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segunda-feira, 23 de abril de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (05 – Gnosiologia)

Olá!


Continuando com o tema conhecimento, vamos agora falar sobre a Gnosiologia. Como já disse no texto anterior, o conhecimento começa a partir da captação direta de um objeto feita por um sujeito através dos seus sentidos. Essa espécie de contato nasce como intuição, ou seja, não há grandes processos mentais envolvidos na cena. Eu vejo uma bola, ouço uma comemoração, sinto cheiro de grama, saboreio amendoim e ralo a bunda em um degrau: pela intuição direta, já sei que estou em uma partida de futebol. Obviamente isso não se dá sem um depósito de experiências. Eu já sei o que é aquele objeto esférico, já sei que aqueles gritos não são de guerra ou de desespero (bom, às vezes são), já senti aquele cheiro outras vezes e assim por diante. Em suma, essas experiências anteriores são registradas e posteriormente reavivadas em um momento onde necessito abrir os arquivos. Essa é a função da memória, o repositório de informações que permite o raciocínio. O processo de aquisição de informações novas e o seu processamento com dados preexistentes é o que os gregos chamavam de gnosé, que deu origem ao termo ora estudado, a Gnosiologia.



Pode-se dizer que a Gnosiologia é a parte da Teoria do Conhecimento que se ocupa de investigar o conhecimento de uma forma mais geral, sem uma preocupação muito grande com o seu valor de verdade, mas de como interagimos com o meio que nos envolve e como esse intercâmbio enriquece nosso arcabouço intelectivo. O que importa aqui é o fenômeno do conhecimento, e não de seu valor intrínseco.

Uma das perguntas fundamentais da gnosiologia é: Quais são os limites do nosso conhecimento? Haverá um momento tal em que não haverá mais nada a ser aprendido? É possível existir uma enciclopédia que contenha tudo? Obviamente esta é uma daquelas perguntas utópicas, do tipo pedra filosofal ou fonte da juventude, mas que está carregada de desejo de saber até onde podemos chegar. Existem dois extremos com relação à possibilidade de conhecer. De um lado, temos a resposta que afirma ser o conhecimento plenamente possível, formado por verdades absolutas e imutáveis. Do outro, temos a consciência de que nenhum conhecimento é possível de obter com firmeza, havendo sempre a suspeita de que estejamos enganados. Traduzindo em correntes, temos o dogmatismo e o ceticismo.

Em primeiro lugar, é preciso entender o que é um dogma e o que é uma dúvida cética, já que essas palavras andam meio desgastadas pelo seu uso no vulgo. De fato, quando dizemos que alguém é dogmático, pensamos naqueles caras intransigentes em suas posições e opiniões imutáveis. Isso não se dá sem motivo, como se verá. Mas o fato é que um dogma pode ter o mesmo sentido que se dá, em Ciências, aos axiomas e postulados (vide este texto para compreender um pouco melhor a terminologia técnica).

Muita coisa se apresenta evidente à nossa observação, e, com isso, temos a tendência de achar que certas coisas são como são e ponto final. Isso é mesmo intuitivo, porque criamos uma habitualidade na contemplação dos fenômenos que se repetem à exaustão, como o nascer do sol, o pio das aves, o vento que desmancha os cabelos e demais poesias. Mas é preciso pensar que em toda absorção das informações que nos rodeiam, temos dois polos bem distintos e intrinsecamente relacionados: um sujeito cognoscente e um objeto cognoscível, ou alguém que se propõe a conhecer algo disponível a ser conhecido.

Quando o ponto de vista é dogmático, entendemos que o cerne do conhecimento está no objeto, que nos é entregue pronto e acabado para ser conhecido. Os dogmas são centrais nas religiões, que necessitam de fundamentos constituídos por pontos indisputáveis e verdades absolutas; do contrário, teriam desmanchadas as estruturas que as constituem, com divindades mutáveis e imperfeitas. As religiões professam a existência de uma verdade revelada, em que não há discussão possível – a deidade a concede, o crente a obedece. Isso significa que os dogmas religiosos estão errados? Não foi isso que eu disse, mas essa é a mecânica da coisa. E o pensamento dogmático não está obrigatoriamente ligado à Religião, mas à certeza que se tem sobre o objeto. Mesmo a Ciência, de certa forma, usa dogmas, na medida em que axiomas e postulados são tidos como evidentes em si próprios. A diferença talvez consista no fato de que axiomas não são discutidos porque já o foram anteriormente e devidamente consolidados.

Mas elucubremos. É-nos dada uma cebola e começamos a descascá-la, enfadonhamente. Removemos a fina casca parda, tiramos a primeira camada, a segunda, a terceira... Choramos com o gás emanado e chegamos ao miolo esverdeado, sem novidade nenhuma. Nosso vizinho faz o mesmo, mas não chora, e animadamente despela o vegetal. Ao chegar no miolo encontra uma bela lagarta (não sei se dá lagarta em cebola). Outra pessoa, que sente os olhos arder apenas, quer se livrar logo da tarefa e encontra o miolo apodrecido, escuro e mal-cheiroso. Outra ainda nem passa da casca, toda melada que se encontra sua cebola. Faz o dever de maneira indiferente, mas é tão sensível que já chora só de pegá-la.

A primeira conclusão é que analisar uma cebola não significa analisar todas as cebolas. Cada uma tem suas sutilezas, e para chegar a uma teoria geral das cebolas eu precisaria analisar todas as amarilidáceas do mundo, o que é impossível. A segunda é que cada uma das pessoas tem seu próprio conjunto de sentidos e de motivações, o que lhes causa diferentes reações físicas e psicológicas na análise. E a terceira é que cada uma delas tem um conjunto próprio de pré-concepções, que variam desde um contato inédito com o bulbo até seu uso diário. Daí, podemos perceber que o sujeito não é um polo passivo na relação do conhecimento, como quer o dogmatismo. Diferentes percepções e diferentes pontos de vista fazem com que tenhamos algo que os religiosos se arrepiem só de ouvir falar: o relativismo, que, uma vez exacerbado, leva a crer que toda correlação cognitiva está do lado do sujeito. O conhecimento seria uma doação de sentido do sujeito para o objeto, e, uma vez reconhecida sua individualidade e irrepetibilidade, conclui-se ser impossível conhecer. Essa é a posição do ceticismo.

Mas não é bom ser cético? Sim, é. Precisamos duvidar por uma mera questão de sobrevivência: o leão que hoje passa ao nosso lado saciado pode estar faminto amanhã. O problema é que o ceticismo absoluto é imobilizante e contraditório, porque quando decretamos que o conhecimento é impossível, já estamos estabelecendo uma lei. Então sabemos que não pode ser sabido. Duvidar apenas por duvidar é mera intransigência.

E por onde trafega então esse tal de conhecimento? Como não há objeto sem sujeito e vice-versa, a relação cognitiva não pode ser vista de modo desmembrado. É uma interação que não tem um lado mais importante – todos são intrínsecos à relação, como se fosse um organismo: posso pensar que o cérebro é o órgão mais importante, mas tenho uma massa muscular lisa que só se presta a bombear incessantemente, tolamente, acriticamente, quase idiotamente, mas sem a qual eu não vivo. De fato, o conhecimento é constituído por uma relação entre pensamento e realidade que se dá de forma muito complexa. Quando um fato se desenrola em nossa frente, muito do significado que é dado a ele reside em nós mesmos.

Alguns exemplos banais para entendermos melhor: uma final de Campeonato Paulista. Recentemente, Corinthians e Palmeiras se digladiaram em uma partida cheia de controvérsias, que terminou nos pênaltis. Fiz uma experiência de cunho científico – coloquei um esfigmomanômetro no pulso e pus para medir a cada penalidade cobrada. O ápice não foi no resultado final, mas na cobrança desperdiçada pelo Fagner, lateral-direito do Timão: 20 por 12. Nesse meio-tempo, uma ligação inoportuna reboa em meus tímpanos. Olho para o número no bina e lá está: minha sogra. Deixa tocar que já-já a patroa retorna. Minha reação a futebol é essa mesma. Se vejo pela TV, parece que estou no estádio; se estou no estádio, parece que estou no campo. Não sou do tipo de torcedor que xinga e grita a cada instante, mas estamos em momento extremo. É uma final, e chego a ficar de olho seco de tanto não piscar. Já a minha sogra está cagando para futebol. Chega a ser uma perturbação para ela, tanto a barulheira dos fogos, quanto o telefone que não é atendido.

Notam as inúmeras diferenças que há entre as percepções dos fatos por conta do significado que se dá a eles? Para mim, o momento das cobranças é o centro do universo, e a captação e absorção de imagens é torrencial. Sei quem cobra e quem defende, observo a coreografia de quem chuta, a movimentação do goleiro e a reação do juiz, tudo em um átimo. Sinto raiva, desespero, aflição, angústia, para desembocar na alegria final, o dia justificado, o sofrimento esquecido, e vou baixar a pressão ouvindo as resenhas de fim de jogo no rádio, um hábito antigo e comum em quem tem mais de quarenta. Para minha sogra, o jogo é só uma imagem na tela da TV, acompanhada por bombas e gritos, nesse dia específico. Para mim, é uma consagração; para ela, uma perturbação. Só que, para além desse jogo de significações, há a partida em si. O fato concreto é decepcionantemente simples: vinte e dois marmanjos correndo atrás de uma bola. Alguns de preto-e-branco, outros de verde, todos tentando vasar a meta adversária, de acordo com regras nem sempre seguidas. O significado que damos ao fato não retratam o fato em si. É por esse viés que se cede sentido ao objeto e ninguém é passivo nessa relação.

Vou dar um exemplo ainda mais simples e definitivo. Vejam a figurinha abaixo:


Isso é o que chamamos de cubo de Necker. Nada mais é do que a simulação de um hexaedro transparente. Imaginemos se tratar de uma caixa, com uma única boca aberta. O cubo de Necker não nos permite determinar qual das faces representa a abertura da caixa. Se for a superior, teremos uma caixa pronta para receber carga.


Se for a de baixo, parecerá que a caixa já foi esvaziada.


Se for uma das laterais, podemos intuir que se trata de uma carga especial, tanto para entrar quanto para sair. O importante é perceber o quanto nossa visão se torna confusa à proporção que nos concentramos na figura.


De quem parte o sentido dado a este objeto? Quem determina qual é a embocadura da caixa? Parte é da perspectiva do sujeito, que “enxerga” o cubo da maneira que melhor lhe dá a perceber os seus sentidos. Parte é do objeto, que se apresenta como ele é para ser absorvido por um observador qualquer, mas que, em condições normais de temperatura e pressão, não dá informações que não tem. Ele não se mostra como uma esfera, por exemplo. E, no final das contas, não temos caixa alguma à nossa frente, mas uma porção de traços retos. Se não assumirmos, nós mesmos, que esses traços constituem a abstração de uma caixa, nada representarão na relação. Portanto, tanto um quanto o outro são partícipes inescapáveis do processo de aquisição de conhecimento.

Outra propositura gnosiológica diz respeito ao nascedouro do processo racional. É sabido que a mente humana tem a capacidade de receber informações do mundo que a rodeia e de transformá-la em conhecimento, como já exposto anteriormente. Mas o que é necessário para realizar a receita? Até o século XVIII, havia duas correntes que se opunham na resposta. Uma parte dos pensadores entendia que o equipamento intelectual humano era suficientemente bem construído para cumprir a tarefa da cognição por si só. Nessa visão, o homem já possui todos os requisitos para pensar racionalmente desde seu nascimento, e suas observações são meros ativadores de funções mentais preexistentes. É como se o homem já nascesse podendo conhecer o que conhece, bastando a existência de um contato com o mundo exterior para que uma rede de correlações internas seja disparada, e o conhecimento se produza. Esses são os inatistas, e é uma galera composta por gente do naipe de Sócrates, Platão, Santo Agostinho, Descartes e Leibniz.

A corrente antagônica entendia que a mente humana era uma grande folha em branco (uma tabula rasa, em dizer mais filosófico). Ela seria constituída por aquilo que fosse escrito nela, ou seja, unicamente pelas coisas que sua experiência, sua vivência e suas investigações conseguiram captar do universo que a cerca, através de seus sentidos e da acumulação de saberes. Por esta razão, os partidários desta ideia somente admitem como reais os raciocínios que partem da aquisição de dados sensoriais, objetos colocados como palpáveis à nossa frente. São os empiristas, que abrangem Aristóteles, Bacon, Hobbes, Locke, Hume et caterva.

Quem aplica um ippon na querela é Kant, que brilhantemente assevera o que cada uma das tendências tem de certo e de errado. Dos empiristas, afirma que acertam em cheio quando dizem que a única fonte de informações são os sentidos. Nada do que é processado pela mente chega lá sem sua intervenção. Portanto, ideias não nascem do nada, mas das apreensões que fazemos dos objetos que nos são dispostos. Mas a tese da tabula rasa também não é correta. É como se a folha de nosso intelecto não fosse meramente em branco, mas como se as experiências fossem escritas em folhas já pautadas, numeradas e com margens bem delineadas. Essa estrutura onde os dados empíricos são escritos é própria da natureza do intelecto humano, e, portanto, são seus constitutivos. Em resumo, são inatas. A estrutura da mente é inata, e seus conteúdos são empíricos. Já havia falado anteriormente sobre isso, neste texto.

Juntando todos estes elementos, podemos pensar em uma das frases mais emblemáticas de Sócrates, patrono daqueles que gostam de queimar neurônios: “Tudo o que sei é que nada sei”. Essa confissão de ignorância não é a assunção de uma parvoíce, muito pelo contrário. É evidente que Sócrates sabia de muitas coisas, mas sua principal sabedoria residia em não se iludir com relação a uma pretensa solidez permanente de seus conhecimentos. Para torná-los mais consistentes, Sócrates ia buscar o nível do conceito, muito mais profundo do que a mera aparência poderia fazer supor. Ele queria saber o que é a justiça, e não o homem justo; o que é a coragem, e não o homem corajoso. Esses últimos são concreções, são exemplos, mas de quê? Será que não achamos alguém justo ou corajoso apenas pelo que nomeia o senso comum? E é nessa busca que Sócrates exerce sua maiêutica e admite sua ignorância, apenas para se provar verdadeiro sábio, que se inquieta permanentemente, ao invés de se deitar nos louros do renome.

Vou ficando por aqui. Ainda tem mais um pouco da temática conhecimento no próximo texto. Até!

Recomendação de leitura:

Sócrates não deixou nada escrito, mas Platão não nos deixa sentir órfãos. O livro abaixo não é só uma narrativa da condenação e morte do parteiro de ideias, mas um pequeno tratado sobre o conhecimento. Recomendo.

PLATÃO. Apologia de Sócrates. Porto Alegre: L&PM, 2008.

terça-feira, 17 de abril de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (04 - Teoria do conhecimento)

Olá!


Antes de começar a elaboração de qualquer texto, é de bom tom que se faça algum roteiro básico de escrita. É muito raro que eu saia digitando ao correr da pena. Isso me parece método mais apropriado para os poetas e, como não tenho intenções líricas, é natural que eu pense um pouco antes de desenvolver a tese em si. Acontece que no começo da presente faina, eu travei. Isso porque, mesmo no mundo acadêmico, que busca ser metódico e padronizado, nem sempre é fácil obter consenso. E este é o problema que encontrei ao começar a descrever o tema em referência: o conhecimento.


Ora encontra-se uma sinonímia entre os termos, ora encontra-se distinção, ora encontra-se um grande guarda-chuva que cobre a si mesmo e aos outros. Optei pelo caminho mais pedregoso e tratarei de cada um deles isoladamente, até mesmo para espantar a preguiça. Vou iniciar apresentando um esqueminha básico da tese que adotarei:


Desta forma, a Teoria do Conhecimento é a área da Filosofia que aborda o conhecimento humano e pode ser dividida em duas partes: a Gnosiologia, que trata do ato cognitivo em si; e a Epistemologia, que cuida da verificabilidade do valor do ato cognitivo. Tudo isso costurado pela ferramenta de correspondência e coerência cognitiva chamada de Lógica. Vamos erguer as velas.

O ato cognitivo sempre foi uma característica absolutamente diferenciadora do gênero humano. Sim, os animais também têm a capacidade de apreender a realidade que os rodeia, em maior ou menor grau, mas a capacidade de realizar abstrações significativas faz parte do equipamento mental dos bípedes implumes. A maior mostra disso se dá no uso de símbolos, altamente sofisticado na espécie e que se dá de maneira recursiva: há o símbolo, o símbolo do símbolo, o símbolo do símbolo do símbolo e assim por diante. Dou um exemplo neste texto. Essa característica faz com que fujamos do mundo concreto da mera percepção e que lancemos perguntas do tipo “por que as coisas são como são?”.

Falei sobre a curiosidade humana no texto inaugural deste empreendimento, e ela é o propulsor do conhecimento. Basta que se observe o comportamento das crianças. Todas elas passam por aquela famosa fase das perguntas seriadas e inconvenientes, levadas ad nauseam. Não sejam impacientes com seus rebentos, eles estão apenas exercendo seu ofício de seres humanos. O mundo é pleno de informações com as quais os fedelhos ainda estão aprendendo a lidar.

Mas, na essência, o que é esse tal de conhecimento? O próprio estudo da etimologia da palavra já pode nos dar algumas dicas. A palavra conhecer vem do latim cognoscere, que, por sua vez, é a fusão de dois termos de origem grega: co, que significa com, junto; e gnomé, que dá a ideia de noção, entendimento. Portanto, conhecer significa ter noção, ter compreensão. Entendemos alguma coisa quando vinculamos aquilo que observamos a algum significado. Esse processo é absolutamente natural em nossas mentes. Sempre que nos é apresentado algo com o que não conseguimos fechar a cadeia intelectiva, temos aquela sensação de estranhamento tão frequente nas crianças. É a busca pela noção, pelo entendimento, pelo conhecimento.

Era de se esperar que, tendo essa sanha em conhecer, o homem passasse a procurar explicações sobre o próprio conhecimento, e isso foi a mola que impulsionou toda uma gama de pesquisas que veio culminar com as neurociências. De fato, o cérebro é mesmo uma coisa prodigiosa. Ele tem a capacidade de perceber um determinado fenômeno e disparar uma longa sequência de impulsos para resgatar algo igual ou semelhante na memória. Quando não consegue fazê-lo, absorve a informação nova e grava uma imagem mental desta (ou vai sofrer uma dissonância cognitiva, mas esse tema só vai atrapalhar no momento). A partir daí, há a formação de uma ideia. Já não é com a concreção pura que lidamos, mas com a ideia que fazemos do objeto concreto. A partir daí, todas as vezes em que um juízo for construído, esta imagem mental substituirá o objeto concreto. Essa usina permanente de associações se alarga cada vez mais, de forma a se formarem faculdades ainda mais amplas: os conceitos, representações imateriais da realidade que nos dão noção do tempo e do lugar de cada um dos fenômenos. Isso permite ao pensamento articular conteúdos não presentes, o que é o nascedouro da abstração; esta última, por sua vez, permite ao ser humano algo incrível: estruturar possibilidades. Para imaginar um novo aparelho, uma nova propriedade química, um novo tratamento médico ou seja lá o que for, não é preciso que a coisa exista (até mesmo porque, do contrário, a coisa não seria nova), mas que se tenha a capacidade de juntar lé com cré e notar que eles tem um nexo entre si. Digamos que lé seja o vento e cré seja a vela. Um belo dia, alguém percebeu que o vento tem a capacidade de empurrar objetos. Ok, que brilhante. Essa mesma pessoa percebeu também que os tecidos têm flexibilidade e resistência suficiente para serem arrancados do varal. Por quem? Sim, por ele, o lé, o vento. E daí a estruturação do pensamento fez a esse primevo nauta elucubrar que, se o tecido fosse suficientemente grande e eficazmente fixado, poderia servir de propulsão a um barco, propiciando repouso aos pobres braços de empenhados remadores. Esse é o princípio básico do funcionamento cognitivo: conhecimento gera conhecimento.

O que pudemos notar até agora? O conhecimento não se dá no vazio, nem é unívoco; é uma relação que sempre tem dois protagonistas: um sujeito cognoscente e um objeto cognoscível. Em português: um cara que observa e uma coisa que é observada. Vejam que a relação é obrigatoriamente dicotômica; um sujeito sem objeto está vagando e andando, um objeto sem sujeito é como se não existisse. Eu (sujeito) olho a pedra (objeto). Alguém (sujeito) lê um livro (objeto). Um professor ministra uma aula (objeto) a uma classe (sujeito). Aqui, temos algumas pegadinhas. O professor não é o objeto, mas o meio pelo qual o conhecimento é exposto. Mas ele mesmo pode ser objeto, na medida em que a dileta audiência passe a prestar atenção nele como pessoa, e não na informação que ele profere. Quem nunca presenciou cenas como a do aluno que, em plena aula de análise sintática, pergunta onde o professor comprou seu relógio? Ele está coligindo informações sobre o indivíduo professor, e não sobre a exaustiva exposição. Isso porque o conhecimento depende da consciência, que sempre tem uma intencionalidade (vide mais neste texto). Outra coisa: quando falamos em classe, podemos pensar em um sujeito coletivo, mas, em conhecimento, isso não existe. Tudo bem que podemos falar no saber de uma comunidade, mas, no quesito percepção, não há como fugir de indivíduos. Ainda que o objeto parta de um mesmo ponto (o professor), o receptor processa a informação individualmente, com seu próprio conjunto de conhecimentos anteriores e com as disposições de seus próprios sentidos. Por isso, toda experiência de transmissão do conhecimento é única, ainda que seja dada em ambiente coletivo. Afinal de contas, como já dissemos, em uma relação objeto-sujeito, há a parte objetiva e a parte subjetiva, ora bolas.

E aqui chegamos na tortuosa missão de estabelecer uma diferenciação entre o que é conhecimento e o que é opinião. Vamos imaginar uma situação prosaica: uma colisão à qual testemunhamos. O objeto colisão em si é um dado, é um fato, é uma informação e gera um conhecimento rapidamente intuído – um carro bateu no outro e pronto. Agora, porque ocorreu, de quem foi a culpa, o que poderia ser feito para ser evitado, tudo isso são opiniões, que derivam exatamente da individualidade que mencionei acima. E isso não é conhecimento. O conhecimento busca fatos, e não suposições. Pode até partir destas, mas não são estas. Está claro?

Uma opinião pode se transformar em conhecimento? Sim, desde que ela adquira evidências. É preciso ter em mente que, dadas as diferenças na recepção dos dados, os fatos são revestidos por aparências, que, sim, enganam. Reportando-se à colisão, uma via preferencial pode ser um bom indicativo; um semáforo quebrado, outro. Mesmo que seja óbvio um causador, não é tão certa a culpabilidade: o estouro de um pneu pode ser ocasionado por má manutenção da via, e a culpa é do prefeito. Um reparo mal feito na caixa de direção, e a culpa é do mecânico. Um bêbado circulando na via e o consequente desvio – o mesmo vale para um cachorro. Um terceiro motorista que tenha forçado uma manobra... São infinitas hipóteses que fogem aos dois aparentes únicos envolvidos.

E mesmo que haja somente os dois motoristas envolvidos, ainda assim o fato não é evidente por si só. Há as hipóteses de negligência, imperícia, falha mecânica, distração, ocorrência médica, imprudência, problemas na via, e até mesmo tentativa de assassinato ou vontade livre de causar dano ao patrimônio próprio ou de outrem, talvez até mesmo para obter a verba do seguro, vai saber. Qualquer coisa que se profira sem evidência é palpite, em especial proposições preconceituosas, como a que imputa a culpa automaticamente para uma mulher eventualmente presente. Mulher na direção, já começa a confusão.

Como transformar a opinião sobre o acidente em conhecimento sobre o acidente? Ora, procurando fundamentos, e ordenando-os de maneira lógica. Se houve uma falha mecânica, é preciso tentar localizar a peça quebrada e entender se seu defeito é significativo para o acidente; para detectar se há imperícia, um bom indicativo é verificar o tempo de carta e os tipos de infração cometidos pelos protagonistas; se supomos que o problema é na rua, é preciso localizar buracos ou faixas mal pintadas, e assim sucessivamente. Com esses elementos nas mãos – o conjunto fático e as evidências – pode-se dispor a dinâmica dos acontecimentos de maneira lógica, e se aproximar da verdade.

Neste exemplo acima, podemos observar como se aplica a Teoria do Conhecimento como um todo, e como suas sub-áreas se interconectam. A capacidade de perceber o acidente e de trazê-lo como um dado para o processo intelectual está no campo da Gnosiologia. A tradução do fato correspondente à realidade e seus nexos causais, ou seja, o conhecimento verdadeiro é tarefa da Epistemologia. E a ferramenta que dispõe tudo em seus devidos lugares é a Lógica. Traduzindo: reconhecer a existência do acidente como um fato é gnosiológico, ser capaz de compreender como o acidente factualmente se deu é epistemológico e cuidar para que a solução do problema do acidente seja corretamente disposta é lógico.

Com isso tudo, podemos concluir que a principal tarefa da Teoria do Conhecimento e de suas sub-áreas é suplantar o relativismo produzido pelas sensações humanas. Ou talvez até mais: tentar compreender se isso é possível. Tem gente grande que acha que não:


Isso porque, embora tenhamos uma boa distinção entre razão (logos) e opinião (doxa), o fato é que certas vezes a opinião “encaixa”. No exemplo do acidente, digamos que estejam envolvidos um corintiano e um palmeirense. Três pessoas opinam, com duas culpando o segundo. Mas a apuração dos fatos leva à conclusão de que o erro foi do alvinegro, que se distraiu com o celular. Tivemos uma opinião correta, mas no que ela se baseou? Se for pelo simples fato de que o motorista estava com a camiseta do clube, foi uma mera coincidência, mas que ganha força na forma de preconceito. Quem opinou desta forma, falou a verdade, mas por um mero acaso. Falta-lhe uma justificativa racional para dar base. Percebem como uma opinião acertada não corresponde a conhecimento?

Recomendação de leitura:

Um dos primeiros textos filosóficos que discute as diferenças entre opinião e conhecimento vem de Sócrates, através da hábil pena de Platão. Como é um texto curto, dá para ler de uma só sentada.

PLATÃO. Teeteto in Diálogos: Teeteto e Crátilo. Belém: UFPA, 2001

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (03 – Ontologia)

Olá!


No último texto desta intrépida série, refleti um pouco sobre a Metafísica, uma área da Filosofia que medita sobre os fundamentos últimos da realidade. Alguns leitores mais atentos, ou que já tenham alguma vivência no linguajar filosófico, devem ter estranhado o fato de eu ter omitido a questão do Ser, tão típica dos discursos metafísicos. Isso foi proposital. É que eu achei por bem ter cuidado em isolá-la da Ontologia, seu upgrade criado após a crise instaurada por Kant, ao estabelecer a intangibilidade das essências das coisas. Pois bem, estamos aqui e vamos tratar deste assunto.


A Ontologia, como eu falei, é um desmembramento tardio da Metafísica que estuda o Ser em si mesmo. Aliás, o termo grego onto significa ser, no mesmo sentido que a palavra latina esse dá sentido ao nosso léxico essência. Por isso, o nome Ontologia quer dizer, literalmente, o estudo do Ser. Mas que raio de ser é esse? O ser humano? O ser vivo? O ser bruto? O ser concreto? O ser abstrato? O ser extraterrestre? O ser transcendente?

A resposta é: todos esses seres. Cada um deles se apresenta a nós de uma determinada forma, mas também carrega em si uma espécie de substância que faz ser o que ele é. A palavra “ser” indica a nós quatro conceitos distintos e interligados:

Existência: quando dizemos que algo é um ser, definimos que ele existe. Portanto, quando falamos em “ser humano”, supomos de imediato que há uma espécie tal que tem uma série de características, o que, de pronto, nos leva ao segundo conceito, o de

Identidade: quando dizemos que algo é um ser, afirmamos que ele tem uma identidade própria que a distingue dos demais seres, que não possuem exatamente as mesmas propriedades, o que nos leva ao terceiro significado, o de

Predicação: que nos exprime o que são os termos da identidade mencionada anteriormente. De fato, ser não é apenas um substantivo, mas também um verbo, que tem o autopropósito de exprimir o que as coisas são: o Sol É distante, o peixe É escorregadio, os ovos SÃO quebradiços e così via. A construção da predicação se dá em função de um sujeito, ou seja, afirma-se algo a respeito de alguma coisa, o que nos leva ao último item, o de

Verificabilidade: que ocorre quando uma determinada predicação pode receber valor de verdade ou de falsidade. Neste caso, pertence ao Ser aquilo que se diz de real a respeito dele. Trocando em miúdos, se dizemos que o “Sol é distante”, podemos atribuir um valor a essa proposição. Se ela for verdadeira, haverá uma correspondência ao Ser Sol; do contrário, nada se falará sobre o Ser Sol, mas sobre seu não-ser, aquilo que o Sol não é.

A grande dificuldade na questão do Ser não está propriamente nos seus significados acima, já que eles parecem bem simples a uma primeira vista, o que pode fazer a discussão se tornar tola. Mas o buraco fica bem mais embaixo quando tentamos trazer o foco para nós mesmos: o que é o meu Ser? Qual é o meu elemento de distinção para o restante do universo? Com isso, percebo que há quesitos que me tornam único, e há quesitos que me torna um dos itens de conceitos maiores: ser humano, ser vivente, ser terrestre, ser concreto, ser imanente.

Quando procuramos o Ser em nós mesmos, tendemos a procurar um lugar no mundo, uma função que ao mesmo tempo nos caracterize e nos distinga, que nos agrupe e que nos separe, de forma a entender porque somos o que somos e fazemos o que fazemos. O negócio é contar uma historinha, para começar a conversa. Quando eu tinha meus cinco anos, os aperreios da vida me levaram para uma casa na Vila Ema, bairro operário da pauliceia desvairada, onde já moravam meu avô e minha madrinha. Havia uma casa de três cômodos no fundo do terreno dando sopa, e é para lá que eu fui. Na casa da frente, moravam meus primos, mais velhos que eu. Um deles era o Plinio, nome arcaico para alguém nem tanto, em época de Marcelos e Alexandres, designativos da moda de então. Era uma criança entre tantas, mas a cabeça dele era outra. Enquanto o pessoal curtia John Travolta e seus gestos e trejeitos discotéque, meu primo era dado a músicas mais estranhas, como o experimentalismo do krautrock do Can ou das doideiras do Frank Zappa, além de uma boa dose do tripé metálico (Sabbath, Purple e Zeppelin). Como toda criança, ele gostava de brinquedos, mas seu interesse maior não estava no manuseio da peça, e sim no seu funcionamento. Lembro dos carrinhos de fricção, que eram puxados para trás até dar um estalo, para ser solto e percorrer seu trajeto. Eu nunca me preocupei com o que fazia a propulsão, mas em dar asas à estorinha bolada na cabeça. Já o Plínio era o exato oposto. Às favas com a imaginação, ele queria mesmo era entender como se dava o impulso do carrinho, o que fazia com que ele corresse sozinho por aqueles poucos metros (uma mola, antes que me perguntem). Enquanto eu estava mais ligado ao sonho, ele queria compreender a realidade. Eu queria me desvincular do fato de que o carrinho era um simulacro, para que pudesse me sentir dentro da historinha; ele queria penetrar no âmago do carrinho, olhá-lo por dentro, aproximar-se ainda mais do carrinho em si. Eu queria me afastar da realidade última do carrinho, esquecer que era de mentirinha; ele queria o contrário, a realidade fundamental do carrinho, o seu Ser. Meu olhar era estético; o dele, ontológico. Deu para sacar? Não!?

Vamos então pegar o exemplo dos cães, esses animais cada vez mais presentes em nossos compactos apartamentos. Pensemos no gigantesco dinamarquês, daqueles que dá para montar a cavalo, no peludo afgani, no macérrimo galgo, no musculoso rottweiller, no esperto fox terrier, no chato pequinês, no minúsculo chihuahua, no glamouroso poodle, no mal-encarado boxer ou nos diferentes pastores – alemão, belga, napolitano, bergamasco. E, principalmente, pensemos nas inúmeras versões de vira-latas, os mais privilegiados pela seleção natural.

São animais tão distintos entre si, na forma, no tamanho, na pelagem, na agressividade, no ambiente geográfico em que habitam, que parecem espécies diferentes. Mas são todos cães. Batemos o olho neles e falamos sem errar: são cães.

Mais: se olharmos um feto de cão, um filhote de cão, um cão jovem, um cão adulto, um cão velho, um cão morto ou a ossada de um cão, lá estará a nossa consciência afirmando se tratar de um cão, não importando a linha do tempo. Mais ainda: eu mostro a foto de um cão e pergunto: o que temos aqui? Você dirá: um cão. O mesmo se aplica a uma estátua, uma garatuja, uma pintura a óleo, um logotipo, uma estampa, um carimbo. Não importa a materialidade. São cães.

Desde que uma mutação do miacis, ancestral de uma série imensa de mamíferos carnívoros, deu origem ao tomarctus, o cão primordial que deu origem a todo o gênero canis*, há algo em comum a todos os cães do mundo, sejam reais ou imaginários, sejam vivos ou mortos, sejam raças antigas ou produzidas por seleção artificial, que os fazem dignos desse nome, e esse algo em comum é aquilo que nós chamamos de essência. O Ser é traduzido pela essência, que, em um estudinho rapidíssimo na etimologia, quer dizer aquilo que tem a propriedade de ser.

Acontece que temos um problema. Onde está essa essência? Onde está descrito que tal e tal coisa formam a essência de um cão? Há muitas respostas que foram tentadas, desde que Parmênides enunciou o princípio da identidade: o Ser é. Isso significa que o mundo das constantes mudanças de Heráclito (panta rhei) era uma ilusão. São aparências das quais não extraímos o Ser, mas as manifestações do Ser (mais tarde chamadas de fenômenos). Dessa forma, o cão de carne e osso que vemos à nossa frente não é o Ser cachorro em si mesmo, mas uma, e apenas uma, de suas concreções possíveis. É um ente, cujo principal atributo é a existência. Através do ente, o Ser existe.

Mas o pensamento de Heráclito é desprovido de valor? Não. Enquanto Parmênides apostava na permanência do Ser, a proposta heraclitiana enfatizava a dinâmica das transformações. Para ele, o Ser era aquilo que estava em constante mudança, era o próprio devir. Esta palavra significa o movimento que o Ser passa para transitar de um estado para o outro: do que ele era, para o que ele é e para o que virá a ser. A essência não é estática.

Platão pende para um ideário semelhante ao de Parmênides e acha que essas essências perfeitas só podiam estar localizadas em um local que vai além do mundo sensível, dominado pelas aparências e distorções dos sentidos. Era o Hiperurânio (acima dos céus), lugar onde residiam as ideias puras, atingíveis unicamente pelo intelecto. Portanto, para Platão o Ser era um ato intelectivo, que a mente contemplava antes de trazê-la ao corpo.

Já para Aristóteles, o Ser não se encontrava em um mundo à parte, mas na nossa própria Terra. Para ele, tudo o que existe no universo se dá por uma longa cadeia de causas e efeitos que partem de um Primeiro Motor Imóvel, a causa originária, e, a partir daí, inicia-se o fluxo incessante de mudanças no cosmos (para saber mais, leiam este texto), o que o aproxima da Ontologia de Heráclito. Essas causas eram quatro: formal, material, eficiente e final. Estas duas últimas são externas ao próprio Ser, e dizem respeito a quem fez e para que fez. Por exemplo, o pedreiro (causa eficiente) faz a casa para alguém morar (causa final), mas a casa em si é composta das causas formal e material – aquilo que é conformado de modo a constituí-la (causa formal) e as matérias usadas para tanto (causa material). Essas duas causas são o cerne do Ser, o que Aristóteles dava o nome de substância, ou ousía, como se diz em grego. Desta forma, a substância é constituída de uma parte concreta (material) e uma parte ideal (forma). De fato, sem materialidade, a casa é só um sonho na cabeça, e, sem forma, é um amontoado de pedra, areia e tijolos dispostos aleatoriamente. Da substância, portanto, emerge a essência.

A partir dessas quatro ideias de Ser, criou-se toda uma tradição que veio navegando pelos tempos, que não vou detalhar muito, o que me faria fugir do escopo inicial do projeto. Basta dizer que a discussão sobre o Ser foi deslocada ao sabor das correntes filosóficas que foram se sucedendo. Na Filosofia teocêntrica que segue à época helênica, Santo Agostinho identifica o Hiperurânio platônico com o mundo das ideias divinas, e o Ser se desloca para Deus. São Tomás de Aquino, por sua vez, adapta as causas aristotélicas à sua Escolástica e atribui o Primeiro Motor Imóvel a Deus. Na medida em que novas ideias descolam a Filosofia da Teologia, também o conceito de Ser caminha para fora, e formulações como a monadologia de Leibniz e da causa sui de Espinoza trazem novidades que se afastam dos dogmas religiosos.

Até então, estávamos no âmbito da Metafísica, mas David Hume vem informar que esse papo de essências era uma mera habitualidade mental, que não existe essa coisa de Ser: apenas aprendemos a classificar os objetos por proximidade e ficamos procurando algo por trás deles. Nada disso – eles são o que são, e nada mais. A busca pelo Ser é pelo em ovo, na concepção de Hume. Kant vem com a questão epistemológica dos fenômenos e derruba de vez a Metafísica, incluindo seu cerne duro, a Ontologia.

Mas a Ontologia não morre, porque soube ser recriada pela Filosofia Contemporânea, que deslocou o foco da investigação filosófica do objeto para o sujeito. Distinguindo-se da Metafísica tradicional e apoiada pelas então recentes descobertas da Psicologia, a Ontologia passa a enveredar pelas sendas tortuosas da consciência, o principal sujeito do conhecimento. Tudo o que se apresenta a nós é apresentado para nossa consciência, e essa nunca é passiva. Ela introjeta seus conhecimentos, sua cultura, suas idiossincrasias e seus preconceitos em sua relação com o objeto, o que faz com que essa dialética não seja uma mera experimentação estática: a consciência do sujeito doa sentido ao objeto, que, por sua vez, transforma o modo de perceber à consciência do sujeito.

É nesse condão que a Fenomenologia de Husserl atua, ao considerar os efeitos da construção da consciência antes do contato com o objeto, o que faz com que a busca pela essência objetiva seja depurada de seus vieses. Partindo da premissa de que a consciência é ela mesma um fenômeno, um fenômeno mental, há a contraposição à materialidade do fenômeno propugnada por Kant. Há uma realidade ideal que vai além da realidade material; não como querem doutrinas misticistas, mas como podem provar as abstrações matemáticas, nem sempre concrescíveis, mas sempre portadoras de uma lógica inexcludente: se a matemática tem a capacidade de traduzir a natureza, também a tem para ir além dela, atuando abstratamente. É o eidos em ação.

Outros pensadores, como Heidegger e Sartre, levados pela novidade fenomenológica, passam a direcionar o foco para o Ser por excelência, aquele que sabe que é Ser e que se identifica como tal: o ser humano. Questões como liberdade, responsabilidade e livre-arbítrio ganham a tônica do discurso ontológico e lhe dão um novo e vasto campo investigativo. Afinal, não há sentido no mundo sem um Ser que lhe dê esse sentido: novamente o ser humano. A Ontologia passa a se ocupar daquilo que é a essência do homem antes do que é observável pela Ciência.

Para arrematar, dá para perceber como a Ontologia, lá no fundo, é a medula da Filosofia. Mesmo outras áreas basilares se questionam sobre o Ser. Quando a epistemologia pergunta o que é a verdade, a ética pergunta o que é o bem e a estética pergunta o que é o belo, fazem perguntas ontológicas: o que é. Daí a importância dessa área tão aparentemente hermética e pouco útil.

Recomendação de Leitura:

Mesmo não sendo diretamente um filósofo, é de Shakespeare, pela boca de seu personagem Hamlet, que temos uma das mais célebres frases ontológicas: o “ser ou não ser” que é proferido pelo personagem-título em sua angústia existencialista. Vale a pena ler.

SHAKESPEARE, William. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (Hamlet). São Paulo: Martin Claret, 2010.

* De acordo com a teoria filogenética mais bem aceita nos presentes dias.