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terça-feira, 4 de novembro de 2014

Arte restrita, arte expandida (Sobre macarrão com alcaparras)

Olá!

Sempre parto dos relatos de minhas andanças para desenvolver os temas a que me proponho neste espaço. Desta vez, vou abordar algo um pouco mais suave e menos polêmico: a culinária. Afinal de contas, comer pode parecer meio prosaico, mas é dessas tarefas mais essenciais que se alimenta a Filosofia.

Há um tempinho atrás, vagávamos eu e a patroa em nosso corre-corre quotidiano quando um sinal orgânico nos deu um alerta: vocês estão com fome! Parem imediatamente e procurem algo para comer. E que seja rápido, ainda tem muita coisa a fazer. Bem, achar lugar para comer não é exatamente um problema em nossa gastronômica metrópole.

Encontramos absolutamente ao acaso uma casinha que fica no Largo Nossa Senhora da Conceição. Para quem não sabe, esse logradouro fica no exato encontro entre os bairros da Liberdade, Glicério, Cambuci e Aclimação. Assim como alguns outros poucos locais do centro, e, na minha humilde opinião, mais do que qualquer outro, a redondeza assemelha-se a um bairro, mas daqueles bem pacatos, com muitas casinhas antigas e uma igreja a catalisá-los. Olhe para todos os lados e você verá prédios e avenidas, cinzentos e lotados todos. Ali, não. A praça central ajuda no aspecto entre lúdico e provinciano. E não deve ter muito mais que um quilômetro de distância para a Sé. De casa, posso ir a pé sem muita dor.

O nome do lugarejo: Santa Ceia. Bem a propósito. Chamou atenção a singeleza do estabelecimento. Um sobradinho daqueles que remetem às influências dos muratori italianos nos bairros operários. Lembra um pouco a Mooca ou o Bixiga. Imagens falam mais que palavras:


Eles tiveram a sabedoria de manter o estabelecimento em seu interior com o aspecto da fachada: uma casa da tia gorda, ou da nonna, que nos recebe com lautas quantidades de calorias. Dá vontade de fuçar na geladeira ou de puxar o gato pelo rabo, entre outras traquinagens. Vejam se não é verdade.


Um singelo macarrão regado ao molho de tomate esmagado, com alcaparras e azeitonas, e um conjunto coxa+contracoxa assados compuseram um prato para comer rezando, para consubstanciar seu religioso nome. Uma peça de arte. Eis os reles vestígios do que um dia foi um prato sobejamente preenchido:


Ganhou dois fregueses. Eis um dos grandes privilégios de morar na cidade de São Paulo. Praticamente em todas as cidades do mundo há um ou alguns lugares onde a prática gastronômica merece receber o estatuto de notável. Em São Paulo, esse fenômeno se multiplica a cada esquina. Muitos dos melhores templos da religião do bem comer são simplíssimos, como é o caso da recém-mencionada Santa Ceia, da Esquina do Fuad e sua chuleta com pasta d’alho, do Garimpo do Interior e suas mineirices, do extraordinário (EXTRAORDINÁRIO) pastel de palmito do minúsculo Senhor dos Pastéis, da excelência árabe atingida pelos judeus do Jacob (!!!!), do simpático bolinho de abóbora com carne seca do Chopp Escuro, ah... Chega que eu estou babando no teclado. Ah, sim!!! Tem as cavacas das pretas velhas da palhoça do Parque da Água Branca. Não posso esquecer-me das bás e seu café forte.

A comida paulistana é distintivo de qualidade até mesmo quando ela não é o prato principal. Lembram quando eu falei sobre a exposição de três jovens vegans (neste post)? Pois então. Foram servidos acepipes aos transeuntes que ali passavam do melhor bom gosto, e que serviram para desmistificar todo o preconceito que há contra a comida vegetariana, que é saborosíssima quando confiada a mãos hábeis.

Efetivamente, e sem esquecer que tudo tem um lado comercial, evidentemente, parece que o paulista faz comida de primeira por boa educação (o que não é verdadeiro para outras circunstâncias). As pessoas devem procurar as casas por questões afetivas, a comida delas deve fazer parte das suas histórias. Por isso mesmo, não vejo nada de mal em recomendar esses endereços todos, e peço desculpas para aqueles outros meritórios e não indicados, seja por esquecimento, seja por desconhecimento, seja para não tornar este texto sacal e com foco perdido. Mas o segredo é tratar dos pratos como o pintor lida com seus pincéis.

E aí eu me pus a pensar. Se a culinária exige talento e aguça os sentidos, não será ela uma legítima representante do panteão artístico? Quais são os limites da arte? Ou melhor, o que podemos chamar de arte? O talento é o bastante para nominarmos um artefato de nosso dia-a-dia como objeto de arte? Vamos ver.

Enxergo duas definições válidas para a arte, e cada uma delas conduz a uma conclusão. Entendo a arte como a significação de uma ideia ou como a concretização de um talento. Mas há algo que os catedráticos gostam de diferenciar, e tipificam atividades de cunho estético, tornando algumas legítimas e outras nem tanto. Vou chamar uma de “arte restrita” e outra de “arte expandida”. À primeira, considerarei o que habitualmente se chama de arte: escultura, música, literatura, etc. E à outra, vou pinçar aquelas que são mais tangíveis e visíveis no nosso dia-a-dia, como é o caso da macarronada em questão.

Uma das diferenças que poderíamos estabelecer entre as duas visões que lançamos sobre a arte está calcada no alcance que a Estética (enquanto visão filosófica) tem sobre cada uma delas. E, neste caso, temos uma boa notícia para a arte expandida: a Estética tem tudo para considerar ambas como autênticas obras de arte.

Vamos analisar o que nos dizem as melhores definições sobre a Estética como disciplina, ou melhor dizendo, área do conhecimento filosófico.

Para começar, precisamos fazer uma pequena porém necessária triagem. Se falarmos em Estética pura e simplesmente, vamos de pronto imaginar as clínicas que pululam por aí, prometendo e nem sempre entregando beleza prét-a-porter para as mulheres ávidas – e muitos homens também – de alcançar o alquímico desejo da longa vida mesclada a um impossível espelho de Narciso. Não, Estética não é isso. Mas há um ponto de contato que explica o uso do nome.

Aisthesis: palavra grega que derivou para o português como Estética. Esta palavra significa a faculdade de conhecer através dos sentidos. E, claro, o que mais nos afeta é a beleza. Bela música para ouvir, bela tela para ver, belo acepipe para saborear. Mas este conceito é extremamente subjetivo, já que está alicerçado nas nuvens: a capacidade de imaginar, de sonhar, de encontrar formas perfeitas. A Estética versa sobre o belo, mas não inclui apenas a Arte em seu escopo. Afinal, a natureza tem um sem número de objetos belos, que não passaram por mãos humanas, e não dependem da aplicação do seu talento. Para algo entrar no terreno da Arte, já é preciso que alguma manufatura tenha ocorrido.

Essa manufatura inclui em si não só o talento, mas a técnica. Nos primórdios, o conceito de arte não indica apenas o criar, mas o saber fazer. Arte e ofício eram praticamente sinônimos. O artista é aquele que sabia aplicar sua techné na confecção das obras.

Essa aplicação da técnica era, e ainda é, coisa para poucos. Os artistas mais notáveis são aqueles que conseguem exacerbar sua arte através dos tempos, e torná-la marcante em qualquer lugar onde possa ser compreendida.

Ok, então. Se temos todas essas definições seguras sobre a Estética, com que cara vamos excluir a arte expandida do seu universo? Há um pulo do gato para explicar razoavelmente esse egoísmo das belas-artes, e responde pelo nome de elitismo.

Quando do surgimento da ideia da Estética como conhecimento do belo, tínhamos como seus cultuadores, na maior parte das vezes, os membros da aristocracia, já que o povo estava mais ocupado em puxar enxada.

A classificação de arte utilitária e da arte popular como subalterna ou desqualificada tem a ver com essa posição das elites, de reservar para si o que há de melhor em todos os estratos, e a Arte por si mesma, a Arte por excelência, não pode ser distribuída a quem pretensamente não tem envergadura intelectual para concebê-la.

Não podemos estranhar tanto essa atitude da burguesia nem achar que não faríamos o mesmo, considerando-nos os melhores humanistas e os grandes democratas. Não é verdade que muitas vezes achamos que o povo não sabe votar? Ou que não tem condições para exercer sua própria cidadania, tendo a necessidade constante de ser tutelado? Se pensamos nisso, mas não fazemos nada contra esse estado de coisas, então agimos identicamente à aristocracia. Primeiramente porque achamos impossível que o povo mais excluído tenha mesmo condições de dar um salto de qualidade em seu conhecimento. E depois porque queremos dar manutenção ao status quo do qual fazemos parte.

Os principais especialistas no mundo das artes consideram que elas devam se justificar por si mesmas, ou seja, sua existência está vinculada e se basta unicamente no propósito de ocasionar prazer. Sendo assim, qualquer função utilitária da obra de arte a desqualificaria como tal. Portanto, atividades que envolvam os sentidos ou exijam talento, mas que tenham objetivos práticos, estariam fora do contexto das “belas artes”, a quem chamei neste texto de arte restrita. Eis que atividades como a moda, a oratória, a perfumaria, o design, a maquiagem, a culinária, a tapeçaria e tantos outros, por terem objetivos que vão além da mera função artística, estariam em situação menos nobre, e excluídas deste escopo.

Há um grande problema, no entanto. Essa parece uma tentativa de tornar a arte justamente o que ela não é – algo definido, canônico, prescrito, regulamentado – uma Ciência. Há algo neste tipo de descrição que tira a espontaneidade da atividade artística, e a Arquitetura vira Engenharia, a Literatura vira manual, o Teatro vira História. Desta forma, não parece favorável dizer que a arte pode prescindir do talento. E, neste quesito, tanto as belas-artes quanto as artes utilitárias estão em pé de igualdade. Ninguém pode dizer que Rafael Sanzio não era talentoso na pintura, assim como ninguém pode dizer que Antonin Carême não sabia o que fazer com suas panelas.

Pois bem. Isolada a questão do talento, vou partir para a expressão das ideias, e ver se as “artes práticas” resistem a um confronto com essa característica. Vou usar as teses do italiano Luigi Pareyson neste imbróglio.

Pareyson é um filósofo um pouquinho subestimado, porque fez interessantes observações ontológicas e hermenêuticas, mas trabalhou principalmente com a Estética e a Filosofia da Arte. Sua principal tese é a teoria da formatividade, que diz que a obra de arte é um objeto em permanente construção. Quando o artista inicia seu processo criativo, ou seja, quando se inspira, a obra de arte já existe, independentemente de sua vida física, e isso acontece porque, ainda no seu pensamento, o artista já agrega e descarta possibilidades em seu constructo. Por vezes, a obra nem chega a nascer – quando é descartada como um todo – mas nem por isso deixa de existir como ideia, o que significa que já recebeu algum tipo de interpretação.

Esse processo é contínuo. O artista, ao escolher o suporte, interpreta qual o melhor para expressar a ideia, assim como ao optar pelas cores ou pelos instrumentos. Passa depois pela execução em si, muda de ideia, reinterpreta e adapta partes, descarta algumas, agrega outras e vai moldando seu objeto, até lhe dar forma final, o que não significa que as possibilidades da construção tenham acabado. É preciso escolher o que fazer com a obra. Guardá-la, vendê-la, expô-la em uma galeria, fazê-la participar de um evento ou destruí-la são hipóteses. Tudo isso é fruto de uma interpretação de suas possibilidades. E o processo continuará eternamente, porque o eixo de interpretação da obra pronta se deslocará do artista para o apreciador, e cada observação nova de cada um que a analisar será mais um tijolinho na constituição daquele objeto.

Bom... então ferrou! Como eu faço para interpretar um prato de spaghetti? A definição de Pareyson impossibilitou definir comida como arte!

Calma. Se observarmos bem, veremos que é possível, sim, aplicar a tese pareysoniana até mesmo ao nosso quotidiano arroz-e-feijão. Basta tirar a grandiloquência de nossa frente e pensar em um ponto menor.

Já definimos que a obra de arte deriva do talento, e que este pode ser aplicado em coisas do dia-a-dia. É óbvio que já é mais difícil – mas não impossível – para a dona de casa expressar ideias a cada vez que precisar realizar a tão famosa dicotomia arroz X feijão. Mas é que estamos pensando apenas no aspecto prático da coisa. É preciso observar também a sua teleologia.

Imaginemos, por exemplo, um jantarzinho especial, daqueles românticos, em que comemoramos um aniversário de casamento. A princípio, vamos descartar as facilidades modernas, como contratar um terceiro ou jantar fora. A comida vai ser pensada de modo a agradar o gosto de ambos os cônjuges, teremos uma entradinha básica, que vai ser pensada de forma a não causar saciedade e conflitar com o prato principal, que por sua vez vai ser combinado com um vinhozinho bem escolhido e complementado por uma sobremesa bem articulada, fechando com o habitual café ou com a sofisticada opção de um licor. Todos os talheres e porcelanas foram escolhidos a dedo e devidamente posicionados. A combinação de sabores é feliz e há música suave no fundo. O prosaico jantarzinho será recordado e comparado com anteriores e posteriores: o vinho tinto estava ideal, o fondue estava pouco espesso, mas casou bem com a tentativa de pão sovado no lugar de pão italiano – “Ah, mas por que você fez essa troca, meu amor?” – “Porque a gente tomou nosso primeiro café da manhã com pão sovado, queria lembrar disso” – Essas pequenas coisas que dão colorido na vida de pessoas específicas, e que são banais aos olhos alheios. Não há expressão de ideias? Não há interpretação de ideias? Não há Estética? Não há Arte?

É dessa forma que são feitas as coisas. Como interpretamos se um perfume é mais adequado para usar de dia ou de noite? Ora, interpretando a criação do perfumista, e adotando-a ou descartando-a, e assim por diante. E, assim, chegamos à conclusão que as coisas práticas, quando executadas com talento e quando expressam alguma ideia, podem ser consideradas obras de arte, sem dúvida alguma. Inclusive meu prato de macarrão.

Recomendação de leitura:

Pareyson é um filósofo interessante, e possui um didatismo raro de se encontrar. Isso o torna fácil de ler, o que é bom para quem não manja tanto dessa área filosófica.

PAREYSON, Luigi. Os problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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