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terça-feira, 26 de junho de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (13 – Filosofia da Arte)

Olá!


Na época em que estava no fim do ginasial*, era hábito entre os filhos de peão, como eu, procurar os cursos técnicos integrados, para estudar à noite e já se destinar a um emprego. Para ingressar em uma delas, era preciso fazer um vestibulinho, sendo que algumas das vagas eram tão concorridas quanto aquelas dos vestibulares de “gente grande”. A maioria era oferecida pelo governo, como a Federal e as ETE’s, mas também havia acesso gratuito provido pela iniciativa privada, como as bolsas oferecidas pela excelência no concurso, por empresas como a Antárctica e seu prestigiado curso de Química, o SENAI, e o Liceu de Artes e Ofícios. Deste último, muito antigo, veio-me uma curiosidade. Sua grade falava em Edificações, Mecânica de Motores, Eletrotécnica... todos ofícios, na minha jovial concepção, mas nada das tais artes.

Perguntei a quem sabia: meu compadre e seus amigos, já versados nessas coisas de secundarismo. Entre compungidos e sarcásticos, explicaram a mim que, em termos industriais, não havia muita diferença entre artes e ofícios, e que eu, safra nova, ainda aprenderia melhor essas sutilezas. E eles tinham razão. O termo latino ars significa habilidade em produzir artefatos, da mesma forma que a palavra grega techné, e isso não se circunscreve, como se pode notar, unicamente ao campo de objetos desprovidos de utilidade ou destinados ao enlevo. Mas essa designação mais ampla do léxico se perde quando imputamos aspectos estéticos à sua produção, e a Arte passa a ser algo distinto. Ou não? O que é essa tal de Arte? Essa é a pergunta primordial da Filosofia da Arte.


Oportunamente já tratei de estabelecer distinção entre Filosofia da Arte e 
Estética, muito comumente confundidas. É que o objeto de ambas é semelhante, porque se imbricam – de uma forma ou de outra, ambas buscam o conhecimento sensível, além do fato de que a Arte trafega pelo âmbito da Estética mesmo. Mas há distinções que precisam ficar realmente claras.

Talvez pudéssemos ter dificuldades para incluir a Arte como uma fonte de conhecimento. Mas o fato é que arte e cultura são inapartáveis, e isso as tornam ferramentas intercambiáveis para o conhecimento de uma e outra. Não se explica a cultura de um determinado povo sem olhar para a maneira como pratica suas manifestações artísticas, e nem se entende a arte de uma determinada comunidade sem que se entenda seu desenho cultural. A produção artística da Idade Média, por exemplo, era quase toda destinada à Religião. Isso é um indicativo imprescindível de um determinado contexto cultural: por um lado, uma religiosidade espraiada por um meio onde não haviam alternativas nas dificuldades a não ser esperar a piedade divina. Há guerra? Que Deus nos ampare. Há doença? Que Deus nos proteja. Há fome? Que Deus nos sustente. Além disso, é uma prova de que a divindade possui um estatuto tão elevado naquela cultura que é necessário envidar os esforços mais preciosos para se referenciar a ela, e sabemos o quanto a arte medieval é grandiosa, tanto na construção de igrejas quanto em seu adorno. Mais ainda: a arte daquela época demonstra onde residia o poder e o quanto ele era magnificente, com o empenho de recursos quase ilimitados para a produção de pompa e circunstância. Isso denota, de uma só vez, o sentimento de desamparo e submissão, a reverência e a noção das relações de poder, política inclusa.

Isso tudo acontece porque, apesar da noção inicial que temos de Arte como portadora de beleza, o fato é que ela é muito mais do que isso, e, por isso mesmo, independente da mera apreciação estética. A Arte é um duto por onde se propagam e comunicam-se ideias, que, naturalmente, não carregam consigo apenas o ideal estético do belo, mas toda sorte de expressões de sentimentos. Muitas vezes os discursos lógicos e bem construídos dos acadêmicos são menos eficazes para expressar costumes e tradições de uma sociedade do que os modos como se constroem as narrativas contidas nas expressões artísticas.

Sabem por quê? A arte é uma autêntica ferramenta da liberdade, e é só nesse âmbito que é possível dar vazão total àquilo que se quer e que se pensa. É a síntese do pensamento inalcançável pelas demais pretensões ao conhecimento. Vejam como as Ciências precisam se balizar por provas, por contraprovas, por experimentos bem sucedidos ou fracassados, por anos e anos de observação e por um empirismo quase doentio. É verdade que provê a melhor estrutura possível para se aproximar da realidade, mas é preciso toda uma instrumentalização ao seu redor, que tolhe muito do que nos é cabível pensar. Já a Filosofia possui um grau de liberdade maior, porque sua pauta é a especulação e a lógica, cadarços mais laceados para os sapatos no caminho da criatividade, mas ainda assim cadarços. A Religião, por sua vez, tem uma posição contraditória. É livre para criar seus mitos e configurá-los de modo a explicar o mundo sem provas e até mesmo sem lógica, mas uma vez fechado seu escopo, torna-se inamovível, em um jogo dicotômico de certo ou errado tão exacerbado que toda expressão nova fica do lado de fora (às vezes, no inferno). 

Com a Arte não acontece nada disso. Ela cria, ela imita, ela interpreta, cria a imitação, imita a interpretação, interpreta a criação. Ela representa e dá voz, através de suas técnicas, a todo o espectro do que pensa o artista e sua sociedade, do trivial ao catártico, e do apolíneo ao dionisíaco, sem limites materiais, já que ela é canto, é poesia, é dança, é expressão. Às vezes, expressão em forma pura, como acontece com a música e com a dança, que se valem só da beleza para existir, e não da funcionalidade da arquitetura, da plasticidade da pintura e da escultura, da narrativa da literatura, do teatro e do cinema.

Pois bem. Já chegamos à conclusão de como arte e cultura se imiscuem. Por tabela, isso nos carrega à ideia de que a arte é atividade tipicamente humana, porque ela, para o ser, precisa ser intencional. Meus canários, por exemplo, me acordam todo dia de maneira sincronizada. O mais velho dá o sinal para os demais, como se fosse o regente, e sai de cena. Um deles tem o tal canto-campainha, rapidíssimo e linear, bastante longo e persistente, e outro tem um canto mais costurado, com alternância entre graves e agudos, em um desenho melódico mais complexo. Parece que um faz a base e outro o solo, e é lindíssimo, gerando uma impressão estética muito marcante. Estética, sim; artística, não. Não é arte. É parte da natureza dos bichinhos, que concorrem entre si pelas fêmeas, no viveiro ali do lado, e não pelo julgamento estético que possamos eventualmente fazer. O mesmo se aplica à casa do joão-de-barro, ao balé dos pavões e à performance dos golfinhos. Não buscam uma intenção estética para sua atividade, como faz o homem. Desta forma, a Arte tem um permanente viés antropológico, sempre dizendo alguma coisa, em primeira instância, do artista que a produz e, em segundo plano, da sociedade que o molda e que por ele é moldada.

É claro que esta concepção de Arte não foi sempre igual e também não é unívoca. Da mesma forma como já falei neste texto, há uma certa arenga entre aqueles que acham que basta a aplicação do talento para que qualquer coisa possa ganhar qualificativos artísticos e aqueles que depuram um desinteresse utilitário na sua produção, uma espécie de carregar do lema “a arte só se justifica pela arte”. Portanto, a discussão está no pote: ele é arte como um todo ou a arte está só nos seus mosaicos e craquelados? O pote foi fabricado pelo artista ou pelo artífice? É arte ou é ofício? O artesanato pode ser arte? Se víssemos as coisas no tempo dos gregos antigos, veríamos que a Arte está no próprio ato da produção do artefato. É a sinonímia entre artes e ofícios que citei lá no comecinho. Só que sua transformação conceitual foi se dando à medida que o apuro no plano estético se tornava mais relevante que seu propósito prático. É como se sua beleza fosse mais significativa que sua utilidade. Desse progressivo afastamento é que foi nascendo essa ideia de arte pela arte. Que, diga-se, não é impassível de críticas. E de gente cascuda. Platão, por exemplo, não via a Arte como demonstração do talento, mas de afastamento da realidade. Em seu cosmos dual, o conhecimento verdadeiro estava instalado no mundo das ideias, e o mundo perceptível pelos sentidos eram suas cópias imperfeitas, contingentes e acidentais. Sendo para Platão a arte uma imitação, ela não seria mais que uma cópia da cópia, ainda mais imperfeita e distante da realidade atingível pelo intelecto. Seria a réplica de uma concreção produzida com os desvios dos sentidos de um artista, o que é plenamente indesejável para a obtenção de conhecimento seguro. O que Platão talvez não considerasse é a capacidade do artista de produzir uma visão já depurada, e às vezes mais clara, de uma relação cognitiva com um objeto, ou seja, da arte vista como interpretação, e não como imitação.

É bem o caso da ficção. Na concepção platônica, ela é mentira e pronto. Já seu discípulo e sucedâneo Aristóteles percebe a mancada e a importância que tem a tragédia baseada na Mitologia, capaz de produzir a catarse, como procurei espelhar neste texto. Não há uma realidade necessária no mito; a realidade está no efeito catártico, que purifica a alma dos audientes pela situação trágica construída e vivenciada pelo herói, um ser imaginário.

E é exatamente no jogo de interpretação e reconstrução de realidades que está o grande conhecimento possível de ser produzido pela Arte. Peguemos o livro Crônica de uma Morte Anunciada, do genial Gabriel Garcia Márquez. Uma obra pequena, para ser lida em poucas horas, consegue nos dar uma visão clara sobre um tema universal: as sobreposições de versões dos fatos e a perspectiva pessoal. Um compêndio de Psicologia, preso às restrições científicas, tem muito mais dificuldade de pôr a claro a questão do subjetivismo na interpretação dos fatos, movidos não só por questões concretas, mas também pelo desejo de vingança, pela indiferença, pelo rigor moral, ou seja, por sentimentos que não têm como fugir do individual. Cada maneira de ver os propósitos e desfechos são particulares. O mestre em Psicologia teria um trabalho de anos; Gabo, em cento e poucas páginas, com acesso a mais gente e mais saboroso de se ler. Falta-lhe o rigor científico, mas a função da Arte é outra: a sua verdade está em revelar uma fórmula de pensamento, que é a verdade daquele indivíduo, daquela situação e daquela comunidade, e não um conhecimento testável.

É claro que muito da magia da relação artística está no polo de quem a absorve. A arte não para unicamente no artista, ela é fruída por alguém. Como eu falei neste texto, há uma espécie de experiência cultural no momento em que alguém é colocado diante da obra de arte e lhe tira proveito ou não. No instante em que se contempla desinteressadamente o artefato artístico é que essa interação cognitiva pode acontecer. E, sim, aqui entra muito da visão pessoal e da carga educacional que uma pessoa possui. É óbvio que alguém que possua em seu arcabouço toda a obra de Shakespeare bem absorvida dificilmente vai se impressionar com Harry Potter. Mas não há nenhuma regra fechada nisso. É perfeitamente possível que uma leitura mais leve traga exatamente o que a pessoa quer: uma experiência simples de prazer. Ainda que haja quem queira estabelecer cagação de regras cânones para diferenciar o que é ou não é arte, o fato é que nada é mais antidogmático do que esta atividade humana. Ao artista cabe dizer o que é a obra, como pensa o filósofo Wollheim, e cabe a nós concordar ou não, guiados pelo nosso conhecimento e pelo nosso juízo de gosto. Afinal, há quem goste de alecrim e há quem deteste. Há quem goste do perfume do alecrim e odeie o sabor (eu). Nisso também reside a liberdade artística: estar perante a obra e ter a prerrogativa do escrutínio.

Gostar ou não gostar modifica em alguma coisa a obra de arte? Não posso ter nas mãos um bastão com o qual eu determine se algo é arte ou não, baseado simplesmente em minhas preferências. O que eu posso fazer é dizer se gosto ou não de uma determinada peça, ou até mesmo fazer um juízo comparativo, apreciando mais uma do que outra, mas dogma e liberdade não combinam, e é preciso tirar o autoritarismo da contemplação estética.

Recomendações:

Conforme citei no corpo deste texto, segue a indicação do livro do velho Gabo, um dos meus autores favoritos.

MARQUEZ, Gabriel G. Crônica de uma Morte Anunciada. São Paulo: Record, 1981.

Vou recomendar também um canal muito bom do YouTube. Trata-se do Vivieuvi, da Vivian Villanova, que traz notícias do mundo artístico e discute muitas questões afeitas à Filosofia da Arte, em um ambiente eivado de cultura, como deve mesmo ser a Arte.

https://www.youtube.com/channel/UCxIruXzvzmLkaH-a-QGnnKQ

* Ginasial era o modo como se chamava o atual Fundamental II. Já Colegial é o atual Ensino Médio.

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