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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Constantino I e o Concílio de Niceia inaugurando o pensamento medieval

Olá!

Como já contei para vocês neste texto, os dias arrastados da pandemia parecem não ter fim e vão cansando as costas da gente. Logo que tudo começou, mudei muito pouco no arranjo da casa, simplesmente pegando uma mesinha auxiliar para colocar meu computador em cima, e utilizando um cadeirão doado pela Dona Madalena, senhora nonagenária que a patroa toma conta. Passando o tempo, minha sala foi pegando mais e mais cara de escritório. Primeiro, foi uma mesa um pouco maior. Depois, tive que trocar de cadeira antes que minha hérnia de disco me mandasse para o hospital. Por fim, coloquei um monitor a mais e troquei a posição da mesa, removendo as poltronas da sala e mandando-as para o quarto. Já detectei a necessidade de fazer outras adequações, de modo que alguém que tenha vindo em casa há um ano estranhará a nova ordenação da sala (ora escritório), com as perturbações típicas de quem tem que se virar em espaço exíguo.

A vida é cheia desses percalços que nos redirecionam para rumos inesperados, e alguns deles podem afetar não só um indivíduo, mas uma comunidade inteira, uma cidade, um país... o mundo todo! E essas guinadas às vezes são tão fortes que os historiadores utilizam-nas como marcos de inflexão, dando a elas o nome de Idade ou Era. Não sei se os escribas futuros olharão para nossa época e vão chamá-la de Era da Pandemia, mas o fato é que alguma coisa mudará permanentemente.

Enquanto isso, penso em outros momentos decisivos da humanidade, e percebo que a Filosofia meio que correu atrás da História, o que não chega a ser surpresa nenhuma. Tudo vai atrás da História, como se fosse o trio elétrico nas ruas do Nordeste. Só não vai atrás quem já morreu. À frente, só quem teve a sacada de inventá-lo, mas aí a alegoria só vale para os visionários. Essas transições nunca são abruptas, e não dá para atribuir a um único evento isolado as transformações sociais e contextuais para que tudo mude de rumo, e, portanto, os eventos históricos mais expressivos são agregadores de uma pilha de outros acontecimentos que lhe giram em torno. Mas há um em especial que, em termos de guinada filosófica, é mais relevante que o próprio motivador histórico. Estou falando do Primeiro Concílio de Nicéia.


Para compreender, precisamos entender um pouco do que acontecia naquela época. A Filosofia Clássica e sua sucedânea helenística baseavam-se na visão humanista inaugurada pelos
sofistas e levada ao apogeu pelo power trio Sócrates-Platão-Aristóteles. Neste mesmo tempo, o mundo era dominado pelo Império Romano, que estendia seus tentáculos por territórios imensos, a ponto de necessitar ser dividido para se tornar minimamente governável. Seu fim se deu em duas partes, com o final da porção ocidental pela invasão dos povos bárbaros em 476 dC, enquanto o remanescente Império Bizantino durou até 1453, com a tomada de Constantinopla, sua Capital, pelos turcos, o que coincide com a duração da Idade Média. Ocorre que, em termos filosóficos históricos, a Idade Média tem seu princípio no precitado Concílio, no ano de 325. E aqui cumpre a mim uma série de esclarecimentos.

O Cristianismo começa seus dias como uma das tantas seitas surgidas no seio do Judaísmo. Originalmente, adotava uma conotação comunitária, como já faziam outras facções, como é o caso dos essênios. Entretanto, ao invés de buscar isolamento, eles procuravam viver inseridos nas cidades, levando em conta que uma de suas características era o proselitismo, um mandato apostólico dado por Jesus, seu fundador. Em tempos de invasões romanas espalhadas pelo mundo inteiro, é natural que houvesse momentos de resistência na maior parte dos territórios ocupados. Não era diferente na Judeia, e todos os movimentos existentes caíam na mesma vala comum dos insurgentes, mesmo quando pacíficos. Além disso, este caráter apostólico fazia com que os cristãos pululassem por todas as partes, e em todas as partes estava quem? Sim, o Império Romano. Em geral, os cristãos eram bem tolerados, dado seu caráter inicialmente pacifista, mas eram tempos rudes, e as perseguições eram extremamente cruéis, com muito sangue escorrendo, incluindo muita tortura. Em uma situação dessas, era muito difícil dar uniformidade à doutrina, que acabava sendo contaminada pela cultura de cada canto onde se instalasse uma igreja. Sendo assim, o tecido doutrinário cristão foi se transformando em uma colcha de retalhos, maximizada pela dificuldade de comunicação entre seus múltiplos centros, ainda que houvesse uma estrutura hierárquica já bastante rígida em seus alicerces. Afinal de contas, também os bispos e papas eram alvo de perseguição nos momentos de crise, e muitas vezes eles precisavam procurar ficar ocultos.

Entretanto, uma história cheia de elementos lendários mudaria para sempre o curso do Cristianismo e, por extensão, do pensamento. Em 306, Constantino torna-se césar, e, desde então, foi concentrando mais e mais poder em suas mãos. Em 313, após uma suposta experiência mística*, expede o Édito de Milão, onde dá liberdade de culto para todos os habitantes do império, dando fim à possibilidade de novas perseguições. Com isso, os cristãos puderam abrir comunicação mais franca e assumida.

É óbvio que Constantino foi tomado como um santo pela época, uma espécie de libertador. Com isso e mais um pouco, ele teve bastante influência nos destinos da igreja, que ficou definitivamente catalisada pelo Primeiro Concílio de Niceia, aquele que eu mencionei logo acima. Estando notavelmente fragmentada, a dogmática cristã se encontrava ameaçada em sua unidade. Constantino percebeu que isso não era um problema meramente religioso, mas que podia se estender à manutenção política. Fundamentalmente, a resolução de que se Cristo era ou não consubstancial ao Pai** não faria o preço da saca de especiaria mudar, mas como os cristãos passaram a habitar cada vez mais os palacetes reais, o imperador achou interessante tirar proveito político da situação, e patrocinou a realização do concílio, reunindo, hospedando, transportando os bispos de todo o mundo onde houvesse cristãos e, principalmente, dirigindo os seus trabalhos.

Somente para esclarecer, um concílio (que tem a mesma origem etimológica da palavra conselho) é a reunião de bispos com o objetivo de decidir dogmas e doutrinas controversas, e somente a partir de Niceia ganha um caráter ecumênico, ou seja, que se estende por todo o mundo. É bem verdade que outras reuniões de caráter doutrinário foram realizadas anteriormente. Entretanto, elas sempre se deram em âmbito local, por todos os motivos que listei mais para cima. Este formato se deu por imitação do Concílio de Jerusalém, descrito na própria Bíblia nos Atos dos Apóstolos (At 15), onde uma decisão para fins de uso da circuncisão aos novos convertidos foi discutida em uma reunião com a então incipiente comunidade cristã.

Embora seja muito difícil duvidar da influência de Constantino na realização do concílio, afirmar que ele influenciou as decisões doutrinárias é algo que não farei. Diz-se que este concílio decidiu o cânon bíblico, dizendo o que era válido entre os livros que compunham seu totus, mas isso é um erro. São muitas colocações feitas com relação a Constantino que não possuem rigor histórico, nem a favor, nem contra, e não vou entrar na pilha de fazê-lo eu. Sua pauta tinha mais a ver com aparar divergências que podiam produzir dissensos populacionais do que propriamente de temas teológicos, como seria a determinação do cânon.

E o grande tema, doutrinariamente falando, foi a questão da homoousia já mencionada. A faceta política dessa contenda tem a ver com o sacerdote Ário, um dos presbíteros de Alexandria, que negava a divindade de Jesus e formou um bom número de seguidores. Vencido no concílio, foi excomungado e exilado. Continuou debatendo pela validade de seus argumentos, até ser readmitido pelo imperador e tendo sua excomunhão revertida. Pouco tempo depois foi encontrado morto, alguns dizendo ser castigo dos céus, outros envenenamento.

Outra resolução foi relacionada ao Cisma Meleciano, ocasionado pelo patriarca Melécio, que aplicava rigor excessivo contra os arrependidos de apostasia, algo muito comum nos tempos de perseguição. Achava que eram relapsos que não tinham coragem de sustentar a própria fé, o que partia desde as altas hierarquias. Isso fez com que ele criasse uma hierarquia própria em seu patriarcado. Os padres conciliares foram mais amenos com relação a Melécio. Mantiveram seu patriarcado, impedindo-o, no entanto, de ordenar novos clérigos, e colocando como necessária a revalidação das ordenações feitas por ele.

Além dessas provisões mais importantes, muitas miudezas foram deliberadas, tipo proibir os fiéis de ajoelhar durante o Pentecostes, e desmistificando um pouco da influência de Constantino, podemos chegar à sua importância filosófica, porque foi a primeira vez que a igreja se reuniu de fato e sem impedimentos para determinar seus caminhos doutrinários, o que determinou a rota do pensamento a partir de então. Aliado a uma aproximação muito forte com o poder central, é a partir deste marco que a Filosofia tem uma guinada, inclusive com a chancela oficial do Estado, o que só se solidificou daí para frente, em especial quando o Imperador Teodósio fez o Cristianismo saído do Concílio de Niceia como religião oficial de Roma, em 380.

Quando nós pensamos nas novidades da Filosofia Medieval, temos o teocentrismo em mente logo de cara. Muito embora eu já tenha escrito um longo texto onde desembrulho a visão de monotemática exclusiva nesse período, é importante observar as confluências e as mudanças de paradigma que ocorreram na transição entre ambos os períodos históricos.

É preciso observar que as antigas escolas helenistas já traziam consigo muitas das coisas que serão absorvidas pelo Cristianismo, em especial com os estoicos, com os cínicos e, em certa medida, com os ecléticos. Sempre lembrando que todas essas escolas traziam uma ideia de desprendimento do mundo pela via da desimportância da articulação do mundo com a subjetividade de cada um, nota-se que a ideia de transitoriedade da vida, cujo objetivo é a preparação para um além-mundo, usa dos mesmos recursos de resiliência à dor, a passagem do destino a um segundo plano e uma escolha ética pela fé, no que vão divergir frontalmente dos céticos, que optam pela supressão dos juízos acerca da verdade. Para a nova corrente, é imprescindível uma verdade do modelo emunah, baseada mais na confiança no discurso do que propriamente na verificabilidade (sobre isso, redigi um texto que os convido a ler).

Embora existam esses pontos em comum, não estaríamos falando em uma guinada na história filosófica se não existissem muitos pontos de inflexão no então novo pensamento. Uma das mudanças de paradigma mais expressivas foi o reconhecimento da fé como fonte cognitiva. De fato, até hoje compreendemos que não há uma fonte alternativa para se falar em uma transcendência que não seja pela via da fé. Não faz nenhum sentido colocar uma Bíblia na frente dos olhos e querer ler nela histórias literais. É muito diferente fazer essa leitura de um ponto de vista meramente técnico ou imbuído de um espírito de que lá está a palavra de uma divindade. Dessa forma, há uma completa mudança de visão não só da maneira como as pessoas se relacionam com seus deuses, mas como se relacionam com o mundo. Sendo assim, a Filosofia ganha um viés novo, escapadiço à objetividade da razão e buscando uma nova lógica.

Além disso, a própria História ganha um caráter linear e envelopado, cujo princípio está na criação do universo e que se encerra no Apocalipse. Entretanto, o desaparecimento da História se dá unicamente no plano material, e há uma continuidade da existência que vai para além da História, com a vida eterna em uma dimensão metafísica, onde o sentido de ciclos das filosofias orientais perde a razão de ser e a pouca importância que os helênicos davam à questão passa a ter relevo. A História é, para a Filosofia Medieval, como um caminho, cujo propósito é um supremo bem meio que semelhante ao que nos falava Platão. Só que, neste caso, esse bem se personaliza na figura de um deus assemelhado a um pai, tanto para o afeto, quanto para o castigo.

No plano da Ética, há uma mudança muito significativa dos valores, com a simplicidade e a alteridade ganhando um estatuto de ferramentas salvíficas. Sabemos que os gregos tinham no heroísmo um propósito de vida, que vira de ponta-cabeça a partir da lógica cristã. Não é mais aquele capaz de grandes feitos o que consegue seus objetivos, mas aquele que melhor se adapta à vida comunitária, vendo no outro alguém com tanto valor quanto a si próprio.

E, para não ficar muito cansativo, muda muito a questão dos sentimentos, mais especialmente do amor. Tínhamos na Antiguidade Clássica uma ênfase no amor em sua dimensão erótica, que dependia de corpos para acontecer, e que desembocava em uma ascensão dos sentimentos. Porém, o Cristianismo propõe um novo modelo, que vai refletir no pensamento filosófico. O amor emana do próprio Deus, e, portanto, não tem um sentido elevatório como quer Platão, mas sim de doação divina, o que lhe dá um caráter de gratuidade impossível no contexto do Eros. Isso tira os limites deste amor, que recebe o nome de ágape, uma novidade em termos de relação com o divino, já que os deuses gregos e romanos eram de um modelo completamente distinto, muito mais semelhantes a homens.

Estes e outros fatores fizeram com que o estudo filosófico se dirigisse ao fenômeno religioso, e por lá foi mantido por cerca de mil anos. Constantino não oficializa o cristianismo, mas lhe dá pleno apoio, e com isso a instituição se torna poderosíssima, que acabou transcendendo o próprio poder temporal. Mais tarde, como signo desse poder, muito acabou por se impor ao pensamento, especialmente no período inquisitório, mas isso é outro assunto, para outro momento. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Pouco nós temos de verdadeiramente fiável para nos relatar o que foi o Concílio por dentro, especialmente a questão da influência de Constantino. O principal narrador é Eusébio de Cesareia, que tinha uma visão particularmente parcial, e sua obra é, na verdade, um panegírico. Mas é possível filtrar uma boa quota de informações relevantes.

EUSÉBIO. Vida de Constantino. Gredos: Madri, 1994.

* Homoousia é um termo grego que significa da mesma substância. A controvérsia ariana dizia respeito ao entendimento de que o Filho não tinha a mesma substância do Pai, ou seja, era um homem especialmente abençoado, mas sem a essência divina. A briga toda era essa.

** Diz-se que Constantino, às vésperas de uma decisiva batalha contra seu opositor Maxêncio, sonhou com uma cruz resplandecente, onde era possível ler a frase “com este sinal vencerá”. Mandou pintar uma cruz nos escudos de seus soldados e obteve uma vitória acaçapante.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

O café filosófico do quotidiano – discussões sobre alma e corpo, e uma alternativa à "doutrina oficial"

Olá!

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A maneira mais tradicional de se extrair um bom café é o uso de coadores de pano. É quase que uma instituição do patrimônio histórico: o aroma do café que escoa lentamente pela “calcinha da véia”, tomando todo o ambiente. Geralmente, é o tipo de coisa que acende nossas memórias afetivas, seja porque lembramos de nossas progenitoras que ainda residiam nos sítios, dando um ar rural ao ato, seja porque era o primeiro cheiro que sentíamos quando  acordávamos, uma quase-tradução de vida que se renova a cada dia.

Entretanto, embora seja prazenteira essa invasão de sensações, é preciso reduzi-la à nossa realidade circunstancial. Para o meu cafezinho matinal diário, não necessito daqueles aparatos que produzem litros, mas apenas duas xícaras. Ao invés de um fragmento de saco de farinha e um suporte, utilizo uma mariquinha e um mancebo, suficientes para conseguir um bom líquido.


Nome do utensílio: mariquinha

Tipo de técnica: café coado (percolação)

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Fino a médio

Dinâmica: um coador de tecido com trama moderada sustentado por um suporte fixo retém as partículas de café enquanto a água faz a extração do café, desembocando em um recipiente por ação da gravidade.

Resíduos: dependendo da trama do tecido. Costumam ser bem poucos.

Temperatura de saída: Baixa

Nível de ritual: médio a alto

Embora seja um processo simples, a mariquinha não dispensa que se tomem alguns cuidados. O primeiro é que seu processo de higienização precisa levar em consideração um paradoxo: é preciso remover muito bem os resíduos de borra dos cafés anteriores, mas o uso descuidado de sabões e detergentes costumam adulterar o sabor do café de maneira decisiva. Portanto, não cabe ser desidioso num momento desses. Uma boa técnica consiste em remover a borra tão logo ela se possa desprender sozinha do tecido. Logo em seguida, é bom enxaguar vigorosamente o saquinho de modo a remover o máximo possível de pó. Por fim, pode-se ferventá-lo por algum tempo. Esse processo diminui a vida útil do aparato? Sim, e é assim mesmo que deve ser. Um tecido saturado de borra começa a estragar o sabor do seu café, e chega um momento em que tudo o que há a fazer é descartá-lo. Faz parte.

Mas no dia-a-dia, após a higienização, é preciso moer os grãos de modo a deixá-lo com uma espessura que fique não fique fino como uma farinha, nem espesso como uma semolina (sempre lembrando que o critério é do freguês – este é o modo como eu faço o preparo). Já com a água aquecida, escalda-se a mariquinha já no próprio mancebo, para remover qualquer resíduo adicional e umedecê-la. Despeja-se bem no fundo uma quantidade de pó na proporção 10:1, ou seja, para um café de 100 ml, usa-se 10 g de pó. Eu prefiro controlar a intensidade do café na moagem, e não na proporção. Um pó mais grosso deixa a água passar mais rapidamente, o que gera um líquido menos intenso, e vice-versa. Colocado o pó, despeja-se bem lentamente e em movimentos circulares (usando de preferência um bule pescoço-de-ganso) uma quantidade de água suficiente para apenas molhar todo o café, em uma operação chamada de pré-infusão, que serve para uniformizar o pó em uma massa única. Após uns trinta segundos, pode-se derramar a água toda, novamente em movimentos lentos e circulares, até verter completamente em sua xícara. Açúcar, adoçante ou nada é seu critério exclusivo. Santé!

Como já sinalizei no primeiro texto com este leitmotiv, transformar todo esse ritual em uma práxis está vinculado a um ato muito simples: o de encontrar prazer em coisas simples. E não se pode realizar todo esse preparo para não se prestar atenção justo no momento catártico da ingestão. É uma coisa para se fazer aos pequenos goles, percebendo notas e acidez, espalhando todo o líquido pela boca para absorver a conjunção de paladar e olfato. E o café conversa contigo, ele te dá a conhecer sua existência com suas características próprias.

Eu não sou um connoisseur, apenas apreciador, mas dá para sentir algo de metafísico no rito. O café é uma coisa que parece ter uma alma, que forma uma conexão com o teu espírito, meu leitor. Alma… que coisa mais esotérica. Pelo que tenho crido nos últimos tempos, não me parece fazer muito sentido que as coisas tenham alma. Mas há casos em que parece existir uma conexão que vai além do físico, que nos pega tão fortemente pelos sentidos que parece excitar um sexto deles (leia mais aqui). Mas a história do dualismo corpo-alma é tão antiga que ficou meio que enraizada na nossa cultura e, mais ainda, em nosso subconsciente. Isso faria todo sentido do mundo nos tempos da Filosofia Medieval, quando a questão da natureza de Deus estava em voga, mas que não deixou de ser real mesmo após o teocentrismo. Aliás, logo após ele tivemos Descartes, e com ele veio uma separação entre mente e corpo que se tornou clássica.

Essa divisão foi chamada por Descartes de res cogitans e res extensa, ou seja, coisa pensante e coisa extensa, no sentido de ocupar um espaço no mundo material. A primeira corresponderia a todo o pensamento da pessoa, sua subjetividade, seu modo particular de perceber o mundo, enquanto o outro seria uma espécie de limitador, porque necessariamente ocupa um lugar no mundo e onde a cogitans ficaria contida, obtendo informações do mundo exterior.

Descartes dá primazia absoluta à res cogitans, ou seja, à mente. Segundo ele, a certeza pela própria existência se dá unicamente por essa via, já que é esta que duvida, que raciocina, que pensa, mesmo que seja para se enganar. Ainda que fôssemos cérebros na cuba, nossa existência estaria assegurada na clave da ilusão. É irreal, mas é existente.

Nesse dualismo cartesiano, o corpo representaria tudo o que há de físico e mecânico em um ser humano, perecível, efêmero, tal qual acontece com qualquer outro animal. O que seria o grande elemento de diferenciação seria a existência da mente, que não se confunde com o cérebro, este também parte da res extensa. A mente não se traduz meramente em neurônios, ela é outra coisa, permanente, inesgotável, que transcende toda corporeidade. Sim, é a mesmíssima identificação com a alma, algo que tem uma substância divina.

A prova de existência através do pensamento é muito elegante de fato, e parece praticamente irrefutável, mas que não está a salvo de contestações. Incomoda-me um pouco essa ideia. Por que eu obrigatoriamente preciso tirar de meu próprio corpo aquilo que é percebido por ele? Da mesma forma que a fumaça que evola do café não é sua alma, mas uma de suas características físicas, a nossa percepção de mundo, apesar de ter toda a pinta de estar fora, vem de nossas predisposições neuronais. E por isso fui procurar alguns contestadores do dualismo. E encontrei Gilbert Ryle.

Ryle foi um filósofo inglês que se debruçou muito fortemente sobre a questão da linguagem, mas que acabou derivando para problemáticas sobre a mente. Ele notou que, mesmo quando a mente não fosse colocada como um sinônimo de alma, a grande maioria das escolas de pensamentos mantinha o mesmo aparte mente-corpo sistematizado desde o século XVII pelos racionalistas, Descartes à frente. Por essa razão, ele chama o dualismo de doutrina oficial, no meio termo entre a jocosidade e o protesto, pelo exato motivo de ter se fincado no substrato das teorias da mente até o século XX. Mas apesar de seu alcance, o raciocínio está errado.

Ryle usa o exemplo da universidade, de quem faço uma tradução livre. Imagine que você recebe um amigo do interior, e quer mostrar a ele a universidade onde você exerce suas atividades. Você apresenta a ele toda a estrutura principal: os prédios, as salas de aula, os auditórios, os laboratórios, as bibliotecas, os acervos e coleções. Você mostra também os departamentos todos, as salas de mestres, a reitoria, a tesouraria, o diretório acadêmico, e até mesmo os componentes acessórios, como as quadras, os ginásios, o refeitório e a república. Mostra inclusive as pessoas: docentes, pessoal administrativo, alunos, porteiros, pesquisadores, visitantes, palestrantes, colaboradores e tudo o mais. Mostra as publicações, os periódicos, os eventos, a programação cultural e tudo o mais que a universidade produz. Mostra as láureas, os prêmios, as benemerências, os alunos ilustres e os projetos lá desenvolvidos que foram desembocar na sociedade, seja na forma de tecnologia, de projetos sociais, de novas escolas de pensamento. Você mostra tudo o que tanto te orgulha, e o seu amigo finaliza a visita te perguntando: nós vimos tudo isso, mas onde está a universidade? Onde ela se encontra em si mesma?

O seu amigo procura na universidade algo que não está nela, uma espécie de espírito da universidade, e que é seu componente mais primordial. Mas acontece que a universidade não subsiste sem todos esses componentes que você mostrou a ele. É mais ou menos o mesmo problema que acontece com a diferenciação entre cogitans e extensão em Descartes. O corpo é composto por vários órgãos, cada um com sua função específica, sendo que um deles é o cérebro, cuja função é, fundamentalmente, o pensamento, completando com excelência uma unidade operacional semelhante a um aparelho que se põe a funcionar em perfeita harmonia. Imaginar haver algo fora dele que lhe controla é como se houvesse um fantasma habitando essa máquina.

Gilbert Ryle vê que o fantasma na máquina nada mais é do que um problema de linguagem, chamado por ele de erro categorial. E o que é isso? Já falei aqui e aqui sobre eles no Pequeno Guia das Grandes Falácias, mas é preciso ser mais específico aqui. A linguagem somente é precisa quando chamamos o pão de pão e a pedra de pedra. Segundo Ryle, Descartes parte da errônea premissa de que é pode-se tomar como possível uma relação entre alguma coisa material e outra imaterial, confundindo o pão com a pedra. Essa é uma das peripécias possíveis da linguagem. Nós podemos nomear certas propriedades ou sentimentos como se fossem objetos, como a inteligência, ou o amor. São substantivos que não representam nada de tangível, nada de materializável. Até aqui, nada de errado. Mas a mente não pode ser excluída do contexto material do corpo, simplesmente porque ela é parte integrante do mesmo. Ela não funciona igual aos demais substantivos abstratos, que, por mais que possamos traduzir em símbolos (coruja para inteligência, coração para amor) como os dois que eu citei neste parágrafo. Isso porque se de fato fosse possível que a alma interagisse com um corpo, em algum momento ela teria que virar uma chavinha material, e, dessa forma, ela não estaria alijada desta mesma categoria, tal qual o próprio corpo, ora essa. A alma seria uma função nervosa como é a mente, e uma função nervosa é a função de um corpo, imanente, tangível, concretizável. Dessa forma, o erro de Descartes não estaria no desenvolvimento de sua tese, mas no seu próprio nascedouro.

Entretanto, se o sujeito cognitivo imaterial, sintetizado na mente ou na alma de acordo com a clientela, não é real, qual será nossa alternativa? Ryle entende que não se pode pensar nenhuma forma de compreender o sujeito fora de seu próprio organismo. A resposta estava na interação com o ambiente e o modo com o qual reagimos a ele, ao que ele deu o nome de disposição. Vamos tentar entender um pouco esse mecanismo.

Vamos pensar na gama de sentidos que temos ao nosso dispor. Posso amar, sofrer, entediar, enlevar, sentir sede ou fome. Da mesma forma, meu vizinho de apartamento também pode possuir todos esses sintomas e sentimentos. Há duas coisas aqui que temos que concordar: a fome que eu sinto não é a mesma que meu vizinho sente, e, entretanto, ambas possuem o mesmo valor proposicional – “p tem fome”, sendo que p posso ser eu ou pode ser o vizinho. Até aí tudo bem?

Com relação a mim, sinto aquele incômodo aperto no estômago e já sei que estou com fome. Trata-se de uma experiência direta, obtida de maneira imediata pelo meu próprio organismo. Não há pessoa no mundo que possa falar melhor sobre minha fome do que eu mesmo. Já com relação ao vizinho, não tenho qualquer acesso direto, restando apenas o seu comportamento para que eu possa fazer qualquer dedução, lembrando que seus depoimentos também têm conteúdos comportamentais. Ocorre que somente através de alguma coleção de observações empíricas se pode constituir um arcabouço para essa dedução. “A fome faz com que meu vizinho fique mal-humorado”, “a fome faz com que meu vizinho empalideça”, “a fome faz com que meu vizinho fique com o olhar perdido” são proposições que vão se ajuntando para que eu deduza seu comportamento. Portanto, através de uma base empírica, consigo estabelecer uma relação entre a experiência interior do meu vizinho e seu comportamento.

Percebem que, levando tudo isso em conta, nós só conseguimos assegurar a existência de nossa própria mente? Percebem que não conseguimos assegurar a mente de nosso vizinho, a não ser que consideremos válida sua detecção por meio de inferências? E que, por fim, sendo a mente o principal critério de existência, não podemos assegurar logicamente a existência do cara que mora atrás da porta da frente, que eu vejo entrar e sair todo santo dia, que faz barulho e reclama da fome, da sede, do barulho?

Mas o estudo do comportamento é justamente a chave para a descoberta do fenômeno do raciocínio, o que aproxima Ryle dos psicólogos behavioristas. Segundo podemos pensar, a atividade mental tem como principal característica a tomada de decisões inteligentes. No entanto, mesmo que discordemos radicalmente da doutrina oficial, continuamos tendo as intenções internalizadas disponíveis para aferição apenas por nós mesmos. O que nos permite verificar a inteligência alheia é sua ação pública, ou seja, aquela que está exposta para observação do mundo. Este comportamento mensurável, entretanto, não é unívoco. Ele varia essencialmente pela prática e pela interação com o ambiente. Um dos exemplos de Ryle diz respeito à fala. Uma criança não aprende a falar porque primeiro pensou, para depois articular a voz. Ela simplesmente o faz, e molda seu aprendizado de acordo com o que seu ambiente lhe devolve de informações: se um vagido qualquer não obtém reação de ninguém, ela registra essa experiência e tende a descartá-la, sendo que o exato contrário ocorre quando obtém resposta. Pensar e agir, portanto, estariam em contiguidade.

Mas isso não seria a tradução de meros hábitos, e ao fim e ao cabo, as reações de diferentes pessoas se assemelhariam muito, sendo que não é isso o que observamos na prática? Ryle pensa que existe uma orientação disposicional que é diferente em cada indivíduo, que é o que exatamente leva à variação. Colocados diante de um novo desafio, cada um de nós pende para uma certa solução em razão de nossa disposição, o que leva a resultados absolutamente diferentes entre si. Temos os exemplos do vidro e do açúcar: o vidro tem uma disposição em ser frágil, e o açúcar em ser solúvel. Isso significa que o vidro se partirá como em um passe de mágica? Ou que o açúcar se dissolverá independentemente de seu contato com um líquido? Não, para os dois. A disposição dá um indicativo de tendência – o vidro se quebrará ao levar uma pedrada e o açúcar se dissolverá ao ser posto no café. Fora disso, não se pode assegurar a fatalidade de cada um deles, como se fosse um destino predeterminado.

Com isso, podemos concluir que a inteligência não se faz sem a interação com o ambiente que nos rodeia. Pensar e agir são duas faces da mesma moeda – através da ação, que é a externalização de um pensamento, expressamos uma disposição contida em nós, em um meio que nos permite realizá-la. Em outras palavras, é a construção de um conhecimento que parte da prática de um ser pensante. Sem a necessidade de uma mente externa, de um fantasma, de uma alma.

Isso tudo segundo Gilbert Ryle.

Ótimo momento para um café. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Em italiano mesmo, porque não achei na última flor do Lácio. Vamos lá... Nada que um dicionário on line não possa ajudar.

RYLE, Gilbert. Il Concetto di Mente. Bari: Laterza, 2007.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Pequeno guia das grandes falácias – 54º tomo: o ignoratio elenchi (conclusão irrelevante) e a distorção de informações verdadeiramente relevantes

Se te gusta de café com leche, por debajo de la puerta te atiro um ladrillo - tia Antônia

Olá!

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Todo mundo já teve um amigo chato, não é mesmo? Um ou vários. É aquela velha história: você começa a ter uma conversa casual com uma pessoa qualquer, essa conversa acaba sendo agradável de alguma forma e vai se repetindo. Com o tempo, o novo amigo em questão vai se revelando e o que era razoável vai se tornando tedioso, angustiante ou revoltante, e tudo o que você quer é se afastar, amargando um arrependimento pela falha no detector de aborrecimento. Mas o camarada já grudou, e você precisa aproveitar uma brecha qualquer para se ver livre do incômodo. A historinha que vou contar agora é uma homenagem a todos os chatos do mundo.

Vamos nominar meu amigo simplesmente como M. Eu costumava chegar um pouco mais cedo no serviço por conta do inferno do ônibus. Era aquela coisa: o tempo justo para chegar era ingrato. Qualquer chuvinha mal dada, e lá ia eu picar o cartão além do horário; se eu saísse mais cedo, chegava muito cedo; se saísse um pouco mais tarde, ora, chegava ainda mais tarde. Como não podia ficar me dando ao luxo de ter descontos no salário, optava pelo primeiro. Passava no boteco para tomar um cafezinho e subia lentamente a escadaria do trabalho, onde me punha a estudar, ler ou simplesmente imitar lagarto, aproveitando a oportuna solidão. Depois de um bom tempo nessa prática, M chegou mais cedo um dia, e ficou admirado com minha presença, até um pouco sem jeito. Ele queria usar o scanner da sala para digitalizar um livro, o que não dava para fazer sob as vistas do chefe. Fez um rodeio imenso para me explicar sua necessidade, no que lhe tranquilizei – não tenho a menor intenção de denunciar ninguém que não me prejudica. Como o serviço não podia ser feito todo de uma só vez, meu caro colega chegou uma série de vezes mais cedo, e foi fazendo sua tarefa a prestação. Com isso, papo vai e papo vem. A princípio, nada de mais, só um pouco das aflições recorrentes do contribuinte com as namoradas que ele não conseguia, e, quando conseguia, não mantinha por mais de um mês.

Na maior parte das vezes, eu dava respostas evasivas, do tipo “é assim mesmo”. Entretanto, não sei o que eu falei que acabou me tornando uma espécie de guru para ele, e M começou a chegar mais cedo mesmo com sua digitalização completa há tempos. Ignorando minha compenetração na leitura ou enlevo no sono, o cidadão começou a me pedir toda sorte de conselhos, algo que eu abomino com todas as minhas forças. Comecei a dar umas patadinhas de leve no começo, já que a boa educação que minha mãe me deu me impedia de ser muito drástico. Só que meu caro M confundiu isso com firmeza de caráter e passou a me admirar. “Você diz o que eu preciso na minha cara”, sofismava o sacripanta.

Isso transcorreu por um bom tempo, a ponto de me fazer reavaliar a chegada mais cedo. Passei a esperar no bar, mas lá ele também me descobriu. Eu aumentei o nível de descortesia, pedindo que não me perturbasse mais com suas inseguranças. Eu ficava um pouco consternado, imaginando quantas vezes eu também não era chato, e o quanto eu podia estar sendo um ponto de apoio válido, e, no fim e por fim, acabava dando um mínimo de atenção às aflições do meu consulente. Mas um belo dia veio o pingo que transborda o balde. A irritação crescente baixou meus níveis de tolerância lá para o zero, e a lengalenga começou mais cedo. Naquele dia em especial, ele chegou especialmente agitado, e nem tive tempo de tomar meu primeiro copo de café. O caso era o seguinte: meu “amigo” morava em um belo apartamento na Vila Mariana, próximo ao metrô, deixado por seu pai morto havia uns bons dez anos. Em um dos cômodos, foi montada uma sala de cinema, com tudo o que havia de melhor na época – home theater, oito caixas de som espalhadas pelo cômodo mais um subwoofer, televisão de não sei quantas polegadas, um datashow no teto projetando para uma parede especialmente preparada para ele, uma aparelhagem de som que eu nunca ouvi falar o nome e, no centro de tudo, uma poltrona daquelas de nave espacial, com regulagem de inclinação, altura e o escambau. Era o orgulho do menino, que contava para deus e o diabo sobre as vantagens de se ter tanta potência sonora em um espaço restrito, para obter a melhor sonoridade alcançável.

Ele estava de namoro novo, e tinha levado a pobre menina em sua casa pela primeira vez no último final de semana. Ele apresentou a mãe e o imóvel, com ênfase na precitada miniatura de cinema, para qual ela deu limitada bola. Na segunda seguinte, ele chegou na sala ainda antes que eu, o que era péssimo sinal.

É difícil transpor o diálogo aqui, então tentarei manter basicamente a essência do que foi dito. O aflito M contou toda a cantilena que eu já disse logo acima, dando uma ênfase quase desesperada no fato de a menina não ter ligado para o tal quarto. Eu, ainda paciente, fiz a única pergunta cabível, apesar da grande complexidade: “Ora, e daí?”. Para obter a seguinte resposta:

“Se ela não gosta das coisas que eu gosto, quer dizer que ela não gosta de mim”.

Pus as duas mãos na cara por alguns segundos, expliquei a ele no tom baixo de voz que caracteriza meu emputecimento dizendo que há meses eu o ouvia diligentemente, que perdi a oportunidade de estudar, ler ou simplesmente babar na mesa para lhe dar atenção, que lhe dei conselhos para ser mais racional com relação aos seus próprios sentimentos e, em vista de tal resultado, nada mais havia a fazer com um jumento de tal espécie, e lhe pedi encarecidamente para nunca mais me dirigir a palavra. Pelo menos isso funcionou.

Se eu estivesse com a paciência em dia, poderia ter explicado ao M que ele estava cometendo um enorme erro de lógica, uma falácia informal do tipo non sequitur (algo como "não segue que"), como a afirmação do consequente ou a negação do antecedente, conhecida como conclusão irrelevante ou ignoratio elenchi. Ao contrário das duas citadas, no entanto, o problema não está no desenho do argumento, mas no apego a uma linha paralela que leva à conclusão em relação às premissas. No caso do meu amigo, a conclusão é a de que a menina não gosta dele porque ela não aprecia seu quarto de som. De fato, o desprezo dela faz parte das premissas, mas a conclusão a que se chega não tem relevo lógico pelo que se pode depreender das mesmas. Uma conclusão mais relevante seria dizer que a moça em questão não curte cinema em espaços exclusivos, e não que ela não gosta de quem gosta dessas coisas. O termo em latim explica isso: ignoratio elenchi, em uma tradução pra lá de livre, significa ignorar a refutação, ou seja, a própria leitura das premissas é prova contra a conclusão, porque uma coisa não tem a ver com a outra, embora haja alguma forma de correlação. E é esse fato que dá uma certa maquiagem de verdade ao argumento. Vejamos: as pessoas envolvidas são as mesmas, o ambiente onde o fato se desenrola é o mesmo e o sentimento movido também é o mesmo, ou seja, mesmo que a conclusão não faça muito sentido, ela parte do mesmo universo, e isso pode confundir quem recebe essa mensagem. Quando alguém falava algo desse tipo, a vetusta tia Antônia, do alto de seus quase cem anos, soltava a frase da epígrafe: se você gosta de café com leite, por baixo da porta te atiro um tijolo.

Mas podemos ter problemas mais sérios com esse tipo de conclusão irrelevante, que vai muito além do inocente sentimento distorcido de um menino de quase quarenta anos. Digo isso relativamente à recente polêmica das eficácias das vacinas contra o coronavírus, mais especificamente a denominada CoronaVac.


Já começo dando a letra: não há virgem nesse pardieiro. Mas vamos lá. As pessoas de bom senso do Florão da América esperavam ardentemente pela entrega de uma vacina para resolver a questão da pandemia, e guardavam muita expectativa com relação àquelas que vinham sendo testadas em solo pátrio. CoronaVac à frente, certos governantes passaram a posar de paladinos do amor ao povo e respeito às ciências, quando não estava fazendo nada mais do que a obrigação de alguém à frente de um poder. Outra turma, movida por algumas autoridades dadas a negacionismo científico e outras conspirações tão ou mais votadas, encampou uma espécie de resistência misturada a deboche e desprezo com relação à vacinação, usando agravos relativos à China. Entre ambas, o povo.

Os estudos foram acelerados compreensivelmente a níveis nunca dantes vistos, para que os resultados viessem logo e as estratégias de aplicação fossem desenhadas o quanto antes. Enquanto isso, dá-lhe conspiração: “a China criou o vírus para poder vender a vacina”, “a vacina mais rápida obtida até hoje levou mais de quatro anos para ser produzida”, “a vacinação reprogramará o DNA de quem a receber”, “vai ser implantado um chip no cérebro de quem tomar essa merda”, coisas desse nível. Os resultados apresentados no começo do ano jogaram um bocado de lenha na fogueira do embate ideológico vacinal.

O governo de São Paulo, através do Instituto Butantan, com a pirotecnia costumeira das campanhas políticas, anunciou com estrépito e auspício que 78% dos vacinados não apresentaram sintomas que demandassem assistência médica, e que os 22% restantes não apresentaram quadro grave, ou seja, que exigisse internação ou que chegasse a óbito. Apresentado assim, o resultado parecia realmente muito bom (e é mesmo, como veremos mais à frente). Entretanto, pessoas que manjam do paranauê acharam falta de um número relevante e decisivo – a eficácia global da vacina. E essa foi anunciada a posteriori, bastante próxima dos 50%, o mínimo exigido pela OMS para aprovar um medicamento dessa espécie.

Foi a vez do lado de lá fazer barulho. Afinal de contas, sem o conhecimento necessário, metade de eficácia parece bastante broxante. É um cara-ou-coroa, uma aposta metade a metade sobre a vacina funcionar ou não. Só que não é possível compreender a questão sem um mínimo de conhecimento, e o senso comum que essa galera tanto ama faz com que esse tipo de conclusão seja irrelevante. Para explicar, vou ter que recorrer novamente aos métodos científicos. Para tanto, vou solicitar encarecidamente para que você, meu nobre leitor, leia este texto, e, se possível, este também.

Muito bem. O Brasil foi escolhido para fazer testes de eventuais vacinas contra a covid-19. Um dos principais motivos para isso foi que aqui em Terra Papagalia o vírus está correndo leve e solto por aí. Se fosse na Nova Zelândia ou no Vietnã, onde o combate à pandemia é sério, o estudo seria pouco produtivo. As doses foram aplicadas em dois grupos de profissionais de saúde, de tamanho idêntico, no esquema de duplo cego. Em tempo: o placebo utilizado não é mera água, como é possível confundir. Na verdade, ele contém todos os elementos do remédio testado, com exceção do principio ativo, que, no caso, são vírus inativados, ou seja, que foram “mortos” por ação química ou calor. Como o que importa para o equipamento de defesa do organismo é a capa do bicho, isso é mais do que o suficiente. Mais abaixo, recomendo um canal excelente que contém uma playlist onde vocês podem obter todas as informações necessárias para entender como funciona uma vacina. Por ora, basta saber que o corpo reconhece o vírus como se vivo estivesse, e se movimenta para produzir seus anticorpos.

Ao cabo de algum tempo, calculado para que as doses necessárias sejam aplicadas e para que “peguem”, mais um tempo de exposição às condições normais de trabalho (lembrem-se que contemporaneamente é considerado antiético expor direta e forçadamente um voluntário a uma doença), ambos os grupos são analisados para que se cheguem aos resultados.

É aqui que vamos fazer as comparações e medir o nível de eficiência de um fármaco, incluindo vacinas. No caso específico do estudo no Brasil, tivemos que 1,8% dos membros do grupo experimental foram afetados pela Covid-19, enquanto 3,6% do grupo placebo sofreram o mesmo efeito. Excluindo os quebradinhos, tivemos 50% de eficácia na vacina, porque 50% a menos de pessoas do grupo vacinado contraíram a doença.

Essa teria que ser a informação número zero de uma comunicação verdadeiramente honesta. Entretanto, sabendo que o vulgo não opera bem com explicações complexas, tentaram emplacar os números mais perfumados que dizem respeito a casos que não demandam cuidados médicos. Aqui, tivemos que 8% dos componentes do grupo experimental demandaram algum cuidado médico por contaminação com o vírus, enquanto 18,7% dos membros do controle precisaram dos mesmos cuidados, e a diferença representa os tais dos alvissareiros 78%.

É preciso ainda levar em conta que o grupo vacina, tendo sido inoculado nele os vírus inativados que inexistiam no grupo controle, tem uma reação natural que pode acontecer quando recebemos qualquer vacina válida: alguns dos sintomas atenuados. Quem tem filho sabe bem que as crianças costumam ficar enjoadinhas quando recebem suas doses, o que representa uma reação natural do organismo, que se prepara para receber uma doença. Obviamente, esses sintomas minimizados não aconteceram no grupo placebo, mas ficaram registrados nos vacinados, o que pode melhorar um pouco o percentual de eficácia.

O objetivo de uma vacina não é só proteger da doença, mas fazer com que o corpo esteja mais bem preparado para reagir diante dela em uma eventual infecção. Por isso, olhar simplesmente para a eficácia global e depreender daí que é uma mera questão de sorte meio-a-meio é tomar uma conclusão irrelevante para o que as premissas dizem. É falácia.

E por que? Vejam que a taxa de eficácia global é um número que indica uma abrangência populacional. Ela significa que cinquenta por cento de todos os vacinados estarão protegidos por completo da doença (além dos menores danos causados àqueles que forem atingidos pela covid). A hipótese do cara-ou-coroa volta seu foco para um indivíduo, e faz uma conclusão irrelevante: cada pessoa terá metade de chance de se contaminar. Não é possível inferir isso, porque cada organismo é sui generis, com reações diferentes possíveis a cada moléstia que der de frente.

Entendendo dessa forma, podemos perceber como os 50% de eficácia não é decepcionante, principalmente porque ninguém do grupo experimental teve sintomas graves, que demandassem hospitalizações. Poderia ser melhor? Poderia. Se estivéssemos em condições de fazer grandes escolhas, talvez seria melhor aguardar por vacinas melhores ainda, mas temos que ter consciência de que a CoronaVac ajudará muito mais do que simplesmente confiar no isolamento das pessoas e no bom senso de nossos majorengos. Em qualquer país minimamente racional, esses dois estariam alijados da vida pública desde agora. Eles e muitos outros.

Bons ventos a todos.

Recomendação de canal e de site:

Trata-se do projeto Nunca Vi 1 Cientista, da Laura de Freitas e da Ana Bonassa, ambas relacionadas à área da saúde, que é uma bela opção à sisudez da academia ou ao delírio dos achistas. Quando você estiver praticando deboísmo, faça uma playlist com seus conteúdos. É excelente.

O canal:

https://www.youtube.com/channel/UCdKJlY5eAoSumIlcOcYxIGg

A lista de assuntos:

https://www.uol.com.br/tilt/colunas/nunca-vi-1-cientista/

Imagem da seringa extraída de https://www.boundtree.com/