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sábado, 19 de novembro de 2011

Banquetes e filmes de arte

Olá!

A Filosofia tem a capacidade de dialogar com qualquer tipo de assunto. Sendo assim, quando falamos em obra de arte, tudo é passível de análise, desde a mais primorosa sinfonia até o mais medíocre fanque (recuso-me a chamá-lo de funk, estilo de gente como Parliament, Tim Maia, Earth Wind & Fire e até mesmo Red Hot). Para detectar se uma peça tem real valor artístico ou não, é simples. Quando a obra é boa, discute-se seu valor intrínseco, ela é o próprio objeto do debate (concordando ou não). Se é ruim, discute-se o contexto em que ela surgiu, como foi possível gerar uma porcaria deste naipe, que sociedade é essa que produz tal aberração e outras avenças. O importante é: em minhas andanças acadêmicas, deparei-me com uma série de obras de arte surpreendentes. De fato, a arte é o grande campo da liberdade, e sem dúvida é irmã de sangue da Filosofia, no sentido em que consegue dar modelos às doutrinas filosóficas (e, em uma relação dialógica, ser objeto de estudo mútuo) e tratar dos temas filosóficos de maneira mais, digamos, compreensível. Por isso, a obra de arte é imprescindível ao professor de Filosofia que leva a sério sua área de conhecimento e seus alunos.

Muitos filósofos, como Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche levaram a arte tão a sério que julgaram impossível viver sem ela, reputaram-na como método para sobreviver, para não justificar o suicídio. A arte teria o papel de oferecer suporte a uma vida que deve ser negada, dominada pela vontade e suas imprecisas representações, para ficar no exemplo de Schopenhauer.

Um bom exemplo para ilustrar como a arte pode dar significado à vida é dado pela obra-prima do dinamarquês Gabriel Axel, “A festa de Babette”. É um filme que contém alguns elementos típicos do cinema europeu: ritmo contido, leitura psicológica dos personagens, relação coerente entre a ficção e os fatos históricos. Mas o filme vai além. É uma belíssima interpretação das amarras dogmáticas e do quanto um artista dá valor à sua criação. Nietzsche amaria, com certeza.


(Atenção: daqui para baixo vou revelar itens importantes do enredo do filme – é o famoso spoiler – se alguém se interessar em assisti-lo, é melhor parar por aqui, e depois continuar a ler o texto).

O cerne do enredo está na fuga da personagem central, a precitada Babette, cozinheira francesa, por conta dos combates oriundos da Comuna de Paris (vide abaixo um pequeno resumo do que foi este evento). Ela se desloca à Escandinávia, onde é acolhida por uma pequena comunidade luterana ultraconservadora, que vive em um sistema de reclusão quase eremítico, de relações endêmicas e avesso ao externo. O ambiente é opressivo, mas as pessoas parecem conformadas com sua situação, temerosas que são de incorrer nos menores pecados. Tal ambiente não é especialmente propício a Babette, oriunda de um país católico e tido como “moderno demais” para comunidade tão diversa.

Acontece que, após 14 anos de convívio, Babette fica sabendo que ganhou um prêmio na loteria francesa, solucionando assim seus impedimentos para regressar a Paris. No entanto, como modo de agradecer sua acolhida, decide preparar um autêntico banquete francês para os membros do povoado, que se preparam para a homenagem do centenário de seu fundador.

O efeito inicial é uma desconfiança generalizada. A dogmatização faz com que os moradores da aldeia tenham certeza de que estarão cometendo pecado mortal ao se entregar aos prazeres terrenos. Alguns chegam a pensar em sortilégios, em ação demoníaca.

Curiosamente é do próprio externo que chega a solução. O militar oriundo da comunidade, de tanta confiança de seus co-irmãos, quebra a resistência dos comensais, que lentamente começam a desturvar sua visão, até atingir um clima de catarse geral. A festa inicia-se de verdade, uma verdadeira celebração à vida. Nietzsche, neste momento, certamente choraria de emoção.

O desfecho do filme se dá com o clima de despedida após o banquete. Mas Babette não vai mais embora: ela gastou todo o prêmio na confecção das iguarias, na compra do melhor vinho, até mesmo na decoração. Questiona-se que motivos a levaram a fazê-lo. A resposta é desconcertante. O que importa para ela é executar sua arte, disponibilizar seu talento. Isso vale mais do que qualquer dinheiro. Sua gratidão vai além da acolhida recebida – a aldeia é sua platéia, o receptor de uma estética que lhe é cara. Todos os valores típicos – o dinheiro, a pátria, a liberdade – são secundários para o verdadeiro artista. São passageiros, a criação é o que fica. Mais ainda: é a visão de mundo particular, única, personalizante, sua marca no mundo, exclusiva. É a arte reconhecida como motivo da vida. Agora sim, Nietzsche desmaiaria.

O filme, no final das contas, é um libelo contra o preconceito, contra as posições dogmáticas, a favor da vida e da estética. Belíssimo.

Recomendação de cinema:

AXEL, Gabriel. A festa de Babette. Filme. Dinamarca, 1987. 102 min.

(A Comuna de Paris foi um governo de origem proletária que assumiu o poder após a queda do imperador Napoleão III. Teve a duração de 40 dias, e teve seus membros massacrados em sangrentos combates, que resultaram em cerca de 80000 execuções).

Sobre o envelhecimento e a sensação de que a morte nem é tão ruim assim

Olá!

Tenho duas sensações bastante estranhas em minha vida. A primeira é que, de alguma forma, não agrada ao universo que eu vá à praia. Não é possível um tempo frio e chuvoso destes no meio de novembro, por quatro dias seguidos. A segunda é a sensação de envelhecer. Tenho uma série de idéias soltas, que, em seu conjunto, acabam por pautar minha vida e minha conduta, mas que não são exclusividades minhas. Outros já as pensaram e sistematizaram. Quantas delas não são derivadas da intuição de que o tempo passa?

Percebo que os dias correm incessantemente todas as vezes em que vejo aumentar a distância que há entre minhas velhas opiniões e o modo de ser dos mais jovens. Também ocorre o mesmo quando não mais consigo acompanhar seus ritmos frenéticos, ou quando não posso corresponder às suas expectativas. Uma das experiências mais curiosas tem paralelo com a estética: há momentos em que você fala como um poeta e é visto como um quadro – olhares voltados para você, mas silenciosos, inertes, como se nada do que você fala estivesse sendo absorvido. Há um descompasso de linguagem, de interesses, sei lá. É um desnível de épocas, quer me parecer. Envelhecimento, para sintetizar.


Pensar na vida é, essencialmente, pensar em seu vazio. É melhor não fazê-lo muito seriamente, sob a pena de concluir que seu motivo é uma dialética entre a busca e a fuga da morte. Falamos muito sobre o futuro, mas o que é ele? Podemos falar em objetivos, em etapas da vida, em planos; é interessante como todos estes projetos se modificam com o passar do tempo. Já tive a oportunidade de falar sobre a angústia dos pais diante da crescente independência dos filhos, neste post. E essa angústia amplia-se na medida em que os marcos característicos de uma existência vão passando. Por exemplo: uma criança, ao nascer, tem diante de si uma série de eventos típicos para ocorrer no transcurso de sua vida – a tomada tresloucada de informações na primeira infância, a primeira ida à escola, os primeiros namoros, a entrada na faculdade, os primeiros encontros sexuais, a formatura, o primeiro emprego, o casamento, os filhos, a compra da casa... São marcos, objetivos traçados que vão sendo cumpridos, não necessariamente nesta ordem. Eu já passei pela maioria deles. O que resta de referências, de pontos a chegar? São poucos os que vão restando, e o maior deles, o único inevitável, vai se aproximando.

Já tive muitos momentos em que a morte me causou medo, e outros em que ela me pareceu uma solução. Não, não penso em suicídio neste momento, longe disso. É algo como se eu não me importasse muito se um médico me dissesse que eu tenho uma doença incurável, que eu tivesse pouco tempo de vida.

Será que só eu tenho essa sensação? Ela é algo anormal? Para Freud, não.

Freud pensa o psiquismo em termos de pulsões. A mais característica e conhecida é chamada de princípio do prazer. O homem busca, instintiva e inconscientemente, a satisfação de seus desejos, ou seja, ainda que não tenha plena consciência de seus atos, eles são guiados para a obtenção de prazer, um distintivo que valida sua razão de existir.

(Aqui, apenas para recordar, Freud nada mais faz que aperfeiçoar idéias de Schopenhauer, ainda que não o admita).

Os desejos têm objetos. Não existe um desejo de “nada”. Portanto, a satisfação de um prazer é a realização de um objetivo. Ocorre que um objeto pode ser perdido, um desejo pode não ser satisfeito. Essa perda é trabalhada pela estrutura mental através de uma busca de reequilíbrio, um restabelecimento da paz anterior ao fenômeno em questão. Ora, se há um princípio de prazer que impulsiona a pulsão sexual (Eros – Deus do amor e da vida na mitologia grega), que Freud considerava como a ativadora do processo psíquico, há um princípio de destruição do desejo não realizado, que é a pulsão de morte (Tânatos – Deus da morte – Freud era cheio dessas gracinhas).

Essa pulsão trabalha em oposição à incessante atividade do Eros, de busca de satisfação de desejos. É disparada, em geral, diante de um choque de realidade: a consciência capta a não-realização do prazer, sua extrema dificuldade ou sua impossibilidade. Há, então, uma busca por estabilização, por um retorno ao status original, uma destruição dos resíduos do desejo, em geral por uma transferência do fracasso. Nada é mais estável do que a morte, do que o inanimado. É por isso que esta pulsão tem este nome. Em última instância, e de certa forma, a morte é uma garantia de obtenção de sucesso pelo Eros: não há desprazer onde não há vida.

Esta é uma das teorias mais controversas de Freud, que foi contestada, revista ou complementada por cientistas como Wilhelm Reich e Jacques Lacan, mas que parece ter seus reflexos em nossas vidas. De fato, esta “vontade de morrer” nada mais me parece do que um misto de fuga e de defesa diante de uma vida que já não possui os mesmos índices de expectativa de tempos passados. Não tem relação (necessariamente) com depressão ou coisas do tipo. É fruto da tensão natural existente em nosso equipamento psíquico, que se expande quando os projetos de vida são mais breves e mais incertos.


Recomendação de leitura:

A teoria é muitíssimo mais complexa do que as poucas palavras que coloquei aqui podem fazer supor, e lembrando que a interpreto livremente. É muito interessante ler o seguinte livro para compreendê-la melhor.

FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Sobre Lula, SUS e autoritarismo

Olá!

Tenho acompanhado com apreensão o desenrolar da campanha "Lula, vai se tratar no SUS" que tem se desenvolvido nos últimos tempos em redes sociais. O caso merece uma análise, porque tem alta adesão e traz uma amostra do pensamento de nossa sociedade. Poderia dizer que a campanha é injusta, nojenta e burra, porque em última instância trata-se de um ser humano que vive uma situação difícil, da qual muitos de nós já passamos, direta ou indiretamente. Mas prefiro ver a atitude por um outro ângulo: ela é autoritária.




Em primeiro lugar, precisamos levar em conta a trajetória política do ex-presidente. Não é preciso amá-lo nem odiá-lo, mas sim levar em conta que se trata de um retirante nordestino, com pouquíssima formação acadêmica, que passou pela dificuldade de ser um operário, e que vem influenciando nossa política desde o tempo em que era um líder sindical, ainda nos tempos da ditadura, quando manifestar seus pensamentos e objetivos constituía ainda um perigo real, físico mesmo. Esse mesmo homem chegou à Presidência, foi reeleito e fez sua sucessora, e ainda hoje é referência quando se pensa na política do Brasil. Nesse sentido, sua carreira é absolutamente brilhante, a despeito do que se pense de suas ideias e de seus resultados. Espero ter sido compreendido.

Já tivemos inúmeros políticos que se trataram de doenças graves em hospitais particulares, no Brasil e no exterior. Por que o seu caso provoca tanto escândalo?

Quem pensou em luta de classes acertou em cheio. Nossas elites ainda não são democráticas no sentido pleno da palavra, ainda não estão preparadas para suportar a ascensão social dos mais pobres, e Lula é um modelo perfeito e bem acabado daquilo que não conseguem compreender. Ao recomendar que Lula faça seu tratamento no SUS, acabam revelando que é este o lugar que desejam para toda uma classe social. E essa atitude é autoritária, porque reflete uma efetiva demonstração de desejo da manutenção de seu status quo. E apenas para ela. Não se deseja uma nova elite, ou uma elite mais numerosa. É uma atitude extremamente agressiva, e, como tal, portadora de uma verdade por vezes indesejável, inconfessável, mas inevitável, como pensava Michel Foucault (vide este post).

Isso revela dois problemas. O primeiro é o próprio fruto do autoritarismo. Nosso último período ditatorial foi derivado de um ledo engano da classe política. Achava-se que os militares tomariam o poder constitucionalmente eleito para entregá-lo de mão beijada. Triste ilusão, de igualmente tristes consequências. Vivemos um período sangrento, cuja real dimensão não conhecemos de todo até hoje. Ora, o autoritarismo atrai autoritarismo. Os acontecimentos no mundo árabe estão aí, para não deixar ninguém mentir. É que, ao admitir-se a violação da ordem legal, derruba-se o estado de direito e valida-se a exceção, a violência e a insegurança jurídica. Acho engraçado que existam pessoas que elogiem o regime ditatorial, em especial aqueles que não o vivenciaram. Talvez não reflitam adequadamente. Nossa elite intelectual não coincide com nossa elite econômica, seus anseios são diferentes. Esse SUS que reputam por ineficiente e inadequado é fruto direto do desmonte das políticas sociais ocorrido justamente na ditadura. Os militares entregaram aos civis um país quebrado, próximo da ingovernabilidade. Só pudemos encontrar algum respiro verdadeiramente democrático a partir do governo Fernando Henrique, que, apesar de minhas grandes restrições, começou um processo de estabilidade econômica que tem permitido algumas melhorias sociais. É bom lembrar que a transição de seu governo para a gestão Lula foi feita de maneira absolutamente republicana e democrática, ao permitir que os técnicos do novo governo se instalassem e tomassem pé da situação ainda antes do início de seus mandatos.

O segundo problema diz respeito às reais condições de atendimento do SUS. Conhecemos as filas e as denúncias, e não ficamos satisfeitos com elas. Mas, em alguns aspectos, somos exemplos para outros países. Para tanto, peço a leitura atenta deste depoimento. Não preciso acrescentar mais nada, mas gostaria de mencionar estes dois exemplos extraídos de minha vivência, quem vem ao encontro dos objetivos deste blog.

O primeiro diz respeito a alguns hospitais que são referências, e que atendem pelo SUS: o HC, o Dante Pazzanese, o Pérola Byington. Estivemos em visita ao Hospital A. C. Camargo, o famoso hospital do câncer, em sua ala infantil. Lá há atendimento a particulares e ao SUS. Não há nenhum, mas nenhum mesmo, tipo de diferença entre o tratamento oferecido para um ou para o outro. Um quadrinho aqui, uma mesinha lá: é todo o privilégio adicional que os particulares tem em relação ao atendimento público.

Já o segundo é mais pessoal. Minha mãe começou tratamento contra o câncer enfrentando um monte de dificuldades: começando por exames não cobertos pelo convênio, passando por processos judiciais para conseguir uma porcaria de uma alça de ressecção e horas e mais horas de telefone, internet e visitas pessoais para conseguir a autorização para a aplicação da imunoterapia. A única participação do SUS nesta história toda foi o fornecimento dos medicamentos, que foram conseguidos NA HORA, sem nenhuma burocracia.

As pessoas tem a tendência de achar que as coisas administradas pela iniciativa privada são mais eficientes, o que não é uma verdade absoluta, principalmente quando há risco de prejuízo. Aí, sim, a grande roda do capital gira e o ser humano é posto em um plano inferior. Passa-se, então, do autoritarismo para a burrice, a nojeira e o preconceito sobre os quais não quis falar no começo desta postagem. E, então, nascem campanhas como estas, onde as pessoas acham divertido zombar da desgraça dos outros.

Recomendação de navegação:

O link acima aponta para um texto de Nina Crintzs, que escreve bem prá burro e que eu gostaria de deixar recomendado, ainda que suas postagens sejam relativamente raras.

Purple Sofa
https://purplesofa.wordpress.com/

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Continuando: sobre o tempo e as relações entre ética e metafísica

Olá!

Em meu post anterior, comecei a discutir a questão do tempo e da memória a partir do filme "O fabuloso destino de Amélie Poulain". Coloquei a visão patrística de Santo Agostinho, que compara o tempo à música, e que reputa-o como eminentemente psicológico ou espiritual.

O mesmo faz o pensador francês Henri Bergson, que traz interessantes teorias sobre o tempo que, a bem da verdade, complementam e enriquecem as ideias de Santo Agostinho. Para ele, na maneira como olhamos o tempo há um equívoco: procuramos observar espacialmente algo que não tem dimensões. Dividir o tempo significa dividi-lo em anos, meses, semanas, dias, horas, minutos, segundos. Essa segmentação é precisa - cada segundo é igual a outro segundo, seguindo assim uma premissa científica. Ok, o tempo assim dividido realmente se presta à ciência, que necessita de métricas para o estudo dos fenômenos. O problema é para quando vamos além dos limites das ciências.

Um exemplo, então: já leram Machado de Assis? Gostaram de "Memórias Póstumas de Brás Cubas"? É um dos livros mais adotados nos exames vestibulares. Pois bem, como a maioria das pessoas o lê por obrigação, costuma ser uma leitura arrastada, demorada, empurrada goela abaixo. Como seria se a pessoa obtivesse prazer nessa leitura? Ora, haveria fluência, atenção. Digamos que duas pessoas com o mesmo nível de leitura se colocassem a ler este livro ao mesmo tempo, e terminassem também juntos. Falando em termos científicos, os tempos são iguais e pronto. Mas para a pessoa que leu com prazer o tempo percebido é bem menor. De onde vem essa impressão? Que tempo interior é esse, que faz com que o mesmo fenômeno seja tão distinto em circunstâncias iguais?

Para explicar essa situação, Bergson pensa nas instâncias da consciência; temos, em primeiro lugar, o instinto. Este é uma espécie de regra pronta para a solução imediata de um problema. É como quando um piano cai sobre nossa cabeça: não adianta nada, mas erguemos os braços para nos defender. Depois, temos a inteligência, que procura avaliar as relações entre as coisas antes de atuar. Para tanto, a inteligência espacializa o tempo, procura dispô-lo em compartimentos contínuos e separados. Voltando ao piano, se houver tempo suficiente, a inteligência avalia a distância, impede a ação do instinto, formula a hipótese do desvio, compreende qual o melhor ponto para a fuga, a velocidade com a qual isso deve ser feito e aciona os membros competentes para a execução da tarefa (óbvio que, para tanto, o piano deve cair de um prédio beeeeeeeeeeeeem alto). Em ambas as instâncias, podemos fazer uma medida do tempo, normalmente em segundos. Mas quem diz à consciência que tudo se deu rapidamente ou foi demorado? Quem diz quanto a experiencia "durou"? Essa percepção é a intuição. Somente com ela podemos dizer qual foi a duração (durée) do fenômeno. No caso do livro de Machado, podemos dizer que é a intuição que diz se a leitura foi breve ou demorada. A intuição não é espacializadora, ela capta o evento como um todo, e assim o transmite à consciência. Como a intuição é diferente de pessoa para pessoa, podemos dizer que ela é única, personalíssima, identificadora.

Para ilustrar a diferença entre a inteligência e a intuição, Bergson lança mão de um exemplo maravilhoso: a inteligência assemelha-se a um colar de pérolas, que são ligadas por um fio, mas são compartimentalizadas. Cada pérola é um evento, bem delineados e distintos entre si. Há um espaço que as delimita e sequencializa, isoladamente. Já a intuição é como um novelo de lã, contínuo, sem interrupções, compõe um todo, onde as experiências passadas estão sobrepostas pelos acontecimentos mais recentes, mas em um continuum: em nenhum momento o passado mais interiorizado deixa de estar à disposição da consciência, e pode, inconscientemente, ser resgatado. Como em Santo Agostinho, essa presença perene dos tempos no presente é psicológica, espiritual, inerente ao ser humano.



É nesse ponto em que podemos voltar ao filme, e com uma novidade: o cruzamento entre memória e conduta.

No campo ético, o resgate da memória motiva um momento de decisão para Amélie. Para tanto, ela acompanha de que modo se dará a reação de Dominique (o menino que ocultou os pertences, agora um homem maduro) ao rever seus objetos perdidos. Caso essa reatividade seja positiva, Amélie tomará como valor a contribuição ao próximo como chave de sua atitude ética. Nesse caso, podemos fazer remissões à ética judaico-cristã de amor ao próximo e também ao imperativo categórico da ética do dever de Kant, já que a escolha de Amélie terá por fim a constituição de uma verdade universal para si própria, mas é melhor se prender à grande sacada do filme, que é a seguinte: A escolha ética de Amélie será tomada em cima de uma constatação metafísica: qual é a importância do tempo nas escolhas do indivíduo? A memória eternamente presente é uma chave para se desvendar a verdade sobre a conduta das pessoas, inclusive daquelas que não estão diretamente implicadas com meu próprio resgate, ou minha própria expectativa. Afinal, sobre a decisão de um terceiro com relação ao seu próprio passado ela pautará sua conduta ética. Os desdobramentos seguintes em sua vida já são uma consequência desta decisão.

O filme não se limita a isto. É visível, no decorrer do filme, o desenvolvimento das habilidades sociais da personagem central, ao construir por si mesma a sua rede de relacionamentos, embora seja inevitável a percepção de suas dificuldades em virtude do déficit educacional ocorrido em sua tenra idade. Mas vou ficar na questão do tempo e deixar os demais assuntos para outra oportunidade.


Recomendação de audiência:
Esse entrelaçamento entre metafísica e ética é absolutamente original, por isso recomendo fortemente o filme.

JEUNET, Jean-Pierre. O fabuloso destino de Amélie Poulain. Filme. França, 2001. 120 min.


Recomendação de leitura:
Henri Bergson, além de grande filósofo contemporâneo, é também excelente escritor, tanto que foi agraciado com o prêmio Nobel de literatura em 1927. Sua principal obra com relação a problemas metafísicos é:

BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Sobre o tempo e atividades acadêmicas

Olá!

AACC's são maneiras interessantes de avaliar o conhecimento de um aluno. Gosto delas. Tá certo, dão muito trabalho. Precisei fazer uma série, que são exigências da minha facu. Claro, umas são mais interessantes do que as outras, mas algumas delas me chamaram especialmente a atenção, como a análise que fiz do filme "O fabuloso destino de Amélie Poulain".



A análise de obras de arte em Filosofia não é uma mera resenha. É preciso fazer ligações com as principais linhas de pensamento, citar autores e blá, blá, blá. No filme em questão, é possível ver dois focos principais: a personalidade construída sob um prisma educacional anti-convencional e os conflitos éticos estabelecidos para uma pessoa cuja formação foi delineada em um ambiente de isolamento.A narrativa é construída sobre a história de Amélie Poulain, uma menina tida como doente pelo pai, que resolve atribuir sua educação unicamente à responsabilidade da mãe. A metáfora do peixe suicida é uma referência ao ambiente neurótico que se forma de maneira sufocante. A progressão deste fato se dá até a morte prematura da mãe (ironicamente, atingida pelo salto mortal de um suicida). Os laços entre pai e filha, ao invés de se aprofundarem, tornam-se ainda mais superficiais. A tensão se alastra até culminar na saída de Amélie de casa, tão logo tenha atingido a maioridade.

O centro dramático da obra se dá no momento em que Amélie descobre escondidos em seu apartamento alguns objetos pertencentes a uma criança que por lá habitou antes dela. Nesse ponto, é possível discorrer sobre a função da memória e, principalmente, do que representa o tempo. O debate é sobre a existência tangível do tempo passado, ou seja, de que forma as recordações tornam o passado eternamente presente.

E aqui, é inevitável mencionar dois autores, donos de teses maravilhosas sobre o tempo: Santo Agostinho e Henri Bergson.

Demos preferência a Santo Agostinho, senhor mais idoso. Para ele, o tempo pode ser definido com a seguinte frase: "Se ninguém me perguntar o que é o tempo, eu sei; se eu precisar explicá-lo, já não sei". Poesia à parte, é na sua obra "Confissões" que será feita uma das mais belas definições sobre o tempo. Agostinho especula sobre onde se dá existência real do tempo, problema aparentemente insolúvel: o passado já se deu, o futuro ainda não veio e o presente é um ponto indefinível, que pode ser subdividido ao infinito. Portanto, não adianta procurar o tempo no universo imanente, ele é espiritual. Vejam: tanto a memória (passado) quanto a espera (futuro) são fenômenos intelectuais. Observar um álbum de fotografias, por exemplo, é um ato presente de reacender a memória, trazer o passado de volta. Fazer um orçamento é um ato presente de exercer uma previsão, de antecipar o futuro. Ambos são atos abstratos, psicológicos, espirituais, eminentemente humanos. A abstração se estende pela memória para resgatar o tempo passado e trazê-lo de volta ao presente. Também se estende para o futuro para trazê-lo ao presente e antecipá-lo. Esse movimento é elástico - há momentos em que se estica (extensão) e há momentos em que se condensa (distensão).

Santo Agostinho faz uma comparação muito bela para explicar sua teoria da interpenetração dos tempos: vê a interpretação de uma música como melhor exemplo. Para ele, tempo e música tem em comum a medida, o ritmo, o fluxo. Antes de se iniciar a música, todo ato temporal está no futuro. O tempo então dilata-se para a frente e começa a cumprir os compassos sonoros. A cada execução, a expectativa do que estava por vir tranforma-se em passado. Ao recordar-se da execução, o tempo muda de lado: estica-se todo para trás. Então o ciclo recomeça: começamos a cantarolar a música. A cada novo arranjo, uma nova extensão para o futuro; a cada nova execução, uma nova condensação no presente; a cada vez que se recordar da música, uma nova extensão para o passado. Este estica-e-encolhe é o próprio fluxo do tempo na consciência ou no espírito, onde passado, presente e futuro se entrelaçam e se apresentam ao sujeito.

Tá ficando comprido, e ainda tem bastante prá dizer. A complementação de Bergson e as ligações com a ética aplicada em Amélie Poulain vão ficar para o próximo post.


Recomendação de leitura:

Santo Agostinho é um doutor da Igreja. Como tal, a indicação que faço aqui é repleta de referências religiosas, mas seu fundo filosófico é bastante interessante. E, mesmo na composição doutrinária, nosso filósofo é brilhante.

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1977.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Sobre Cosme e Damião, seja com relação a balas, seja com relação à antropologia

Olá!

Há coisa de um mês atrás, eu estava andando pelo Glicério quando me ofereceram umas balas, assim do nada. Era uma mocinha, de seus 12 anos no máximo.

- É de São Cosme e São Damião, disse-me ela.



Apesar das limitações diabéticas, aceitei de bom grado. Houve uma época, em minha infância, que na festa de Cosme e Damião, corríamos por todos os terreiros de umbanda da região, atrás de balas, doces e pipocas. Tinha bem uns quatro, mas lembro em especial o da mãe Sabrina, que ficava no final da rua onde morava minha avó. Ele ficava a beira-rio e tinha um monte de amoreiras, onde eu pretejava minhas mãos e minha boca (sim, minha roupa também, para desespero de minha mãe). Fazia parte de nosso espaço comum, não havia restrição para entrada ou saída, mesmo durante os cultos.

Os católicos do pedaço tinham uma relação de tolerância com os terreiros, já que o sincretismo propiciava alguns pontos em comum. Sacumé, santos e orixás, benzedeiras e rezadeiras, enfim. Já para os evangélicos (na época dizíamos: crentes) eram antros de adoração do diabo, qualquer um que pusesse os pés lá dentro era amaldiçoado e outras patranhas deste estilo.

Onde será que foram parar? Não conheço mais quase nenhum. Por que será que estão desaparecendo?

Penso que há um grande mal em hierarquizar-se as religiões, como se uma fosse melhor que a outra. Não são. Porém, tenho motivos para acreditar que as crenças de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé, são mais vilipendiadas que as outras por motivos tão simples quanto abomináveis.

Vamos exemplificar: o lugar de culto destas religiões são chamados de "casa de encosto" ou "terreiro de macumba" pelos praticantes de outras crenças. É para lá de evidente que o olhar de quem lança um tratamento destes não tem nenhum caráter antropológico, nenhum distanciamento crítico. Outra crítica é a de que se trata de uma religião primitiva, muito próxima ao animismo praticado desde os tempos pré-históricos. É um olhar absolutamente parcial, contrário ao espírito filosófico. Senão vejamos.

Uma das maiores dificuldades do Cristianismo é explicar a existência do mal. Se Deus é bom, por que permite que o mal aconteça? As explicações não são boas, em geral. A mais razoável é a do catolicismo - o mal existe porque Deus não cria robôs, porque o livre arbítrio do homem o leva para o mal. Mesmo assim, o problema persiste, porque nem tudo está sob controle do homem. Se pensarmos em predestinação - tão cara aos evangélicos - essa teoria cai por terra. Nesta linha de pensamento, Deus já criaria seus filhos com destino certo, para gozar ou para sofrer, para ir para o céu ou para o inferno. Só os eleitos teriam lugar no paraíso. Deus estranho, esse. Quanto à Umbanda, sua visão é de que o mal existe e devemos saber lidar com ele. Não há como negar que todos possuem variações psicológicas e diversidades de comportamentos. Aos momentos ruins, um evangélico típico atribui a ação demoníaca. Os umbandistas, ao contrário, verificam um desequilíbrio no próprio ser.

Os umbandistas são mais telúricos, ligam-se mais fortemente à natureza e sua inconstância. Os fenômenos naturais estão ligados à divindade de seus orixás, que controlam sua ocorrência e características. Ao contrário de ser meramente uma tendência ancestral, o fato é que eles são mais ecológicos, respeitam mais o meio ambiente, afinal lá está a morada de suas divindades. O que é mais moderno que isso?

Outra questão que os umbandistas tiram de letra e que perturbam outras religiões é a questão do sentimento de culpa. Por exemplo: enquanto na maioria das religiões a homossexualidade é encarada como erro, como desvio, como pecado, e quem possui uma tendência desta carrega o peso de uma auto-condenação, no umbandismo e no candomblé isso é uma decorrência espiritual, não há fardo a carregar.

A grande resposta à questão é: as religiões afro não são respeitadas por puro preconceito. São religiões de negros, esta é a verdade. Trata-se do antiquíssimo preconceito de raça, ele mesmo, o racismo. Que continua trazendo seus danos: estamos perdendo parte significativa de nossa cultura como um todo ao diminuir o valor da cultura trazida pelos africanos e pelos indígenas.

Não estou aqui desfazendo da fé e das convicções de ninguém. Só queria lembrar que é saudável e até mesmo necessário que tenhamos um olhar mais crítico e menos dogmático sobre a cultura do outro. Gostaria de mencionar dois eventos que demonstram a inter-religiosidade levada ao seu grau mais elevado: o primeiro é a lavagem da escadaria do Bonfim, que ocorre anualmente na Bahia, mais por força da tradição dos negros, que fizeram deste evento um sinônimo de ecumenismo. O segundo é menos conhecido, mas talvez mais impressionante: o presépio dos orixás, que fica em um convento franciscano em Guaratinguetá. Esses são sinais de respeito pelo conhecimento do outro, do reconhecimento da validade de sua cultura.