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segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Navegações de cabotagem – O Templo Zu Lai de Cotia: as influências do Budismo na Filosofia Ocidental

Olá!


A natureza propiciou a nós dois períodos do dia bem distintos, um que vai até o sol a pino e outro que segue até escurecer. Já a cultura os chamou de “manhã” e “tarde”, ao menos para nós, descendentes de Camões. Isso nos dá uma clara divisão, cujo ponto de inflexão é o arroz-com-feijão nosso de cada dia, que pode ser utilizada para igualmente dividir nossas tarefas: de manhã, lavo; à tarde, passo. De manhã, escrevo; à tarde, leio. De manhã, bocejo; à tarde, durmo. Assim sucedendo, e estando na municipalidade de Cotia, divido meu dia em dois e vou de manhã ao templo Odsal Ling, do qual já fiz minha narrativa nesta série, e à tarde vou ao templo Zu Lai, após um prato vegetariano para manter o clima de descolamento. São meros quinze minutos de distância, cada qual em uma das bandas da rodovia Raposo Tavares. Vamos até lá.



É o maior santuário budista de toda a América Latina, e é um dos monastérios Fo Guang Shan espalhados pelo mundo, de orientação mahayana. Zu Lai significa, em uma tradução livre, “nem vir, nem ir”. É um tanto estranho, mas isso tem seu significado no desprendimento, um dos principais dogmas budistas – a passagem deve ser de tal modo a deixar o mundo por onde se passou absolutamente intacto.



O templo não é muito velho. Foi fundado em 2003, e nasceu não só para ser um lugar de culto, mas também um centro de educação doutrinário e casa de benemerência social. De acordo com sua fé, todo o ambiente é composto por estética de temática budista. Desde a sua entrada, com o terreno em desnível, o trajeto rumo às salas principais é feito todo em subida.



Próximo às escadas, temos um morro gramado que é conhecido como Jardim dos Dezoito Arhats. Um arhat é um ser que, assim como um buda ou um bodhisattva, atingiu a iluminação, com a diferença de que esta foi alcançada não por si próprio, mas por intermédio de ensinamentos alheios. Conta-se que o Buda Shakyamuni, fundador do Budismo, próximo ao momento de desencarnar, delegou a dezoito de seus discípulos a tarefa de cuidar dos ensinamentos do dharma, como se fossem apóstolos. Cada um deles é retratado no jardim. Este no centro da foto, por exemplo, é Chudapanthaka, o arhat mendicante que agita seu cajado às portas onde batia.



Passando as escadas, há mais uma sequência de estátuas, desta vez de jovens budas em diferentes situações. Não consegui maiores informações sobre seu significado, mas posso supor que são arhats no começo de suas caminhadas.



Entre estes dois jardins, fica situada a escadaria que conduz ao pórtico principal, símbolo do progresso das encarnações e caminho para a sabedoria, representada esta pelo portal. O estilo arquitetônico é aquele tipicamente chinês, principalmente utilizado nos palácios da dinastia Tang, que ocorreu em um período de grande desenvolvimento tecnológico.



Bem no pé da escada, há uma fonte que as pessoas facilmente confundem com uma fonte dos desejos, como a Fontana de Trevi, em que se jogam moedas para a realização das mais recônditas obsessões. Na verdade, a presença da bodhisattva Kwan Yin explica melhor a sua função. Ela é a versão feminina de Avalokiteshvara, bodhisattva da compaixão. As moedas que lá são atiradas não são destinadas a realizar desejos, mas a simbolizar um ato de caridade e misericórdia.



Para cumprir adequadamente o rito, é preciso arremessar uma moeda de forma a bater no sino da fonte. Desse modo, o dinheiro provavelmente cairá dentro do vaso situado à frente da imagem.



Também do alto das escadas, antes de penetrar no pátio, observamos em ambos os lados um elemento decorativo muito interessante, que são as cascatas artificiais que servem de desaguadouro para suas respectivas fontes. No tempo certo, estas cascatas se enchem de flores de lótus, uma das principais metáforas budistas. O lótus brota a partir de regiões pantanosas, e é símbolo da pureza espiritual que emerge do mundo.



Já no interior da área do santuário propriamente dito, temos um pátio de distribuição por onde é possível ter acesso a todos os compartimentos, incluindo restaurante, lojinha e aos salões rituais, que incluem um cinerário e algumas salas de meditação.



Um diferencial com relação ao Odsal Ling e ao templo Kadampa de Cabreúva é que o Zu Lai ENCHE. Muita gente acorre a este espaço como um ponto turístico, embora não o seja na acepção perfeita da palavra. Detesto tacar borrões nos rostos, mas há pessoas que detestam ser retratadas sem autorização. Afinal de contas, é muito grave ser fotografado em um templo, que coisa pecaminosa! Por conta disso, achei por bem passar o dedo nos visitantes. A exceção é a patroa.



Na escadaria que precede o salão principal, temos mais um exemplo das tradições e da arte de cunho budista. Trata-se da imagem esculpida de Shishi, o leão guardião que visa manter o templo protegido de maus espíritos. Os leões não são típicos da região asiática onde se desenvolveu o budismo, mas é uma prática que demonstra um certo sincretismo com outras regiões do mundo. Originalmente, o papel era exercido por imagens de tigres ou cães.



O templo principal é conhecido como “Sala do Grande Herói”, e é lá existe uma magnífica estátua de jade de Buda Gautama. Não é permitido tirar fotografias no interior do templo, o que obedecemos. Do lado de fora, há um grande incensário onde é possível espetar seu artefato no fundo de areia. O odor é bastante forte (o que eu gosto), e quem é alérgico precisa manter distância.



Bem ao lado, há uma árvore semelhante a uma pitangueira em que as pessoas penduram desejos de paz, saúde e etc. Novamente, muita gente faz confusão e esquece (ou nem sabe) a forma como o Budismo lida com a questão do desejo. Vamos falar um pouco mais para a frente.



O fundador deste templo é o Mestre Hsing Yün, um chinês que migrou para o Taiwan durante a guerra civil, no século XX. Fundou mais de 200 templos pelo mundo inteiro, e sua principal característica foi o ecumenismo com que tratou a difusão de sua fé. Deixou a administração deste local ao encargo da monja Jue Cheng, mais conhecida como Mestra Sinceridade.



Como eu disse anteriormente, há um cinerário no templo Zu Lai. Mas o que é isso? É uma sala onde são depositadas as cinzas dos mortos. É uma prática muito comum entre os budistas. É dedicado ao bodhisattva Kshitigarbha, uma espécie de protetor dos moribundos. Também aqui as fotografias são proibidas sem autorização.



Nos fundos do templo, há um pequeno playground para os petizes mais impacientes. Ele é guarnecido por um painel de azulejos que representa a lenda do pombo e da bodhisattva Kuan Yin. Rapidamente: em um jardim, havia uma estátua de pedras preciosas de Kuan Yin. Um pombo que voejava por lá pousou aos seus pés, e uma das pedras caiu sobre ele. Entendendo ser um sinal, pegou a pedra e levou até a casa de uma família necessitada. Assim que voltou, novamente a cena se repetiu. Isso aconteceu até a estátua ficar totalmente desprovida de preciosidade e o pombo morrer. Parece sem sentido, mas representa o destino de um bodhisattva – a resiliência na execução da tarefa, sem esperar nada em troca.



Para dispor todos esses conhecimentos, o templo possui um museu de arte budista, que contém um bom acervo de peças. Novamente, não sendo permitido tirar fotos de seu interior, limitei-me a fazer o que era possível.



Anexo ao santuário, há um parque onde é possível realizar meditações mais próximo à natureza. Digno de nota é seu lago, com muitas carpas e tartarugas, cercado por bosque de Mata Atlântica nativa e com uma ponte em estilo tipicamente oriental.



Quando observamos diretamente os fundos filosóficos das diferentes religiões, vamos concluir que aquelas de origem oriental têm um fundamento bem mais filosófico do que as abraâmicas. Isso porque estas últimas, que são majoritárias na Europa e nas Américas, baseiam-se no princípio de autoridade, primeiramente de um deus onipotente, e depois dos sacerdotes, a quem cabe uma interpretação que costumeiramente não dá margem a grandes discussões. Com isso, a força das concatenações lógicas se torna muito menos necessária para definir, por exemplo, uma regra de conduta moral. Como a matriz oriental, em especial o Budismo, prescinde de uma figura de autoridade, já é muito mais de rigor que as coisas façam um sentido completo. No modelo judaico-cristão-islâmico, basta a palavra da divindade (ou do pretenso portador do magistério); no Budismo, o que impera é a relação de causas e efeitos. É evidente que tudo isso se dá em linhas gerais, e há princípios causais no Cristianismo, assim como há linhas hierárquicas no Budismo, mas essa estrutura subjacente faz a aproximação com o pensar tipicamente filosófico muito mais confortável, dada a ausência de elementos ad hoc ou manifestações de vontade imperscrutáveis.

É óbvio que o fato de vivermos sob cultura ocidental faz com que a Filosofia aqui praticada seja muito influenciada por uma moral de fundo cristão, e isso é inevitável, mas também é fato que muitos pensadores do lado esquerdo do planisfério foram influenciados pelo pensamento budista, tão bem estruturado para fins de especulações filosóficas que é, e é sobre eles que pretendo discorrer neste texto.

O Budismo é tão milenar quanto a própria Filosofia ocidental, mas só foi conhecido com mais profundidade no nosso lado do globo (eu disse globo) a partir do século XVIII. Por este motivo, é somente neste momento que vamos começar a sentir alguns filósofos se aproximando intencionalmente de seu ideário.

Antes disso, tivemos algumas aproximações sem pontos de contato, como a afinidade do Budismo com o Estoicismo no quesito resiliência à dor, ou com o nominalismo na questão dos universais. As influências mais claras vão aparecer com os voluntaristas, a dispersa corrente que aprendeu a olhar a volição como mais significativa que a própria razão em termos de domínio mental. O começo é com Kierkegaard, o dinamarquês que inaugurou o Existencialismo no começo do século XIX, apesar do desenvolvimento da escola ser mais tardio. Embora seja autodeclaradamente um filósofo cristão, que lidou com a questão do indivíduo diante de Deus, é possível observar como muitos dos traços de seu pensamento estão mais aparentados ao Budismo que ao Cristianismo. Por exemplo, ao concluir que a existência do homem é mais importante do que a sua essência, Kierkegaard coloca a nós o mar de possibilidades que decorre do devir. Nesse sentido, o leque de escolhas torna-se uma usina de angústia. Em um animal não-humano, não há esse problema: ele segue seu instinto e pronto. Já o ser humano, dono da liberdade de escolha, percebe que tudo é igualmente possível. Essa angústia é o que ele chama de puro sentimento do possível, e é a principal marca da nossa existência, um sofrimento que nos pauta para sempre. Quando olhamos para o Budismo, vemos que, em seu âmago, ele diz a mesma coisa: por toda a vida de um indivíduo, ele se moverá por conta do sofrimento. A dor é uma inerência ao ser humano, esteja ele no nível de existência em que estiver, um sofrimento cíclico, inesgotável, caracterizado pelas suas inúmeras repetições, cuja saída se dá pelo nirvana, o alcançar da iluminação. Aqui, Kierkegaard trata da questão da saída do fluxo de angústia pela tomada de consciência da individualidade, ao invés de um amargo carregar de repetições do passado, imposto a alguém que não é reconhecido como único e que também não reconhece a si mesmo como tal.

Em seguida, vamos falar de Schopenhauer, o filósofo mais diretamente influenciado pelo Budismo. Estamos de acordo que a pauta da vida humana se dá no sofrimento, sendo a angústia um deles. Mas qual seria o motor para esse sofrimento? Qual é a causa originária que está por trás de cada ato de dor? Para o Budismo e Schopenhauer, é o desejo. Diferem muito pouco quanto a isso. O Budismo diz o seguinte em suas Quatro Nobres Verdades:
  • Não há como fugir do sofrimento;
  • O sofrimento é causado pelo desejo;
  • Há como se fazer cessar o sofrimento pela cessação do desejo;
  • O caminho para isso é a busca do nirvana pela conduta e prática mental.
Schopenhauer chega a uma conclusão muito semelhante. Ao contrário do que imaginavam os filósofos anteriores, a razão não está na guia do sentimento humano, mas a vontade. Não se trata de um mero desejo orgânico, que pode ser satisfeito com a sua realização, mas de um sentimento visceral, violento, inexorável. O corpo quer viver e para isso deseja, sempre mais e mais. No fundo, é o próprio instinto de sobrevivência que faz isso, suplantando qualquer racionalidade possível. Há vontade em toda a realidade, que suplanta a mera representação que cada um de nós temos do mundo. O mundo é guerra de egos, porque cada um constrói sua própria representação da vontade que tem. Aspiramos por aquilo que não temos, seja material como uma pedra preciosa, seja corpóreo como uma bela fêmea, seja abstrato como um sentimento de glória. Sua extinção só chega pela extinção do próprio eu. E aqui temos mais uma interseção entre Budismo e Schopenhauer – como romper esse laço? Fundamentalmente, através da negação do desejo, cuja ferramenta basilar é a ascese, o exercício mental para reconhecer e afastar-se da ação da vontade.

Outro que se sentiu tocado pela filosofia budista foi Nietzsche, o dono do martelo. Não tanto no sentido de alinhar seu pensamento, como fez Schopenhauer, mas o de fazer análises críticas. Devemos nos lembrar de que, para Nietzsche, o verdadeiro caminho para a evolução da humanidade é atingir o übermensch, o além-do-homem, a superação de todos os valores como consequência da libertação do espírito. A atravancar esse caminho, teríamos uma moral de rebanho cuja principal ferramenta é a Religião. No seu entender essa moral era padronizante, castradora e impedimento de valores verdadeiramente significativos, imposta pelos mais fracos como meio de se fazerem iguais aos melhores. Esse processo de melhoria não é algo contrário à benevolência, mas uma necessidade de evolução da própria humanidade. A principal Religião de rebanho é o Cristianismo*, uma autêntica representante da humanidade decaída. Já o Budismo, por se calcar na realidade, é visto com olhos muito menos críticos. Um dos seus principais pontos é a ausência de um deus senhorial que guiaria o rebanho, que ditaria atitudes corretas e qualificando seu desvio como pecado, conceito este inexistente no Budismo. Nietzsche, como sabemos, admite o sofrimento como inerente à vida, mas, ao contrário do Budismo, entende que o mesmo não deve e nem precisa ser evitado. No entanto, acha essa psicologia do desejo muito mais aceitável que a lógica punitiva do Cristianismo, a ponto de entender que os budistas pertencem à última religião admissível antes do além-do-homem (mesmo que, ainda assim, mantenha muitas críticas ao Budismo como religião em si).

Por fim, falemos de Freud. O Budismo talvez seja a religião que melhor trata a questão da mente, não somente pelas suas práticas meditativas, que compartilha com outras práticas religiosas, mas principalmente pela questão do autoconhecimento, do olhar para dentro de si mesmo. O Budismo preconiza isso pela doutrina de que é difícil chegar a um completo conhecimento de si mesmo, em especial de todo o potencial que a mente tem de captar holisticamente o mundo e o papel de cada um nesse todo. Quando Freud fala das instâncias da consciência, podemos perceber claramente também essa limitação de se autoconhecer. O ego, a parte consciente da psique, é apenas uma pequena porção do todo, e fica ensanduichada entre o id instintivo e o superego repressor. Dessa forma, também a psicanálise reconhece a impossibilidade do pleno autoconhecimento.

Existem inúmeras outras influências do Budismo na Filosofia contemporânea, não só no campo da Ética, mas até mesmo na Filosofia da Linguagem. Para o momento, no entanto, está de bom tamanho, porque eu queria apenas demonstrar como temos cada vez mais elementos orientais na Filosofia, advindos de locais onde ela é mais natural do que em nosso habitual quotidiano. Bons ventos a todos!!! E bom ano novo.

Sugestões de leitura:

Dois livrinhos de autoria do fundador do templo Zu Lai para ajudar na compreensão do Budismo:

YÜN, Hsing. O que é Budismo? Cotia: Templo Zu Lai, 2019.
-------------. A essência do Budismo. Cotia: Templo Zu Lai, 2019.

E o livro de Nietzsche onde ele comenta sobre o Budismo e desce o cacete no Cristianismo com mais força. Os demais autores já estão citados nos textos a que remeto através dos links.

NIETZSCHE, Friedrich. O Anti-Cristo. São Paulo: Escala, 2011.

E, claro, recomendo a visita ao templo Zu Lai. Fica na Rua Fernando Nobre, 1461, em Cotia/SP, bem pertinho da Rodovia Raposo Tavares, lá pelo Km 28.

* Devemos ter em mente que Jesus, para Nietzsche, era um espírito livre. O problema não é Cristo, portanto, mas o Cristianismo – "o Evangelho morreu na cruz", é uma de suas frases mais famosas.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Para lá da serra que eu vejo na janela – Epílogo: sobre as coisas que nos moldam e a despedida do intrépido Bedelho

Olá!

Clique aqui para acompanhar todos os episódios desta série

No momento em que escrevo este texto, eu já não o tenho mais comigo. O Poderoso Bedelho, a quem várias vezes me referi neste espaço, foi vendido no finalzinho de novembro, envolvido em uma negociação por outro carro, novamente usado, mas um pouco mais novo. Mas ele deixou um bocado de histórias para trás, algumas das quais como verdadeiro protagonista, e em todos os meus relatos de viagem até hoje esteve envolvido. Não será mais o caso.

Na concessionária onde foi incluído em uma transação: último registro

Ora, o que há de interessante na história de um carro, que, qual um lírio do campo, hoje resplandece e amanhã é levado ao forno? Nada de especial, a não ser o fato de que ele carrega em si uma boa parte da minha própria história, servindo de mote para trazer coisas que normalmente seriam prosaicas à luz de uma rápida análise filosófica. Não é exatamente este o propósito deste blog?

Em Silveiras, numa praça perto das casas de artesanato

"Bedelho" é um termo curioso. Segundo o Aurélio, trata-se de um tipo específico de ferrolho que tranca as portas ao se introduzir em um anel de metal. Diferentemente das fechaduras de chave, realiza seu serviço apenas do lado de dentro. Enfiar o bedelho, portanto, seria o ato de colocar o ferrolho no anel, de forma a fazê-lo exercer seu ofício. É uma explicação meio cambaia, porque não explica bem a continuidade que há entre introdução e intromissão.

Em São José do Barreiro, depois de uma longa estrada de terra, à beira da trilha para uma cachoeira

Há uma extensão desse significado um pouco mais convincente. Há no jogo de trunfo, em Portugal, uma determinada carta chamada de "trunfo pequeno", que, em tese, serviria para trancar transitoriamente o jogo, razão pela qual é apelidada de bedelho, o ferrolho. Meter o bedelho, neste sentido, é meter-se no fluxo da partida de modo a causar uma perturbação. A gente colocou o nosso carro em tantos lugares onde ele não se adequaria que o apelido acabou pegando. Vamos lá, meter o bedelho onde não devemos.

Em Bananal, na frente da igreja da Boa Morte

Como vocês podem ver pelas fotos, não se trata de uma SUV, ou de um quatro por quatro desses da vida, caríssimos. O que eu pude comprar em longas prestações foi isso, um sedan compacto pouco mais que popular. Na verdade, foi o primeiro carro com menos de dez anos que eu tive na vida. Isso explica um bocado de coisa.

Em Águas da Prata, parado ao lado da pousada onde eu estava hospedado

Essa coisa de apelidar carros nasceu justamente do estado precário que meus veículos portavam. Eu tinha um Escort da época da carburação mecânica, que vivia com as agulhas entupidas. Quando isso acontecia, o carro dava solavancos de balançar as estruturas, semelhantes aos upas dos cavalos bravos. Por isso, ganhou o pouco elogioso apelido de Pangaré.

Em Estiva Gerbi, no pátio do Santuário da Rosa Mística

O Panga durou muito tempo comigo, mas, à medida que o tempo passava, seu estado geral piorava, e encontrar peças para ele se tornou um suplício, cada vez mais caro. Acabei me livrando dele quando mudei para o centro desta Terra da Garoa. Não compensava pagar estacionamento para manter um carro que mais me estorvava do que servia.

Em Monte Alegre do Sul, na Pousada da Luz

Quando eu disse que o Bedelho era protagonista de muitas histórias, estava só colorindo a tela. O Pangaré, este sim, é o personagem principal de várias de minhas histórias, como as CINCO vezes que ele parou no caminho de um bota-fora em Itaquera ou quando precisou ser empurrado por cinco meninas de dez anos para pegar no tranco no Ibirapuera. O Bedelho nunca me deu esse tipo de trabalho.

Em Jambeiro, parado na Adega D’Almeida

Custou um bom tempo até eu tomar coragem para comprar outro carro. Os apertos do passado me fizeram pegar um medo lascado de criar dívidas muito longas. Além disso, não brotou nenhuma garagem do chão e eu teria que tornar a alugar uma vaga, o que aumentaria o tamanho do orçamento a ser remido. Mas o fato é que um carro faz falta, mesmo para quem mora perto de quatro terminais de ônibus e a cem metros do metrô.

Em Paraibuna, atravessando a represa pela balsa da CESP

É que tem horas que você quer um pouco de autonomia. E isso se traduz em todas essas viagens que eu fiz. Desculpem a frescura, mas eu não gosto muito de viajar de excursão, e nem daqueles pacotes que incluem visitas guiadas. Vamos deixar isso para quando eu puder ir ao exterior. Também é caro pagar táxi toda santa vez que você precisar ir ao mercado, em mais um exemplo. Então eu resolvi encarar toda a restrição orçamentária e aumentar o passivo, para amortização em longos cinco anos. Acabo de fazê-lo novamente, já estou acostumado.

Em Natividade de Serra, tomando um sol enquanto eu caço uma sombra

Mas vale a pena a dívida? Não era um bom carro? Sim, mas é preciso considerar que as coisas perdem seu valor, mesmo que você goste delas. É o deus-mercado quem manda nessas coisas, e não suas preferências. Mas a operação ficou mais óbvia a partir do momento em que alguns pequenos defeitos começaram a surgir, denunciando o desgaste. Um rangido aqui, uma folga ali, uma temperatura que sobe, uma porta que não trava. Antes de começar a dar o trabalho que nunca deu, o melhor era mesmo a troca.

Em Redenção da Serra, em pleno espaço onde deveria estar a represa

Foi com este carro que ganhei a oportunidade de viajar como nunca pude fazer antes na vida. Sempre por perto, sempre com pouco dinheiro, mas sempre me divertindo um bocado. E, como sou metido a filósofo, sempre produzindo séries de texto como este que redijo agora, em que levanto um ponto específico que me suscitou a coruja de Minerva, gerando os temas mais diversos possíveis.

Em São Luiz do Paraitinga, na pousadinha do Donizete

Como eu disse, ele nunca me causou problemas, daquelas de pifar no meio de uma estrada. Claro, sempre há óleo para trocar, pastilhas para repor, pneus para calibrar e essas coisas das quais não temos como fugir. Mas não precisei reparar nada de tão significativo. Então acabamos guardando um respeito entre ambos, e este texto é a forma que melhor encontrei de homenageá-lo.

Em Cunha, atrás de artigos de búfala

Caraca, eu estou cometendo uma reificação ao contrário! Uma o quê? Bem, é um termo consagrado pelos marxistas para denominar a transformação do homem em um objeto inorgânico, fixo, automático, passivo, apropriado para ser usado como uma máquina. Uma coisa, enfim. O termo reificação pode ser traduzido como coisificação ou objetificação. Por meu turno, estou emprestando características humanas a um ser inanimado, como se um carro fosse capaz de sentir empatia por um humano em especial, e com ele estabelecer uma relação de cooperação. O nome disso é animismo.

Em Monteiro Lobato, observando Emílias e Viscondes

Já falei sobre o tema aqui. Em resumo, o animismo é a compreensão de que as coisas possuem uma alma (anima) que vai além de seu corpo imanente. Dessa forma, os fenômenos naturais podem ser explicados pela vontade de entidades espirituais que habitam instâncias metafísicas e de lá governam o mundo. Por exemplo, a lua que surge e some do firmamento o faz por vontade própria; as plantas brotam do chão pelo mesmo motivo e assim sucessivamente.

Em São Francisco Xavier, compondo paisagem com a maravilhosa vista da Pedra do Porquinho

Em Filosofia, o Animismo também sustenta o significado de um dos estados possíveis do dualismo corpo-alma. Para a última, em oposição ao corpo físico do ser humano, caberia toda sua atividade psíquica, como as sensações, os raciocínios, as intuições e as percepções, sendo que ao cérebro caberia apenas servir como suporte operacional à sua manifestação. Esta alma, especialmente para as religiões, teria a propriedade de sobreviver ao aspecto material corpóreo, alguns se libertando para a vida em instância superior, outros regressando à vida para a formação de uma nova dicotomia.

Em Santo Antonio do Pinhal, na praça do Cruzeiro

Não é nada disso que atribuo ao pobre Bedelho, tão judiado por mim em sendas impróprias. Lá vou eu de novo. Na verdade, nem ao menos tenho apego ao nobre veículo, tanto que me desfiz do mesmo tão logo enxerguei bons motivos para tanto. Não fiz com ele como se faz com aquela vovó que todo mundo larga ao perder a memória e não fazer mais bolinhos de chuva para os ingratos netinhos. Carro é carro, pô! Vó é vó.

Em São Bento do Sapucaí, numa estradinha prá lá de acidentada

Embora no Brasil um automóvel seja considerado patrimônio (tanto que é declarado na lista de bens do imposto de renda), o fato é que ele não deixa de ser um distintivo do consumo e, em certas circunstâncias, um substituto da identidade. Vejam como certos nichos procuram tipos muito específicos de carros. Um Gol quadrado, por exemplo, com poucas peças originais ainda fabricadas, muito receptivo a adaptações, é um carro típico da “quebrada”. Os Fuscas, feitos para aguentar porrada, são os favoritos da galera que precisa encarar terrenos inglórios. Curiosamente, há inúmeras picapes grandes nos centros urbanos, porque transmitem sensação de poderio físico e econômico (e passa a impressão de que seu dono é também proprietário de terras). Essa espécie de padronização é estendida também à indumentária do contribuinte, demonstrando um apreço a insígnias que estão construídas previamente, de modo que a manifestação do pertencimento a um grupo não se dê de dentro para fora, mas na direção contrária.

Em Campos do Jordão, nas brumas do auditório

Isso passa a ideia de que a maneira como nos apresentamos ao mundo pouco tem a ver com nosso verdadeiro eu. Aquilo que os outros veem é só uma capa de conveniência, que oculta as preferências, as escolhas, as vergonhas, os preconceitos e qualquer outra coisa que não coadune com a versão pública padrão, que não oferece problemas em ser exibida. Qual é o problema disto? É que o consumo é uma máscara frívola, onde não há uma autenticidade individual, apenas uma conformidade às ofertas de mercado.

Em Itamonte, enquanto subíamos à Pedra do Picu

Essa parece ser a visão geral que podemos tirar de um mundo movido pelo Capitalismo, que necessita de um giro muito veloz nos negócios. Mas como não falamos em verdades absolutas na Filosofia, é preciso olhar o outro lado. Para tanto, recorrerei ao antropólogo norte-americano Daniel Miller, que traz considerações interessantes sobre a questão. Ele quer quebrar um pouco o tabu de que consumismo e superficialidade são sinônimos necessários.

Em Lambari, no parque Nova Baden

Miller analisa, a partir de estudos de casos, como as pessoas lidam com seus objetos a partir de premissas culturais. Tendo como base o postulado de que vivemos em um mundo materialista, ele se pergunta até que ponto os “trecos” (tradução aproximada do termo em inglês stuff) não constroem, eles mesmos, parte da personalidade de uma pessoa.

Em São Lourenço, do lado do templo Eubiose

Um dos pontos ao qual Miller se apega é um dos maiores representantes dos desejos de consumo: as peças de vestuário. Inicialmente tomadas como meros emblemas de posições sociais, ele as vê como representações do ser que se iniciam já a partir da camada de apresentação. O “eu real” que filósofos e antropólogos tanto falam não estão situados em um lugar transcendental, como o Hiperurânio platônico, mas já surge na própria pele, ou, melhor dizendo, na roupa que colocamos sobre ela.

Em Piranguinho, pegando uns pés-de-moleque nas famosas barraquinhas

Para tanto, Miller estuda três casos envolvendo a perspectiva feminina: a compulsão por roupas das mulheres de Trinidad e Tobago, a relação de segunda pele das indianas com o sári e a restrição da ousadia indumentária das mulheres londrinas. Em todos eles, a mesma conclusão: a roupa não é só um objeto que representa a personalidade de uma pessoa, mas a molda. As trinitinas gastam mais com roupas e sapatos do que com comida, mas não na busca de uma identificação com a moda; cada uma delas busca um estilo próprio que só pode ser assemelhado aos demais por conta da profusão de cores e combinações possíveis. As indianas tem como principal roupa o sári, uma longa tira de tecido sem costuras, que se enrodilha pelo corpo todo, apenas ele, sem nenhuma outra vestimenta, ao menos tradicionalmente. Sua relação com sua roupa é de contiguidade: ele se presta não só a lhe cobrir o corpo, mas a enrolar os filhos, a lhe causar sudorese, a servir de pegador de panela, a lhe atrapalhar os movimentos e até a servir de forca. O sári, portanto, é para a indiana uma extensão do corpo. Por sua vez, as londrinas encaram o geist de descontração adotado, sabe-se lá porque, pela capital dos britânicos. O argumento básico é o de que a descontração abate a ousadia, e, mesmo que se pense em inovar o estilo, o medo do julgamento pelos outros faz com que a jovem londrina típica escorra para o básico. Há uma espécie de ansiedade a cercá-la.

Em Brazópolis, com as aventuras automobilísticas da patroa rumo ao distrito de Luminosa

Posso arriscar por conta própria mais alguns exemplos. Os hippies na década de 60 e os grunges na de 80 tinham um substrato comum: não se perca tempo e recursos gastando os tubos com roupas, elas não são você mesmo. Uma filosofia que lidava com o objeto vestimenta de modo realmente superficial vai buscar nos brechós e nos guarda-roupas dos avós o seu mínimo necessário. Era uma indumentária que buscava apresentar o eu verdadeiro, o despojamento e o desapego, mas que acabou por se transformar em um estilo, desvirtuando seus princípios. Vou dar um exemplo: grunges lançaram o conceito de calças rasgadas, pelo seu uso até o extremo do rompimento (sem contar que uma calça velha é bem mais confortável). Hoje, a meninada compra calças de jeans que já saem rasgadas de fábrica, pagando preços equivalentes à de uma não surrada. Para além deste contramodelo, temos os evangélicos, tão habituais no Brasil. Quando vemos os católicos, a ritualização das roupas poucas vezes transcende o próprio sacerdote. Os católicos vão às suas igrejas com as roupas que usam no seu dia-a-dia. Já os evangélicos dividem o tempo profano do sagrado com muito mais clareza. O momento do culto é aquele em que a melhor roupa deve ser utilizada, mesmo que, para além da aparência, seja muito barata, comprada na Conde de Sarzedas, a rua de comércio especializado de São Paulo. A roupa dos evangélicos ajuda a caracterizá-los, al di là das suas próprias crenças.

Em Serra Negra, perto de onde o pessoal voa de parapente

Notem que não incluí no meu exemplo acima o fato de que temos certas roupas padronizadas que utilizamos para trabalhar. Desta forma, não posso considerar os macacões dos mecânicos, os aventais dos professores, os jalecos dos açougueiros, as fardas dos policiais ou os ternos dos executivos. São as coisas que uma pessoa escolhe livremente que as define, e não aquilo que ela é obrigada a fazer. A trabalhar, todos nós somos obrigados, e a paramentação é determinada a partir de fora; nossas roupas, só somos obrigados a tê-las. Como elas serão dirão muito sobre nós.

Em Piracaia, dando um exemplo da quantidade de pó que esse infeliz comeu

Daniel Miller radicaliza suas teses sobre indumentária ao migrar o mesmo tema para a questão da moradia. Aqui, já não temos um poder de escolha que é facilitado quando falamos sobre roupas, porque não mudamos de casas como mudamos de cuecas ou calcinhas. Portanto, o “jeito de ser” de uma casa está muito ligado a uma questão do quem pode e do quem não pode. No entanto, mesmo que a casa em que se habite possa ser construída à conveniência do freguês, o fato é que, após sua conclusão, muito pouco pode ser feito para alterá-la, seja por restrições orçamentárias, seja por escassez de espaço físico, seja pela imobilidade característica de um... imóvel! E é nesse ponto em que deixamos de moldar a casa para sermos moldados por ela. Um canto especialmente escuro me obriga a procurar outro lugar para ler, um teto baixo me impede grandes móveis, um jardim cheio de insetos me leva a optar pela tolerância aos bichos ou ao trabalho adicional das raquetadas.

No Vale das Maritacas, exata divisa entre Piracaia e Joanópolis

Apesar de parecer um objeto que aplica uma vontade impositiva, Miller vê a casa como algo que favorece a interação entre os seus diferentes habitantes. Dadas às próprias limitações mencionadas acima, e adicionada a premissa de que há ambientes comuns, a maneira como a casa se configura tem muito da interação e da colaboração de todos os membros da família que lá reside. Sendo assim, é possível que todos se vejam, de uma forma ou de outra, espelhados no arranjo dos diferentes cômodos, aplicando estilos que vão ser retransmitidos a todos os demais. Na verdade, minha casa só tem meu estilo quando está completamente bagunçada. Eu sou daqueles caras que se organizam no caos. Quando a patroa resolve arrumar a baderna, eu me perco por inteiro. Não deixa de ser uma forma de me moldar.

Em Joanópolis, na entrada da terra dos lobisomens

Uma boa maneira de se sentir como uma moradia pode influenciar no modo de ser de um cidadão, basta que se pense em quem muda de uma casa para um apartamento, e vice-versa. Como cada um desses tipos tem suas características e limitações próprias, há uma substância maleabilizante em cada uma delas. Assim, alguém que sai de uma casa, em vista da diminuição dos espaços, precisa se adaptar a acumular menos, e alguém que sai de um apartamento, pela perda da quantidade de mecanismos de segurança, pode ficar mais dado a sobressaltos.

Em Cabreúva, pegando veneno para diabético

Ao fim e ao cabo, por mais que, para compreender algo ontologicamente seja necessário elaborar generalizações, o fato é que as pessoas são indivíduos, que óbvio! Comete-se um pecado ao pegar as partes pelo todo, e é no particular que reside essa individualidade. Portanto, mesmo que o eu profundo dos filósofos diga ontologicamente sobre nós, é na superfície que dizemos ao mundo como queremos ser vistos. E isso é parte da maneira como somos influenciados pelas coisas.

Em São Roque, na Vinícola Palmeiras

Estou quase esquecendo que este é um fechamento de série, mas não faz mal. Posto tudo o que falei até aqui, é possível se aceitar que mesmo minhas escolhas de viagem são talhadas pelo mundo material que me cerca. Há muito a considerar na questão de onde o ora degredado Bedelho poderia me levar, e, se isso me causa impedimentos, por exemplo, limita minhas experiências e meu conhecimento. Sim, as coisas, de certo modo, acabam por nos moldar, embora eu não concorde na totalidade com essa assertiva.

Em Cotia apreciando arte budista

No mais, chamo a atenção para o fato de que continuo não me deixando levar por destinos da moda, pelo motivo mais simples de todos: mancanza di argento. Mas, como já cansei de afirmar, tenho a virtude epicurista de me contentar, e muito, com pouco. Principalmente por não considerar nada do que vi como pouco. E, por fim, dando despedida digna ao mano velho Bedelho, espero que ele interaja com seu próximo dono não como um possuidor, mas como uma ferramenta fiável para lhe levar para lá e para cá. Bons ventos a todos e até a próxima!!!

Em Caxambu, o registro em cartório, batizado e crismado

Recomendação de leitura:

O livro-base das teorias das coisas de Miller é o seguinte:

MILLER, Daniel. Trecos, Troços e Coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

Recomendação de viagem:

Seguem as distâncias das cidades que mencionei nesta série, sempre tendo como base a cidade de São Paulo. Com exceção de Vinhedo, cuja melhor rota é pelo sistema Anhanguera-Bandeirantes, todos esses caminhos envolvem a Rodovia Fernão Dias:

Piracaia – 88 Km
Joanópolis – 118 Km
Monte Verde – 162 Km
Vinhedo – 79 Km
Pedra Bela – 116 Km