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terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Pequeno guia das grandes falácias - 38º tomo: a Amostra Não Significativa (e também uma série de observações sobre as metodologias de pesquisa social)

Olá!


Quem é de São Paulo já se deparou com a cena. Em uma tranquila tarde de domingo, o sol ameno e o pouco a fazer nos convidam a sair de casa, onde as pilhas de contas e de roupas ameaçam perturbar a nossa rara tranquilidade. O destino pode ser variado: um parque, um shopping, a casa de um parente ou até uma cidade próxima, como fiz no fim de semana passado. Para quem não conhece, a cidade é um emaranhado sem fim de avenidas, ruas, becos, vielas e ladeiras, mas há algumas que são absolutamente fundantes do tráfego paulistano, como a 23 de maio, a Bandeirantes, a Radial Leste e a Avenida do Estado. Mas as verdadeiras artérias são as Marginais, principalmente a Tietê. Está mais para jugular do que para aorta, porque é fácil de se estrangular, apesar de suas muitas pistas e faixas de rolamento. Ela corta a cidade de leste a oeste, e em seu leito asfáltico desembocam rodovias de grande porte, como a Dutra, a Castelo Branco, a Anhanguera, a Bandeirantes e a Ayrton Senna. Dessa forma, é natural que seu trânsito seja bastante carregado, repleto de caminhões que cortam a cidade e de ônibus que despejam seus passageiros no Terminal, o maior da América Latina.

Mas estamos falando de um domingo comum, fora de um fim de semana prolongado ou do fecha das férias. Portanto, a Marginal, que não se chama Marginal, deve estar bem livre, proporcionando ligação rápida ao meu destino. Depois de uns bons três quilômetros de rodagem, surge o paredão metálico à minha frente, composto por quatro fileiras de carros forçosamente bem comportadas, porque quedadas inertes. Dei aquela pescoçada típica de quem quer enxergar um pouco mais adiante, mas só vejo veículos e mais veículos, claros e escuros, particulares e empresariais, cupês e sedans, trincando de novos e desmanchando de velhos, comprovando que o coágulo que estancava a circulação estava um bocado longe.

Não tenho, na essência, nada o que fazer. Nem no sentido de operar algum milagre que me faça sair do enrosco, nem no sentido de ter algum pai a ser tirado da forca, mas tenho o princípio basilar de não suportar trânsito no domingo, num efeito psicológico que não sei dizer o nome. Quinze minutos de engarrafamento no domingo me incomodam mais do que uma hora inteira durante a semana, provavelmente por causa do inesperado e da sensação de que a vida se esvai enquanto o mundo gira e eu não rodo. O principal sintoma é que eu vou ficando chato; insuportável, é melhor admitir. O resultado é que eu e a patroa acabamos soltando algumas farpas, por conta da azia causada pelo desconforto, e acabamos ficando silentes e bicudos.

É a oportunidade para olhar ao redor e ficar conjuminando certas coisas, como o leito do rio que poderia ser aproveitado para transporte público, com o uso de barcas-ônibus; a área de lazer imensa que ficaria disponível ao pobre paulistano, não fosse o cheiro nauseabundo e a toxicidade de suas águas cheias de veneno e merda; a quantidade imensurável de carros e como os cidadãos daqui se tornaram dependentes, quase escravos, de seus objetos de desejo automotivos. Tudo isso até fitar os olhos na placa que indica a velocidade máxima: 90 Km/h. Ironia máxima: o prefeito anterior baixou a velocidade das marginais para 70 Km/h e o atual a elevou novamente, e eu pensando – prá que? Onde só se anda a dez por hora, a velocidade indicada nas placas parece puro sarcasmo. Mas essa história de aumenta e diminui gerou bastante polêmica.

É que o motivo alegado pelo então prefeito Fernando Haddad para baixar a velocidade nas marginais (e na cidade como um todo) era priorizar a segurança em relação à fluidez. Isso irritou muita gente, a ponto de ser bandeira de campanha do atual prefeito, João Dória, restabelecer a velocidade anterior, ao menos nas marginais, o que fez. Posso discordar da medida, mas, tendo declarado a intenção em campanha, tendo sido eleito democraticamente e tendo a medida a legalidade necessária, tem mais é que cumprir mesmo. Só que os números que demonstram a queda das vítimas no período Haddad e o novo aumento no retorno à velocidade anterior criam um certo desaconchego.

As justificativas para optar por um dos caminhos podem ser mais ou menos razoáveis. Para quem compreender ser melhor a redução, a justificativa óbvia é a quantidade de vidas poupadas. Do lado de quem defende o aumento da velocidade, a melhor delas é o fato de que as marginais são vias expressas, equivalentes citadinas às rodovias, e que exatamente pela razão de interligá-las não podem representar um gargalo, tendo algo como um status diferenciado de funcionamento. Pode-se dizer que a produção do país deveria escoar por ferrovias e tal e coisa, mas o que temos para a janta são os meios viários, e é com eles que precisamos nos virar. Também se pode dizer que a velocidade máxima regulamentada é meramente figurativa, mas ela também vale para madrugadas e, acreditem, para finais de semana, que, bem às vezes, permitem um desempenho mais arrojado. Mas escutei uma explicação insólita para justificar a diminuição dos números de acidentes nas marginais quando da equivalente diminuição da velocidade. Essa explicação dizia que os acidentes haviam diminuído porque, com a crise econômica que coincidia naquele momento, o número de carros em circulação havia se reduzido muito, haja vista à queda nas vendas de veículos na ocasião. Essa é a falácia da amostra não significativa e falaremos sobre ela agora.

Em primeiro lugar, lembremos que uma falácia se reveste de verdade porque sua intenção é ludibriar, e isso não seria possível se fosse uma cascata pura e simples. No caso da amostra não significativa, não há erros nas estatísticas que se usam para embasar os argumentos, mas na maneira com a qual são utilizadas. É a aplicação prática do dito popular que nos faz trocar alhos por bugalhos*.


O argumento da crise é evidentemente furado, porque faz supor que a retração econômica levou à diminuição da frota em circulação. Vejam bem: a diminuição de vendas fez com que, de fato, menos carros entrassem nas ruas, o que não significa que a quantidade total tenha se reduzido, apenas que o incremento e a reposição tenham sido menores. Percebam que, desde 2008, segundo o site do Detran, a frota de veículos licenciados em nenhum momento cai. Para que isso tivesse ocorrido, a crise teria que ser de proporções monumentais, com gente morrendo de fome. Mas a pesquisa que diz que a produção de carros diminuiu nesse período é correta. O problema está no seu uso. A representação das quedas nas vendas de veículos pode ser usada legitimamente em muitos casos: índices de desemprego, estagnação econômica, percentuais de inadimplência, volumes de financiamentos. Mas, como há um elemento comum entre quedas nos números de acidentes e de vendas, a correlação é facilmente estabelecida. Mas isso quer dizer que um número seja significativo para o outro? É claro que não.

Percebam que a diminuição da frota colaboraria com a fluidez do tráfego, aumentando a velocidade e a quantidade de acidentes por embalo, pois não? Mas aqui luta-se contra o óbvio – velocidades menores diminuem acidentes, e aqueles que ainda ocorrerem serão menos graves. Basta ter em mente que, a uma velocidade zero, ocorrerão zero acidentes; e se eu for atropelado a dez por hora, terei pouco mais que um hematoma oriundo de um beliscão. Como eu disse, pode-se legitimamente achar ruim que a velocidade média da cidade seja minorada, mas justificar bons índices com a incidência da crise, com os indicadores econômicos e com estatísticas decrescentes é balela, é falácia, é amostra não significativa.

Percebam também que uma amostra retirada de uma determinada pesquisa para ser utilizada em outra pode ser significativa, dependendo do contexto em que é aplicada. Os fatores econômicos utilizados maliciosamente para tentar explicar a queda no número de acidentes graves nas marginais podem ser utilizados licitamente para justificar um aumento nas matrículas de escolas públicas, ou de decréscimo na contratação de serviços supérfluos.

Bem, eu estou aqui mencionando alguns casos quase esdrúxulos de erro no uso de estatísticas, mas eles podem ser muito mais sutis, especialmente quando buscam espelhar grandes camadas de uma determinada população. Este é um dos motivos pelos quais a Sociologia voltou seu olhar com muito critério para a elaboração de pesquisas que consigam fugir aos vícios metodológicos que as distorçam, e, neste sentido, os sociólogos norte-americanos são figuras de proa.

A grande alavancagem dos sistemas de pesquisa social dos ianques veio com o advento do crack da bolsa de valores de Nova Iorque, que desencadeou uma autêntica bola de neve de problemas econômicos, refletindo na qualidade de vida da sociedade. Neste painel, era necessário desenvolver métodos que permitissem a coleta de informações de grandes extensões territoriais, como é o caso de um país de dimensões continentais como os EUA, e que essa coleta pudesse ser feita o mais rapidamente possível, com facilidade para configurar a análise dos dados e atacar os pontos de fragilidade social o mais certeiramente que desse. Seu principal sistematizador foi o austríaco radicado nas terras do Tio Sam, Paul Lazarsfeld. Matemático e filósofo, procurou aplicar critérios de impessoalidade e imparcialidade tipicamente científicos em suas pesquisas. Fundou, na Universidade de Colúmbia, a Secretaria de Pesquisa Social Aplicada, onde desenvolveu sua principal ferramenta, o survey. E o que é essa coisa?

Sabe quando você recebe aqueles extensos formulários onde são questionadas coisas e mais coisas sobre a sua vida? Aquilo é uma amostra pouco séria do que é um survey. Os quesitos de um desses questionários são redigidos para serem os mais isentos possíveis, e construídos de forma a ser possível efetuar uma classificação, como se fosse uma prova de múltipla escolha. Essa forma de construção permite uma fácil tabulação dos dados, e é a partir do recolhimento de todas as informações que se passa à fase de análise. Até então, a coleta é “robotizada”, ou seja, a opinião do pesquisador não significa nada, tendo este um mero papel de anotador. Outra característica é que um survey isolado também não tem significado algum. É no conjunto das respostas que se dá o verdadeiro valor da pesquisa.

Mas não é só no cuidado na elaboração dos questionários que está o jogo da metodologia de Lazarsfeld. Outros fatores imprescindíveis para evitar vícios é o tamanho da amostra ser bem dimensionado (uma amostra muito pequena é pouco significativa e uma muito grande é muito cara, virando um censo ou uma eleição), a detecção dos estratos sociais que dão as respostas (uma pesquisa varia muito dependendo do grau de benefício que uma determinada população percebe de uma medida), a temporalidade das pesquisas (é óbvio que uma pesquisa inédita não terá base de comparação, mas ela deverá ser o marco inicial de uma série) e o perfil geográfico da área almejada. A adoção destes critérios fará com que as pesquisas sejam autocorretivas, de modo a trazer cada vez maior confiabilidade em seus resultados. Vamos pegar um exemplo básico: a sensação de segurança aérea. No aspecto dimensional, se a amostra é pequena, há risco de haver poucos ou muitos usuários de voos, distorcendo os resultados. No quesito estrato social, se há consulta a camadas mais pobres da população, que não tem dinheiro para comprar passagens aéreas, a resposta será substancialmente diferente daquela obtida por executivos que precisam viajar semanalmente. No critério temporal, uma pesquisa realizada logo após um acidente aéreo de grandes proporções certamente proporcionará um pico de negatividade. E, por fim, no aspecto geográfico, pessoas que moram nas cabeceiras de aeroportos terão naturalmente mais receio do que pessoas que moram a quilômetros de distância.

Apesar de toda a sua engenhosidade, o survey tem limites. Seu modus operandi é muito bom para aferir dados quantitativamente, abraçando grande contingentes populacionais, mas falha quando o objeto de análise é uma pequena comunidade ou um nicho muito específico da população. Digamos que seja feita uma pesquisa na cidade de São Paulo para que se determine como torcem as pessoas em seus respectivos bairros. Em todos eles, com variações dentro das margens esperadas, a história se repete: corinthianos, são-paulinos, palmeirenses e santistas dividem praticamente todo o bolo, com frações ínfimas para clubes menores e times de outros estados. Só há uma exceção: a Mooca. Lá, o pequenino Juventus se torna gigante, a ponto de lotar todos os seus jogos, independentemente do fato de só se debater contra escretes de seu tamanho (e não de sua tradição). O primeiro pensamento leva a crer que o motivo reside no fato de se tratar do time de um bairro, mas o fenômeno não se repete na Barra Funda e no Canindé, onde Nacional e Portuguesa pouco mudam de seu percentual no restante da cidade. Em tudo, a Mooca parece um furo estatístico, que permanece no tempo. Isso é o que de melhor um survey pode detectar. Para compreender corretamente o que acontece com a Mooca, é preciso ir até ela, deixar de ser um mero coletor de informações e passar a obter a confiança das pessoas que lá vivem, conhecendo seus usos e costumes, as histórias que contam e com que diabos o tal do Juventus influencia suas vidas a ponto de se tornar um caso sui generis. É o chamado estudo de caso.

O estudo de caso é muito usado por antropólogos e sociólogos que precisam sair dos ares condicionados de seus escritórios para compreender culturas divergentes do comportamento padrão de um todo populacional. Já mencionei aqui o clássico de William Foote White, Sociedade de Esquina, onde o sociólogo em questão ousou ao extremo, ao estabelecer convívio com um ambiente criminoso para poder compreendê-lo a fundo. Daí, podemos concluir que o método do estudo de caso dá qualidade à pesquisa, na medida em que outorga especificidade em pontos nos quais uma pesquisa quantitativa, como o survey, não consegue atingir. Por outro lado, como os métodos qualitativos se calcam menos em dados objetivos, é preciso que a isenção da coleta se baseie menos nas informações e mais no pesquisador, o que, sejamos francos, não é nada fácil. Eis aqui belas fontes de amostras não significativas: a utilização de dados quantitativos em problemas específicos ou de estudos de caso para problemas gerais. Na pesquisa do exemplo, o survey serve para avaliar toda a cidade. O estudo de caso serve para a Mooca; a realidade da Capela do Socorro, com o seu Barceloninha, é outra. O survey se aplica para a abrangência; o estudo de caso, para a profundidade.

Por isso, é bom tomar cuidado quando se quiser usar uma estatística para justificar um argumento. Ela pode ser exatamente o contrário do que se quer provar.

Recomendação de leitura:

Lazarsfeld é um autor amplo, e, apesar de seu método de pesquisa social ser sua principal contribuição para o arcabouço intelectual da humanidade, é bom que se conheça mais de sua obra.

LASARZFELD, Paul. A Sociologia. Lisboa: Bertrand, 1970.

* O bugalho é muito pouco conhecido no Brasil. Não é propriamente um fruto, mas uma noz que se forma por ação de insetos no carvalho, árvore típica do hemisfério norte, e que costumamos importar já devidamente beneficiada.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Dos dias em que o vento nos afasta do mar - Epílogo (sobre o fogo e a Hipótese de Gaia)

Olá!


E aqui estou eu, de volta à Pauliceia Desvairada, com poeira vermelha até entre os dentes. É bem verdade que a transição entre o inverno e a primavera no Sudeste é seca, mas quando você se enfia inúmeras vezes no meio de estradinhas de terra, a sensação desértica se agrava muito. Mas não comecemos reclamando da vida, porque só a morte é certa. Gostei muito de saber, por exemplo, que é perfeitamente possível manter estradas em boas condições de uso sem arrancar os cabelos dos transeuntes com infindos pedágios, como é tão bem sedimentado no tarifado estado de São Paulo. Pedágio é fogo, assim como secura é fogo. E fogo é o que mais eu vi no decorrer desta jornada.


Seja pelo precitado tempo seco, seja por técnicas primitivas de preparo para a lavoura, o fato é que incontáveis vezes atravessei com o intrépido Bedelho em meio à fumaça das queimadas, algumas delas com verdadeiro risco. É óbvio que não fiquei fotografando cada um dos momentos em que vi uma fogueira ou uma terra calcinada, mas a coisa ficou tão digna de nota que acabou inspirando este texto. A primeira foto, por exemplo, foi tirada logo no começo da viagem, na estrada que liga Passa Quatro a Itamonte. Já a segunda foi batida no alto do mirante do Cruzeiro, em Caxambu, que mostra uma grande extensão de mato queimado, possivelmente para preparar a terra para o cultivo.


Uma boa parte, no entanto, não se deve a técnicas agrícolas, mas a causas acidentais, porque achamos fogueira até mesmo em área urbana. Esta foto foi tirada em Caxambu, no acesso principal à cidade. Uma guimba tacada do vidro do carro é suficiente para iniciar a combustão.


Algumas vezes, temos a sensação de perigo bastante iminente neste fenômeno, seja ele natural, seja ele provocado. Em Jesuânia, por exemplo, encontramos um casarão onde a chama chegou bem perto. É uma casa grande, mas que deve ter ficado toda sufocada quando a fumaça a rodeou, eu suponho. Se a coisa não era esperada pelos donos, pode ter sido arriscado.


Já em Itamonte, o fogo foi próximo a uma região preservada, em uma das inúmeras quedas d’água da região. Observem o mato esturricado ao fundo da paisagem com mata densa. Um minuto de descontrole e as árvores que dão refresco ao ambiente iriam para o inferno. Aqui, seguindo a mesma incerteza, não se pode saber se temos intervenção humana ou se o acaso deu suas caras positivamente. Um vento maroto mudaria toda a história.


Pode ser que alguém experiente nessas coisas esteja lendo isso tudo e dando risada da minha aflição. Talvez as coisas sejam assim mesmo, que o fogo tenha consumido lavouras a séculos, e que essa seja uma maneira mais econômica de resolver a limpeza das áreas. Não é o que eu, do alto de minha urbanidade, tenho observado, mas... O preocupante mesmo é quando as fogueiras escapam da região de lavouras e vão parar na área de proteção ambiental. Como eu já disse nessa série, a região é toda rica em reservas de Mata Atlântica, com fragmentos espalhados em toda parte, que representam, para olhos cobiçosos, terra que poderia ser aproveitada de outras formas, como em São Thomé das Letras, lá ao longe.


No tempo em que passamos por lá, ouvimos notícias de incêndios em Lambari, em Aiuruoca, na Serra do Papagaio e em muitos outros lugares. Testemunhamos o fogo que ocorria na serra que fica à beira da estrada que liga a Cambuquira, com vários pontos de emissão de fumaça visíveis. Esse me pareceu o incêndio maior, e lembro que vimos uma vista aérea dele pela TV.


Difícil de acreditar que um incêndio desses ocorra por combustão espontânea. Mais ainda para alguém que vive e conhece a terra como os guias do Parque Nova Baden, de Lambari. Eles afirmam com todas as letras que tais fogos são ateados pelos proprietários de terra, loucos para expandir as fronteiras de seus pastos e lavouras, e para quem essas matas preservadas são um empecilho. Suas intenções é causar a perda da biodiversidade desses fragmentos, de modo a tornar inviável ou desinteressante sua recomposição. Quer dizer, não há apenas o interesse em diminuir a área florestada, mas em espantar a fauna ali residente.

Se isso tudo for verdade, estamos diante de um crime inaceitável, que não se explica pela necessidade, mas puramente pela ganância. Um crime que transcende os prejuízos teoricamente românticos da vida de plantinhas e bichinhos, o tal patrimônio biológico que os ecologistas tanto defendem. A coisa vai atingir a atmosfera, com suas não poucas toneladas de gás carbônico despejadas no efeito estufa.

A falta de compreensão das longas cadeias de causa e efeito que o pessoal que comete estes atos é tanta que acabamos por cair em grandes riscos globais. Talvez fosse interessante conhecer a Hipótese de Gaia. Não como candidata a teoria científica, mas como postulado filosófico de uma nova ética ambiental. Vamos compreender o que ela diz.

Em primeiro lugar, cabe dizer que Gaia (ou Gea), na mitologia grega, é o próprio planeta Terra, entidade feminina que é filha direta do Caos primordial, e da qual tudo emanou, como o céu (Urano), o mar (Ponto) e as montanhas (Óreas), representando a terra firme. É, portanto, a própria Terra viva, a divinização da fecundidade. Tudo isso está descrito na Teogonia de Hesíodo, já devidamente indicada neste texto. James Lovelock, cientista inglês quase centenário e ainda entre nós, puxou essa ideia de uma Terra dotada de vida própria e a trasladou para termos modernos. Segundo ele, a Terra não é um mero amontoado físico de onde os seres vivos extraem os meios de sobrevivência, mas é, ela mesma, um organismo vivo. A visão habitual que temos do planeta é mecanicista, onde todos os ciclos ocorrem independentemente da presença de vida. O que a Hipótese de Gaia pretende provar é que, sendo o planeta um organismo vivo, tem a capacidade de regular o seu funcionamento, da mesma maneira que convencionalmente fazem os corpos ordinários. Vejam bem. Da mesma forma que nos alimentamos, também a Terra tem meios para obter energia, como o calor e a luz do Sol; assim como suamos para resfriar o corpo ou nos arrepiamos para aquecê-lo, também a Terra se reequilibra climaticamente, com os ciclos de chuva e estações do ano; da mesma forma que adoecemos e reagimos às doenças, também a Terra sofre com as anormalidades e reage a elas, restabelecendo o fluxo normal de sua existência.

Tudo isso não acontece passivamente. Normalmente dividimos a Terra em partes de acordo com seu estado físico: a litosfera é a parte sólida, a hidrosfera é a porção líquida e a atmosfera é representada pelos gases que rodeiam o globo. No entanto, os cientistas ampliaram essa compreensão quase cartesiana para uma concepção do planeta como um espaço de vida, e criaram o conceito de biosfera, a intersecção entre os três meios que tem a possibilidade de abrigar seres vivos. Já aqui temos um primeiro escopo de interação: a biosfera nunca é representada isoladamente – seres precisam de uma combinação dos três estados. Seres terrestres precisam de água e respiração. Seres marinhos dependem dos gases dissolvidos e dos minerais em suspensão. Mesmo seres que prescindem de um dos elementos, e que vivem ao sabor dos ventos, o fazem em estado de latência. O mundo não é um locus do isolamento.

Há, por exemplo, a interação entre seres vivos que transformam toda a composição da atmosfera, que, afinal, não é viva. Os vegetais, como bem sabemos, são quase que em sua totalidade fotossintéticos, o que significa que retiram CO2 da atmosfera e lhe lançam oxigênio. Isso é muito bom, porque dá uma boa renovada justamente naquilo que é mais retirado pelas espécies animais. Só que acontece que oxigênio em excesso na atmosfera também é prejudicial; primeiro, porque há organismos anaeróbicos, ou seja, que vivem na ausência de oxigênio. Uma maior quantidade desse elemento certamente traria menos disponibilidade de ambiente para estas espécies. E segundo: o oxigênio é o principal comburente que temos no ar. Basta lembrar que não há fogo sem oxigênio, pois é este que se combina com um combustível para liberar energia. Uma atmosfera com teor excessivo de oxigênio favoreceria muito mais os processos de combustão espontânea que geram incêndios, cuja principal vítima seria, adivinhem, a flora.

No entanto, as relações entre seres são muito mais complexas do que esses meros exemplinhos podem fazer supor. Como preconiza a ecologia profunda, cada ato realizado por um ente forçosamente influencia a existência de outro, para o bem e para o mal, de modo que, em um conjunto de interações, há a tendência de que o resultado final seja positivo, ainda que às custas do sacrifício de alguém. Mas o mais surpreendente ocorre nas simbioses, quando todos os organismos envolvidos se favorecem na relação, e é nisso que a cientista norte-americana Lynn Margulis desenvolve ainda mais a Hipótese de Gaia.

Esta cientista descobriu uma coisa absolutamente surpreendente, e que demonstra como os processos de interação são muito mais sofisticados e intrincados do que observamos à primeira vista. Uma relação simbiótica bastante comum é o mutualismo que há entre os paguros e as anêmonas. O paguro é um tipo de crustáceo que vive em conchas abandonadas, que são incrustadas por anêmonas, um animal de vida fixa. A anêmona possui tentáculos urticantes, o que protege o paguro de predadores; já o paguro transporta a anêmona em suas caçadas, dando-lhe maior disponibilidade de alimentos. Percebam que não há prejuízo entre os simbiontes – ambos vivem melhor em conjunto do que viveriam isoladamente. Mas Margulis mostra que o buraco é ainda mais embaixo. Como hoje bem sabemos, somos todos compostos por células – todos os seres vivos o são, ainda que, tal qual um paramécio, essa quantidade seja igual a um. As células, apesar da aparente simplicidade, possuem muitas partes, cada uma delas com uma função específica. Grosso modo, são compostas por uma membrana que lhes protegem e dão sustentação; por um citoplasma, meio gelatinoso onde são dissolvidos seus alimentos; e por um núcleo recoberto de carioteca, onde ficam contidos seus materiais genéticos. Além disso, nadando no citoplasma, temos as organelas, que são responsáveis por cumprir as funções orgânicas da célula, como a absorção de alimentos, a excreção e a produção de energia. Esta última é obtida por queima, que utiliza os mesmos elementos de qualquer fenômeno de combustão – a reação entre um combustível e um comburente (o bom e velho oxigênio – se você não sabia porque respira...). Dentro da célula, há uma organela que é responsável por ser o “forninho” onde essa reação se dá. É a mitocôndria, que nos desenhos que nos apresentam nas escolas parece um feijão cheio de cavidades. Até aí, nada demais, a não ser pelo fato de que, ao contrário de outras organelas, a mitocôndria não se aproveita das informações de DNA contidas no núcleo da célula. Isso porque elas possuem um curiosíssimo DNA próprio, totalmente diferente e independente daquele que vem do genoma da célula. Ora, mas a mitocôndria primordial do meu corpo, vem de onde? Do óvulo que te dá origem. Ele também tem uma mitocôndria, e é dela que todas as outras se originam. Assim, quando os processos de divisão celular se iniciam, paralelamente temos também disparado o processo de divisão mitocondrial. Mas por que isso acontece?

Lynn Margulis teve uma sacada que, a princípio, foi alvo de chacotas, mas que aos poucos foi se consolidando, na exata medida em que a tecnologia foi permitindo uma melhor observação microscópica. A tese é a seguinte: com a evolução das primeiras espécies de vida terrestre, ainda unicelulares, algumas delas desenvolveram uma forma de se alimentar sem a necessidade de elementos externos, a fotossíntese. Essa era uma vantagem evolutiva tão grande que os organismos que a realizavam conseguiram se reproduzir aos borbotões. Esse incremento de organismos fotossintetizadores produziu uma verdadeira overdose de oxigênio na atmosfera de então. Mas, como eu já disse, o oxigênio é tóxico para vários micróbios anaeróbicos, que eram maioria à época. Qual a solução para a aporia? Esses organismos fagocitavam sem digerir pequenas bactérias mais simples, que faziam o papel de processar o excesso de oxigênio contido nos seus citoplasmas. É claro que esse processo não aconteceu conscientemente, com uma ameba especialmente brilhante pensando: “Hmm... vou engolir uma bactéria, e ela vai se virar para deglutir esse monte de oxigênio dentro de mim”. O que provavelmente ocorreu foi, mais uma vez, uma adaptação do processo evolutivo. Um micróbio “comeu” uma bactéria como se faz aos bilhões e bilhões, mas, por uma predisposição qualquer, a absorção da bactéria não se deu, mantendo-a viva no interior do organismo, e um processo simbiótico nasceu. Esta é a endossimbiose, ou seja, uma vida conjunta (simbiose) de dois organismos diferentes, onde um vive dentro de outro e lhe compõe, com vantagens para ambos, já que o organismo mais complexo tem alguém para lhe fazer o processo de combustão e a bactéria mais simples acaba sendo protegida do meio externo e não tem dificuldade em captar alimento, o que passa a ser feito pelo grandalhão. DNA’s diferentes, organismos diferentes: a origem da mitocôndria é uma bactéria! Cara, isso é sensacional!

Essa observação dos simbiontes fez com que Lynn Margulis mergulhasse de cabeça na Hipótese de Gaia, a ponto de se tornar um nome mais conhecido que o próprio Lovelock na sua defesa. Mas retornando a esse último, a principal preocupação que ele nos traz é o ponto de não-retorno, que eu acho que ficaria melhor traduzido como ponto sem volta (Point of No Return). Fiquemos com mais um exemplo. Uma pessoa qualquer pode abusar das aventuras tabagísticas em sua vida. Fatalmente, terá problemas, a princípio de pequena monta, como tosse e pigarro. Se parar por aí, tudo bem; o seu próprio organismo se encarregará de recuperar os tecidos surrados e tudo ficará em ordem. Se, por outro lado, o hábito continuar, a tossinha e o pigarrinho vão se tornando coisas piores. Falta de fôlego, menor sensibilidade aos sabores, oxidação dos ácidos graxos e consequentes ateromatoses, aumento da pressão arterial. Novamente, o descarte do costume ainda é o melhor remédio, mas esses sintomas todos já serão mais complicados de tratar, exigindo mais tempo de recuperação. Ao se insistir no vício, vem o enfisema, a embolia, os calos nas cordas vocais, os problemas cardíacos. Ainda são coisas reversíveis, mas já aqui com longos tratamentos e deixando algumas sequelas permanentes. Até que, persistindo-se, vem o câncer, e esse é o ponto de não-retorno. Um tratamento complicadíssimo, com baixo nível de sucesso, geralmente mutilatório, com a extirpação completa do lado afetado. Na maioria das vezes, o tratamento consiste em mitigar as dores do paciente até a morte. Se há a cura, o organismo já está devastado. Nunca mais será o mesmo, nem de perto.

O que Lovelock chama de ponto de não-retorno é um desequilíbrio tal que o organismo Terra ficará adoecido a tal medida que não conseguirá mais se restabelecer, como se estivesse canceroso. O caso do efeito estufa é um modelo bem acabado do problema. É um fenômeno normal e é desejável que ele ocorra. A maneira mais fácil de percebê-lo é quando temos um dia de céu aberto no verão, e, ao cair da tarde, o tempo encobre, sem chover. É a garantia daquelas noites abafadiças, que dá vontade de dormir abraçado com uma barra de gelo. Isso porque a camada de nuvens impede que o calor se dissipe para as partes mais altas da atmosfera. Mas o efeito estufa tem limites. Se observarmos o planeta Vênus, que é muito próximo e semelhante à Terra, veremos que o efeito estufa lá é coisa de gente grande, e a camada de nuvens composta por espessas quantidades de gás carbônico, bióxido de enxofre e ácido sulfúrico simplesmente impossibilita o escape de calor, que fica todo concentrado abaixo das nuvens. Mesmo mais longínquo do Sol, Vênus é mais quente na média do que Mercúrio. Esse é um dos pontos de não-retorno possível para o planetinha azul, na medida em que um círculo vicioso de concentração de CO2 na atmosfera pode quebrar o equilíbrio de renovação gasoso, e o aquecimento global é o seu arauto.

Não é possível afirmar que a Terra não esteja mais quente, seja por ação humana, seja por um ciclo natural. É uma coisa empírica, e quem tem minha faixa de idade ou mais se lembra muito bem. Até o final da década de 80, os invernos eram verdadeiramente frios em São Paulo. Três longos meses de orvalho congelado na grama, toucas e luvas, cachecol tapando a boca para o vento não a cortar. Existia o nevoeiro que celebrizou a cidade e um negócio que chamávamos de veranico, que era a subida da temperatura para uns 25 graus por dois ou três dias, no máximo uma semana. Hoje, o veranico dura o inverno inteiro, com picos de mais de 30 graus. Dá até para programar viagens para a praia. Dois ou três dias, hoje, é o tempo que dura o frio de verdade.

A resistência às medidas para mitigar o aquecimento global tem motivo simples e vem sempre do mesmo lugar. Estamos em um mundo que tem um sistema econômico consolidado, que se baseia no lucro, e que detesta que lhe digam o que fazer. Diante do dedo colocado na cara, preferem lhe cuspir em cima do que baixar a cabeça. Gaia nos diz que isso é um órgão que se revolta contra o corpo, como se fosse um câncer. Os protocolos para a diminuição de emissão dos gases do efeito estufa são simplesmente esnobados por quem mais deveria se preocupar com a questão, em uma atitude arrogante e imediatista, para dizer o mínimo. Em que medida não estaremos brincando com uma faca afiada, desconsiderando que essa não ferirá de morte apenas a nós? E outra coisa: ainda que o aquecimento global seja causado por ciclos naturais e inevitáveis, isso deve consistir em um salvo-conduto para que se suje o planeta do jeito que se bem entender? Tenha dó.

Por isso mesmo, a Hipótese de Gaia, ainda que não guarde toda a cientificidade que deveria, tem o condão de produzir em nós um efeito ético e estético, e para nos preparar contra os argumentos de quem não quer largar o osso do lucro a qualquer custo. Ético por nos fazer pensar nas consequências de nossos atos a nível global, e não só olhando para os nossos quintais. E estético porque nos toca, porque nos chama as sensações, porque nos afeta os sentidos como partícipes de algo que vai além da irmandade, algo que suplanta a visão da humanidade como superiora ao restante do universo, e que lhe integra em definitivo à realidade como um todo. Não é por ser um apelo à emoção, mas há horas em que precisamos ser chamados por aquilo que nos atinge mais rapidamente, e, a despeito do que há de potencial preditivo em Gaia, têm momentos em que precisamos aceitar os convites para parar e pensar.

Por fim, meus caros amigos, fecho os relatos deste périplo, peço minhas escusas a cidades como Itanhandu, Aiuruoca e Soledade de Minas, mas não deu tempo de ir em todas, e agradeço a companhia de todos em mais essa viagem, em especial à paciência em seguir essa minha lógica louca de retirar pensamentos intrincados de atos simples como ficar de papo pro ar, no meio de um lago e ao lado da indefectível patroinha. Um bom ano a todos.



Recomendações várias:

Primeiro, as cidades. Como de costume, recomendo todas, porque sempre há um lugar, uma dose, um acepipe ou uma pessoa interessante para contar histórias e falar bobagens. Sempre indiquei caminhos a partir de São Paulo, mas os GPS’s da vida tornaram esse tipo de informação obsoleto. Seguem só as distâncias:

Pouso Alto – 272 Km
Passa Quatro – 242 Km
Itamonte – 270 Km
Lambari – 273 Km
Cambuquira – 293 Km
São Lourenço – 294 Km
Carmo de Minas – 298 Km
Jesuânia – 282 Km
Caxambu – 303 Km
São Thomé das Letras – 348 Km
Cruzília – 342 Km
Baependi – 308 Km
Conceição do Rio Verde – 312 Km

Vou recomendar também dois livros, que tem o registro da Hipótese de Gaia. O primeiro é do seu criador.

LOVELOCK, James. A Vingança de Gaia. São Paulo: Intrínseca, 2006.

O outro é de Lynn Margulis. Ela é bastante polêmica, mas, neste caso, podemos dar foco no que ela acerta e no que ela alerta.

MARGULIS, Lynn. O Planeta Simbiótico. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

Por fim, sobre Margulis, tem um videozinho muito bem explicado sobre a endossimbiose das mitocôndrias no canal do Pirula, a quem já recomendei em outra postagem (o canal como um todo, não o vídeo):

https://www.youtube.com/watch?v=X4JQKdW8PiY