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terça-feira, 31 de outubro de 2023

O café filosófico do quotidiano – comparações entre tempos são justas?

(Parece óbvio que gostamos mais das nossas próprias lembranças do que as dos outros. Mas... isso é certo?)

Olá!

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É evidente que em Taubaté não há quantidade de lojas de tudo, como há em Terra da Garoa, mas também não estamos falando de um vilarejo com meia dúzia de bodegas. Especialmente com a patroa, sempre consegue-se achar comércios com aquelas coisas que pouco me interessam, mas que tem um ou outro artigo interessante, e, bem procurado, dá para fazer meu tempo passar. E aconteceu de novo. Estando em uma casa de badulaques, lá pelo miolo de uns trecos de cerâmica, achei esse surpreendente conjunto de porta-filtro e jarro, branco como um táxi recém lavado:

O método, como um todo, é uma cópia quase perfeita do clássico Hario V60, marca japonesa que é referência para cafés percolados, pelos seus resultados muito satisfatórios, como pudemos ver com outros métodos que são quase irmãos gêmeos.

A diferença mais flagrante é o diâmetro do seu vazador, um pouco maior do que o da V60, o que pode até ser uma vantagem para cafés que exijam um escoamento mais rápido. No mundo dos cafés especiais, filtragem rápida pode ser a diferença entre um produto saboroso ou amargoso.

Bem aquecida, a porcelana ajuda a manter uma temperatura uniforme, de modo a não se perder a qualidade do café. É uma boa vantagem, além do garbo retrô que é meio moda hoje em dia.

De fato, é uma peça que remete à década de 60 ou 70, quando as peças de esmalte já não estavam mais tão em moda, mas o vidro temperado ainda não estava em alta, principalmente por conta de seu custo mais alto.

 

Nome do utensílio: Filtro de porcelana

Tipo de técnica: coador cônico espiral (percolação)

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: um coador de papel cônico é introduzido em um porta-filtros de porcelana, com fundo denteado e guias espirais, que retém as partículas enquanto a água faz a extração do café, desembocando em um recipiente de vidro refratário por ação da gravidade.

Resíduos: Mínimos

Temperatura de saída: média

Nível de ritual: médio


 

Vejo muita rapaziada montando seus novíssimos apartamentos com reedições de geladeiras consagradas Frrrrrrrrrigidaire, fogões de cores berrantes, batedeiras em forma de torpedo e outras cositas com ar de década de 50. Todas as coisas se movem através do tempo, às vezes de forma cíclica, às vezes em linha reta. Algumas coisas vêm e voltam, e, por isso, a tal onda retrô faz bastante sucesso. Por outro lado, tem coisas que ficam e custam a voltar. Basta que se pensem em alguns nomes que são retomados, outros que não são. Mateus e Tiagos foram nomes da moda na época de meus filhos. Poucos coetâneos meus tem esses nomes, cuja época estava mais para Alexandres e Marcelos. Em termos de nomes femininos, tem muita menina chamada Sandra ou Patrícia com a mesma idade que eu, enquanto Larissa e Carolina são frequentes entre as amigas dos filhos. Por sua vez, nomes como Gastão ou Josefina têm sido cada vez mais raros.

E eu fico aqui pensando… As gerações passadas (sem pensar nos coffee lovers*) adorariam esse método, que é elegante, bonito, bem ornado com qualquer mesa. Já as recentes devem olhá-lo torto, porque obriga a lavar rápido e bem para não ficar manchado, tem muitas peças e depende de xícaras que a acompanhem. Mas será que as gerações são tão marcadas assim mesmo? Será que os mais velhos são só da estética, e os mais jovens só da praticidade? Sei não.

Todos nós temos aquela tendência em falar "no meu tempo isso, no meu tempo aquilo". Não é preciso incômodo com isso, é só um modo de falar e de manifestar que o auge da vida já passou, que ficou em outro lugar. E vamos falar a verdade: é apenas e tão somente uma figura de linguagem chamada elipse, onde um termo não expresso fica claramente subentendido. No caso, no meu tempo de infância, no meu tempo de juventude, épocas boas que são recordadas com os filtros positivos da memória ativados. 

O fato é que não temos um tempo, mas impressões de um tempo. Eu, por exemplo, me pego falando bem sobre os carros da época em que eu sonhava em comprar o primeiro. Hoje em dia, vejo os meninos falando de coreanos e japoneses sem ter a menor noção de diferenciação, pior ainda com relação às suas tecnologias e implementações. Fiquei quase chocado ao saber que meu carro tem faróis de neblina. No “meu tempo”, havia maravilhas automobilísticas como freio a tambor nas quatro rodas, barras de torção, carburador de câmara simples, cruzetas de roda e outros mecanismos que hoje causam espanto, dada à sua qualidade quase artesanal e nível de segurança baixo. Foram avanços e tanto, mas que não são mais aproveitáveis com a tecnologia atual. Isso indica que o “meu tempo” era ruim? Não, e também não era melhor que a atualidade. Era o que havia para aquele momento.

Os tais meninos talvez riam dos carros do passado, que realmente não tinham a mesma eficiência dos atuais, e eu poderia dizer que aqueles eram carros de verdade, que dependiam mais da interação com o motorista do que os hodiernos, que são comandados quase que pela força do pensamento, com tantos auxílios que tornam difícil a diferenciação de quem é bom motorista. Quem está certo?

Parece-me pouco efetivo firmar posição unicamente pelo critério afetivo, mas o fato é que será ele o primeiro a pular na frente. Isso tudo faz lembrar que nossa percepção sobre o passado é distorcida, mas que nós, caniços pensantes, a temos estruturalmente igual. Desta forma, as lembranças da Jovem Guarda que minha mãe teria se ainda fosse viva seriam mais ou menos as mesmas que eu tenho com relação à Década Perdida: aquilo é que era boa música.

Isso tudo posto, podemos perguntar: as músicas que marcaram a geração de meus pais eram melhores ou piores que as que marcaram a minha geração? Por extensão, podemos pensar nas coisas que validam a nostalgia de cada uma das gerações. Vamos tentar fazê-lo? 

Tudo começa se relembrando que os bons historiadores e analistas insistem que é preciso já haver um distanciamento temporal para se conseguir uma visão mais desapaixonada. Mais de trinta anos após a Década Perdida, já temos esse componente bem catalisado. Década perdida?

Essa é uma das maneiras com as quais é conhecida a década de 80 no Brasil, exatamente o auge da minha juventude, quando comecei a trabalhar, entrei na faculdade, formei minhas bandas, comecei a namorar e tantas outras coisas mais ou menos decisivas na minha vida. A transformação não se resumiu a mim, mas ao Brasil também. É neste momento em que saímos do período da ditadura e entramos em um sonho que virou um pesadelo: a transição democrática foi acompanhada pela realidade social que caiu à nossa frente como um meteoro - a desigualdade era muito maior do que os números do período militar podia fazer supor.

O resultado foi um desnível gigantesco entre expectativa e realidade, e a desilusão foi uma mera consequência. Daí, toda uma geração patinou em um país que não saía do lugar, estagnado economicamente e perdido em suas contradições. É por isso que surgiu essa história de década perdida, comigo bem no meio dela.

O fato é que, se a década de 80 foi perdida, não significa que a de 60 foi ganha, muito pelo contrário. Vivia-se o momento da Jovem Guarda, movimento musical que se aproximou muito do iê-iê-iê dos Beatles e seus asseclas, que dividia baladas românticas com um pop dançante. Ela ocorreu concomitantemente aos Anos de Chumbo, período da história brasileira marcada pelo poderio militar e cerceamento de direitos. A ditadura que terminou em 80 é exatamente a mesma que começou em 60, com o agravante de toda a fervura que ocorria naquele momento. Como dividiam-se as cabeças entre aqueles que entendiam ser proveitosa a manutenção da democracia, ainda que com um governo impopular, e aqueles que enxergavam vantagens na tomada do governo pelos militares, tínhamos uma polarização meio parecida com a que vemos hoje.

Sendo assim, a Jovem Guarda arrefeceu aquilo que a década perdida atiçou: um espírito de rebeldia. É verdade que o mundo gira e é sempre o mesmo - torcia-se o nariz para as danças sensuais, para os cabelos compridos e saias curtas, mas o fato é que o grosso da Jovem Guarda era bastante despolitizado, função exercida naqueles dias pelo pessoal da MPB, que tomava peia no lombo e se exilava no exterior, como ocorreu com os cabeças da Tropicália, exempli gratia. E também é verdade que a década de 80 começou morna, falando de coisas mais corriqueiras, como os mesmos namoros e as novas amizades coloridas, mas era como se tateássemos em busca de até onde poderíamos chegar. Mesmo musiquetas que falavam apenas de moderada sacanagem eram censuradas, como aconteceu com duas faixas do disco de estreia da Blitz, o marco zero da música que se praticaria dali para a frente.

Como eu disse, na década de 60 havia uma camada artística que também fez muito sucesso, mas que manteve seu espírito crítico aguçado: era a MPB, combinação de ritmos regionais que trazia uma música que era o espelho do Brasil. Já a Jovem Guarda plasmava a música que se praticava no hemisfério Norte, logicamente com recursos mais modestos, e aqui se protegia dos desafios que os artistas da MPB se submeteram. Era a juventude que queria viver seus dias encantados durante um período que pegava fogo, e a música era seu escape. Meio alienados? Pode ser que sim, mas é possível compreender que alguém não queira se enfiar em problemas nos quais era possível cair sem fazer força. Se há uma justificativa para a “flacidez” dos jovem-guardistas, era que o perigo era muito maior.

Este foi o modelo que a mídia da época exaltou. Mesmo com os inconvenientes listados, era melhor para um meio que apoiava o governo que se falasse de namoros e papos firmes do que da falta de liberdade ou da miséria varrida para baixo do tapete. Por outro lado, a música em si mesma é neutra, e ao menos cumpria sua função de divertir.

Por outro lado, olhamos para a década de 80 e percebemos uma assunção política não existente antes, e não se trata de querer polarizar a questão, mas não há como fugir do mesmo ponto de referência. A partir do meio da década, já se começou a falar mais dolorosamente sobre o jovem colocado diante de uma realidade muito distinta do sonho. As bandas que soavam divertidas começavam a olhar para a miséria, para o imobilismo, e muitas vezes respondiam não só com a raiva e com o desencanto, mas com a ironia e o nonsense.

Além disso, a Jovem Guarda se calçou fortemente naquilo que faziam os Beatles, mas, com exceção dos álbuns psicodélicos do Ronnie Von (ótimos, diga-se de passagem), a influência buscada foi aquela que os quatro de Liverpool produziram até Rubber Soul, ou seja, a parte mais simples do repertório, com muitas músicas para divertir e namorar. Não havia um compromisso com a evolução musical, mas com o seu aspecto ora lúdico, ora juvenil.

Na década de 80, há menos uniformidade. Bebia-se da fonte da moda, a new wave, mas em Brasília e São Paulo eram fortes as influências punks, e do Rio Grande do Sul veio um certo sabor regional. O Camisa de Vênus era o nervosíssimo representante do Nordeste, repleto de sarcasmo e minimalismo. Assim, de bandas que lidavam com um viés humorístico, passamos a um estado mais anárquico e com sabor de protesto por um lado, e mais confessional e intimista por outro. 

Os nomes são vários e conhecidos: Legião Urbana, Ira!, Capital Inicial, Nenhum de Nós, Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Engenheiros do Hawaii, Titãs e tantos outros. Eles começam a tocar em temas que os jovem-guardistas não ousavam penetrar, e talvez essa seja a grande diferença entre ambos os grupos. Falam sobre relações abusivas (Camila, Camila), violência do estado (Proteção), suicídio (Pais e Filhos), ditaduras (Toda Forma de Poder), incerteza das escolhas (Infinita Highway), contra o establishment (Núcleo Base), contra o sistema (Homem Primata), contra o preconceito sexual (Nunca Exisitiu Pecado) e tantos outros temas. A Década Perdida repelia exatamente o que a jovem guarda mais desejava: o conformismo das histórias contadas individualmente, mesmo que não deixassem de falar sobre as aflições típicas da juventude. Por incrível que pareça, o movimento mais jovem acabou por ser mais denso, mesmo que não tenha dado em nada igualzinho o outro.

Deste modo, os dois fenômenos musicais que mais trouxeram influências do exterior para o Brasil se aproximam pela origem e pelo desfecho, e se distanciam pelo caminho trilhado. No fim das contas, parece que um é melhor que o outro, e faz com que eu, como indivíduo, prefira aquele que eu vivi, mas não há como dizer que é uma opinião inválida aquela que diz ser a música um meio de prazer, que, se o resultado é o mesmo, melhor que tenha-se passado dançando do que chorando, e não poderei discordar de quem pensa assim, porque o tempo bom não é o passado, nem o futuro, mas o tempo em que pudemos dizer que fomos mais felizes. A Jovem Guarda se passou no olho do furacão, e não em um momento em que ele parecia ter passado, por isso é compreensível que tenha sido uma espécie de tábua de salvação para quem vivia aquele momento, enquanto a Década Perdida, em termos musicais, não tem nada de perdida, porque foi o momento em que reaprendemos a gritar por nós e pelos nossos. E ainda que tecnicamente não haja tanta diferença entre ambas, a poética oitentista é, sim, mais profunda. Nesse sentido, o “meu tempo” foi o melhor de ambos. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Para quem se interessar em conhecer musicalmente a Jovem Guarda, recomendo a coleção abaixo, composta de 05 CDs, que contém o essencial do movimento. Pena que, por razões contratuais, o principal prócer não está presente, Roberto Carlos. Mas há músicas dele interpretada por outros cantores.

VÁRIOS ARTISTAS. 30 Anos de Jovem Guarda. Os reis do iê-iê-iê. Rio de Janeiro: PolyGram, 1995. 5 Vol.

Para falar da década de 80, a melhor fonte atualmente é o canal do Julio Ettore, que traz muitas histórias de bastidores das diversas bandas que compuseram aquele momento.

https://www.youtube.com/@julioettore

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

A realidade como um grande algoritmo

(A realidade pode ter alguma sequência de passos determinados por trás dela? Ou somos frutos de um grande acaso?)

Todo dia ela faz tudo sempre igual

Me sacode às seis horas da manhã

Me sorri um sorriso pontual

E me beija com a boca de hortelã 

(Chico Buarque)

Olá!

Agora a moda é o ChatGPT. É praticamente impossível que você, meu escasso leitor, nunca tenha ouvido falar disso, mas vai lá: é um aplicativo do tipo chatbot, ou seja, um robozinho que interage com você como se fosse outra pessoa de carne e osso. Os mais famosos são aqueles assistentes de sites, para quem você faz perguntas e é respondido com orientações de onde achar as coisas. Ocorre que o alcance deles, até hoje, era bem delimitado pelo escopo do site que você visita. Já o ChatGPT ultrapassa MUITO esse diálogo limitado, porque suas respostas são mais completas e originais, a ponto de compor músicas e poemas. Ainda há muitas críticas com relação aos resultados, mas o salto é realmente admirável. Não temos mais aqueles sisteminhas em que claramente era possível reconhecer a programação por trás: perguntado isso, responda aquilo, com a terceira via muito clara – não há resposta, diga para se reformular a pergunta. No ChatGPT, efetivamente temos aquilo que parece um pensamento, uma rede intrincada de alternativas sendo desenrolada ao mesmo tempo, que dá a clara impressão de que há uma efetiva inteligência por trás, como se um humano interagisse com você. É a tal da inteligência artificial no formato mais próximo com o qual podemos compreendê-la.

Brinquei uns quinze minutos com a ferramenta, e é, de fato, surpreendente. Poesias com métricas muito próximas do estilo que se pede, definições ricas que fogem do óbvio e do enciclopédico, utilização de citações direcionadas, articulação com conteúdos abstratos… Está muito longe de uma mera pesquisa rápida, especialmente na busca e na costura do texto.

Não se pense, contudo, que por trás desses sistemas exista algum tipo de milagre. O que temos são algoritmos, que ficaram famosos depois que o YouTube estabeleceu uma relação de céu e inferno com os seus produtores de conteúdo. Isso porque os algoritmos do YT não param quietos, ora priorizando curtidas, ora engajamento, ora visualização de publicidade, dificultando a montagem de estratégias para manter os ganhos. Quem vive de renda variável sabe bem do que eu estou falando.

Mas o que são esses tais algoritmos, tão caros para o pessoal que vive de informática? Na verdade, seu conceito não tem nada de complexo. São sequências de passos para realizar uma determinada tarefa. Nós fazemos isso fora do mundo computacional, nas mais prosaicas tarefas, como, por exemplo, arrumar a cama. Alguns desses passos envolvem decisões e desvios de rota. Uma decisão, por exemplo, ocorre quando você precisa verificar se é necessário trocar os lençóis, e, para isso, é estabelecida uma condição: caso as peças não apresentem mau cheiro ou manchas, ou não tenham atingido um determinado tempo de uso, poderão ser repetidas, e o fluxo seguirá para a arrumação da cama em si. Se for necessário trocar as peças, os passos a serem seguidos são descritos em um sub-roteiro, onde constarão as instruções para utilizar peças limpas. Não havendo peças disponíveis para a troca, o processo é interrompido, para que se possa lavar uma peça, mandar para o tintureiro ou, vá lá que seja, comprar um nova. Vamos colocar no papel:

Esse caminho composto por figuras geométricas e setas (já citei ele aqui) é uma notação padronizada para desenvolvimento de fluxogramas, uma forma de descrição de algoritmos. Cada figura geométrica descreve, por si só, uma tipificação de ação que está sendo adotada. No exemplo acima, temos os seguintes significados:

Terminais: servem para indicar o início e o fim de um processo, seja ele o fluxo principal ou algum dos secundários, como a rotina de trazer lençóis limpos.

Entrada/saída: são os pontos onde os dados do processo atuam, seja como entrada ou como saída. No exemplo, temos como entrada de dados a constatação da limpeza dos lençóis no fluxo principal e da existência de lençóis limpos na sub-rotina.

Decisão: quando é preciso optar por um de dois caminhos. Percebam que aqui nós temos o mais "inteligente" dos processos do fluxo, porque será preciso exercer uma escolha que dará uma nova realidade ao processo. Pelas regras gerais dos fluxogramas, esses processos de escolha serão do tipo Sim/Não.

Processamento: é a realização do trabalho em si: uma conta, uma ordenação, o esticamento de um lençol.

Subprocesso: é a remissão de um fluxograma para outro fluxograma, que tem seu conjunto próprio de instruções. É muito usado quando um mesmo conjunto de passos pode ser utilizado para mais de uma tarefa. A troca do lençol, no caso, pode se aplicar a qualquer cama da casa ou a um sofá usado como cama.

Interrupção: é utilizada quando alguma ocorrência leva à parada do fluxo normal, tornando impossível a sua continuação, como é o caso da falta de lençóis limpos para fazer a troca. 

Uma demonstração banal, sem dúvida, mas é sempre assim que as coisas começam. Há outras maneiras de representar algoritmos, mas o fluxograma é, sem dúvida, uma das mais elegantes e inteligíveis. Nós podemos aplicar a cada tipo de tarefa uma estrutura parecida, variando de acordo com a sua complexidade, e não somente para aplicações computacionais, mas a toda e qualquer coisa que envolva processo.

Só que nós começamos a observar, e se o fizermos cuidadosamente, que todas as nossas ações podem ser quebradas em partes menores, cartesianamente. Cada um desses pedacinhos pode ser reduzido a conjuntos de representações que denotam a existência de modelos algorítmicos, ou seja, ações semelhantes que podem ser aplicadas a várias circunstâncias. Olhamos para nossa própria realidade e constatamos a mesma coisa: uma tarefa inteira é desmembrável em inúmeras pequenas tarefas. E aí temos a pergunta que não quer calar: será que a realidade é um grande algoritmo?

Para tentarmos responder esse pergunta, precisaremos primeiro assumir que nossa ideia não é desenhar um algoritmo de uma ação qualquer, mas pressupor que ele pode ser aplicado sempre que dermos de frente com uma situação semelhante, ou seja, para cada fenômeno que se descortinar à nossa frente, haverá sempre uma sequência de passos predeterminados que serão seguidos. Claro, com a variação das decisões possíveis, mas ainda assim prefiguráveis.

Há ainda um duplo critério a ser observado. Qual a importância da escolha que devemos adotar? Se assumirmos que a realidade é um grande algoritmo, cada uma das escolhas deverá ser bem definida para que a coisa funcione: dadas tais e tais condições, a escolha sempre penderá para o mesmo lado, caso contrário, a tese do algoritmo vai por terra.

Isso é tremendamente discutível, o que personalizaria um algoritmo a tal ponto de ser, no mínimo, inútil dizer que há uma lógica fixa por trás das ações. Dou um exemplo partindo de mim mesmo. Se vocês observarem vários dos meus textos, verão que eu aplico muitos termos oriundos do italiano, como "punto e finito", "via discorrendo", "così via" e por aí vai. Isso acontece porque, além de uma mal disfarçada empáfia e de um orgulho da ascendência, há todo um móbile cultural que me conduz a mão. Idem com quem me lê. Pode ser que alguém ache que o modo como escrevo um tanto pernóstico, pode ser que precise de um dicionário, pode ser que ache um colorido especial nessas inserções, pode ser tanta coisa. Então um algoritmo para fazer uma leitura do meu texto exigiria levar em conta não somente os habituais passos, mas considerar toda a carga cultural de quem lê e de quem escreve, os tais pré-requisitos que podem mudar toda a lógica do que vem posteriormente a eles. O algoritmo não depende somente de uma, mas de todas as partes envolvidas. Percebem como isso pode levar a um conjunto de possibilidades quase infinito?

Por outro lado, se houvessem escolhas efetivas, a aleatoriedade estaria estabelecida e não faria sentido falar em realidade como algoritmos, já que seria indefinível até mesmo os pontos onde ocorreriam decisões. Pensem que estou sentado vendo TV. A cada instante posso decidir parar de assisti-la e ir fazer outra coisa. Ler, dormir, comer um rabanete, sair para a rua, tamborilar um pandeiro, acender uma vela ou tirar ouro do nariz são opções cabíveis. Pior: uma necessidade fisiológica pode me levar de bate-pronto a sair do meu estado atual. É muito difícil estabelecer pontos lógicos tão fixos assim. Mas sempre podemos tentar.

Há argumentos que podem indicar a direção contrária. Uma das melhores proposituras de quem defende a obediência da realidade a alguma espécie de algoritmo é a maneira como a seleção natural se processa. Isso porque, embora a seleção do melhor adaptado venha sendo estudada há tempos quando observamos a constituição das espécies, é perceptível que a mesma lógica opera em qualquer circunstância onde haja disputa. Há uma espécie de "seleção natural" no mundo do futebol, por exemplo. O Santos é ainda hoje tido como um dos clubes mais importantes nesse esporte porque um dia teve um time tecnicamente impecável. Fosse hoje, aquele escrete estaria todo espalhado por times do mundo inteiro, porque o fator financeiro se tornou mais definidor do critério seletivo. Houve época em que clubes com potencial monetário menor, como a Portuguesa ou o América, conseguiam sobreviver por critérios outros. Modernamente, tendem ao fim, a não ser que se apresentem como novos proponentes de alternativas mais bem adaptadas à nova realidade.

Esse modelo se aplica a incontáveis fenômenos. Tente entender por que o inglês é a língua franca hoje em dia e você perceberá que ele superou etapas por ser melhor adaptado ao mundo. Tente entender por que o dólar, e não o real, ou o peso, ou o dinar. Tente entender por que todos esses dominadores de hoje eram menos preponderantes no passado e como podem deixar de ser no futuro, e veremos o algoritmo da evolução sempre funcionando: quem se adapta melhor, permanece. Ok, ok… Pode ser que chamar esse fenômeno de “seleção natural” seja um erro, porque não há nada de natural nas línguas e dinheiros, mas todos compartilham o mesmo mecanismo de favorecimento àqueles que se adaptam melhor a um dado ambiente, e é nisso que está seu sentido natural. O mundo estava prenhe de condições ideais para que puritanos britânicos deixassem sua ilha e se transferissem para um território imenso, fértil e povoado por uma população mais frágil. De lá, o aumento das riquezas internas foi sendo um lastro para que, surgidas as guerras, emergisse uma nação poderosa, cheia de recursos para se manter e fazer manter os demais países, que lhe passaram a ser tributários. Esse é o substrato que arrastou o inglês e a cultura ianque pelo mundo.

Outros exemplos de fenômenos algorítmicos são a gravidade, o magnetismo e inúmeros outros fenômenos físico-químicos. Dadas tais e tais condições e a "magia" acontece. A própria previsibilidade do método científico dá a ideia de que há passos fixos para cada situação.

É óbvio que fica meio complicado subordinar toda a realidade a mecanismos peremptórios, novamente pela questão das escolhas. Só se esta for meramente ilusória, e cada vez que o fizermos, for inevitável que ocorresse como ocorreu. Novamente precisamos voltar para a definição de algoritmo: uma série de passos predefinidos que é utilizada para resolver alguma tarefa. Isso para evitarmos aquela romântica afirmação de que nada é por acaso, como se uma espécie de lei da atração operasse por trás dos nossos passos. Isso é muito bonito quando as coisas dão certo, mas, do contrário, vamos atrás de algum ad hoc que motive o destino infeliz, não é mesmo?

No final das contas, o ponto chave está nos losangos, ou seja, nos processos decisórios. Os outros podem ser atribuídos à velhíssima e aristotélica conjunção de causas e consequências, que, ainda que se considere a opinião de contestadores como Hume e Guilherme de Ockham, costuma funcionar belissimamente. E aí vamos pensar na proposta de Leonard Mlodinov, imaginando-nos em uma rua noturna, onde, de longe, vemos um bêbado andar à nossa frente. Cada passo que ele dá, ainda que involuntariamente, envolve uma decisão: embora tente seguir reto, ele pende ora para a esquerda, ora para a direita (como faz o Centrão). É até possível estabelecer um pensamento estatístico, mas teríamos facilidade em cair na falácia da mão quente. Do nosso ponto de vista, o fenômeno é absolutamente aleatório, podendo haver tantos passos para um lado ou para o outro, sem nenhuma previsibilidade aparente. Se ela existir, de todo modo é influenciada por fatores que independem da claudicante vontade do nosso ébrio amigo: irregularidade do terreno, umidade do asfalto, condições dos calçados, ventinho maroto a estibordo, tendência labiríntica, peso nos bolsos, joelho com artrose. Há todo um conjunto de fatores que conduz essa caminhada, cada um com um conjunto ambiental que tem suas próprias regras físicas, as quais, uma vez atendidas, farão com que o próximo passo se desenrole de uma maneira perfeitamente previsível, porque descritíveis em algoritmos. Só que essas são tantas e tantas que se torna impossível de fazer tais previsões, a não ser através do bom e velho chute.

Diante de um universo caótico, a minha conclusão pode ser um pouco decepcionante, mas está na esteira do pragmatismo: é irrelevante se a realidade é ou não um grande algoritmo. Isso se baseia na impossibilidade de perceber a quantidade de nuances que compõem a realidade. O que temos em nosso aparelho cognitivo são nossas intuições, e, ao mesmo tempo que elas podem nos conduzir a enganos, é também a maneira como chegamos até aqui na nossa aventura terrestre, e lutar contra isso não faz sentido. Se há algoritmos que regem cada um de nossos passos, eles são tantos que são indistinguíveis de uma aleatoriedade real. 

Minha (in)conclusão é essa. A não ser que eu reflita mais e mude de ideia... será que há algoritmo para isso?

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Um livro leve, sem grandes aprofundamentos, mas que demonstra como podemos nos enganar com relação ao acaso com vários exemplos.

MLODINOV, Leonard. O andar do bêbado. Como o acaso determina nossas vidas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.