Marcadores

quarta-feira, 28 de março de 2012

A violência no futebol: o que fica aquém e o que vai além do símbolo

Olá!

Já há algum tempo, pretendo colocar no papel algumas idéias que tenho com relação a uma sociologia dos grupos humanos agregados em torno de um símbolo, em especial as torcidas de times de futebol e escolas de samba. Acontece que, mais uma vez, a violência destas mesmas torcidas obscureceu o evento esportivo para colocar à tona o espetáculo da barbárie. Como todos nós temos acompanhado pela imprensa, dois torcedores morreram em um confronto entre Gaviões da Fiel e Mancha Alviverde, além de uma boa quantidade de feridos. Não é a primeira vez. Não deverá ser a última, principalmente por conta da burrice dos detentores do poder público. Acham que resolverá alguma coisa impedir as torcidas em questão de irem ao estádio. É simplesmente ridículo, ainda mais lembrando que a briga deste último domingo aconteceu a quilômetros do Pacaembu. Não sou adepto das organizadas, não pertenço a nenhuma nem pretendo pertencer, não deixei de torcer pela Vai-Vai por conta do surgimento da Gaviões. Não torço para a torcida, torço para o Corinthians. Mas com certeza não é isso que vai resolver a problema, nosso ordenamento jurídico e nossa gestão da segurança pública são frouxos demais.

De toda forma, as torcidas de São Paulo guardam mais semelhanças que diferenças, em especial as torcidas de Corinthians e Palmeiras. Em sua origem, dividiram a preferência do proletariado paulistano, constituídas que foram, em sua maioria, por operários das regiões fabris da cidade. O fato de que o nome original do Palmeiras fazia referência à Itália pode ter sido um atrativo à respectiva colônia na época, mas isso se desfez por conta da mudança de nome e da quantidade de títulos que foram sendo angariados. Bem é verdade também que a Itália não era um país exatamente unificado. Havia uma rivalidade bastante grande entre o norte industrializado e o sul agrário, o que fez com que não houvesse uma adesão total da colônia. A questão da preferência não se dava por uma questão de classe, esta se dava em um mesmo nicho. Talvez por esse motivo o Derby seja o principal clássico do estado, a despeito do fato de que a torcida palmeirense hoje seja em menor número que a do São Paulo.

Por que duas torcidas que em tanto se assemelham, que constituem complementos recíprocos, adotam atitudes que acabam por traspassar o próprio âmbito da animalidade?

Problemas complexos exigem análise profunda. O argumento de que a lei é frouxa e o aparato policial é insuficiente são válidos, mas só enquanto pensarmos em termos de aparelhamento coercitivo. Não serve para explicar as causas da violência, mas apenas para observar a deficiência na repressão.

Também o argumento de que os membros das torcidas são bandidos que agem premeditadamente, e que merecem se estapear até a morte é simplista e perigoso. Será que não estamos assistindo apenas a uma amostragem da predisposição dos espíritos em um sentido geral em nossa sociedade? Não teremos derivações ainda piores daqui a pouco? Portanto, não basta combater a violência escancarada: é preciso captar onde ela está latente, seus motivos e tentar compreendê-los, para, aí sim, ver o que podemos fazer.

Já discorri sobre a violência por estas plagas. Neste texto, comentei o fracasso do indivíduo em uma sociedade marcada pelo pessoal. Neste outro, usei Freud para tentar entender o laceamento da consciência e das repressões morais diante das reações instintivas. Agora, vou chamar dois outros figurões da psicanálise caros à Filosofia para formular uma teoria que explique o estado de coisas apresentado: Carl Jung e Jacques Lacan.

Jung era um discípulo de Freud, mas acabou se opondo ao mestre em alguns pontos fundamentais sobre a teoria psicanalítica. Sua principal inovação foi a seguinte: enquanto Freud via o inconsciente como um jogo contínuo entre o instinto e seus refreadores (Id x Superego) mediados pelo Ego, motorizados principalmente por pulsões de natureza sexual, Jung sinalizava com um componente inconsciente adicional. Para ele, a rede instintiva residente no Id explicava bem o inconsciente pessoal, próprio de cada contribuinte individualmente, mas também haveria um componente inconsciente comum a todos, o inconsciente coletivo.

O inconsciente coletivo teria a propriedade de se constituir de uma unidade hereditária, transmissível de geração a geração, através de uma estrutura que Jung chamou de arquétipo. Este não se constitui propriamente de uma idéia inata, como adorariam os racionalistas, mas de uma predefinição de conceitos existentes no equipamento psíquico humano. Essas imagens são adquiridas e adicionadas ao patrimônio inconsciente através da repetição de experiências no decorrer de várias gerações, de forma a produzir um modelo primordial a qual nossa consciência se encaixaria.

Jung, ao menos no plano nominal, não foi um estruturalista (corrente que já espanei de leve aqui), mas é impossível não pensar em estruturas a partir da teoria dos arquétipos. E, com isso, podemos pensar em uma estrutura da violência arquetípica.

Atavicamente falando, o homem tem a violência dentro de si, contrariando o pensamento de Rousseau (infelizmente). Isso porque, para nossos ancestrais, a violência não era uma opção, mas uma necessidade. O homem precisava enfrentar feras muito melhor equipadas anatomicamente do que ele. Para fazê-lo, exigia-se um agir em grupo. Assim, conseguia-se maior eficiência na caça e na defesa. A constituição desses agrupamentos também levou a uma necessidade de ampliação de seus respectivos espaços vitais, e isso não era feito com trocas de flores ou com alguma forma primitiva de carteado, mas com ferramentas de guerra. Desta forma, ficou impresso no caráter da comunidade uma espécie de registro do uso do combate voltado à própria sobrevivência, e que podemos chamar de algo como arquétipo da guerra.

Ok, temos inscrito em nosso inconsciente uma predisposição para o combate, para o enfrentamento como meio de sobrevivência. Só que há um problema – o mundo moderno desfez a necessidade de que o homem se debata com bichos para se alimentar, e também a diplomacia vem procurando tomar o lugar das antigas rixas tribais, mas o arquétipo permanece e o homem precisa satisfazê-lo. Uma das soluções encontradas é fazer com que estas construções primordiais sejam preenchidas por conteúdos deslocados do concreto para o simbólico, e o esporte é uma das mais significativas simulações do confronto. O futebol, como esporte coletivo de fácil prática, presta-se ainda melhor a esta tarefa. Daí, o gosto pela conquista que o esporte proporciona: a satisfação de uma necessidade atávica.

Tudo seria lindo se parasse por aí. No entanto, as brigas de torcida mostram que há uma tendência em se retornar ao real palpável. Algo faz com que os ânimos se acirrem a tal ponto que o simbolismo da luta contido no esporte derive novamente no concreto, e aí o pau fecha. O rival esportivo vira ameaça real, um inimigo a ser derrotado. Esse seria o momento exato de entrar em ação o componente racional, que deveria fazer com que se impedisse a barbárie, mas nem sempre o faz. Se o arquétipo da guerra existe, funciona e se extravasa, não existiriam outros códigos igualmente inconscientes que poderiam refrear esses ímpetos? Vamos chegar agora em Lacan.

Nosso ilustre francês reconheceu no inconsciente uma estrutura que se forma através da linguagem. Isso equivale a dizer que a carga simbólica contida no inconsciente é praticamente seu componente primordial, já que a linguagem é formada de representações simbólicas. Para explicar como o símbolo se forma no ser humano, Lacan utiliza um ótimo exemplo, chamado de “estágios do espelho”, que decorrem na vida de uma criança de 6 a 18 meses. É assim: a criança ao tomar contato pela primeira vez em sua vida com um espelho, não se reconhece nele. Acha que está diante de um outro ser, concreto como ele, tanto que ao tentar tocá-lo, não tem a expectativa de tomar contato com algo liso e duro, mas com outro corpo humano. Em um segundo momento, a criança já parte para uma construção mental mais elaborada, já sabendo que o reflexo não representa o real, mas uma imagem. Neste instante, inicia-se uma migração do real para o simbólico, mas a criança ainda não reconhece a si própria no espelho, o que acontecerá no terceiro estágio, quando a criança saberá que a imagem refletida é dela. Desta forma, a criança consegue se enxergar fora de si, forma de si mesma uma imagem, e se reconhece não apenas no círculo das realidades, mas também no plano simbólico. Ela também pode ser simbolizada e estruturada como linguagem. Temos então três mundos: o concreto, o imaginário e o simbólico, sendo que o último é que caracteriza o ser humano como tal.


Vamos adiante. Essa interação entre os três mundos adquirida pela criança acaba por se ver refletida em toda a sua cadeia de relacionamentos, e suas necessidades e desejos também passam a possuir um plano simbólico. Para Lacan, a satisfação de necessidades, em especial na criança, se iniciam através de uma demanda. Porém, estas necessidades nem sempre são puramente fisiológicas, ou seja, concretas. Neste caso, a demanda vem em mão dupla. Ocorre, por exemplo, quando a criança começa a ficar birrenta, chatinha. Normalmente identificamos: “Tá com sono”. E temos de fato uma necessidade concreta e fisiológica – a de dormir. Mas aí também há uma carga afetiva: a necessidade de amor. A criança não quer só dormir, quer também carinho. Sua necessidade não é apenas física, é também simbólica: a proximidade com a mãe. Às vezes o fisiológico é apenas um subterfúgio para a realização do simbólico – a criança quer se alimentar apenas pela concessão do amor, e não por uma necessidade real de alimento.

Nem sempre é fácil perceber a demanda da criança. Suprir unicamente as necessidades afetivas não mata a fome, mas não abastecê-las é muito mais prejudicial. Isso porque este jogo simbólico é estrutural e indissociável da psique. A criança procura amor e encontra algo material, mais e mais. Insiste em sua demanda e continua a receber o que, no final das contas, não quer. De modo que, ao cabo de muitas recusas, acaba por entrar em um estado chamado por Lacan de “anorexia mental”, que redunda em efeitos extremamente graves, como a depressão e o suicídio. Sem chegar a extremos, se o indivíduo não encontra respostas às suas buscas no núcleo mais próximo, vai tentar achá-los em outro lugar. Só que o processo de troca propiciado pelas requisições feitas na infância é também de aprendizado. A criança não aprende apenas a receber afeto, mas também a concedê-lo. Se não recebe carinho, mas indiferença ou ódio, é isso também que terá a oferecer. Quando esse ser conseguir se identificar a um grupo, devolverá aquilo que recebeu. Portanto, em um grupo com afinidades ao confronto, estará arado, semeado e adubado o território onde essa violência se fará manifesta. O arquétipo de violência se faz prevalecer.

Desta forma, podemos concluir que a falta de limites nos confrontos entre torcidas está ligado a uma auto-estima destruída. Os membros destas organizações (aqueles que perdem a noção do limite) muito provavelmente têm seus equipamentos psíquicos danificados por anos de indiferença afetiva de seus pais e daqueles que os rodeiam, e encontram na violência um lugar para suprir carências que deveriam, em suma, ter sido mitigadas por um componente muito simples, mas muito altruísta: o amor. Este arquétipo da relação cordial é que teria força suficiente para se impor ao espírito guerreiro ancestral, e mantê-lo em seu devido lugar (em nosso caso, no âmbito esportivo): a dimensão simbólica.

Não quero aqui imputar a culpa pelas mortes decorrentes destes confrontos aos seus pais. A vida de uma pessoa não se limita ao convívio familiar, mas sim a toda sociedade. Em última instância, é ela que permite a existência de tais grupos, e estas ocorrências são sintomas de uma doença social formada por muitos componentes que não conseguem inibir a ação desta agressividade exacerbada arquetípica.

Para finalizar, um outro detalhe importante. A mãe de um dos torcedores falecidos não permitiu que nenhum símbolo do clube ou da torcida fosse utilizado no enterro de seu filho. Deveríamos pensar bastante seriamente diante desta atitude. Porque fiz, com este texto, rolar um papo meio louco sobre imagens e símbolos, mas o descuido que gerou a ocorrência, no final das contas, ocasionou um fato que pode ser interpretado de muitas formas à luz da Filosofia em sua simbologia, mas que para os pais do rapaz é real, palpável, observável e, infelizmente, muito trágico. O que temos de prático é isso.


Recomendações:

Jung é um dos mais conhecidos autores derivados da psicanálise freudiana. Sua obra é bastante interessante e, como não poderia deixar de ser, complexa. Indico o que segue:

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000.


Lacan é um autor extremamente hermético, difícil de ler, que escreveu mais à base de artigos do que em livros propriamente ditos. Para os iniciados em Filosofia ou Psicologia, ou a quem quiser se aventurar:

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Sobre o dogmatismo na ciência e a falsificação como seu remédio

Olá!

Há pouco tempo atrás, publiquei um texto que versava sobre a loucura (vide). Seu mote principal foi a questão da impossibilidade de defini-la, já que não temos como fechar um paradigma absoluto sobre o que é a razão. Se não defino o modelo, não tenho como identificar os pontos contraditórios para estabelecer um oposto seu. O problema é que acabei por bater um bom tanto na Ciência, por conta de sua postura arrogante de detentora exclusiva do conhecimento. Não é bem assim, mas tenho lá minhas razões.

Para esclarecer um pouco melhor a minha posição e lançar novas pimentas neste caldo, vou dar uma de Professor Pasquale e convocar o músico Chico Teixeira para nos ajudar a pensar melhor no busílis. A música chama-se “Mochileira”, e é de autoria de Geraldo Roca. Vamos prestar atenção no pequeno trecho grifado:


Moça, deixe que eu ligue meu olhar em você
Você é mesmo uma cigana bonita

Refrão:
Mochileira, deite comigo essa noite
E conte alguma boa e velha história
De umas noites de mágica em Machu Pitchu
E os dias dourados na Califórnia

O encanto se foi, mas você diz acreditar
No bem, na revolução, no amor,
No pé na estrada, no zen
Sua vida é um trem indo embora
Trens, estradas, cidades
Que a mim já não empolgam, meu bem
A minha alma adoece
No Rio ou no Nepal
O meu mal, nenhuma certeza
O seu mal é certeza total

Dança, mochileira, que eu toco a guitarra
Dança, mochileira, e aquece a minha alma

Refrão

Você tem o dom de viver em qualquer lugar
Mesmo quando o medo vem
Uma noite nos Andes é fria
Mas o frio, ele é fácil de espantar
Os Deuses sabem que a estrada ainda é uma farra
E depois o trovão não assusta
Alguém com essa marra de ser
Do tipo de cigarra que canta na chuva

Refrão


Aqui aproveito para abrir parênteses. Trata-se de uma música rural (não dá prá chamar de sertanejo – infelizmente hoje isso é sinônimo de... deixa prá lá) muito bem construída, como pode ser ouvido neste link (gravação bem mais ou menos). É sobre isso que afirmei neste post, onde digo que a obra de arte pode ser reconhecida como tal se ela basta a si mesma, ou seja, se ela por si só tem o condão de fazer pensar, de causar admiração, etc. A má arte (termo contraditório...) suscita debates outros que são externos a ela. Leiam lá para entender.


Bem, vamos ao assunto. O trecho grifado diz “... o meu mal, nenhuma certeza; o seu mal é a certeza total”. O eu-lírico se depara com as dúvidas existenciais de seu interior, enquanto nossa mochileira é a personificação da impulsividade. Há um conflito entre a impossibilidade de aceitação passiva e a confiança ilimitada. É o velhíssimo debate entre ceticismo e dogmatismo, uma das bases da disciplina filosófica conhecida como “Teoria do conhecimento”.

Ambos têm visões opostas com relação à possibilidade da cognição. Para um, a verdade existe e é absoluta. Pode ser conhecida, geralmente sob guia de uma autoridade. Já o ceticismo coloca o indivíduo em dúvida permanente, ocasionando uma incerteza com relação à verdade.

A ciência inicialmente se apega ao ceticismo, que tem necessidades empíricas para satisfazer suas hipóteses. De forma sistemática, isso nasce com Francis Bacon, que estabeleceu uma metodologia completa para as observações científicas, o Novum Organum, com as devidas limitações da época. Fica estabelecido que apenas um conjunto amplo de investigações pode dar fundamento a uma conclusão. Divagações dedutivas são um bom exercício lógico, mas não passam disso. Afinal, uma dedução nada mais é do que o reconhecimento de uma implicação já existente nos sujeitos envolvidos. É aquela velha historinha do silogismo: Todos os homens são mortais – Sócrates é homem – Sócrates é mortal. Ou seja, nenhuma novidade, apenas constatações.

Para fins de ciência, utilizar-se-ia a formulação de hipóteses e a sua comprovação através de raciocínio indutivo. Este nasce da observação da repetição dos fenômenos, em uma relação de causa e efeito. Quanto mais se observa o deslindar de um fato, maior é a quantidade de informações que provam a conclusão que a investigação acaba por levar a cabo.

Acontece que a indução tem um grave problema, já detectado por David Hume. Ao contrário do que acontece na dedução, não há necessidade lógica de que as premissas em uma indução sejam sempre verdadeiras para que a conclusão também seja verdadeira. Seus argumentos podem ser fortes ou fracos, nunca válidos ou inválidos. O exemplo de Hume é baseado no nascimento de cada dia. Por experiência, somos induzidos a concluir que toda manhã um belo sol estará a nos iluminar, sendo o propulsor de toda a alegria humana, abismada a contemplar as flores colorindo os voluptuosos campos, os gráceis pássaros a construir seus ninhos e a água que se esparrama em suas margens como se fosse um informe lençol a cobrir de benesses nossos horizontes. Só que nada há de ilógico em que nada disso ocorra e que o sol se apague para sempre. Uma só vez que a regra se quebre, e a indução, juntamente com suas leis, teses, axiomas, corolários e princípios, vão todos juntos, de braços dados, para o vinagre balsâmico com um ramo de alecrim.

O que fazer então, se a dedução não acrescenta nada de novo a um fato e a indução nunca fornece conhecimento seguro? Impossibilita-se a ciência e pronto?

Uma proposta bastante interessante é colocada pelo filósofo austríaco Karl Popper. É o que ele chamou de falsificacionismo ou falseabilidade. Através desta teoria, ele procura fazer com que o rio da ciência corra em um leito seguro, principalmente porque relativamente indefinido. Popper preconiza que não existem comprovações científicas, mas teorias não refutadas.

Em primeiro lugar, Popper estabelece que o critério de falseabilidade é o divisor de águas entre aquilo que pode e que não pode ser classificado como ciência. Para ele, tese científica é aquela que PODE ser falseada, ou seja, refutada. Todas as outras constatações, que não podem ser contraditas empiricamente, estão fora do alcance científico, são de outras áreas do conhecimento. Exemplos: a afirmação de que os anjos rodeiam todos os ambientes pertencem à religião, e não à ciência, já que não são passíveis de serem mensurados empiricamente; o mesmo vale para a observação metafísica de que o ser é externo ao indivíduo, à constatação estética de que a arte é expressão do belo. Como não podem receber oposição por meio de experimentação, pertencem a campos de conhecimento distintos da ciência. Também as tautologias não podem ser encaradas como científicas. Uma afirmação do tipo “O dia ficará claro enquanto não escurecer” é obviamente não científica, porque é uma assertiva que não tem possibilidade de ser falsa. De cara, portanto, Popper já coloca a ciência em seu devido eixo, justamente colocando-a em constante desafio: o de que as teses deverão resistir a oposições.

Podemos afirmar que Popper é um cético? De certa forma sim, mas sua proposta, no entanto, não deve ser tomada em um sentido radical como faz Hume e os céticos pós-clássicos, como Sexto Empírico, que defende a epoché, suspensão do julgamento pela impossibilidade de se conhecer a verdade. Popper pensa que a ciência se torna dogmática ao crer indistintamente em seus princípios, fugindo de uma de suas principais características, que é a investigação permanente. Ele imagina o seguinte: as teorias nada mais são que conjecturas, que podem ser desfeitas a qualquer tempo. Isso não mata a teoria, mas faz com que ela seja revista e ajustada. Na verdade, ele pretende que as teorias científicas se renovem continuamente.

Mas por que as teorias científicas devem ser passíveis de revisão permanente? Porque elas buscam atingir uma universalidade impossível. O homem não possui técnica e alcance suficiente para chegar aos “limites” do universo, para verificar se suas experiências produzirão resultados consistentes em qualquer tempo e em qualquer lugar. Mas a cada vez que se avança, a cada vez em que for possível verificar a aplicabilidade das leis científicas em novas condições, a teoria pode ser derrubada. Na maioria das vezes, isso não a invalida, mas a modifica, e, no limite, a aperfeiçoa.

Neste sentido, Popper assina um libelo contra a “preguiça” na ciência, que não pode ser refém de uma atitude que, levada a extremos, transforma as teorias científicas em dogmas, tão ao contrário do que o próprio espírito da ciência requer. A ciência ganha status semelhante ao religioso ao dogmatizar-se, lembrando que esta última tem a escusa de se caracterizar pelo reconhecimento da autoridade que dita a verdade.

Por fim, não tenho rigorosamente nada contra a ciência. Só penso que é necessário ao próprio espírito científico reconhecer os limites de sua atuação, sem arrogar a si mesmo o estatuto de proprietário exclusivo da verdade, o que ele não é nem deveria pretender ser.


Recomendações:

Falei muito rapidamente sobre o pensamento de Karl Popper. Ele é beeeeeeeeeeem mais detalhado e interessante. Recomendo a seguinte obra para melhor conhecer seus pensamentos sobre o problema da indução e a falseabilidade.

POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1993.


Mencionei a metodologia científica de Francis Bacon. É meio chatinho de ler, principalmente a segunda parte, que descreve os métodos de pesquisas, mas historicamente é um documento importantíssimo, porque marcou a transição entre os períodos medieval e moderno, com uma guinada muito significativa na linhagem dos pensamentos então praticados. A primeira parte, aliás, contém uma interessantíssima teoria acerca dos ídolos. Vale o esforço.

BACON, Francis. Novum organum: Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1999.


Por fim, o CD do Chico Teixeira. Ótimo violonista, filho do consagrada Renato Teixeira. Este é o padrão de música sertaneja que eu aprecio. Recomendo a audição para que se saiba que as coisas podem ser muito boas, independente do rótulo que possuam.

TEIXEIRA, Chico. Mais que um viajante. São Paulo: Microservice, 2011. 01 mídia (CD).

quinta-feira, 15 de março de 2012

Sobre o panóptico e o novo papel da vigilância na obtenção dos desejos

Olá!

Bem no finalzinho de 2011, tivemos uma decisão de bom senso do governador Geraldo Alckmin (por incrível que pareça). Ele vetou uma lei estadual, já aprovada na assembléia legislativa, que proibia os motociclistas das cidades de mais de um milhão de habitantes de conduzirem “caronas” de segunda a sexta, sob o argumento de que muitos dos assaltos são cometidos em dupla e em motos, para garantir eficiência e fuga rápida. A punição prevista para o descumprimento era de multa – AVÁ.

Enfim, é um dos muitos métodos utilizados para que o detentor do poder possa auferir mais verbas e devolver menos benefícios. Não atribuamos aqui esse nefando privilégio à nossa indigitada assembleia, já que não é sua prerrogativa única dar exercício ao poder e utilizar de seus instrumentos. Os governantes são assim. Acham que ao estalar de seus dedos um deus ex machina surgirá do nada e solucionará, sem projeto algum, problemas que não se sanam sem uma grande dose de boa vontade e adesão popular. Pode ser revoltante, mas na maioria das vezes aceitamos compassivos estas interferências em nossos pobres campos de ocupação do espaço público, de nossas manifestações e de nossa liberdade, por mais imbecis que sejam. Por que essa cabeça baixa?

Para que possamos compreender melhor isso, é preciso captar o conceito filosófico de estrutura, que redundou em uma escola de pensadores conhecidos por (oh!) estruturalistas. Estes pensadores não formaram uma massa coesa e concorde, como os positivistas e pragmáticos, por exemplo, mas em comum eles entendiam que o existencialismo, então em voga (corrente que pincelo nestas mal traçadas linhas), possuía um erro em seu bojo: o homem não é tão livre para escolher, como pensavam seus arautos, já que nem toda escolha é feita conscientemente, dependendo muito de uma série de predisposições de natureza psíquica, social e cultural (as ditas estruturas), que acabam por influenciar seu modus vivendi, de modo que o sujeito, tão caro aos existencialistas, passa a se constituir de uma parte de uma relação, e não em seu centro.

Um bom exemplo do que seriam as estruturas nos é dado por Claude Levi-Strauss, antropólogo belga que trabalhou como professor e pesquisador no Brasil. Grande pensador, ele percebeu que muitos ritos e costumes se repetiam em diferentes culturas, ainda que estas nunca tivessem entrado em contato. É o caso da mitologia: em todas as partes do mundo, independentemente da evolução de uma etnia, busca-se dar explicação aos fenômenos que não são experienciáveis. Cria-se, portanto, um registro histórico baseado na suposição, que serve de fundamento para a construção de uma realidade. A princípio, poderia parecer uma mera coincidência que todos os povos criem suas próprias mitologias, mas não é. Isso é estrutural, faz parte da constituição da coletividade humana. Outro exemplo de estrutura é relativo aos parentescos: um guia oculto (a estrutura) leva os grupos humanos a disseminar suas características pelo mundo todo. Como se deseja expandir (inconscientemente e coletivamente) o patrimônio genético ao mais longe possível, surge a censura ao incesto, atitude restritiva desta expansão. E há pouquíssimas etnias que o admitem, fazendo crer que essa restrição é estrutural ao ser humano. As estruturas, portanto, seriam importantíssimas na constituição e no desenvolvimento da espécie, muito mais do que o individualismo existencial poderia levar a crer.

Mas o estruturalista que nos importa neste momento é Michel Foucault. Ele lidou com a questão das estruturas de uma maneira muito mais política do que antropológica, mas o fez de forma genial. Para explicar as estruturas de coerção, repressão e vigilância, e por extensão do exercício da dominação, lançou mão de um modelo de presídio criado pelo filósofo utilitarista Jeremy Bentham, chamado de panóptico.


Que seria essa coisa? Bentham imaginou que o modelo de presídios que ocultassem seus ocupantes era ineficaz, como as masmorras, já que a vigilância sobre seus atos ficava prejudicada. Efetivamente, a articulação de revoltas e motins tornava-se facilitada pela ocultação dos atos dos presos. Melhor seria dar uma guinada total no sistema, fazendo com que os presidiários ficassem totalmente expostos. A vigilância seria levada a cabo de maneira surpreendentemente simples: uma torre erigida no centro de um edifício em forma de anel, dividido em compartimentos individuais. As paredes dianteira e traseira de cada um destes compartimentos seriam feitas de material transparente, de modo a ser possível observar todas as ações dos ocupantes. As janelas de observação da torre seriam protegidas por persianas entreabertas, de modo a se tornar impossível a identificação de quem observa, ou a quantidade de vigias alocados, ou mesmo se há algum atalaia a contemplar nossos pobres-diabos. Um sistema eficiente, barato e possuidor de uma característica fascinante: mesmo inexistindo vigia na torre, há a impressão de vigilância, ou seja, de coerção.

A grande sacada de Foucault foi perceber o panóptico como estrutura. Sua aplicabilidade não se dá apenas em sistemas penitenciários, mas em toda atividade na qual se deseje exercitar o poder de coerção, principalmente baseando-se em seu efeito psicológico: o principal não é vigiar, mas dar aos indivíduos a sensação de que estão sendo vigiados. Isso é aplicável, por exemplo, nas fábricas, manicômios, escolas, repartições públicas, e mesmo nas ruas, nas praças, nos parques, de modo a causar o arrefecimento da vontade de subverter. Dessa forma, temos uma inigualável ferramenta ao exercício do poder.

Os sistemas tirânicos e ditatoriais procuram levar essa vigilância aos extremos, como podemos observar no decorrer da história: em nosso período de governo militar, por exemplo, observamos o cerceamento da liberdade em instâncias físicas que ocasionaram prisões, torturas e assassinatos. Vimos também a modificação dos métodos educacionais, transformando uma educação de molde humanista em um sistema eminentemente pragmático e cheio de loas ao Estado. E, principalmente, assistimos à implantação da censura, que buscou limitar drasticamente a liberdade de pensamento. O resultado está aí, para todo mundo ver: uma sociedade despolitizada e acrítica, incapaz de identificar adequadamente as propostas que podem trazer, de fato, o bem comum. E nascem fenômenos eleitorais como os Tiriricas da vida, um nome eleito como protesto, mas um protesto tolo, porque tem direito a voto no congresso e que carrega consigo um amplo sortimento de políticos que queríamos ver muito longe. Ou seja, também nos meios democráticos podemos perceber a onipresença do poder coercitivo.

Também na literatura encontramos obras que versam sobre as estruturas de dominação e poder, como o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, Sombras de Reis Barbudos de J. J. Veiga e 1984 de George Orwell. Neste livro, encontramos a censura e a coerção levadas ao paroxismo, através da vigilância extrema e da manipulação da história. Os habitantes da terra retratada estão reduzidos às funções que o estado totalitário quer deles, de forma a garantir a manutenção do poder através da repressão e da forja das consciências. Para tanto, o sistema de vigilância é total – mesmo no interior dos lares os habitantes são assistidos incessantemente por uma entidade abstrata, o Grande Irmão.

Falar de 1984 remete, invariavelmente, aos reality shows modernos, e é impossível não falar daquele de maiores índices de audiência, o Big Brother Brasil.

Este programa é tão assistido que é necessário analisá-lo filosoficamente. Se não passasse tanta impressão de que seus participantes têm atuações tão calculadas, seria possível fazer um belíssimo estudo antropológico, mas parece-me razoável levantar a seguinte questão: se a vigilância extrema é um atentado à liberdade, tão desejada pelo espírito humano, por que tanta gente deseja ser confinada na casa e ser refém de milhões de olhos sequiosos por devassar suas intimidades? Por que desejam ser colocados no panóptico?

O prêmio almejado é uma boa explicação, mas insuficiente. De todos, apenas um ganhará a bolada, e evidentemente alguns dos componentes sabem que não reúnem condições de atingi-la. Para mim, o buraco é bem mais embaixo.

Ao se inserir no programa, os participantes admitem o panóptico e buscam tirar proveito dele. Todos se tornam famosos, uns por mais tempo, outros por menos. Alguns virarão atores ou apresentadores, terão evidência. As meninas mais formosas posarão nuas nas revistas masculinas, em troca de cachês bem altos. Há o outro lado: o próprio público que os assiste. Também este admitirá o panóptico, desta vez exercendo o poder, já que é de seu voto que será escolhido o vencedor e que serão punidos os eliminados. Há ainda mais uma face, formando uma dicotomia - este mesmo público que exerce o poder é aquele que reconhece nos participantes os ideais de perfeição da nossa ditadura da beleza, e vê que existe vantagem em ser manipulado. A mistura da sociedade da imagem com os mecanismos de controle acaba por gerar este fenômeno. Neste ponto, podemos concluir que Foucault acertou na mosca: o panóptico atinge todos os dispositivos sociais, pelo arrefecimento da vontade e pelo reconhecimento da inutilidade de se lutar contra o poder, ainda e principalmente inconscientemente.

Além disso, e apesar disso, o programa serve para que a sociedade mande seus recados. Pincemos um exemplo a partir da temporada 2011.

Nesta edição, houve a participação inédita de um transsexual. O blá-blá-blá para sua inclusão foi que se trata de uma representante de uma determinada camada da população que se viu apenas esporadicamente representada anteriormente. O resultado foi acachapante: inclusão no primeiro paredão e eliminação na primeira oportunidade. A conclusão do programa deu a vitória a uma menina muito bonita, a primeira vez que isso aconteceu no programa. Para mim, o resumo é o seguinte: nossa sociedade é avessa aos homossexuais e é machista. A primeira constatação é um tanto óbvia, já que não houve dúvidas em eliminar o participante incômodo do programa. Não houve alívio, não queremos triunfo de ninguém que se desvie do padrão “normal” da sociedade. E mesmo a vitoriosa faz parte deste contexto. Como eu disse, nunca antes uma “moça simpática” havia vencido o programa: o prêmio destas residia na possibilidade de posar na Playboy, serem vistas em sua condição de objeto. Com isso, o público resolveu engolir sua inveja e escolher seu ideal de perfeição, porque era necessário que a sociedade informasse que ESTE é o padrão desejado: a exclusão para os homoafetivos e a vitória da mulher dita perfeita apenas e unicamente quando conveniente, ou seja, quando serve para informar qual é o limite do admissível.

Algum espertinho haverá de dizer que não é a primeira vez que um homossexual participou do programa, sendo que alguns obtiveram bastante sucesso, inclusive com a vitória do agora deputado federal pelo Rio de Janeiro Jean Willys, em uma das edições anteriores. Claro! Há uma diferença decisiva. Em primeiro lugar, o deputado não é transsexual. Em segundo, em nenhum momento do programa ele negou ser homossexual, mas também não namorou ninguém, não praticou nenhum ato que o caracteriza como tal. Por isso, foi possível detectar o limite da tolerância do grande público – que o homoafetivo pode até se declarar como tal, mas que oculte todas as ações que o caracterizem. Essas são constatações, e não uma tomada de posição da minha parte, até porque precisei fazer uma pesquisa sobre o programa, mau conhecedor que sou do mesmo – não sou daqueles que adoram reality shows, mas que não admitem que o fazem. Se dissesse que acompanho o BBB, estaria mentindo. Mas é inegável que, direta ou indiretamente, somos instados frequentemente a tomar conhecimento de seus desdobramentos.

ATUALIZAÇÃO: Apenas para corroborar a minha tese acima, o vencedor do Big Brother Brasil 12 voltou ao seu escopo normal, já que não havia nenhum recado a ser passado nos moldes do que já mencionei acima. A edição deste ano foi muito mais, digamos, normal. E com isso o resultado vai escorrer para seu leito costumeiro.

Recomendações:

Plethos: termo grego que significa pluralidade. Em honra ao endereço eletrônico deste blog, farei múltiplas recomendações.


A obra de Foucault onde é feita a análise das instituições sociais é extremamente ampla e rica, mas ele analisa os sistemas prisionais e seus reflexos em profundidade no seguinte livro (recomendo intensamente):

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.


O livro 1984 tornou-se um clássico da literatura universal. Sombrio, pessimista, perturbador, analisa a guerra e a manipulação histórica como mecanismos da manutenção do poder. Consagrou vários termos, como o Grande Irmão, as teletelas e o duplipensar. É sensacional. Não deixem de ler.

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005.


O show de Truman é um filme em que Jim Carrey procurou se desfazer de sua imagem de careteiro, adquirida em filmes como Ace Ventura e Débi & Lóide. Conseguiu. O resultado final é verdadeiramente bom.

WEIR, Peter. O show de Truman. Filme. Estados Unidos, 1998. 103 min.

sábado, 10 de março de 2012

Sobre os memes (memês? memés? mêmes?)

Olá!

Meus caros, tenho notado nos últimos tempos uma mui grande proliferação, em especial nas redes sociais, de uma série de caretinhas desenhadas toscamente, utilizadas para ilustrar e realçar algumas situações do dia-a-dia, muito comuns ao ser humano em geral. São expressão de situações de ódio, fracasso, gozação, euforia e outros sentimentos muito ao gosto da juventude, denominadas genericamente de memes. Há vários tipos deles, como frases, vídeos, imagens, musiquetas (como a tenebrosa “Ai, se eu te pego”). Outros exemplos são a disaster girl, o dramatic chipmunk, o vídeo com o Vanucci bêbado, a Luiza que foi para o Canadá e via discorrendo. Para que tenhamos um meme de internet, é preciso que ele se espalhe muito e rápido.

Só que o conceito de meme é um pouco mais antigo do que pode parecer atualmente, e também muito mais amplo. Como veremos a partir de agora, o meme de internet usa esta nomenclatura emprestando apenas algumas das características de uma ideia bastante polêmica e fascinante. Vamos lá?

Comecemos pelo pai da criança: Richard Dawkins. Trata-se de um cientista inglês nascido no Quênia (quando este país era colônia da rainha) que, em seu livro “O gene egoísta”, de 1976, propôs uma nova forma de tentar compreender o pensamento. O raciocínio é seguinte: o corpo humano é composto por sistemas extremamente complexos, que são subdivididos de acordo com sua função no organismo. Assim, temos o sistema nervoso, o gástrico, o ósseo, o sanguíneo e assim por diante. Esses sistemas, por sua vez, são compostos por órgãos, que possuem funções mais específicas, como o coração, pulmão, fígado e blá, blá, blá. Estes órgãos são feitos de tecidos, que são feitos de células, que possuem componentes internos, sendo que em seu núcleo encontramos os filetes de cromossomos, onde está o terror dos pais fugidios e a salva-guarda das mamães em apuros: os genes.

Os genes são as menores unidades em que se encontram informações que podem ser transmitidas de um organismo para outro. Quando temos uma fecundação, são eles que se encarregam de produzir as características do novo contribuinte que será disponibilizado ao erário, já que eles armazenam as características físicas do pai e da mãe. Com a combinação destas particularidades, teremos uma pessoa única, totalmente individualizável, com ela também portando um conjunto singular de genes.

Pois muito bem. A proposta de Dawkins consiste em supor a existência de uma mecânica similar em conteúdos externos aos genes, em especial ao pensamento. Ele aposta que há um correspondente ao gene em nível mental, ou seja, uma unidade mínima que abriga uma informação simples. A essa unidade ele deu o nome de “meme”. O seu estudo é chamado de memética.


Pequena pausa sem sair do assunto: já ouvi várias pronúncias para esta palavra – même, memê, memé. De acordo com o próprio autor, a pronuncia correta é “mim”, para rimar com a palavra inglesa “cream”. Porém, não criemos celeumas e falemos como melhor entendamos, pelo menos até a consagração do termo.

Voltemos. O termo meme é forjado a partir de duas palavras gregas: mnemosyne e mimesis. O primeiro diz respeito à memória e o segundo à imitação. A ligação de ambas com o conceito é mais ou menos a seguinte: um meme é uma informação simples que fica armazenada na memória. Por exemplo, temos um conceito mínimo que nos indica o significado de “caneta”, outro que nos informa o que é “azul”. Cada um deles é um meme. Ao juntá-los, temos uma informação mais completa – "caneta azul". O processo de ação e de conhecimento é dado pela combinação de diversos memes, que acabam por se intercambiar, formando dados cada vez mais complexos e que formam todo o arcabouço intelectual humano. Assim, sistemas filosóficos, algoritmos matemáticos, regras de convivência, princípios morais e tudo o mais são gigantescos conglomerados de memes, cuja informação básica é absurdamente pequena, da mesma forma que acontece com os genes, só que sem substância – os memes não são palpáveis, como palpável não é o pensamento. Não se coloca um meme na bandeja para servi-lo a la carte.

Há um problema, portanto. Para que se cumpram as regras de sobrevivência e perpetuação, os genes possuem um meio físico em que se dá a sua propagação – os próprios organismos. Através da reprodução, seja ela sexuada ou não, os genes acabam por se perenizar, ou ao menos tentar fazê-lo, transmitindo seu conteúdo para os quatro cantos. Que meio os memes teriam para fazer a mesma coisa, já que eles não são físicos? Dawkins indica que a multiplicação deles é feita de cérebro a cérebro, em um processo que utiliza amplamente a linguagem.

Desta forma, nasce nos indivíduos uma necessidade ancestral de se comunicar, por força da ação dos memes, que buscam a todo custo sua sobrevivência, e a transmissão intercerebral é sua única ferramenta. Uma informação, de fato, é muito difícil de reter. Veja o caso dos segredos: por que os humanos têm necessidades de confidentes? E por que estes costumam ser indiscretos? Na opinião de Dawkins, por conta do impulso reprodutivo dos memes.

Da mesma forma que os genes, também os memes conseguem se estabelecer utilizando a lógica evolutiva de Darwin – a seleção natural. As idéias mais decantadas, os conceitos melhor assentes no senso comum, são os elementos fortes desta inusitada natureza. Muitos memes nascem e morrem praticamente instantaneamente, mas os melhores adaptados propagam-se de maneira virulenta. Essa grande carga de informações à caça de um cérebro para se estabelecer se dá por todos os meios possíveis de comunicação, e a internet possui uma capacidade de propagação avassaladora. Taí a grande ferramenta: é rápida, de grande alcance, de fácil utilização e com um banco gigantesco de informações.

Onde entra a questão da mimesis, ou seja, da imitação? Os humanos são seres gregários, vivem em bando, ao menos atavicamente. A ação coordenada dos agrupamentos humanos garantia o sucesso na execução de tarefas, permitindo que a repetição de ações, como jogar pedras contra o inimigo ou espetar a caça com objetos pontiagudos, proporcionasse uma maior expectativa de vida. Como uns observavam o sucesso dos outros, e verificavam que havia uma melhora na qualidade da sobrevivência, estas ações acabavam por se tornar interiorizadas, e uma vez que isso acontecia, a mimesis se espalhava para outras atividades menos concretas, e o grupo passava a rezar em conjunto para as divindades, relatar conjuntamente suas atividades através da arte pictórica, coletar e plantar. A imitação passa a ser um fator preponderante e favorável na seleção natural. Imitar é sobreviver.

Já agora podemos enxergar as características da memética que foram aproveitadas nos memes da internet: sua virulência - capacidade fantástica de propagação - e sua replicação - já que os memes tendem a ser reutilizados nas mais diversas situações, e o homem é naturalmente instigado a fazê-lo. De fato, há alguns milhões de piadinhas com o LOL, o Forever Alone, o Trollface e outros menos votados, onde cada um deles é uma unidade mínima de informação. O campo da internet, como já disse, é vastíssimo e propício, totalmente apto à disseminação de informações, ainda que estas não signifiquem necessariamente conhecimento. As redes sociais elevaram o tamanho deste espaço à enésima potência, tornando uma lenda urbana antiga como a "Loira do Banheiro" em peça de museu.

Minha opinião sobre os memes de internet? Alguns são legais.

Recomendação de leitura:

Richard Dawkins não faz um trabalho sistemático ao tratar da memética. Ele trata da questão muito por alto, não levando a cabo uma investigação científica no sentido rigoroso do termo. Antes de se impor como uma teoria, é apenas uma hipótese, mas tremendamente interessante. Eis o livro:

DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Sobre a loucura e a impossibilidade de defini-la

Olá!

Há dois domingos atrás, resolvi encarar com minha esposa e minha filha nossa agora difusa Cracolândia e fui ao CCBB assistir uma peça chamada “Isso é o que ela pensa”, de autoria do dramaturgo inglês Alan Ayckbourn e protagonizada com maestria pela atriz Denise Weinberg, simplesmente brilhante. A obra versa sobre a perda da razão. Apesar de ser apresentada ao grande público como sendo uma comédia, discordo frontalmente. Sim, há momentos de humor, mas estes são amaríssimos (como o riso histriônico de Demócrito). Na verdade, o mote principal é o drama da perda da identidade e a transformação da história de uma pessoa que, flutuando entre realidade e alucinação, e das alucinações introjetadas e realimentadas dentro de si próprias, transita entre a razão e a loucura. Os desejos reprimidos se engalfinham com os registros da experiência vivida, vencem-nos, encontram novas resistências e repressões, e enfiam-se em uma espiral sem começo nem fim, destruindo os sustentáculos psicológicos da personagem.



Resta perguntar o que é a loucura. Se assumirmos que ela é a oposição da razão, e que esta é histórica (segundo Hegel), devemos pressupor que também a loucura o é. De fato, algumas coisas que reputaríamos por insanas no passado, hoje são aceitas, praticadas e incentivadas. Querem exemplos?

Que tal o fisiculturista que toma remédios que “secam suas bolas” para ficar com o corpo todo marombado? Ora, elimina-se a masculinidade real para enfatizar a masculinidade aparente. Isso não é loucura?

Ou pensemos no botox. É uma toxina. Faz os lábios ficarem grandes porque causam uma inflamação, ou seja, um fenômeno patológico. O mesmo se aplica aos seios turbinados – as mulheres de outrora dormiam com os seios desnudos, sujeitas ao frio e ao desconforto se fosse o caso, para que seus filhos pudessem se alimentar à noite. As próteses de silicone impedem esse ato em muitos casos, como já observei neste post. A sociedade visual não é tresloucada? Pois milhões (bilhões?) de pessoas cotejam a anorexia, a bulimia, cirurgias de difícil recuperação, extração de costelas e outras mutilações sortidas, vendidas no varejo e anunciadas em revistas de publicação semanal e grande circulação. A história mudou o conceito da loucura. Hoje, não é mais.

Mas há o oposto também. Cito o caso da lobotomia, intervenção cirúrgica que consiste, grosso modo, em “desligar fiozinhos” do cérebro para conter comportamentos agressivos. Seu uso indiscriminado transformou muitas pessoas em legumes, porque o funcionamento nervoso ainda está longe de ser desvendado. Mexer nessa caixa-preta (cinzenta) é sempre arriscado. Além disso, o procedimento começou a ser utilizado não só em indivíduos violentos, mas também em pessoas com comportamento “inadequado”. Hoje, tudo isso é irracional, mas a lobotomia já foi considerada uma glória da medicina, sendo que seu desenvolvedor, o português Egas Moniz, foi laureado com o Nobel de 1949. Também já foram utilizadas sangrias, trepanações, inaladores radiativos... Tudo isso já foi considerado benéfico. Hoje, é pura e simples... loucura!

Isso tudo porque é muito difícil estabelecer um limite preciso entre razão e loucura. Nosso mundo, desde o Iluminismo, mas principalmente a partir do Positivismo, é regido pela técnica, pelo pragmatismo, que considera importante apenas e tão-somente aquilo que é útil. Daí, um primado da ciência que despreza o que é metafísico e enterra o que é espiritual. Se pensarmos como Max Scheler (vide este post), veremos que essa é uma negação de nossa própria humanidade, porque encostamos em um canto remoto um dos componentes do tripé que nos caracteriza – corpo-pensamento-espírito.

Um exemplo da espiritualidade perdida: olhamos para o céu à noite e vemos milhões de pontos brilhantes, que sabemos se tratar de gigantescos conglomerados de gases reunidos ao redor de um ponto gravitacional, e isso é tudo. Para os gregos antigos, eram animais, reais e imaginários, heróis, deuses, retratos históricos, como podemos perceber nos nomes das constelações – Órion, Cisne, Dragão, Cabeleira de Berenice, Ursas Maior e Menor, os signos do zodíaco. Para os africanos, as constelações eram compostas pelas almas dos grandes líderes que velavam o povo após a morte (sim, o Rei Leão está certo – a lenda existe). ISSO é espiritualidade, não há um vínculo religioso necessário. Se quiser chamar de capacidade abstrata, também pode.

O problema é que o culto à ciência vem matando duas outras áreas do conhecimento, que vão sendo relegadas ao plano da loucura devido a suas características eminentemente abstratas: a religião e a arte, ambas possuidoras de interpretações para a loucura que a ciência não alcança. Muito do que ambas dizem é tido como desvario ou mito, quando na verdade são perspectivas alçadas a partir de ângulos alternativos. A ciência as desconsidera, não as toma a sério. Vejamos rapidamente como é definido Jesus Cristo:

“Jesus nasceu em uma cidade do atual Oriente Médio, chamada Belém. Ele é o próprio Deus encarnado, sendo que foi gerado a partir de uma gravidez em que o Espírito Santo, também ele Deus fecundou uma adolescente virgem esta moça chamava-se Maria que recebeu por milagre um aviso divino através de um arcanjo de nome Gabriel ela deu sua aceitação ao chamado de Deus ao se prontificar a dar à luz o menino Jesus-cresceu-e-se-tornou-homem-iniciando-seu-ministério-com-um-jejum-no-deserto-que-durou-40-dias-onde-foi-tentado-pelo-demônio-a-desistir-de-suamissãonãopodiafazê-loporqueeraDeusalémdeserhomemviveuparaensinaroshomensoamorqueseuPaidesejava paratodoseparatantoseconfrontoucomospoderososdaépocaFOIlevadoÀcruzONDEmorreuEfoiSEPULTADOmasSAIUdoSEPULCROparaAvidaETERNAparaONDEpromete LEVARtodosaQuElEsQuEpAuTaReMsUaViDaNaLeIdOaMoRSeuMEmoRIalÉOviNHocONveRTidOEmsANguEEopÃOcoNVerTIdoEMcoRPocOMOsquAISmanTÉMsuaPREsenÇARealNOMeioDAHumaNIDadeATÉofiMDOsdiASHSEIKDIGFMRHCYR...”

É difícil encaixar esta descrição em um modelo puramente racional e empírico. A religião busca explicações para suas aporias em princípios transcendentais, baseados em uma fé que a ciência diz não ter, mas que muitas vezes utiliza ao formular suas hipóteses, como eu já tentei explicar neste post.

O mesmo ocorre com a arte. Dá para explicar em termos racionais o teatro do absurdo de Beckett, o teatro da crueldade de Artaud (de quem já falei neste texto aqui), o serialismo de Stravinski, o dodecafonismo de Schoenberg, o cubismo de Picasso e Braque, o concretismo geométrico de Mondrian, o fluxo da consciência de Joyce, o realismo absurdo de Kafka, a psicodelia de Frank Zappa utilizando meramente a luz da ciência? A arte é a única atividade humana completamente livre, onde diferentes visões de mundo podem prescindir do formalismo acadêmico e de uma lógica estruturada. Se foge do lógico, se é assim, é loucura.

Tem outra coisa ainda. A ciência, em especial a psicologia e a psiquiatria, possui uma tendência moderna em enquadrar e tipificar qualquer forma de conduta que se desvie minimamente do padrão como uma patologia. Assim, qualquer moleque inquieto tem hiperatividade; uma criança avoada tem déficit de atenção; uma maniazinha de limpeza é um transtorno obsessivo-compulsivo (credo!); um sonhador tem síndrome de Walter Mitty; alguém que varie de opinião é bipolar, por aí afora e dá-lhe comprimidos. Loucura e mais loucura por todos os cantos e em todos os poros. Para o mundo que eu quero descer no Brás, tomar vinho e comer pizza!

A ciência arroga-se um atributo que não é exclusivamente seu. Se a loucura é desrazão, não há como fixar um modelo puramente racional para esgotar todas suas pluralidades. E, muitas vezes, religião e arte lidam melhor com essa questão.

Poderia ampliar ainda mais o campo, utilizando a antropologia cultural e a variação do conceito de insanidade nas diversas etnias, ou estabelecer que, como preconizou Schopenhauer, o que nos guia é nossa vontade, e não nossa razão, mas prefiro ficar com a interpretação de Erasmo de Roterdã, para quem a loucura nada mais é do que o amor às coisas simples do mundo; a vida como facilidade, e não como um amontoado de teoremas e axiomas tão difíceis de compreender que sua própria decifragem já é, em si mesma, uma forma muito mais dolorosa de loucura. Se ela é uma aporia, também é louco quem tenta defini-la.

Recomendações:

Hoje serão múltiplas. A peça a que me referi ainda está em cartaz e é excelente, muitíssimo bem dirigida e interpretada. Vale a pena o risco. Está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil até 06/05/2012, dirigida por Alexandre Tenório e o ingresso é baratíssimo (R$ 6,00). Recomendo fortemente.

A interpretação de Erasmo pode ser lida em seu capolavoro, onde a loucura é vista de forma aberta e de muito bom humor.

ERASMO. O elogio da loucura. São Paulo: Novo Brasil, 1983.

E por último (mas não em último), para quem quiser conhecer a lobotomia por um prisma artístico, recomendo, com soberba interpretação de Jack Nicholson, o seguinte filme:

FORMAN, Milos. Um estranho no ninho. Filme. EUA: 1975. 133 min.