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terça-feira, 29 de agosto de 2017

Impressões sobre o que move o combate à ideologia nas escolas

Olá!

Muitas e muitas vezes eu quis falar sobre determinados assuntos neste blog, mas acabei me enrolando e os tais acabaram ficando para trás. Por exemplo, bem nos primórdios, queria ter falado sobre a então novidade dos vlogueiros, que transpunham para o vídeo os relatos diários e opiniões que eram feitos por escrito nos blogs. Para quem não lembra, na origem, este modelo de site era destinado a ser um “meu querido diário” virtual, o que foi subvertido depois, para o bem da humanidade. O tempo passou, o tema não é mais novidade, existem vlogueiros aos borbotões e perdi o propósito do texto. É o que chamam de timing, o momento exato de se fazer alguma coisa. Como eu sempre procuro estabelecer um nível mínimo de detalhes e estabelecer vínculos com pensadores, sempre tenho que fazer alguma pesquisa, sob pena de produzir mera opinião, o que raras vezes desejo. E às vezes é preguiça mesmo. Se me atrapalho um pouco que seja, perco o tal do timing, o que é relativamente frequente. Por isso mesmo, ainda não tratei de certos temas, como o terrorismo, a cultura do estupro e outros mais. Paciência. Há de chegar o momento certo. E de mais a mais não é sobre tudo que tenho opinião formada e/ou aporte suficiente de conhecimento.

Mas há um assunto em voga que não posso cometer o erro de deixar passar batido. Está na pauta de várias instâncias governamentais alguns projetos que visam produzir mudanças na educação, o que seria muito bom, em tese. Como já pude explanar neste e neste texto, a questão educacional e tão relevante para que possamos sonhar com um país melhor, que condiciono meu voto para candidatos que explicitem de maneira absolutamente clara suas propostas para essa área, sem as evasivas e generalizações habituais. Mas, pelo que vi até agora, as medidas que estão sendo propostas provocam calafrios. Vou começar por um projeto que representa uma tendência, que reflete várias iniciativas que vêm se espalhando pelo país, algumas delas já consideradas inconstitucionais. Trata-se do projeto de lei do Senado 193/16, de autoria do senador Magno Malta, do PR do Espírito Santo, mais conhecido como “Escola sem partido”. Já li muito a respeito, assisti a várias reportagens e debates e conversei com colegas. Li e ouvi muita coisa interessante e muita bobagem também. Por isso, vou dizer o que penso a respeito.

Em primeiro lugar, é preciso entender que há sempre duas faces no estabelecimento de regras em geral. Mais diretamente, há primeiras e segundas intenções. Vocês que são pais, pensem no seguinte: quando vocês decretam em seu apartamento que seus filhos devem fazer silêncio, há uma intenção explícita – evitar a reclamação dos vizinhos e a multa do condomínio. Mas há também uma segunda intenção, colocada nas entrelinhas, que pode ser sua vontade de ler o jornal em paz. É isso o que precisamos tentar detectar nessa lei: tudo aquilo que está movido por intenções tácitas (ou nem tanto).

Então vamos. É preciso, antes de tudo, interpretar quais são os atores que serão afetados pela proposta e entender sua participação social. Os alunos, pelo que se dá a entender, são os principais afetados. Estão no polo mais vulnerável da relação, porque são passivos, no sentido de serem eles a receber os conhecimentos difundidos por um professor. Este sim, de acordo com o propósito da lei, é o instrumento que pode desvirtuar o caminho da educação, ao aplicar como pano de fundo de suas aulas uma ideologia qualquer. O que é mais comum de se afirmar é uma tendência de se abordar teses marxistas com mais carinho do que as demais. Além disso, há uma tal de “ideologia de gênero” desviando os princípios morais da família do educando. Ai, ai, ai...

Vejamos bem a quem é dirigida a lei. Os professores, via de regra, estão situados na metade de baixo da pirâmide social. Bons salários são pagos somente em algumas poucas universidades. Mérito de quem está lá? Sim, mas esqueçam dessa bobagem de meritocracia – não há lugar para todos os que merecem. A grande massa está mesmo na rede pública de ensino, que dá péssimas condições de trabalho, e na rede privada, que paga muito mal. Ou seja: os professores são parte do proletariado, estão nas classes menos privilegiadas da sociedade. Quanto a isso, creio que não há muita discussão.
Por mais que se queira negar, é óbvio que existe um recorte social que isola certas categorias de acordo com seu potencial econômico. Como se constata isso de forma pessoal? É simples. Basta que você tenha tido uma experiência em que tenha se sentido “do lado de fora”. Se isso nunca lhe aconteceu, das duas uma: ou você está do lado de dentro, ou você é um completo alienado. Vamos ao exemplo:

Sou filho de pai operário e mãe costureira. Morávamos na redondeza da Vila Ema e Vila Diva, bairros paulistanos tipicamente habitados por trabalhadores braçais, pequenos comerciantes e funcionários públicos miúdos. Comecei a trabalhar bem cedo, e meu primeiro emprego com carteira assinada foi em uma grande rede de magazines, onde eu era arquivista. Antes disso, só pequenos bicos em mercados e oficinas. Quando chegava o fim do ano, esta empresa distribuía aos seus parceiros cestas de natal de cair o queixo, enormes, nada semelhantes à cidra-e-panetone-e-bolacha-Maria que beeeeeem às vezes meu pai recebia (com estrépito e celebração, diga-se de passagem). Era uma grande cesta de vime contendo acepipes de nome enrolado, com garrafas nunca vistas dantes por este escriba, incluindo uísque e licor, frutas secas, tâmaras, figo-passa, panetone e chocotone (então uma novidade) de 1 Kg, uma carta toda escrita em redondilhas menores cantando as loas da parceria comercial. Em um canto discreto da cesta, o símbolo maior da opulência: caviar. Tudo bem que era em conserva, mas era caviar. Nem sei se existe caviar que não seja em conserva. Nada mal, em suma.

Bem, é evidente que nas proximidades das festas de fim de ano todo o pessoal de entregas se encontrava muito ocupado, dada as vendas avolumadas, e para destinar os pacotes de benesses era preciso recorrer a voluntários que se dispusessem a fazê-lo. De olho nas polpudas gorjetas que certamente seriam ofertadas, disponibilizei-me álacre e faceiro.

Saímos logo cedo, eu e um mal-humorado motorista, em uma Kombi locupletada por dez ou doze dessas retro mencionadas cestas da alegria. Foi-nos destinada uma área nas cercanias do Ibirapuera, que incluía endereços em Moema, Vila Nova Conceição, Indianópolis e Alto da Boa Vista, por onde principiamos o périplo. Para quem conhece São Paulo, sabe tratar-se de região abastada. Partimos; eu, servindo de entregador e navegador, guia de ruas à mão; o motorista servindo de motorista e nada mais. Casa por casa, o mesmo padrão se repetindo. Um interfone, uma identificação prévia, uma empregada para receber a caixa e se assustar com o peso e tamanho. Entrega feita, protocolo assinado e passar bem.

Zero. Esse foi o saldo da minha incursão. Nem um mísero cruzeiro, moeda da época (acho). É claro. Eu, burro, não me toquei que as entregas não seriam feitas diretamente aos seus destinatários. A empregada não ia tirar do próprio bolso uma gorjeta por um serviço que não era prestado para ela. Ao contrário do que acontecia quando eu arrumava pacotes no mercado ou fazia pequenas compras para as senhoras da minha rua, que tanto conheciam nossas dificuldades (e que eram as mesmas delas) e não deixavam de dar algum trocado, não há condolências em se repelir esse hábito tão brasileiro quando você não está cara-a-cara com o caboclo. Afinal, quem nega o estipêndio não é o recebedor do privilégio, mas o seu subalterno, alguém tão pobre quanto eu na ocasião. Nem minha cor branca, minha cara de judeuzinho e minha lábia de turquinho derrubaram o muro. Era a minha primeira experiência clara de distinção de classe.

É com base nesse tipo de ocorrência que se desenrola a vida de um professor. Na rede privada, há o clássico “é meu pai que paga seu salário”. Quer discurso de distinção mais claro do que esse? Já na rede pública, basta um professor aparecer com um poizé sendo pago em xn prestações para se ouvir: “Tá reclamando do que? Tem até carro”. Tem até carro... Como se um professor não precisasse se preparar tanto quanto um advogado, se atualizar tanto quanto um médico, ser tão responsável quanto um engenheiro. Como se o professor tivesse que se conformar com a pobreza. Como se a profissão não fosse tão digna quanto outra. O discurso da melhoria de condições do profissional de educação não só não é colocado em prática, como nem mesmo é encarado com bons olhos.

Pois bem. É exatamente para essa categoria profissional que é dirigida a Escola sem Partido. Para uma categoria que perde valor desde o tempo das reformas educacionais da ditadura militar, e que os governos posteriores têm tido dificuldade em lidar, porque os grandes talentos lhe escapam. Conheço muita gente, mas muita gente que optou por um cargo público burocrático que pague melhor, preferindo deixar o umbigo levantar a mesa de tão gordo a exercer a profissão que escolheu. Uma profissão árdua, uma das mais difíceis em se evitar a penetração na vida pessoal e no tempo livre. Um professor vê filmes para auxiliar em suas aulas, lê livros e já pensa em seus alunos, abre mão de muita coisa para reelaborar uma aula malsucedida. O professor convive diariamente com o dilema que há entre suavizar sua pauta para não ser empecilho na vida dos seus alunos ou manter o rigor de formar cidadãos bem municiados. O professor se policia e tenta se conhecer diariamente para fazer o peso e a medida corretos e justos. Precisa aprender na medida em que ensina – há professor que desanima e liga o piloto automático, o que é um fracasso, por si só. O professor tem que julgar sem ser juiz, compreender sem ser psicólogo, ter paciência sem ser monge. Como eu acabei de dizer, tem que renovar seus conhecimentos como qualquer bom profissional, como um advogado, um engenheiro ou um médico, mas ganhando uma risível parcela do que estes ganham. Parece um sacerdócio, e muitos dizem que é assim mesmo, mas isso é uma decantada balela, o magistério NÃO É UM SACERDÓCIO. Professores tem os mesmos anseios e perspectivas que tem uma pessoa que passou anos e anos se preparando para exercer seu mister.

Daí se pode perceber que o inciso V do artigo 2º, que versa sobre a vulnerabilidade do aluno na relação de aprendizado, não deixa entrever quem está sendo colocado tacitamente no polo mais frágil da relação social em nosso atual momento histórico: justamente o professor. Uma das provas maiores disso é a garantia de anonimato, o que dá um cheiro insuportável de macarthismo à medida. A sensação que fica é a de que o professor pode ser acusado por qualquer motivo além do ideológico, sem defesa. A lei não prevê punição alguma a acusações de cunho pessoal ou eivada de irresponsabilidade.

Se é verdade que o bom profissional deve ser capaz de distinguir suas convicções das disciplinas que ensina, também é verdade que jamais se adota a solução real para o problema: pagar bons salários. Essa seria a solução do problema ideológico: fazer com que o professor mude de classe social. Ganhando bem, a sanha interior por reformas seria arrefecida, e, com isso, o alegado discurso partidário também acabaria. Não é simples? Dê um salário de R$ 20.000,00 para o professor, insira-o em uma real classe média e cale-o. Mas, como não se tem essa intenção, cria-se a mordaça. Coloca-se a espada sobre a cabeça do profissional e deixa-se-lha lá, pendurada, à espera que algum deslize se cometa.


Então temos a falácia da vulnerabilidade do aluno e a criminalização da opinião do professor. Qual é a verdadeira intenção da lei, além de ser um “fora-esquerda”? Por que se busca resolver algo que seria da competência do diretor de uma escola com uma traulitada jurídica nos países baixos docentes? Para entender melhor, é preciso sair da letra fria da lei e ler atentamente as justificativas do egrégio senador da república.

Insistentemente se afirma que há muitos professores que são enviesados ideologicamente (não está expresso nos termos do artigo, mas esse viés é evidentemente marxista, como já virou senso comum), e que sua doutrinação afeta a liberdade de aprendizado dos vulneráveis alunos. Falta informar de onde esses dados foram retirados, o que deveria ser facílimo, dado o assombro que busca retratar. Estatísticas, relatórios, indicadores, depoimentos, artigos, cadê? A única coisa que, de resto, consta do projeto, é a indicação de que se baseia no movimento Escola sem Partido, que visa substituir uma ideologia por outra, nada mais. Sim, porque, ainda que creiamos em boas intenções, o próprio fito de que o estudante não seja exposto a conteúdo político já é, de per si, uma ideologia. Em resumo, trata-se de um tremendo raciocínio circular. Quem vai estabelecer o que não é ideologia já é prenhe de ideologia.

Se eu reclamo que o emérito legislador não apresenta os dados que dão fundamento ao seu projeto, de onde tiro os meus? Eu não tenho referências seguras fora da própria realidade em que vivi, mas o ônus da prova não me cabe. Não tenho números, não tenho pesquisas. Tenho os livros e cadernos de meus filhos e afilhados, tenho as escolas em que desempenhei minhas tarefas, tenho o colégio e as faculdades em que estudei, e posso afirmar, peremptoriamente, que apenas no período da ditadura militar eu vi professores ideologicamente enviesados, pelo menos de forma contumaz e flagrante. Senta, que lá vem história.

Quando eu estava na 7ª ou 8ª série, não lembro bem, a minha professora de Geografia era uma japonesa apelidada de Cebola, dado o aspecto de réstia que ela adquiria com sua habitual trança. Na época, a Geografia que era ensinada era basicamente uma cartografia, com mapas e mais mapas, vitaminados com aspectos físicos como relevo, clima e vegetação. Estudava-se muito pouco os aspectos sociais. Em um ano, estudávamos a geografia do Brasil e da América do Sul, e no outro a geografia mundial, com destaque para os principais países-atores da geopolítica de então. O programa previa Europa, Canadá, EUA, URSS, Japão e fragmentos esparsos afro-asiáticos-oceânicos. Seguimos normalmente a sequência didática proposta, até chegarmos ao capítulo dedicado à extinta União Soviética, uma megapotência de então. Surpresa: a professora Cebola saltou o capítulo, indo direto para o seguinte. Mais realista que o rei, dizia ser um tema insignificante. Não sei exatamente por quais influências, protestei. Eram tempos de guerra fria, e a URSS estava diariamente nos noticiários, com seus milhares de megatons apontados para o ocidente e ameaçando a humanidade (assim faziam os Estados Unidos para o lado oposto). Como esse tema podia ser considerado insignificante? Sua resposta foi que qualquer regime que prive a liberdade de seus cidadãos dá premissa básica para sua invalidade, no que retruquei afirmando que morávamos no Brasil, e que a mesma lógica não foi aplicada para que a mesma professora desprezasse um ano inteiro de matéria. A conversa acabou com mais um ponto negativo em meu currículo. Não havia projeto Escola sem Partido nessa época.

Isso tudo significa que não exista nenhuma doutrinação ideológica nos dias de hoje? Claro que há. Mas, como eu já disse, será que os diretores das escolas não são autoridade adequada e suficiente para coibir os excessos? É preciso praticamente criminalizar a atividade docente?

Mas tudo isso, até aqui, é mera chorumela que oculta o eixo central da proposta, que, no meu entender, está bem definida e acabada no item 15 das justificativas:

15 - Finalmente, um Estado que se define como laico – e que, portanto, deve ser neutro em relação a todas as religiões – não pode usar o sistema de ensino para promover uma determinada moralidade, já que a moral é em regra inseparável da religião;” (grifo meu).

Está aí. O eixo em que a proposta gira não visa livrar a escola das ideologias, mas garantir que os conteúdos não tirem das religiões a tarefa de estabelecer o que é moral ou não. Moral não é coisa para o banco das escolas, segundo o nobre legislador, já que a mesma é indissociável da Religião. Ai, cacete... Quem foi que disse isso?

Princípios morais são princípios humanos, e não religiosos. Tudo bem que as diferentes religiões se apoiem neles, e não há problema algum nisso, mas isso não significa que lhes sejam exclusivos. Sendo assim, o próprio princípio de laicidade do Estado estaria afetado por alguma religião, o que é absurdo. Não se pode afirmar, por exemplo, que um ateu não tenha princípios morais, e que estes sejam melhores ou piores que os de qualquer religioso: basta que se pesquise a distribuição das religiões na cadeia para perceber que ela praticamente plasma a sociedade como um todo. E isso acontece por outro motivo diferente daquele estabelecido por uma religião. O religioso não mata por medo do castigo divino; o ateu não o faz por medo da lei, por respeito ao contrato social, por preocupação com vinganças. Respeitam-se as mesmas leis por motivos diferentes, e está excelente. A Religião não pode ser fonte do Direito, já basta que o costume o seja.

Não é papel da escola ministrar educação religiosa, como quer o artigo 2º, parágrafo VII. Isso é papel das igrejas. Pode parecer incoerência de minha parte, já que eu mesmo afirmei neste texto que é essencial conhecer as religiões nos nossos estudos. Mas observem bem: eu estou dizendo que não se entende o movimento de uma sociedade sem compreender como funcionam seus elementos constitutivos, e a Religião é indissociável da formação de um modelo de pensamento, tal como o vento e a água moldam a pedra. A escola DEVE abordar o tema, mas, aí sim, sem viés ideológico e sem pretender ensinar Religião, mas sob um prisma sociológico, antropológico e histórico. Aliás, mais de uma religião.

No final das contas, o projeto é tremendamente contraditório, na medida em que pretende remover a ideologia política e implantar uma ideologia religiosa. Essa é a sua escrita das entrelinhas. Não será de estranhar professores de Biologia com dificuldades para explicar a evolução, de Física para dar aulas sobre o Big Bang, de Geografia para formular o Pangea, afrontando uma doutrina onde uma divindade já entrega o mundo pronto e acabado. Os professores de Filosofia teriam que descartar os gregos clássicos politeístas, os iluministas deístas, os herméticos panteístas, os modernos e contemporâneo ateus. Nietzsche, Marx, Schopenhauer, Spinoza, Voltaire, Sartre, Sócrates, Platão, Aristóteles, Maimônides, Foucalt, Freud, todos estes podem ser objeto de contestação... Pior ainda se houver uma abordagem sobre sexualidade.

Mas não é só. Outro ponto que tem me dado azia é o tal do “novo ensino médio”, que passarei de passagem neste texto, empurrado goela abaixo pelo governo federal, através de medida provisória, fazendo com que o aluno tenha que optar por disciplinas correlatas à carreira que deseja seguir. Esta escolha é angustiante na maioria das vezes e já tratei especificamente deste tema aqui. Levando em conta que eu pensava em ingresso na faculdade, a medida do governo torna o problema mais grave em dois aspectos: a decisão do aluno necessita ser tomada ainda antes, e seu preparo psicológico é ainda menor. O pior de tudo é que, da forma como se propõe, o aluno jamais terá contato com conteúdos que poderiam fazer a diferença na detecção de suas aptidões. Ora, ora... nunca saberei se gosto de legumes se não experimentar legumes, não é verdade? Pois é isso o que vai acontecer. O propósito ÓBVIO, na minha humilde, é diminuir o corpo docente, mas o governo nunca vai admitir isso.

Se eu estiver correto, há na página do Senado uma consulta pública sobre o tema, onde é questionada a adesão à aprovação popular da Medida Provisória. Vejam o resultado:


Tenho a impressão de que tal estatística não foi muito levada em consideração, dado que a MP foi aprovada e convertida em lei, e só não manifestou seus efeitos explicitamente porque ainda é necessário que sejam aprovadas as novas bases curriculares. Estas não devem ser ampliadas, muito pelo contrário.

É...

Recomendação de leitura:


Como estou aqui em um texto opinativo, o melhor que tenho a fazer é recomendar a leitura da proposta, e, em especial, da sua justificativa. Neste exato momento, está em teóricas boas mãos, o senador Christovam Buarque. Talvez não passe, talvez seja mudado a ponto de se tornar inócuo, mas dá a dimensão dos riscos que corremos.

Para ler o projeto:

Para acompanhar o andamento:

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Efemérides e as duzentas vezes em que estive aqui - quem influencia meu "traço"

Olá!

Nunca consegui formar uma compreensão muito clara sobre os motivos que levam as pessoas a se preocupar com efemérides. Para quem não sabe, este termo significa algo breve, e há até mesmo um inseto que leva esse nome por viver parcas 12 horas em seu estágio adulto. Para o presente assunto, interessa saber que, tempos atrás, havia uma pequena sessão nos jornais destinadas a dar breves notas sobre aniversários e outras datas importantes, semelhantemente ao que o Facebook faz com seus amigos hoje em dia. Aqueles que ganhavam um pouco mais de relevo eram os aniversários “redondos”: 100 anos de fundação da Gazeta de Piraputanga, 50 anos do casamento de seo Ernesto e dona Etelvina, 300 anos da Revolução das Mexericas e coisa que o valha. Os preferidos são os centenários e derivados, por conta do duplo zero. Além disso, outras “redondezas” também chamam a atenção, como o milésimo gol de um determinado craque, o centésimo número de uma revista, as cidades com mais de cem mil habitantes e assim por diante.

Por que a diferença? Daqui a pouco completarei 50 anos e será um dia como outro qualquer, talvez chuvoso, talvez haja uma greve, uma consulta no otorrino, talvez haja uma vitória do meu time, talvez não. E, mesmo no meu caso particular, não existiria meus 50 anos se não houvessem os 49, os 48, os 47 e cosi via. As efemérides são assim: vazias de significado, e que só ganham vida por conta da nossa habitualidade de reparar em coisas inúteis.

Tanto é verdade que estou aqui, comemorando meu ducentésimo post. Por 200 vezes sentei na frente de meu computador para digitar um texto redigido em lugares tão diversos quanto uma mesa de café, um sofá de consultório e mesmo no apoio de um carrinho de compras. Minha mulher já me disse mais de uma vez que eu deveria escrever um livro. Se eu levar em conta que minhas linhas tortas preenchem em média quatro laudas, meu blog inteiro daria umas oitocentas páginas, o que já poderia ser qualificado de calhamaço. Só que com um defeito irremediável: dada sua fragmentação, não seria uma obra que primaria pela uniformidade e lógica encadeada, como ocorre com os grandes tratados; por outro lado, são textos longos demais para serem reduzidos à forma de aforismos, que possuem um poder de síntese formidável, a exemplo de Nietzsche e Bacon. Sendo assim, mantenho o formato blog e pronto. Se alguém achar justo e resolver um dia coligi-lo em livro, fique a vontade, sempre lembrando dos créditos autorais e bancários, por gentileza.



Já registrei, na forma de postagem, duas outras efemérides neste espaço: o centésimo texto, a quem chamei de metapost, e o quinto aniversário das Aporias Plurais. Em ambos, tratei da Metafilosofia, o ramo da Filosofia que trata a si própria como objeto de estudo, ou seja, se existe uma Filosofia para tratar da Ciência, da Educação, da Religião, da Mente, do Conhecimento, do Tempo e de outras áreas, existe também uma Filosofia da Filosofia, que cuida de compreender o que há por trás do pensamento filosófico, incluindo métodos de trabalho e caminhos a seguir. Resolvi, já que tenho feito isso despropositadamente, dar a minha própria metafilosofia sempre que ocorrer uma efeméride, retratando algum aspecto das reduções de minhas ideias a escritos.

Desta vez, vou falar do aspecto literário com que escrevo. Por “literário”, não entendam aqui nenhuma arrogância, nem pretensão a artista. Boa ou má, uma escrita é literatura – percebam que o termo vem do latim litteris, que significa, mui meramente, letras. Sendo assim, vamos ao que interessa.

Quem influencia minha escrita? Não se trata de um exercício fácil. Em primeiro lugar, temos a vaidade de querermos ser originais, e nem sempre conseguimos admitir que há uma espécie de “mão invisível” que guia nossos mal traçados caracteres. Às vezes, a miscelânea é tão grande que se gera um estilo novo, por vezes muito bom, por vezes nem tanto. Já falei em algum canto sobre a oposição entre músicos e escritores no reconhecimento de influências. Os primeiros alardeiam pelos quatro cantos que “pegaram um ritmo afro e aplicaram-no em melodias de vertente arábica, com instrumentação típica das culturas aborígines canadenses e densidade nipônica”. Além disso, declaram publicamente que um determinado fraseado de guitarra é inspirado em tal músico, e que baixo-bateria seguram a peteca como faz tal banda. Músicos dão nomes aos bois.

Escritores detestam fazer isso, não sei bem por quê. Por mais que existam escolas literárias mais ou menos uniformes, como Romantismo e Realismo, é raro (eu nunca vi) alguém dizer que, por admirar o “traço” do outro, faça uso de técnicas semelhantes. A mim, parece que a músicos a originalidade está na mescla bem sacada, enquanto que a escritores está na inovação propriamente dita, na peculiaridade do estilo.

Como não sou nem músico profissional, nem escritor da mesma estirpe, posso me dar ao luxo e à liberdade de tentar reconhecer o que influencia minha escrita. Só que há armadilhas.

Um ponto a ser observado é não confundir escritores que gostamos com escritores que guiam nossa mão. Para dar um exemplo, posso dizer que adoro Gabriel Garcia Marquez ou Clarice Lispector, mas, se eu colocar um texto de ambos ao lado do meu, não há nenhum ponto de contato. Enfim, não há sinonímia entre apreciar e influenciar, ao menos em questão de estilo.

Mais um aspecto é a diferença entre dar modelo a escrita ou ao pensamento. Alguns literatos escrevem muito bem, sem que eu concorde com uma única letra que o gajo escreve. O vice-versa também vale: há conceitos magníficos, que podem estar extremamente enredados em uma malha de frases construídas com complexidade hermética, ou estar pura e simplesmente mal redigidos. Uma coisa não tem a ver com outra necessariamente. Há a questão da forma e da substância, coisas distintas.

Outra coisa é que temos fases. Não escrevemos da mesma forma a vida inteira, e nem sobre os mesmos temas. Uma influência pode ser mais facilmente reconhecível quando se trata de um determinado assunto que outro, especialmente quando seja mais correlato à área de atuação do influenciador, ou pode ser reconhecível na juventude, mas não na maturidade. A vida é um labirinto.

Dito tudo isso, consegui detectar três influências constantes e duas mais pontuais. Influências difusas são irreconhecíveis, lamento muito. E, claro, filtrei rigorosamente a questão com a concordância das ideias. Portanto, as influências que trato aqui são formais, e não ideológicas. Aliás, os autores que citarei estão em polos ideológicos opostos, diga-se de passagem. Repetirei essa cantilena algumas vezes no correr da pena, porque, nessas coisas de política, as pessoas andam mais intransigentes que em matéria de futebol, e não reconhecem mais um bom texto que lhes oponha à sua própria cabeça.

O primeiro deles é o jornalista Flávio Gomes. É, para mim, o definidor do formato blog que adotei. Dele, trago a linguagem que trafega do técnico para o coloquial, variando no que entendo ser o momento exato. E dele também percebi a oralidade tão necessária para esse modelo de comunicação, onde se busca estabelecer uma espécie de quase-interlocução com seu público. Isso é feito utilizando-se a linguagem como ferramenta de expressão intensa das ideias, incluindo onomatopeias e palavrões, que carregam algo como uma fala embutida, e não como acontecem com os manuais e artigos em geral, frios, técnicos.

É óbvio que os blogs em geral adotam essa mesma estratégia, mas Flávio Gomes escreve MUITO bem, na minha modesta. Em uma determinada ocasião, enquanto ocorria o despejo do bairro do Pinheirinho, em São José dos Campos, pediram-me que escrevesse a respeito. Já estava com a tarefa em andamento, mas quando li o que nosso escriba teceu, joguei meus rabiscos fora e limitei-me a recomendar sua fala. Não tinha absolutamente nada que eu pudesse acrescentar de bom ou útil. O mesmo se aplica a este texto sobre a relação entre Rubinho Barrichello e a rede Globo, irrepreensível. Reitero: ele tem uma posição política muito bem marcada, e não é isso que discuto nesse momento. Estou me atendo ao aspecto técnico. E digo mais: o mote principal do seu blog é esporte a motor, não esperem encontrar comentários políticos em profusão.

A segunda influência que tenho a observar vem da Itália. É o escritor Giovanni Guareschi, a quem li com abundância quando tentava aprender italiano. Ora, direis, com Petrarca, Alighieri, Maquiavel, Pirandello, Moravia, Calvino, Fo, Gadda e Tabucchi à disposição, você foi se agarrar a um escrevinhador secundário como Guareschi? Não é um pouco de falta de ambição?

Não, não é. Reconheço que Guareschi não praticou alta literatura nem fundou escolas, mas ninguém como ele retratou os conflitos do pós-guerra na Itália pelo ponto de vista de quem mais foi impactado – o povo. E o fez pela melhor chave possível, a do humor. Trouxe-me tanta informação que eu não conhecia que meu TCC foi exatamente sobre sua ótica nos conflitos entre religião e política daquela época. Dele, além de algumas expressões e barbarismos que eu ouvia da boca de meus avós, vem um gosto por certos detalhamentos que, se por um lado causam uma quebra no fluxo da leitura, por outro trazem mais clareza a quem lê, sempre pensando que o leitor não é, obrigatoriamente, um conhecedor do cenário que se busca retratar. Além disso, mesmo tendo uma posição política bem delineada, Guareschi não costuma evitar críticas a nenhum dos lados, o que, quando estabeleço uma dialética, tento também fazer, vide meus textos que contrapõe Ciência e Religião.

O terceiro é o cronista carioca Sérgio Porto, o mesmíssimo Stanislaw Ponte Preta que nos deu a tia Zulmira, o primo Altamirando, Rosamundo e outros personagens que davam suporte às suas bem-humoradas crônicas. Um observador da minúcia carioca e um comentarista mordaz do lado patético da ditadura, em uma época em que não era muito saudável fazê-lo. Trouxe para mim duas coisas: a utilização profícua de eufemismos e a introdução de termos castiços em falas mais voltadas para o informal, produzindo uma certa sensação de necessidade de um dicionário matreiro pelas imediações, além da legitimação do uso do denotativo no coloquial  e do conotativo no formal.

Outro que me influencia é Fernando Pessoa. Mas quem não foi influenciado por ele e seus heterônimos? O poeta português dispensa grandes detalhamentos, mas preciso explicar porque ele está aqui. Pessoa transita melhor do que ninguém entre o físico e o metafísico, entre o raciocínio e o enlevo, entre a concretude e o devaneio. O melhor exemplo está no poema “Tabacaria”, recomendado abaixo. Para mim, o supra-sumo da poesia. Transpareço essa mesma sensação de mundo caindo sobre minha cabeça pontualmente, como, por exemplo, neste texto. É a marcação de duas coisas: a dificuldade de distinguir real de onírico e o rompimento repentino deste mesmo laço.

Por fim, outra influência pontual: Anton Tchekhov. Este escritor russo tem como característica um pinçar de situações em que não há muita importância onde as mesmas começam ou terminam, fixando seu foco apenas onde lhe importa. Sinto que eventualmente acabo fazendo isso também, embora de maneira menos abrupta. Essa técnica me favorece pelo seguinte: muitas vezes extraio Filosofia do dia-a-dia, mas há momentos em que faço o movimento contrário – de uma ideia ou corrente filosófica, caço uma situação quotidiana (talvez fale melhor sobre isso na próxima efeméride). Se atar todos os nós que “convergiram para” ou “derivaram de”, o texto vira novela e o efeito é escapar do que interessa. Por isso, apesar das pontas soltas, algumas vezes deixo de lado grandes introduções e epílogos para me centrar em um instante específico, no que o literato russo é mestre. Exemplos aqui e aqui.

Bom, essas são as influências que consegui detectar. É óbvio que há muitas outras, e, quanto menos conscientes, mais complicado de reconhecer. No entanto, é uma experiência interessante tentar entender onde há alguns paradigmas para nossa escrita sem que isso represente uma pura e simples comparação. Mais uma vez, vejam que não me detive em influências ideológicas. Eu as tenho, mas não é sobre isso que falo agora. Percebam como aproveito, sem servidão, de estilos de escribas que se declaram socialistas, como Gomes, e democratas-cristãos (de origem monarquista) como Guareschi. Meu intento, repito uma vez mais, é meramente apontar tendências formais.

E, para finalizar, volto atrás na minha questão do vazio da efeméride. Utilizamos estes mecanismos porque sempre estamos à busca de referências. Para que saibamos se algo existe a muito ou pouco tempo, é necessário que exista um referencial. Coisas como “novo” ou “velho”, o são em relação a alguma coisa. Um cachorro de 20 anos é um ancião, praticamente uma múmia; já um homem, é um recém adulto. Idem a um conceito de “alto” ou “baixo” – uma mulher de 1,80 é alta, um homem da mesma medida é mediano. Muitos outros exemplos seriam possíveis. E porque nossas referências se traduzem em números “redondos”? Porque estamos viciados na base 10, o sistema derivado dos dez dedos, tanto que a palavra dígito vem do latim digitus, que significa dedo (ora vejam). Se nossa base de contagem não fosse essa, tão intuitiva, nossas efemérides provavelmente seriam outras. Fosse hexadecimal, provavelmente contaríamos a repetição de caracteres. Olhem que bacana: “A cidade de Pororó da Serra está em festa! Comemora-se FF anos de sua fundação!”.

FF em hexadecimal representa o número 255 em nosso consuetudinário sistema decimal. Nada redondo, por conseguinte.

Recomendações de leitura:

Vamos lá que são várias. O melhor que tenho a indicar do jornalista Flavio Gomes é seu blog. O carro-chefe é automobilismo, mas há muitas seções fixas com referências a suas preferências, como os carros da antiga Europa Oriental, os postos de combustíveis incomuns, as velhas Kombis e outras coisas mais. Também escreveu um livro chamado “O Boto do Reno”, mas eu não o li ainda.

http://flaviogomes.grandepremio.uol.com.br/


Giovanni Guareschi, como eu disse, é um escritor e jornalista que teve seu auge no imediato pós-guerra. Seu personagem mais clássico é Dom Camillo, um padre que tem mais ocupação com a política do que com seu rebanho. Como já recomendei sua principal obra por aqui, vou me ater ao seu livro de despedida, em um formato até então inédito para ele, com histórias mais longas e coesas entre si. O nome adotado no Brasil é horroroso. No original, significa Dom Camillo e os Jovens de Hoje.

GUARESCHI, Giovanni. Dom Camilo e os Cabeludos. Rio de Janeiro: Record, 1978.


Sérgio Porto é cronista muito conhecido no Brasil, muito dedicado à análise de costumes, mas com boa preocupação política, tanto que lançou dois volumes de Febeapá’s, os Festivais de Besteiras que Assolam o País, onde traz incontáveis burrices cometidas por nossos já infames governantes.

PONTE PRETA, Stanislaw. Febeapá 1. 1º Festival de Besteiras que Assola o País. São Paulo: Círculo do Livro, s.d.


Fernando Pessoa... Não preciso ficar falando de Fernando Pessoa. Segue o link de A Tabacaria...


... e um dos livros onde a mesma pode ser encontrada:

PESSOA, Fernando. Tabacaria. The Tobacco Shop. Ed. Bilíngue. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2015.


Finalmente Tchekhov, de quem também não há muito o que falar. Um rei do conto. Segue um bom livro deles.

TCHEKHOV, Anton. A dama do cachorrinho e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2009.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Para proteger o Homem-Cueca

Olá!

Embora eu nunca tenha pedido aos meus pais, nem tomado iniciativa própria após casado, o fato é são poucos dias na minha vida em que eu não tenha convivido com algum bicho de estimação, bem poucos mesmo. Explica-se: morei por muitos e muitos anos com parentes, e os animais dos parentes faziam parte do meu convívio, ora pois. Além disso, muitos dos bichos que apareciam no quintal eram prontamente adotados, como foi o caso dos três pássaros-pretos que apareceram sucessivamente, todos amarrotados: Godofredo, Felizberto e Nicanor. Eram da minha mãe, e cantavam que era uma beleza. Tínhamos cachorros, gatos, peixes e outros pássaros, alguns que me trariam problemas legais hoje em dia. Também havia o caso dos cachorros coletivos, criados por todos na rua, sem uma casa específica. Ora comia-se aqui, ora dormia-se acolá, ora reproduzia-se no meio da vila mesmo. O mais célebre deles foi um tal de Mosquito, que morava na rua da minha avó. Durou um tempão: acho que até mesmo minha esposa chegou a conhecê-lo, contrariando o dito popular que associa o desamparo ao “cão sem dono”.

Esses cachorros públicos eram alvo constante de uma instituição hoje conhecida como Centro de Controle de Zoonoses, mas que levava a malfazeja alcunha de “carrocinha”. Para quem é bem jovem, tratava-se de um veículo onde eram recolhidos os cães vagabundos largados nas ruas, para evitar a proliferação de doenças, em especial a temida hidrofobia, mais conhecida como raiva. A atitude era compreensível em tempos nos quais a doença não tinha cura, e a coisa funcionava mais ou menos assim: os laçadores (pessoas mais odiadas que árbitros de futebol) percorriam os bairros procurando cachorros soltos, sob demanda ou por ronda ostensiva. Uma vez capturado o pobre mendigo, era encaminhado ao canil da prefeitura, onde esperava pela sua sorte por três dias. Caso alguém se dispusesse a buscá-lo, fazia-se a liberação. Do contrário, o bicho era sacrificado na câmara de despressurização ou gás, e seu cadáver era incinerado. A historinha de que eram encaminhados à fábrica de sabão é uma daquelas lendas urbanas, a la loira do banheiro.

Hoje em dia a prática é proibida, o que é uma evidente solução e um óbvio problema: que destinação pode se dar aos cães e gatos que não criaram do nada o pudor de não se reproduzir?

A solução óbvia é substituir a cova pelo facão, ou seja, não matar o infeliz, mas castrá-lo. Com isso, dá-se sobrevida aos desejáveis e elimina-se a possibilidade de que os feios, sujos, cagados, nojentos, indesejáveis deixem o legado de sua miséria para uma prole igualmente feia, suja, cagada, nojenta e indesejável. Só que eles ainda viverão, e, se ninguém os quer, não por que sejam feios, porque feiura é uma questão de moda; não por que sejam sujos, porque um banho resolve; não por que sejam cagados, porque a sorte muda; não por que sejam nojentos, porque feridas se curam; mas por que são indesejados, porque não se enquadram em um determinado padrão, quem será por estes pagãos? É aí que surge, nos últimos anos, o papel dos protetores.

Mas vamos voltar um pouco mais ao meu caso particular. Hoje em dia, tenho um viveiro com quinze passarinhos, entre canários, diamantes, manons, mandarins e duas codornas. Mais de uma pessoa me perguntou se não considero cruel manter preso um ser apenas para meu prazer estético. É uma questão interessante, mas parto do princípio que há diferentes comportamentos animais. Um pardal ou um bem-te-vi se matam dentro de uma gaiola. Prezam mais sua liberdade que a segurança e a comida certa preferidas pelo canário; não me dá nenhuma impressão de que sofram, e talvez tenhamos uma visão muito idealizada da natureza para julgar a liberdade melhor que o cativeiro, no caso específico. É claro que isso não vale para a cabeça humana, cheia de abstrações, mas para o bicho, podemos tentar compreender o que lhe vale mais pelo jeito com o qual reage. Além disso, o viveiro é bastante espaçoso, há comida em abundância e variedade, ausência de predadores, cuidados veterinários quando necessário, e há machos e fêmeas, garantindo o lazer.

Há também um aquário, desocupado no momento. Alguma praga carregou todos os meus kinguios para a caixa-prego, todos de uma vez, e estamos aguardando alguém ficar suficientemente disposto para higienizar adequadamente o ambiente.

E há o Homem-cueca.


Já o mencionei brevemente aqui e aqui. É um cachorro vira-lata como outro qualquer, preto retinto e filho do medo da noite, como Macunaíma. Em comparação ao seu antecessor, não é especialmente brilhante – costuma latir para a própria sombra, para dar uma ideia. Mas já conseguiu aprender uma série de truques, sempre em troca de petiscarias. O cachorro anterior da casa, Coronel, era bem mais inteligente, para os padrões humanos. Conseguia sacar quando algo ia mal, e escondia-se silente em seu canto. Sabia se conter com um simples levantar de dedos, e parecia reconhecer expressões faciais, tanto que nem era preciso aplicar-lhe carraspanas. Só que era sério demais, parecia um filósofo kierkegaardiano, preso em suas aporias existenciais (um exagero, ele só não era dado a brincar). Já o Cuecão é puro hedonismo, fugindo um pouco do controle quando vê comida, e sendo absolutamente impossível levá-lo à rua sem os músculos em dia.

Há uma diferença decisiva entre nosso personagem e os demais cachorros com os quais convivi. Enquanto todos os outros eram mendigos que recolhemos das ruas, o Homem-cueca era habitante de um abrigo, algo como um órfão. Portanto, já era castrado, vacinado e vermifugado, e também já tinha um nome oficial: Quick – rápido, em inglês. Achamos o nome meio sem graça, e ficamos dias debatendo qual seria o mais adequado, até não chegarmos a consenso nenhum, e deixarmos Quick mesmo, como sua identidade oficial. O insólito apelido vem das brincadeiras oriundas deste nome: quick, quack, caíque, cueca. E daí para lembrar do personagem do chuchu beleza foi um passo. Ambos periféricos, ambos negros, ambos pobres, o herói dos cem reais mais o dinheiro do busão doou mais esse ponto de contato ao nosso coabitante – uma identificação comunitária.

O Homem-cueca, portanto, é filho do trabalho dos protetores, um papel social relativamente recente, que veio na esteira de uma nova relação entre humanidade e animais, mais próxima do que em outros tempos. Para proteger o Homem-cueca, foi necessário que a sociedade mudasse. Em outras épocas, não teria vivido seus dois anos em um abrigo. Já estaria espalhado pelas cinzas desse mundão.

Mas é óbvio que isso não aconteceu de supetão. Imaginem o quanto mudou a maneira com a qual os seres humanos se relacionam e interagem nesses mais de 200 mil anos de aventura no planetinha. Os nossos sistemas sociais e políticos vivem em uma constante evolução, sempre dirigidos pelo conhecimento sedimentado, pelos ventos de cada tempo e pelas circunstâncias ambientais. Até pelo menos os anos 70, por exemplo, a relação do homem com a natureza era de mera exploração. Os recursos pareciam infinitos e o pouco cuidado que tínhamos produziu problemas que acabaram por semear novas formas de relacionamento, muito mais preocupadas com a manutenção da própria existência. As pessoas passaram a se preocupar mais com o meio-ambiente e com fatores antes pouco considerados, pelo seu baixo valor intrínseco na lógica preexistente, exemplificados pelos animais como sujeitos de direitos. Esse acréscimo e essas alterações na maneira como as pessoas se relacionam entre si e o meio com que vivem formam o conceito de capital social, explorado pelo cientista político Robert Putnam.

Vamos aqui fazer a diferenciação e a aproximação entre dois significados para o termo em epígrafe. Ele vem da Contabilidade, e representa o montante investido pelos sócios em um determinado negócio. O capital é mutável: pode ser incrementado pelos lucros e por novos aportes, ou diminuído por perdas e retiradas, mas possui uma pretensão de crescimento, por certo, porque todo empreendimento visa sucesso. O capital social, no sentido de Putnam, tem o mesmo mecanismo, mas com outro objeto – o que aumenta ou diminui não é algo tangível, como o vil metal, mas as “substâncias” que criam e mantém o elo social, como a confiança interpessoal, a cultura, o aperfeiçoamento das identidades coletivas e outras coisas. A chave para a compreensão do capital social é a noção de reciprocidade: por exemplo, quando as pessoas de um grupo participam efetivamente da composição dos valores e das normas, aumenta sua confiança no poder de que tais regramentos representem o que há de melhor possível para conduzir aquele grupo, o que fortalece o nó que o ata. Já é fácil aqui perceber que falamos de democracia.

Mas nem sempre o caminho do capital social é aglutinador. Espelhando o que acontece nas finanças, há momentos de perdas, que são os esgarçamentos do tecido social. Muitos são os fatores que podem levar ao distanciamento interpessoal, como a concentração de renda, a estigmatização de uma classe, o empobrecimento generalizado, et cetera. No entanto, um estranho fenômeno levou Putnam a constatar o caminho de exacerbação do capitalismo: o individualismo. Putnam percebeu que uma tradição ianque permanecia intacta em sua prática: o jogo de boliche. No entanto, o local das partidas migrou dos clubes para os shopping centers (mais conhecidos nos EUA por malls). De fato, há uma diferença vital entre ambos os lugares. Nos clubes, as disputas de boliche se dão por equipes. Basta que se lembre do desenho animado dos Flintstones – as partidas não eram de Fred ou de Barney; eram de seu time, os Búfalos d’Água, se não me engano. Já nos shoppings, a disputa é individual. Já não temos a formação de times como ocorria nos clubes de boliche. Não é necessária uma espécie de “adesivo social” para que se pratique um esporte tão característico da cultura estadunidense.

Pensem bem se não é a mesma coisa que vemos no Brasil. Há duas décadas, as pessoas se inscreviam em clubes para as mais diversas práticas desportivas, como piscinas e aparelhos de ginástica. Ao lado disso, havia a possibilidade de práticas coletivas, como basquete e remo, exempli gratia. Hoje os clubes vivem na penúria e as academias povoam os bairros, onde os pretendentes a atletas malham sozinhos em suas esteiras, com um I-Pod conectado ao ouvido para disfarçar o tédio e dar lenitivo à solidão. As escolhas são feitas tão sob medida que o universo de opções fica radicalmente reduzido.

De uma constatação tão singela, Putnam conseguiu disparar uma série de observações sobre a sociedade norte-americana, e percebeu que os índices de participações em ações coletivas despencaram, como conselhos de bairros, reuniões de pais e professores, institutos voluntários e sindicatos, sendo a mais significativa de todas a participação eleitoral. O absenteísmo, por exemplo, foi a marca da eleição que levou Donald Trump à presidência. O voto nos EUA é facultativo, e essa é uma indicação segura de que o norte-americano, como um todo, não tem mais o mesmo interesse que tinha anos atrás na vida comum. Na medida em que os indivíduos se reconhecem cada vez mais como tais, menos a sociedade se dá os braços.

Ok. Vivemos hoje mais presos a celulares e feicebuques do que aos membros físicos de nossas comunidades, mas ainda vivemos, não é verdade? E aquela nossa velha necessidade atávica de companhia, de nos aquecermos em conjunto, de dividirmos um belo lombo de bisão (tudo bem, tudo bem, um churrasquinho já basta)? Como a suprimos hoje, ainda mais levando em conta a diminuição do tamanho das famílias e sua tentacularização? Uma das rotas utilizadas para supri-la é a adoção de animais, e um capital social acaba sendo substituído por outro, mais adequado à nova circunstância.

Vejam vocês. Os cães, desde seu ancestral longínquo, o tomarctus, são tão sociais quanto o homem. A princípio arredios, algumas espécies devem ter percebido que havia vantagem biológica em se aproximar das aldeias humanas, onde conseguiam restos de alimentos e um certo aumento do nível de proteção. A interação entre as espécies tornou-se significativa já nesses tempos. E foi se transformando na medida em que a vida se transformava como um todo.
Nas minhas épocas de criança, como já deixei entrever, os cães eram criados soltos nos quintais, geralmente com livre acesso à rua. Quando se queria prender um cachorro, coleira nele; o acesso ao interior das casas era vetado. Quem morava em apartamento nem sonhava com cachorro. Hoje em dia, tudo isso parece impensável. O dócil e fiel cão veio substituir a companhia física dos filhos que não nascem mais e dos amigos que só trocam seus afetos via WhatsApp e congêneres. Com vantagem: reclamam pouco, alegram-se com facilidade, não demandam agrados muito elaborados, são fiéis à sua pequena tribo e, principalmente, são sinceros. Com desvantagens: duram pouco, sujam muito, expressam-se limitada e dubiamente e, principalmente, aqui também são sinceros. No balanço, adaptam-se melhor que qualquer outro bicho ao modus vivendi individualista do ocidente contemporâneo, porque oferecem companhia sem reclamar da novela em relação ao jogo.

Não pintemos o pavão com cores que ele não tem, no entanto. Se o humano tem dificuldades de encarar seu companheiro de espécie como seu igual, que fará com o cachorro que não se enquadra a um ideal de beleza? É o caso do Homem-cueca, que demorou dois anos para que alguém o quisesse.

Para proteger o Homem-cueca, e a outros como ele, os protetores dedicam seu tempo e suas sempre parcas verbas. Eles fogem da lógica do individualismo e investem na da solidariedade, criando outra modalidade de capital social, em reversão à perda da coletividade. Seus cães lotam seus quintais e lhes tomam quase todo o tempo. Eles, os cães, não são bonitos socialmente. Se fossem, certamente estariam acolhidos, não importa se em uma mansão ou com moradores de rua; o que importa é estarem vivendo honradamente. Mas há bichos que são abandonados, doentes. São os cagados e cuspidos que citei no começo, aqueles que ninguém quer. No paroxismo do cúmulo da comparação, o Homem-cueca veio da favela. Ele é tão legal quanto seria se tivesse certificado e pedigree. Ele veio da favela como vem milhões de pessoas, e algumas delas, verdadeiramente de boa vontade, ainda acham recursos para cuidar de bichos tão desvalidos quanto eles próprios. Nos pet shops da vida, sempre há alguns cuidadores que apelam para a caridade alheia, fazendo todo o farol possível para conseguir algum reforço nos estoques.


Por isso, eu respeito e admiro os protetores. Fazem coisas que eu não faria e ajudam a manter ainda um pouco aderentes os contatos comunitários.

Para proteger o Homem-cueca precisaríamos, por fim, protegermo-nos, nós mesmos, de nossa sanha, de nosso egoísmo, lembrando do que nos afasta e capitalizando socialmente aquilo que nos aproxima e faz dar verdadeiro sentido à palavra “humanamente”.

Recomendação de leitura:

Cientista político e sociólogo controverso, Robert Putnam ainda está plenamente ativo. Segue o livro que dá base às observações deste texto:


PUTNAM, Robert. Jogando boliche sozinho. Colapso e ressurgimento da coletividade americana. Curitiba: Atuação, 2015.