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segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Tá, só não saquei bem o que é esse tal de (28 - Direito)

Olá!


Nos volteios que a vida dá, nós somos um objeto de transformação. Sendo assim, tudo o que nos rodeia e é influenciado por nós vai sendo igualmente transformado. Desse jogo de opiniões e ações brota um mundo melhor, ou não. Uma das coisas que eu mais escuto falar é que se precisa dar uma virada na questão educacional, com o que concordo plenamente. Não estou pensando nos malucos que veem sexo e comunismo por toda a atividade docente (conforme já disse por aqui),  mas há um problema fundamental, que é dizer para onde essa guinada tem que ir. Há gente que acha que a escola deve primordialmente ensinar a trabalhar, há gente que já acha que o foco deve ser no convívio, outros ainda pensam que educação corresponde a despertar de talentos. Mas há coisas mais objetivas, que podem ser mais facilmente implementadas do que revoluções culturais. Eu, por exemplo, acho que o pior déficit educacional do brasileiro não está no Português ou na Matemática, mas no reconhecimento das noções de direito, para que aprendamos primeiro a sermos cidadãos, e depois pensarmos em trabalhar ou expor talentos. Isso porque você pode rodar pelo lado que for, não há como fugir do convívio, que tem, naturalmente, certos limites, sob pena de podermos considerar a nós mesmos como feras guiadas pelo instinto. Não, isso escapa de nossa natureza, e é preciso convolar a disposição moral que nos mantém vivos em regras sistematizadas. O nome disso é Direito, e é esse o nosso tema de hoje.



O Direito é fruto da vida em sociedade. Conforme a humanidade foi se agregando ao redor de núcleos, mais e mais foi sendo necessário estabelecer regras de convívio. No início, o consenso entre os membros de uma comunidade era bastante difuso, sendo que os acordos tácitos e explícitos eram feitos de forma oral. No fio do bigode, como se dizia. No entanto, como bem sabemos, a palavra humana (e os fios de bigode) não era de todo confiável. Não somente por falta de honestidade, mas também pela dificuldade na interpretação do que se deseja e na memória de quem faz acordos. Por isso, com a evolução social, as regras passaram a ser escritas.

A princípio, o imperativo da normatização era a força, ou seja, mandava quem tinha mais "músculo". Posteriormente, com a aproximação do fenômeno religioso à política, a força saiu do poderio bélico puro e simples para ganhar o estatuto de vontade divina, o que, considerando o contexto em que surgiu, revelou-se um caminho de duas vias. Por um lado, trouxe direitos que extrapolavam a mera força, já que os mandamentos da divindade garantiam, por expressão de sua sacratíssima vontade, direitos àqueles que não teriam outra forma de obtê-los. Por outro, garantiu poder normatizador a uma nova casta: a dos sacerdotes, que aprenderam bem a se alinhar aos musculosos e compartilhar o poder. Somente bem mais tarde as sociedades se aperfeiçoaram de modo a proporcionar uma participação mais ampla na construção de uma composição jurídica, embora ainda existam sociedades teocráticas e também se veja o uso da força como fiadora das normas.

Vendo por aí, o Direito parece algo bastante simples, inerente a qualquer sociedade e, portanto, presente na vida de todo cidadão. Mas é óbvio que a coisa não é tão simples, e precisamos recorrer a outros conceitos, como ética e justiça.

Uma das discussões mais recorrentes no campo ético é como estabelecer o que é um agir correto, e, grosso modo, esse tem a ver com os benefícios de uma ação. Pode-se interpretar a sociedade como a soma dos seus indivíduos ou como um organismo próprio, mas sendo de uma forma ou de outra, o resultado que temos é o mesmo: a ação ética, via de regra, beneficia a sociedade. Isso porque se requer um equilíbrio permanente entre os diferentes membros e classes a que estes pertencem, de maneira racional e imparcial. Esse equilíbrio é o que chamamos de justiça. A tarefa do Direito seria instrumentalizar essa virtude, através não somente dos códigos escritos, mas dos exercícios das prerrogativas de petição e defesa.

Mas de onde parte essa ideia de Direito? Como nós faremos, a partir da concordância de que devem existir regras que rejam um organismo social, para balizar o que é certo ou errado, moral ou imoral, justo ou injusto? De onde vem a “alma” do Direito? É através das fontes formais de direito. É um assunto muito importante porque vai nos ajudar a compreender qual é o papel de um Estado e do ethos da sociedade na construção de um mecanismo jurídico.

A mais antiga das fontes de direito é o costume. Como é fácil de intuir, o costume é aquilo que um determinado meio social pratica quando defrontado com os eventos de seu dia-a-dia, de uma maneira razoavelmente convencional. Não se trata de um mero hábito, pois este não carrega consigo uma ideia coercitiva, do tipo "se eu não fizer tal coisa, serei penalizado de tal forma". Ou seja, o costume traz consigo uma espécie de definição de causas e consequências, e que regulam de modo informal as relações entre os membros de uma comunidade.

Poderíamos imaginar que o costume, por si só, seria suficiente para distribuir o Direito entre os membros de uma sociedade. Acontece que o costume tem uma ação marcadamente intuitiva, o que nem sempre equivale a um fazer justo. Por isso, com o passar do tempo, a mediação de tribunais compostos por notáveis e a escrituração das disposições consuetudinárias passou a ser prática mais segura. Isso dá origem às leis, e a fonte mais usual a partir da modernidade é a legislação. A princípio, com o reconhecimento do Estado como entidade à qual a população consigna a tarefa de sistematizar o seu equipamento legal, fica a cargo do poder legislativo elaborar por meio escrito todas as leis necessárias para o bom funcionamento da sociedade. Ao contrário do costume, a lei é tarefa típica de Estado, que possui não só o poder de legislar, mas de garantir a execução dessas leis e de julgar os casos em que as mesmas colocam situações de conflito.

Outras fontes são subsidiárias à lei, e atuam na sua vacância. Temos a analogia, que busca se utilizar de uma lei já existente para resolver situações onde exista algum tipo de similaridade. Um caso bastante recente foi a criminalização da homofobia com base na analogia com a lei contra o racismo. Percebam as semelhanças: um grupo social é segregado por motivo fútil, incluindo ofensas físicas e à honra, de modo a dificultar imotivadamente o seu convívio no restante da sociedade. A analogia, portanto, se presta a aproveitar legislação preexistente e similar, de modo a não se fazer demorar a feitura da justiça pela ausência de legislação. Outra fonte secundária é a doutrina, constituída especialmente pelos ensinamentos dos juristas. Apesar de não ter caráter normativo, é usada a torto e direito pelos juízes no exercício de seu trabalho, e as sentenças são povoadas de citações aos grandes mestres causídicos. Em questões onde restem dúvidas de aplicabilidade, a consulta aos acadêmicos funciona como uma espécie de busca pelo consenso, e recorda um pouco o recurso aos notáveis feitos outrora. Por fim, temos outra fonte secundária que é a jurisprudência. Nesta fonte, são utilizados os precedentes para que se dê apoio em uma causa atual. Em outras palavras, busca-se um caso semelhante no passado e aplica-se no julgamento presente, consagrando uma certa maneira de se decidir. A fonte jurisprudencial difere da analogia porque esta última aponta para uma lei preexistente, enquanto na primeira temos um julgamento anterior cuja decisão é aproveitada. Percebam como essas três fontes secundárias estão no âmbito do judiciário, cuja tarefa não é produzir leis, mas fazer julgamentos com base nelas. É por esse motivo que ficam em um nível abaixo na hierarquia de importância dessas fontes.

Tendo essas informações na mão, podemos dar uma rápida olhada nas escolas de pensamento jurídico.

O Direito não é ciência exata. E, como boa ciência humana, tem mais dificuldade de consenso do que as chamadas ciências naturais, o que lhe confere vasta gama de correntes filosóficas. São diferentes concepções acerca do modo com o qual se observam os fenômenos jurídicos, e que podem levar a interpretações diametralmente opostas de um mesmo fato. Vamos a eles.

Começaremos pelo Jusnaturalismo. Trata-se de uma corrente que entende existir uma anterioridade natural com relação às normas especificadas, ou seja, ainda antes que qualquer regra seja escrita, o homem já possui direitos. Em resumo, existe uma ordem que preexiste ao próprio Direito, que todo homem possui, independentemente de estar baixada em leis escritas. O jusnaturalismo começou com o reconhecimento de uma divindade legisladora, que seria esse elemento de anterioridade: Deus concede ao homem um mundo no qual poderá reinar; no entanto, há um conjunto de princípios que já vem no "pacote", como o direito à vida e à liberdade. Mais tarde, a divindade foi substituída pela racionalização do conceito de justiça, tornando-o laico e disponível a qualquer modelo de sociedade. É caracterizado por uma tríade fundamental: é universal, porque comum a todas as sociedades; é imutável, porque são fundamentos que são sempre os mesmos, e é perpétuo, porque são princípios válidos a qualquer tempo. Está fortemente vinculado ao conceito de costume, mesmo que use as leis em suas normatizações.

A segunda grande corrente é o Positivismo. Eu já falei sobre a doutrina de Auguste Comte neste texto, e é sobre ela que os juristas contemporâneos dele se assentaram para elaborar uma nova concepção de Direito. Para fazer um rápido recuerdo, o Positivismo trata todo fenômeno social como uma ciência, descartando qualquer ideia metafísica de seus cadernos, incluindo a noção de que há uma deidade por trás das normas. Essa cientificidade carrega consigo todas as suas características, como um objeto de estudo bem delineado, o empirismo, a verificabilidade, o processo indutivo e etc. Desta forma, o Positivismo é contrário ao Jusnaturalismo, porque o elemento abstrato é descartado nessa corrente. Em relação ao jusnaturalista, o positivista jurídico é muito mais objetivo: seu objeto de estudo é unicamente a lei escrita. Juízos de valor são coisas que tornam "bambas" as análises jurídicas, primeiro porque são subjetivos, e se deixam levar pela interpretação individual; e depois porque afetam uma realidade que, no fundo, é mutável, não havendo sentido na fixidez do ordenamento jurídico. Em suma, o Positivismo trata da lei escrita, com normas impostas pelo Estado, o que dá um maior nível de segurança jurídica.

No esteio da novidade do Positivismo, originaram-se muitas escolas da filosofia do Direito, sempre procurando manter a sua espinha dorsal. Uma das mais significativas é a Escola da Exegese. O grupo ficou conhecido por este nome muito utilizado nos círculos religiosos por conta dos seus propósitos similares. Um exegeta é alguém cuja função é dar interpretações a textos específicos (exegese, palavra grega, pode ser traduzida como "colocar para fora"). A diferença é qual texto deve ser interpretado. No caso, os textos das leis. Isso porque os membros desta escola entendem que as únicas fontes de direito válidas são as normas escritas, e que, com base em um racionalismo surgido a partir da Revolução Francesa, temos a existência de uma espécie de legislador universal, uma entidade abstrata que, agindo de acordo com a razão, sempre redundará na melhor norma possível, e restará fazer a sua correta interpretação, a tal da exegese. A análise então passa para o campo gramatical e filológico, na busca de um sentido literal e totalmente transcrito pela lei. O motivo pelo qual esta vertente se apoiava unicamente na letra seca da lei, descartando por completo o direito natural, não tem a ver com uma suposta dureza de coração, mas com o fato de que somente o preto no branco garante segurança jurídica, ao contrário de apelos aos direitos divinos por uma autoridade monárquica, por exemplo.

A seguir, podemos falar sobre o Normativismo Jurídico. Seu principal papa, o filósofo austríaco Hans Kelsen, encampou os princípios positivistas e definiu cientificamente o objeto de estudo do Direito: a norma jurídica. De certa forma, procura isolar esta nova ciência jurídica de todos os outros elementos que se possam confundir com ela. Embora seja certo que a norma jurídica possa ser vista do ponto de vista hermenêutico, onde tem influências históricas, sociais, filosóficas e políticas, o que Kelsen e os membros dessa corrente querem é dar uma abordagem que se assemelha mais a uma fenomenologia, mirando seu objeto de estudo despido de suas capas adjacentes.

Os normativistas enxergam uma divisão na realidade que se desenrola no mundo: uma realidade fática, que traduzem as coisas como são, e uma realidade formal, deontológica, que fala em como as coisas deveriam ser. É nesse segundo âmbito que vive o Direito, um universo estrutural que não se confunde com a outra realidade. Dessa forma, o Direito se exibe como estrutura, de modo a constituir uma espécie de edifício em aspecto piramidal, onde cada norma se encadeia à outra em uma hierarquia. Pegando como exemplo a estrutura legal brasileira, temos uma lei maior, que chamamos de Constituição, da qual nenhuma das demais disposições legais podem estar desligadas. As emendas estão relacionadas obrigatória e diretamente à Constituição, já que a emenda sem constituição simplesmente não existe; ela ganha força constitucional na medida em que se integra à mesma. As leis complementares são subordinadas à Constituição porque são determinadas por esta para que se aperfeiçoe justamente o seu cumprimento. Seguem as leis ordinárias e as leis delegadas, pelas medidas provisórias, que têm efeito imediato por período determinado, e finalmente temos os decretos legislativos e as resoluções. Mas e a própria Constituição, se subordina a algum outro tipo de norma? Na filosofia dos normativistas, há ainda um outro degrau que vai acima da Constituição, que eles denominam de norma fundamental. Esta, ao contrário de todas as demais, não é uma lei escrita, e é totalmente abstrata, consistindo na aceitação do sistema jurídico do país, como ocorre com o Contrato Social descrito pela turma de Rousseau, Locke e Hobbes. Em outro exemplo, podemos pensar em uma pessoa religiosa, um cristão, digamos. Seu texto sagrado é a Bíblia, que contém livros, capítulos e versículos, hierarquicamente dispostos no volume maior. Mas, enquanto para um cristão esse é um livro sagrado, para um ateu tem valores que não passam de históricos ou literários. Quem atribui valor de lei à Bíblia não é uma determinação escrita, mas a confiança de que ela representa um código válido para a fé dessa pessoa. Assim é a norma fundamental. Da mesma forma que aceitamos implicitamente as regras de convívio social, também implicitamente reconhecemos o ordenamento jurídico como plenamente válido. Ou seja, não há uma lei que nos diga que devemos obedecer às leis, porque esse já é um pressuposto de validade de todo o sistema normativo.

Por fim, vamos falar sobre o Sociologismo Jurídico. Na mão contrária ao Normativismo, e no embalo de outras correntes menores, como o Historicismo, que veem a transformação das leis no transcorrer do tempo, os membros deste grupo são sociólogos que inserem o fenômeno jurídico no conjunto dos fatos sociais, o seu objeto de estudo específico. Eles entendem que, como não há direito fora das sociedades (esta corrente também é positivista), não há que se falar em normas jurídicas como um elemento estranho a análise social. Apenas para recordar, fato social é o objeto de estudo da Sociologia. Na sua metodologia, são as coisas que podem ser analisadas como qualquer fenômeno científico, mais especificamente as ações e representações em que existe uma coação, uma obrigação de fazer ou não fazer.

O Sociologismo Jurídico acreditava, em oposição às correntes que davam a lei como suficiente para compor o organismo jurídico, que a jurisprudência deveria ser amplamente utilizada. Isso porque, no seu entender, o legislador universal era uma ilusão, tendo em vista a impossibilidade, mesmo com o pleno uso da razão, de se abarcar a totalidade das circunstâncias da vida social através da lei.

Existem outras vertentes da filosofia jurídica, mas acho que por ora basta, para não ficar muito maçante.

Meu filho é advogado e manja de todos esses paranauês. Normalmente eu pediria para ele revisar este texto, só que hoje em dia ele está morando bem longe, e está a mil por hora para juntar um pouco de grana e casar. De toda forma, espero que tenham gostado, porque é uma daquelas áreas contra a qual temos um monte de visões equivocadas, e que é muito interessante por si só. Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

Gostei um bocado do canal do professor Ronaldo Bastos, muito didático e que trata de maneira bastante filosófica sobre o assunto.

https://youtube.com/user/ronaldobastosjunior/playlists

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Pequeno guia das grandes falácias – 48º tomo: a petição de princípio (petitio principii) e um pouquinho sobre inversão de argumentos e terra plana

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

(Pessoas, antes de começar, quero informar que fiz uma grande confusão com essa temática há um tempo atrás, quando publiquei este texto. Não gosto de modificar minhas postagens, prefiro que fiquem registradas minhas impressões de acordo com a passagem do tempo. Mas aqui não se trata de parecer ou ótica, mas de erro mesmo, que vamos dirimindo à medida em que vivemos e aprendemos. Já fiz os ajustes necessários lá e peço desculpas a quem se desinformou com minhas incorreções. Procurarei ter mais cuidados doravante).

Já falei muitas coisas sobre minha história neste humilde espaço, desde a minha mais tenra infância até os dias atuais, sem nenhum tipo de linearidade. Essa estrutura caótica se deve à adequação do tema da postagem ao episódio que uso, muitas vezes, para ilustrar determinado pensamento. Por isso mesmo, às vezes me repito, como farei agora. Eu já mencionei anteriormente que, em minha juventude, eu tinha o sonho de fazer carreira musical, neste e neste textos. Seguia não só o desejo de impressionar as menininhas, mas também uma tendência familiar, que gostava de se juntar à mesa para batucar velhos sambas-canções e boleros, o que faziam muito bem, especialmente meu padrinho, com um vozeirão de barítono burilado nos velhos clubes do Brás e da Mooca. Dos que nada cantavam, havia a extração do ritmo, utilizando caixinhas de fósforo e latinhas vazias à guisa de agogô. Os mais arrítmicos eram eu e meu pai. O velho nem tentava acompanhar, sabedor da inépcia de seu compasso, mas eu, criança inconveniente, queria participar da roda por toda lei, mas atrapalhava mais do que abelha no chá de gengibre. Davam a mim um ralador de queijo e uma colher de pau, para simular um reco-reco, e com isso eu me divertia iludido.

Anos mais tarde, é com esse painel que minha mãe aceitou, com um misto de desânimo e indulgência, o pedido de me disponibilizar o velho violão que ficava guardado no guarda-roupa de meu já falecido avô, pouco confiante na minha capacidade de transformar em música a minha conhecida impaciência. Sozinho, eu mostrava uma faceta que até eu mesmo desconhecia até então, a de me compenetrar no aprendizado e entender coisas por si só. E, dessa forma, comecei a tocar uma coisinha ou outra, com a pouca técnica que me caracteriza até hoje. Quebra um galho nos parques da vida, ao pé de uma árvore, cantando canções que todo mundo conhece na minha geração.

Mas eu não estava contente com as mesas da família. Eu queria me aperfeiçoar um pouco, e, ao menos, aprender a afinar meu próprio instrumento. Por isso não me considero completamente autodidata: fiz umas quatro aulas de teoria com um amigo, o Nivaldo. É desse pequeno, porém proveitoso aprendizado que comecei não só a afinar, mas também a dedilhar e usar palheta. O resto foi por minha conta e das revistinhas de cifras.

Outra coisa que eu aprendi com meu camarada representou uma virada em minha incipiente carreira: um contrabaixo possuía uma afinação correspondente às quatro últimas cordas do violão. Já trabalhando, fiz o primeiro crediário da minha vida: um baixo Retson e um amplificador Check Mate. O primeiro era pouco mais que uma tábua com cordas, e o segundo tinha o colorido sonoro de um radinho de pilhas, mas eu fiquei exultante com minhas aquisições, e após pouquíssimo tempo de adaptação, já fui me candidatar a fazer parte de alguma bandinha que quisesse arriscar a sorte.

Foram poucas as tentativas antes de concluir que eu não ia para lugar algum, e que o melhor a fazer era me dedicar à faculdade. Na primeira foi o Carnívoro, que, apesar do nome thrash metal, era um power trio em que tocávamos velhos hard rocks da década de 70, e onde aprendi também a tocar bateria. Acabou rápido, com a mudança dos irmãos guitarrista e baterista para uma cidade do interior, deixando-me a pé. Depois, fui para um conjunto que formamos após uma jam de tarde de domingo. Um pessoal mais completo, já com duas guitarras e um vocalista, mais voltados para o emergente pós-punk, cujo nome era Tropa de Choque. Participamos de alguns festivais e arrumamos dois barzinhos para tocar, todos nós com documentos devidamente falsificados. Desisti quando o rumo da galera estava mais dirigido para substâncias do que para música. Fui então tocar com um grupo já formado, o Sentença de Fogo, que tinha um problema curioso: tinham uma bateria, mas não tinham baterista. Explico. O baixista era, ele mesmo, o proprietário do instrumento de percussão. Como aqueles homens-banda ainda eram fenômenos de circo, já era preciso arrumar quem assumisse o papel de baterista. Eu fui um belo dia para assisti-los e acabei resolvendo dois problemas, assumindo o posto de baterista e também de vocalista, já com o compromisso de ceder os postos assim que conseguissem quem os fizessem – o que eu queria mesmo era continuar tocando meu baixo. É que há problemas em ser vocal e batera ao mesmo tempo. Primeiro, a pouca mobilidade. A não ser no intimismo de uma bossa nova, é esperado de um vocalista que haja muita interação com o público, o que não é muito possível para quem está sentado em um banquinho, atrás de uma parede de tambores. E há também a questão da dificuldade de se tocar e cantar ao mesmo tempo. Exceção feita a poucos gênios, dá para cantar e tocar confortavelmente apenas nos grooves. Na hora das viradas, vira um embolo só. As opções não são animadoras - ou se evitam performances arrojadas, tirando a graça da condução, ou se fazem vocalizações extremamente simples, tornando o resultado final eternamente ingênuo. Quem dera eu fosse Peter Hoorelbeke ou Lee Kerslake para conseguir fazê-lo com tanta maestria, mas eu sou eu. A coisa acabou uns seis meses depois, da forma que eu falei: com o recrutamento de um baterista*, minha missão acabou naquela casa.

Isso tudo levou poucos anos, mas me deu uma certa carguinha de experiência, de modo a permitir voos pouca coisa mais altos, as bandas Mosaico e Exílio. Da primeira, uma experiência no progressivo, com um quarteto de baixo, bateria, guitarra e flauta, poucos vocais e com muita incursão pelo jazz. Por incrível que pareça, a banda nasceu para musicar uma peça infantil!!! A trupe que a encenava era a personificação da piração na batatinha, todos amadores com um jeitão meio hippie, meio rastafari. Era um musical do tipo proteção à natureza, onde os personagens cantavam músicas realmente etéreas, e havia um punk malvadão que queria destruir tudo. Nada de novidades, a não ser a intenção de se usar músicas muito mais sofisticadas. Eles usavam músicas em background e faziam dublagens, e o projeto era ter uma banda ao vivo. No caso, nós.

A coisa não deu muito certo. Primeiro, porque a peça era ruim para caralho. Depois, porque criar as músicas no tempo que os atores queriam era coisa infactível. Por fim, a casa dos ensaios recendia a maconha, o que, na época, ainda era uma chave de cadeia daquelas. A casa era de um casal que tinha erva por todos os potes… eles fumavam sem parar, e todas as vezes que íamos lá, ficávamos se borrando todos, esperando a batida dos hômi na porta. Depois, ainda tocamos juntos por um tempo, mais para fins recreativos, até cada um ir para seu lado.

Minha experiência mais séria veio antes disso. Estando "desempregado" do Sentença, fui convidado para fazer parte de uma banda cover do Raul Seixas. A coisa não rolou, por conta da ruindade da galera, mas o batera era promissor e propus a ele um empreendimento novo, só com composições próprias. Eu, Maurício, Moacir e Edson éramos os gajos. Um conjunto clássico de duas guitarras, baixo, bateria e todo mundo no coral. Fazíamos algo próximo do hardão setentista, obtendo distorções mais sobrecarregando as válvulas do que usando pedaleiras (até por conta da limitação dos recursos). Nossas letras falavam essencialmente sobre angústia e desejo de liberdade, com uma boa dose de poesia e filosofia.

O processo criativo tinha um esqueleto fundamental. Basicamente, algum de nós trazia um tema melódico e ficávamos brincando por horas em cima do mesmo, até que dele saísse um arranjo melhor elaborado. Um tempo depois, já com a música consolidada, algum de nós criava uma letra e inseria as partes em dueto. E esse era o "processo produtivo" mais comum – primeiro a música, depois a letra, e por fim a cerejinha do bolo: o nome da tal canção.

Evidentemente, essa ordem poderia ser subvertida. Às vezes, uma boa poesia podia nascer, pedindo para ser musicada. Por vezes, era fácil de encaixar uma melodia que nascesse igualmente de forma autônoma, mas o mais usual era que houvesse problemas, tendo a necessidade de se fazer adaptações, cortando algumas sílabas aqui, umas palavras ali, frases inteiras acolá. Dificilmente era necessário fazer ajustes quando a música nascia primeiro.

Mas havia casos de inversão mais radical, onde a trabalheira (e a sensação de “forçação”) era mais acentuada. Isso ocorria quando a obra começava pelo fim, ou seja, pelo título. Em alguns casos, isso era compreensível. É o que aconteceu com a música tema da banda, que não poderia ser outro a não ser "Exílio", ora pois. Era um rockão com baixo marcapasso bem socado e muito bumbo, e uma pá de acordes dissonantes, que ia variando de andamento, passando para um cavalgado levado só no power chord e meu vocal rasgado: "exilado, solitário, essa é a minha sina…". Putz, pensando bem, era uma PUTA música. Não tinha nada de delicada e chamava muito na emoção, principalmente na hora do solo. Mas esse, como eu disse, era um caso de exceção. Músicas como “Garoa na Serra”, “Todos os Caminhos Levam à Alvorada” e “Muito Além do Porto” eram apenas bons nomes, que, se viraram músicas decentes, foi mais pela via do improvável. Isso porque as coisas têm um caminho mais ou menos certo a seguir, e tudo o que foge a essa rota tem cara de casa que começou a partir do teto.

Bom… isso não é problema de maiores consequências quando falamos de arte, mas eu gastei todo esse português porque eu queria demonstrar que há um sentido certo nas coisas, e que quando não o seguimos podemos ter problemas. Não fosse assim, não haveria razão para utilizarmos metodologias, o que nos leva de imediato a lembrar de pesquisa acadêmica, em especial a científica. Por este motivo, há alguma coisa de errado quando tentamos fazer a coisa ao contrário.

O desenvolvimento de uma proposição segue um rito. A partir da observação de um fenômeno qualquer, que nos desperte a curiosidade e que clame por explicação, buscamos coincidências, repetições e anterioridades que nos permitam formular uma hipótese. Porque aconteceu isso, aquilo e o outro, o desfecho foi tal. Depois disso, procuramos testar essa hipótese, obtendo dados e mais dados que a corroborem ou refutem. Quando pensamos no silogismo aristotélico, esse é o espaço em que formaremos as premissas, e delas extrairemos as conclusões. É assim que funciona. Eu só tenho conclusões se eu tenho dados que confirmem minhas premissas.

Só que essa técnica não é especialmente boa para quem tenha uma conclusão que é tida como verdade absoluta. Em um sentido normal, que parte das premissas para a conclusão, não há nada de errado se essa última não se confirmar. O que acontece, neste caso, é que mudamos a conclusão e pronto. Só que isso pode confrontar aquilo que está descrito em um livro sagrado, e aí temos gasolina no incêndio. As pessoas dificilmente abandonam o conforto de suas convicções, mesmo confrontadas com uma realidade muito divergente de suas crenças. É o que já falei neste texto, por exemplo.

Esse mecanismo funciona terrivelmente bem com religiões que têm suas verdades prontas e que não podem ser mudadas. Tem-se uma conclusão, e procura-se adequar as premissas de acordo com ela. O rito é modificado, é invertido. Na Ciência, obtemos dados para tirarmos conclusões; na Religião, temos conclusões, e procuramos dados que as corroborem. Veja-se Evolução, veja-se idade da Terra, veja-se surgimento da vida. Veja-se tantas e tantas outras.

Isso funciona com absolutamente qualquer religião? É claro que não. O Catolicismo, por exemplo, convive muito bem com teorias como o Big Bang e o Evolucionismo. Deus é o motor que lhes toca e pronto. Mas há gente que é muito mais literalista, e que precisa cumprir seus escritos ipsis litteris, sem tirar nem pôr. Para isso, dentre outras, praticam uma falha argumentativa denominada petitio principii, a petição de princípio. Isso funciona aplicando-se nas premissas os mesmos valores que se aplicam à conclusão, ou seja, a conclusão já é apresentada como verdadeira em uma das premissas do argumento. É um final (conclusão) que demanda um ponto de origem, uma explicação que lhe dê sentido, que pede um princípio. Um belo exemplo está nos nossos divertidos terraplanistas, que inferem, por exemplo, que as estações do ano não podem ser explicadas pela variação posicional do eixo da Terra. O Sol teria um tamanho muito menor do que supomos e transita ora por sobre o hemisfério norte (mais interno), ora pelo hemisfério sul (mais externo), explicando a variação de temperatura. Adota-se de forma não experimental premissas (sol pequeno, movimento concêntrico ao centro da Terra) que, adotadas como verdades, confirmam a conclusão.



Aliás, foi lançado um filme sobre a “teoria” da terra plana que é muito interessante do ponto de vista antropológico (recomendação mais abaixo). São pessoas que se contentam muito com a fama que obtém, mesmo que seja de excêntricos, e, se tem um mérito, é o de ser contestadores. Nenhum conhecimento pode ser considerado confortável, e os terraplanistas fazem de fato os cientistas se exercitarem nas explicações, mesmo que entremeadas a frouxos de riso. É interessantíssimo ver como nossos anti-heróis se debatem consigo mesmos a cada vez que um experimento deles fracassa. É giroscópio, é feixe de laser, é raio de luz, tudo dá errado e esse erro é atribuído a furos na condução da experiência, e não a provas de que a tese é simplesmente errada. Tenha diante de si um mundo redondo e todas essas experiências funcionam. E é tão simples se convencer da esfericidade da Terra... Basta usar a analogia: se todos os astros semelhantes ao planetinha são em forma de globo, por que somente ele não seria?

Mas a petição de princípio não é um fenômeno simples, que é utilizado de forma simplória em pensamentos estapafúrdios. Há debates intensos em alta Filosofia da ocorrência desse erro de raciocínio. Aliás, põe alta nisso. Vou dar um exemplo de como Schopenhauer contestou a Filosofia Moral de nada mais, nada menos que Immanuel Kant, a quem considerava um mestre.

É preciso recordar que Schopenhauer tinha mesmo um jeitão de outsider, não se importando em ser politicamente correto ou simpático com quem quer que fosse. Por isso mesmo, não se furtou em acusar de petitio principii ao argumento do imperativo categórico kantiano. Bem lembramos que este nos diz que toda nossa ação ética deve ser redutível a uma sentença que possa ser aplicada universalmente. Pois bem. Kant dizia que a ética deveria ser tão racional e desprendida de elementos metafísicos quanto qualquer outro juízo poderia ser. Por isso, quando defrontados com uma situação que nos desafia, temos que ter em mente uma lógica do dever: independentemente de qualquer conotação salvífica, o ser humano tem a capacidade de fazer juízo distintivo entre o bem e o mal. Sendo assim, apesar de sua liberdade, um homem DEVE impor a si mesmo a conduta mais racional, ou seja, aquela que penda para o bem. E o imperativo categórico torna-se uma formulação que permite levar essa disposição moral à prática. Por esse motivo, a moral como valor tem a forma de uma lei e uma necessidade absoluta.

Pois muito bem. Schopenhauer diz que há um engano neste argumento. Para ele, a lógica kantiana não prescinde de uma forma teológica, partindo da premissa de que um dever é uma imposição. A ética deontológica só faz sentido se pensarmos na existência de uma prescrição, que, no final das contas, não tem como partir de outro que não seja uma espécie de instância superior, um deus. Do contrário, não é possível se falar em liberdade de escolha. Por este motivo, a ideia de que a ética se submete a leis e que tem necessidade absoluta constitui uma assunção de verdade que se presta a dar guarida ao imperativo categórico. Em miúdos, Kant assume que as leis morais são universais e necessárias. Schopenhauer, um ateu convicto e militante, entende que a lei moral absoluta não tem como existir, haja vista ser o homem, um ser natural submetido pela natureza e pela vontade que lhe guia a razão de agir, só tem os indivíduos de sua espécie como representantes da escolha ética. Estando submetida a indivíduos, que tem cada um suas razões de agir, torna-se insubsistente uma aferição empírica dessas escolhas, já que cada um o faria a partir de sua própria ação, e, sendo assim, torna-se impossível estabelecer leis de conduta. Para Schopenhauer, a lei do dever não é verdadeira, e Kant somente a utiliza para fundamentar a tese do imperativo categórico.

Não vou deixar aqui uma opinião sobre qual desses cachorros grandes está certo ou errado. Meu objetivo era só dar um exemplo clássico de petição de princípio, e demonstrar como discussões sobre argumentos não são meras birrinhas entre comadres de vila. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Primeiro, o documentário da Netflix. Não tenho como deixar de rir ao ver os fracassos de suas experiências, mas a obra contém uma grande advertência: a Ciência distanciou-se de tal forma do grande público que permitiu o surgimento desse tipo de contestação. O cientista ficou antipático, dono de um linguajar hermético e que mais parece um líder de seita. A Ciência ficou menos crível que qualquer explicação mirabolante. E, sim, isso é culpa dos cientistas. Cabe rever a posição e educar cientificamente as pessoas.

CLARK. Daniel J. A Terra é plana (Behind the curve). Filme. Estados Unidos: Netflix, 2018. Cor. 96 min.

Schopenhauer faz suas críticas a Kant na forma de ensaios, que foram coligidos na obra abaixo.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

* (um parêntese a se abrir. Sempre foi difícil de se arrumar bateristas pelo simples fato de ser um instrumento caro, mesmo os mais ordinários. Hoje em dia, há mais um agravante pelo fato da migração do povo para os apartamentos, onde as regras de silêncio são rigorosas. Em outra mão, há tanta possibilidade de se construir samples em baterias digitais que um batera em carne e osso praticamente ficou dispensável. Nesse ponto de vista, sou um absoluto reacionário).

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Sobre essência humana e política em Aristóteles, e como a finalidade amarra ambas, ou: despojos de carteiras velhas que nos fazem recordar de antigas lições de Filosofia

Olá!

Não sei quantas vezes troquei de carteira na minha vida. Nunca tive uma preferência fixa, pelo simples fato de ser um artigo destinado a ficar escondido no bolso, portando coisas que tenho em pouca quantidade, como dinheiro. Desta forma, o material a ser empregado pode ser qualquer um: plástico, tecido, emborrachado, couro e suas imitações de napa ou korino©. Por força dos malfazejos trajes sociais que me sufocam e se me impõem, sou quase compelido a usar destas últimas, que são razoavelmente resistentes, mas que estão longe de ser eternas. Acontece que eu só detecto o seu limite por elementos externos, como a grita da patroa admoestando minha deselegância ou o estranho fenômeno da osmose das moedas, que insistem em escapar do artefato para o fundo dos bolsos. Esse é o momento de expelir a velharia e transferir seu conteúdo para um novo lar.

Isso geralmente acontece em dia de lavoro, quando estou me preparando para a batalha, e o câmbio se dá em bloco – tudo o que está na carteira pretérita vai de comboio para a futura. Só que desta vez resolvi fazer a mudança em modorrento domingo, e por isso fiz uma inspeção de crivo mais crítico na papelada que não representa aspecto monetário. Tinha de tudo um pouco – a CNH, cartão de convênio, bilhetes com recados já vencidos, alguns ingressos de partidas de futebol, vias de pagamento completamente esmaecidas e um praticamente extinto cartão telefônico, do qual não faço a menor ideia de funcionalidade. Quase tudo foi para o lixo, mas havia algo que tomava um bom volume: uma folha de caderno totalmente amarelada, já puída nas dobraduras e escrita a lápis em um nível de contraste que a tornava praticamente ilegível:


Demoro um pouco para decifrar a caligrafia apressada, mas relembro do caso. Era mais uma das vezes que um dos meus aflitos afilhados me procurava para dar umas dicas em suas tarefas de Filosofia. De cabeça, lembro de dúvidas sobre Hume, Rawls, Borges e mais alguns outros, que nem sempre consegui responder de bate-pronto. Desta vez, tinha diante de mim duas perguntas (e respectivos subquesitos) sobre Aristóteles. Como bem sabemos, há pouca coisa que se possa responder em duas ou três linhas sobre o filho mais célebre de Estagira. Por isso, e se não me engano, fiquei com as questões para preparar uma aulinha sobre o tema, ao invés de entregar a sopa pronta. Isso é bom para a janta, não para o aprendizado.

Como este é um espaço que mescla Filosofia e dia-a-dia, resolvi compartilhar não somente o prosaico evento, mas também a resposta dada, ainda que não a tenha fechado em 100%, para que a ínclita pupila desse alguma ativação às próprias sinapses. Eis aí o objeto arqueológico, consistente nas perguntas e derivações:


Como se pode depreender, eu tinha razão em dizer que há um limite para sintetizar coisas complexas, e a ontologia aristotélica não é papo de boteco. Então nós vamos ter que destrinchar cartesianamente os temas propostos. Vamos lá!

1) Por que razão para Aristóteles, para se conhecer o que uma coisa é, é necessário partir do conhecimento de sua essência? Como a essência se exprime? Qual a relação entre essência e finalidade?

Essência... Não dá para começar a falar sem esclarecer o que é este conceito em Aristóteles. Na antiga Grécia em que se encontrava nosso herói, existiam duas matizes de escopo opostos no que diz respeito à visão metafísica: o transformismo de Heráclito e o imobilismo de Parmênides. O primeiro é o dono do famoso pan ta rei, o fluxo eterno, onde nunca se banha duas vezes no mesmo rio. É a filosofia do devir, ou seja, da afluência contínua das coisas e da ininterrupta transformação do universo. Nunca somos os mesmos – a cada dia que se passa estamos diferentes, nem que seja em mínimos detalhes, nem que seja apenas para estarmos um dia mais próximos do fim. A grande característica do Ser heraclítico é o constante vir-a-ser, a expectativa de que o futuro representará um movimento dialético entre contrários – o quente esfriará, o tenro enrijecerá, o muito diminuirá. Essa é a sua única permanência, e, por isso mesmo, Heráclito via no fogo o elemento de composição do cosmos, a arché (ainda que no plano simbólico). Por outro lado, o pensamento parmenidiano via o devir como uma mera ilusão dos sentidos. Para ele, a realidade se cinde em uma bifurcação: a via da verdade (aletheia) e a via da opinião (doxa). Como a segunda se obtém de maneira muito mais pessoal e perceptiva, temos a tendência de encará-la como a realidade, e é aí que entra a mecânica ilusória dos sentidos, já que cada um de nós introjeta o mundo que nos cerca de maneira peculiar. Há uma realidade subjacente, no entanto, de modo que somente o intelecto puro pode captá-la. Parmênides baseia então sua ontologia na dicotomia Ser/não-Ser – o Ser é tudo o que se pode positivar de um objeto, e o não-Ser é a sua ausência ou oposição. De certa forma, Platão, o mentor de Aristóteles, seguia essa mesma lógica. A essência de um Ser estava apartada do mundo sensível, que nada mais era do que cópias plasmadas de um modelo ideal, este sim representativo das essências, e que habitavam fora do universo da percepção.

Aristóteles discorda de ambas as escolas, embora sua filosofia utilize seus elementos. Por exemplo, não se alinha à fisicalidade do devir de Heráclito, que diz ser tudo variação material. Por outro lado, também não entende que exista uma instância em separado, como queria Platão, que dissociasse os objetos sensíveis de suas essências. Ele dizia que a essência de cada Ser poderia ser obtida dele mesmo, sendo desnecessário fazer a escalada dialética tão cara aos seus antecessores.

Sendo assim, existe uma essência possível para Aristóteles? Sim, é claro. Na verdade, ele concilia tanto o imobilismo quanto a transformação. Para ele, a essência de qualquer Ser, para ser captada, precisa passar por um longo processo de indução, sua ferramenta lógica, onde se percebe a repetição de características sem as quais um objeto perde seu sentido. Por exemplo, uma pedra possui características que podemos encontrar em qualquer uma delas: a solidez, a frialdade, a ausência de movimento espontâneo, a ausência de vida, a resistência a impactos, a possibilidade de ser lapidada, entre outras. Dispara-se um processo indutivo e verifica-se a repetição de tudo isso em qualquer pedra que se tenha à frente. Enquanto nada se contrapor, podemos dizer que encontramos a essência do ser pedra, uma união entre a matéria que lhe compõe e a forma que esta adota. No entanto, é preciso observar que certas características são circunstâncias, e não essências. A cor, e.g., é um desses casos. Há pedras de todas as cores, inclusive mescladas. Ser azul, neste prisma, não é essência da pedra, mas uma circunstância, uma contingência, um acidente. Mas olha que legal que é a dinâmica das transformações. Sim, é da essência de uma safira ser azul, mas não de uma pedra. Deu para entender a diferença?

Além disso, é preciso atentar à forma que uma pedra adota. Se você possuir um pingente de safira em forma de peixe, isso não significa que esta se tornou um peixe – ela é uma pedra que foi lapidada nesta forma, e nada mais. A essência do peixe tem muitas outras coisas além da sua forma.

Disso tudo, podemos entender que a essência de alguma coisa, na visão aristotélica, tem tudo a ver com a matéria que lhe constitui e com a forma que adota. Isso tudo é imutável, e Aristóteles dá o nome de ousia, ou substância. Só que as coisas não são só substância. Mudam, e, se mudam, como podemos em falar em substância, essa forma e essa matéria que permeiam todos os seres? Como podemos pensar em uma árvore quando ela ainda é uma semente? É aí que entra o devir de Heráclito. Na transformação, reconhecemos a presença da essência porque um objeto já carrega consigo a possibilidade de se transformar em outro. A semente tem em si a chance, a oportunidade, o potencial de se transformar em árvore. A semente é a árvore em potência, e a árvore é a semente em ato, a semente atualizada, e que, por sua vez, é a lenha em potência, que são as cinzas em potência, que é o fertilizante em potência, que é de onde novas sementes brotarão para ser árvores em potência. No fluxo do devir, a potência é o vir-a-ser, e o ato é o presente.

Por fim, é preciso pensar que todo esse movimento tem por trás de si um motor, que Aristóteles chama de causalidade (leiam mais aqui). Uma causa eficiente dá início a uma cadeia de consequências, agregando um material com uma forma específica. O joalheiro eficiente usa a matéria safira e lhe dá forma de peixe. Faz isso gratuitamente? Não. Faz para embelezar uma mulher, para exercer sua arte, para passar tempo, para ganhar sua vida. Ou seja, faz por uma finalidade.

Aristóteles entende que esse fim é um dos autênticos motores pelos quais a natureza se desenrola. Tudo tem seu fim, e compreendê-lo é o objetivo da teleologia. Os fenômenos não são vazios de propósitos, sob pena de que o ciclo de causas e efeitos não tenham um sentido apontado a partir de si, e esse sentido é a sua finalidade. Faz parte da essência dos seres ter um fim, e isso é o que nosso bom velhinho chamava de causa final. Guardem bem isso que eu vou usar na próxima resposta. Tá bom assim? Dei uma rota? Então vamos para a segunda questão:

2) Qual relação existe entre a afirmação de que o homem é um animal racional e a de que ele é, por natureza, um animal político? Por que um homem que naturalmente viva fora de uma comunidade é um bruto ou um deus e é chamado “homem” por mera analogia?

Bem... acabamos de falar sobre essência, e não vamos largar do conceito. À pergunta “qual é a essência do homem?” podemos responder de diversas formas. É um ser vivo, vertebrado, aeróbio, que anda tipicamente em posição ereta, oriundo de um pai e de uma mãe que lhe doaram gametas, et cetera. Só que nem só de forma e matéria devemos entendê-lo, na visão aristotélica. Ele mesmo indicava que havia uma causa final a mover o ser humano, que é a eudaimonia, ou seja, a felicidade (vide). Mas existem outras características intrínsecas aos bípedes implumes. Uma delas diz respeito à sua racionalidade, em outras palavras, à capacidade de desenvolver encadeamentos lógicos, inclusive prospecções que pudessem delinear eventos futuros com base na observação. Outra nos remete a uma de suas causas formais, ou seja, à maneira como os homens se organizaram em sociedades. A condição de racionalidade humana lhes demonstrou que viver em grupo era mais proveitoso do que uma condição de isolamento. Ser frágil, a divisão de tarefas traz a ele maiores chances de sobrevivência em meio hostil. Sendo assim, a essência (olha ela de novo) de uma sociedade nos diz que ela obrigatoriamente é um consórcio de pessoas; não existe sociedade de um homem só. Portanto, os relacionamentos interpessoais são necessários, e não acidentais. Essa teia de relacionamentos exige de cada indivíduo uma elasticidade entre exigências e concessões, e é nessa movimentação (ops! devir!) que a vida em comum se torna possível. Enfim, a política, essa atividade tão mal falada em Terra de Santa Cruz é tão humana quanto sua carne e seus costumes.

Estamos em uma época do auge da democracia grega. Pela primeira vez na história, a vida em cidade (polis), uma criação tão humana, passa a ser um distintivo tão forte da diferenciação entre natureza e cultura. Um homem fora de uma sociedade é uma fera ou um Deus, diz Aristóteles. Isso porque o isolamento faz com que se perca a essência humana. Um homem que é tão intratável que não tem como se limitar diante dos relacionamentos sociais tem a essência da fera, não do homem; ou alguém tão autossuficiente que não necessite destes mesmos relacionamentos igualmente tem a essência do deus, não do homem. Em ambos os casos, temos uma essência diferente daquilo que induzimos ser comum a todos.

Deste jeito, o homem apolítico tem a forma e a matéria de ser humano, mas algo lhe escapa: sua própria teleologia. É na polis o espaço vital por excelência para que exerça o bem maior, a vida melhor, a eudaimonia. O bruto vive pelo instinto, o deus vive pela independência; o primeiro não chegará a bem algum, a não ser a própria sobrevivência, e o segundo já atingiu sua própria insubmissão. Não são homens, e não lhe descaracteriza se vivem apenas por si.

Tá bom assim? Eventualmente, se eu encontrar mais alguma destas perdidas por carteiras, sacolas, cadernos ou outros continentes, volto a postar por aqui. Eu sei que tem, e qualquer hora eu acho. Até lá. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Os tratados que abordam a questão do Ser em Aristóteles já foram tratados neste espaço, mais especificamente neste texto. Por esse motivo, vou recomendar o livro que dá base à segunda pergunta. É fundamental para quem queira trilhar os caminhos da Filosofia.

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2018.