetivo grego com a Filosofia. É bem verdade que já mencionei o direcionamento rumo à Ciência que foi dado pelo conhecimento dos primeiros filósofos, mas o que se pretendia com isso? A princípio, o conhecimento por si só, o conhecimento pelo conhecimento. Sabe aquelas fofocas de rua, onde dona Corina quer saber porque a filha de dona Xepa anda chegando todo dia tarde em casa? Nada vai mudar nem na enjoativa vida de dona Corina, nem na desditosa vida de dona Xepa, nem na danada vida de sua filha, mas a gana de saber é quase irresistível. O mesmo acontece para objetivos mais elevados do que a mera futricação, com o ponto em comum de que não se busca uma utilidade que vá mudar o preço do dólar, mas um alimento intelectual, um saber por saber, que abra as portas de cognições cada vez mais aprofundadas.

É bem verdade que os egípcios constituíam um povo com uma elite intelectual muito bem desenvolvida para a época, exemplificados pelo Mouseion de Alexandria e sua célebre biblioteca, que eram mais do que depósitos de papiros, mas locais de intensa atividade intelectual e didática, sede de debates e de produção de conhecimento. Mas o conhecimento egípcio tinha uma especificidade em relação ao grego. Aqui, o teor prático do saber estava muito mais em evidência do que junto aos helenos.

Os egípcios e outros povos africanos tinham um conhecimento matemático notável. Desenvolveram noções de cálculo extremamente precisas, que usavam largamente em suas celebérrimas obras de engenharia, como as pirâmides, as esfinges e represas aproveitando a água do rio Nilo. Todo esse conhecimento, ao contrário do que ocorria com a vertente grega, tinha propósitos eminentemente práticos, que, se por um lado ajudavam a desvendar os fundamentos do cosmos, por outro dava menos importância àquilo que pode ser chamado essencialmente de filosófico. Eles priorização os "comos", e não os “porquês". Poderíamos dizer que os egípcios tinham bases ainda mais científicas que os gregos, mas sem subir aquele degrau do conhecimento pelo conhecimento, aquela coisa de ter todas as cadeias de causas e efeitos à sua frente. Os gregos chegam ao esplendor da matematização filosófica com a escola pitagórica, onde todo o funcionamento universal pode ser reduzidos a números, uma proposta à qual os egípcios não se interessaram a chegar.

Desta forma, podemos chegar a uma estrutura do pensamento grego que o diferencia das demais correntes cognitivas contemporâneas. Enquanto aos orientais a explicação mítico-religiosa era suficiente e até mesmo necessária para que se possa compreender o universo, e aos egípcios e outros povos africanos o objetivo prático era autossuficiente e bastante para justificar a atividade intelectual, para o grego era preciso ter o todo: a origem, o desenrolar e a conclusão.

Daí para frente, minhas caras pessoas, é definir o que é Filosofia e verificar se toda a discussão acima tem cabimento ou não. Pode ser que, ainda assim, possa-se debater se os outros elementos intelectuais sejam imprescindíveis para a formação do pensamento grego e ainda mais originais que eles, mas a formatação da Filosofia como vemos ainda hoje no ocidente segue o esqueleto inaugurado no momento em que se decidiu entender não só o que eram as coisas, mas o que estava por trás das coisas, com a mesma razão que usamos para medir nossos campos e situar nossas colheitas. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Mencionei o Corpus Hermeticum, então vou recomendá-lo. Eu utilizei um áudio livro, para aproveitar em momentos de trabalhos manuais, mas o ideal é sempre ter uma versão escrita. Como é difícil conseguir uma versão comentada imparcial, o ideal é pegar o texto seco e um livro de história. Localizei a edição abaixo, que me parece bastante boa.

Trismegisto, Hermes (atrib.). Corpus hermeticum. São Paulo: Polar, s.d.

O Museu Egípcio e o Complexo Luxor, embora não sejam daqueles mais mencionados quando se pensa em Curitiba, são de visita essencial. Segue seu endereço.

Museu Egípcio e Rosacruz

Rua Nicarágua, 2641 - Bacacheri

Curitiba/PR

Aproximadamente 400 km a partir do centro de São Paulo

terça-feira, 3 de maio de 2022

Sobre vestimentas e a autenticidade do eu

(Quanto que uma roupa diz sobre o que nós somos? Seria uma mera questão de moda ou um conflito da verdadeira identidade?)

Olá!

A pandemia ainda não acabou, e demanda cuidados, mas é fato que as coisas vão lentamente voltando ao seu eixo, muito por conta da eficiência das vacinas, aquelas que foram tão combatidas por certas trupes de malucos. Esse tão propalado "novo normal" carrega consigo uma boa parte de sustos e traumas. Como exemplo, cito as várias pessoas que trabalham comigo e persistem no uso da máscara (eu incluso), embora não seja mais obrigatória.

Para além disso, há novos costumes de natureza ainda mais pessoal. No meu caso específico, adotei uma política diferente de indumentária. Antes, recobria-me de infernais ternos e gravatas, mesmo para dias senegaleses. Agora, só o faço de acordo com a pauta: tem reunião com graúdo, tem paletó; do contrário, há camisetas e o bom e velho brim. Ah, mas tem reunião de emergência… emergências não são para desfiles de moda, e vamos com o que temos. Até agora, a chefia não reclamou, então vamos mantendo o hábito até a censura.

Para desgosto da minha defunta mãe, eu nunca primei pela elegância, mas pelo conforto. A coisa piorou significativamente quando passei a ostentar abdômen proeminente, que deixam a roupa com a alegre, porém desengonçada aparência de dono de circo. Embora tenha estudado Filosofia, trabalho com informática, que, infelizmente, paga melhor. E isso me coloca em uma condição estranha. Embora haja certa flexibilidade no vestuário dos desenvolvedores em geral, na área de requisitos temos inumeráveis reuniões, o que nos coloca com o duvidoso título de "representantes da instituição". E aí pega mal estar fora do padrão bem aceito, como se um pano amarrado no pescoço certificasse virtudes em seu portador.


Mas o que a maneira com a qual me visto diz de mim?

Pode-se dizer que é bem pouca coisa, mas há um conjunto de olhos sociais que buscam desesperadamente alguns tipos, digamos, de selo de certificação de que aquela pessoa assim vestida tem algum grau de fiabilidade, de conhecimento, de habilidade, de recursos ou de seja lá o que for. A roupa não diz o que temos por dentro, mas, para quem é de fora, interessa o que é de fora. No caso, exatamente a roupa, o tal selo. Pode parecer maluquice? Pode, mas é assim que se bate o tambor e não tenho muito o que fazer.

Há outros componentes que montam nosso visual. Meu perfil geral é o seguinte: cabelos amarrados em rabo de cavalo, barba sem bigode, roupas preferencialmente folgadas e tênis. Tem gente com cabelo pintado, cabelo raspado, cabelo moicano, cabelo branco e assim por diante, cada um moldando sua moldura de acordo com a dicotomia vontade-possibilidade. Dão a isso o nome de estilo, e, embora cada um diga que tem o seu, a verdade é que o nosso velho ambiente desenha tudo. Se eu fosse ter meu verdadeiro estilo, andaria pelado como um índio. Mas não se preocupem: sou obediente à lei e às normas, e somente serei o mais legítimo possível no seio de meu lar, prometo.

Mas essa questão de estilo. Dizem que a maneira como nos expomos fala muito sobre nós, mas o fato é que diz sobre como queremos ser vistos, e não como somos de verdade. Isso é mais perceptível quando vemos como os tais estilos são massificados, a tal da moda (para ler um pouco sobre isso, tenho estes textos – aqui e aqui). Evidentemente, não existem tantas pessoas iguais, como não existem ambientes iguais, mas temos uma tendência à uniformização, isso não chega a ser surpreendente. Percebam como as casas também são frutos de modas: temos sua aparência pública, e embora possam trazer algum tipo de ideia de época ou do tal do estilo, nada dizem do que ela é por dentro - uma casa rota pode ocultar uma vida harmoniosa, enquanto em casas eruditas podemos ter violência de todo tipo. O mesmo se passa com corpos. A aparência exterior diz pouco, diz aquilo que queremos transmitir, e a paz dos tons azuis pode esconder intensos conflitos. Mas o fato é esse: variamos de aspecto por conveniências, e não por dar reflexo ao que se passa por dentro de nós. Porque quando tentamos fazê-lo, a chance de dar errado é grande.

Eu já falei sobre os motivos pelos quais entendo que as pessoas têm multiplicidade de apresentações e até justifico isso, em um dos textos que entendo ser um dos melhores deste espaço. Mas quero aqui abordar a temática por outro ângulo, desta vez mais psicológico. Isso porque, embora sejamos um e muitos ao mesmo tempo, há aqueles que mais bem se adequam à nossa realidade mental, e outros que parecem ir ao exato contraponto. É algo como alguém que suporta engolir uma amarga cerveja que detesta para ter aceitação de um grupo que aprecia, adorador dessa mesma cerveja. Vou falar em primeira pessoa, mas usando profusamente Kierkegaard na análise.

Embora sejamos menos do que uma minúscula partícula de areia em um imenso universo, quando olhamos para nosso particular percebemos que, no final das contas, somos, para nós mesmos, mais importantes do que todo o restante deste mesmo universo. Pode parecer se tratar de ato de magno egoísmo, mas não é isso. Basta que pensemos o seguinte para compreender: o que seria do universo sem mentes que o absorvam? Ele poderia continuar a existir, mas a poeira e os gases que estão por toda parte não têm em si uma compreensão de sua existência. Ou seja, dar importância a alguma coisa é uma prerrogativa de seres viventes, o que, pelo que sabemos até agora, limita-se ao planetinha azul, essa esferinha cada vez mais judiada. E quem, dentre todos estes, é aquele que percebe o mundo e sabe que percebe? O ser humano. Essa percepção, ainda que possamos pensar em uma espécie de ação coletiva, é feita individualmente. Quem ganha o jogo é o time, é bem verdade, mas o goleiro que defende é um indivíduo, o zagueiro que entra no meio da canela é um indivíduo, o centroavante que goleia é um indivíduo. Nesse escrete chamado de humanidade, a história é escrita por todos, mas vivida individualmente. Cada um de nós adquire o universo para si através dos sentidos, de maneira única e irrepetível. Por essa razão, o indivíduo é, para si mesmo, o centro do universo.

Aí então eu pergunto: o que vale mais para uma pessoa? Seriam os sistemas que explicam no atacado e no varejo as verdades tidas como universais e necessárias, válidas a todo lugar e a todo momento, ou seria a busca individual, que reflita uma realidade que esteja em consonância com o que ela é? Sendo assim, é no detalhe que residem as questões mais importantes para cada um de nós - quem sou, por que sou como sou e quais são os fatores que me afastam de meu verdadeiro eu, a minha essência.

Mas, para além da consciência que temos do universo e de certas noções próprias, como a finitude e a intencionalidade, o que nos caracteriza como humanos? Qualquer que seja a essência de cada um, ela precisa ser materializada de alguma forma. Mesmo que consideremos que há almas, e que elas sejam igualmente intrínsecas ao homem como é o corpo, elas nada seriam sem estar concretas no mundo. Ou seja, nós existimos. E nessa existência está nossa materialidade, a realização de nossa essência, tida aqui como nosso modo autêntico de ser.

Nós existimos não porque respiramos ou enxergamos, mas porque exercemos arbítrios. Em outras palavras, nós fazemos escolhas. O fato de que eu esteja digitando este texto nesse exato momento é um critério meu: eu poderia estar cochilando, escutando a fofoca alheia, especulando sobre a rodada do Brasileirão ou fumando maconha um charuto, e cada uma dessas seria uma escolha, mas eu, dentro das possibilidades, optei por escrever. Se o fiz com liberdade, é uma manifestação da minha essência.

Ocorre que, se eu estou escrevendo, não posso estar cochilando, nem escutando fofoca alheia, nem nada mais. Por isso, a minha escolha implica na renúncia de todas as demais possibilidades. Existe na economia um termo chamado de custo de oportunidade, que é representado por todas as oportunidades que deixei de lado para investir na área de negócio que escolhi, e que representará um encargo eterno na minha mente: não teria sido melhor investir em ações do que ter aberto uma tabacaria? Há uma característica na escolha ampla – ela impossibilita paralelos. Eu não consigo ser careca e cabeludo ao mesmo tempo... que exemplo bobo... Vamos melhorar. Ao optar por não ter filhos, eu trago comigo tudo o que isso representa. Serei livre dos encargos da criação, terei mais dinheiro, minha responsabilidade se limitará a mim e poderei fazer coisas que um pai não faz. Por outro lado, todo o lado positivo de ser pai fará parte da escolha tida na forma de renúncia: a um descendente, a um sucessor, a alguém que cuide de mim na velhice, a alguém que possa receber minhas histórias, etc. Essas questões não são nada óbvias e viram um peso, especialmente nos momentos em que sentimos o barco adernar.

A liberdade de escolher entre a infinidade de possibilidades é uma geradora inesgotável de angústia. E é principalmente dolorosa para quando pensamos em retransformar quem somos para algo diferente. Parece coisa frívola, e pode ser mesmo, mas há duas implicâncias possíveis, tanto no sucesso quanto no fracasso. Pode ser que queiramos virar monstrões, com músculos capazes de esmagar pulgas. Faríamos isso para atender uma necessidade de destaque visual, sob a desculpa de estarmos cuidando da saúde. Se der certo, o cara gordinho, meio suarento e disponível a qualquer instante dará lugar ao marombado que será temido por homens e admirado por mulheres, que, entretanto, não será mais o cidadão boa praça de antes, sempre presente nas rodas de amigos. O novo eu pode se ressentir de tudo o que o antigo perdeu, mas a escolha já se deu e carrega todo o peso das perdas. Se fracassar, contudo, vem o desespero. Esse desespero não está no simples fato de que o gordinho continua ostentando a pança, mas porque ele quis se afastar de si mesmo e não conseguiu. O indivíduo já não suporta a si mesmo, mas não consegue deixar de sê-lo.   

É um beco sem saída, uma aporia? Sem dúvida. Vivemos em confronto com nossa realidade dupla - nosso temporal e nosso eterno, nossa liberdade e nossa necessidade. A cada instante o homem precisa decidir e exercer sua síntese - uma pessoa é um ser sintético. Somos livres para escolher, mas sempre dentro de um leque de possibilidades. Isso indica que a liberdade não é absoluta: temos o arbítrio, mas ele não pode nos levar a qualquer lugar. Menos do que impossibilidades óbvias, como voar ou viver sem ar, a angústia está na imprevisibilidade da possibilidade. Talvez eu resolvesse tingir meus poucos cabelos de rosa, para criar uma imagem de ousadia, mas o efeito seria de tolice. Mas a coisa ainda não seria grave, ainda. Bastaria raspar os cabelos. A questão vai muito mais para o quando temos de corda para nos afastar da âncora que nos prende à nossa própria personalidade. Renegá-la significa expressar uma insatisfação consigo mesmo, mas nós somos o que somos - sou destro e não adianta tentar ser canhoto, sou baixo e não adianta tentar ser alto, tudo o que terei são garranchos ou calos nos pés.

Quantas vezes não nos vemos desesperados? Não o desespero fático de nos vermos ameaçados pela morte, mas por nos vermos desiludidos, especialmente nos momentos em que algo dá errado com nossas escolhas? Ainda que não esteja em sua consciência, o homem luta em desespero para ser a si mesmo, porque toda construção que ele faça para si é um afastamento de si, da sua própria essência. Isso é contínuo e este presente todos os dias de nossa vida. É uma doença da própria vida.

A solução kierkegaardiana é uma aproximação com Deus - ele é cristão. Esse empuxo do espírito vai sempre em direção aos céus, pensa ele, e a angústia é uma decorrência do medo da morte, de quem o cristão, com sua expectativa pela vida eterna, está livre. Nietzsche, por outro lado, diria que a solução para a angústia está em beber a vida de um gole só, ainda que o gole lhe custe a vida*. Ou seja, as contingências da vida carregam a angústia no conjunto, e o negócio não é se paralisar, mas soltar-se na torrente do destino. Na minha humilde, talvez devamos ter um meio termo. Ser cristão e imaginar que a cura do desespero está na religião leva a uma ilusão, porque ninguém consegue assegurar qual seria o caminho certo para chegar a Deus (vejam o número infindável de correntes dentro do Cristianismo) e é mais um elemento de angústia, afinal pecados são julgados e nem sempre conseguimos mensurar o tamanho da gravidade de nossos atos. Por outro lado, o largar-se de Nietzsche é meio radical demais, e podemos quebrar a cara na primeira esquina. Sendo assim, um pouco de prudência, mesmo a nível psicológico, não faz mal, como o caldo de galinha dado ao doente, que não cura, mas alimenta. Isso serve para tudo, inclusive para roupas. Ternos são detestáveis e inexplicáveis, mas ir de sunga para o trabalho não diz quem eu sou, a não ser que limites não são uma noção muito clara para mim.

Portanto, a maneira com a qual me visto diz que sou um ser que experimenta possibilidades, que exerce escolhas, um eu-público que tenta demonstrar uma faceta que tem mais a ver com meu desejo do que com meu eu autêntico, porque muitas vezes estamos apenas forçando uma barra para ser o que não somos. Se conseguimos, maravilha, não importa se causa escândalo ou ironia; se não, estamos apenas continuando a ser humanos. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Como em toda sua obra, Kierkegaard é um bocado difícil de ler, mas sempre precisamos tentar. Segue a indicação.

KIERKEGAARD, Søren. O Desespero Humano. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

*Na bela figura do trecho de Snegs de Biufrais, música da banda Som Nosso de Cada Dia.