Sempre parto dos relatos de minhas andanças para desenvolver
os temas a que me proponho neste espaço. Desta vez, vou abordar algo um pouco
mais suave e menos polêmico: a culinária. Afinal de contas, comer pode parecer
meio prosaico, mas é dessas tarefas mais essenciais que se alimenta a
Filosofia.
Há um tempinho atrás, vagávamos eu e a patroa em nosso
corre-corre quotidiano quando um sinal orgânico nos deu um alerta: vocês estão
com fome! Parem imediatamente e procurem algo para comer. E que seja rápido,
ainda tem muita coisa a fazer. Bem, achar lugar para comer não é exatamente um
problema em nossa gastronômica metrópole.
Encontramos absolutamente ao acaso uma casinha que fica no
Largo Nossa Senhora da Conceição. Para quem não sabe, esse logradouro fica no
exato encontro entre os bairros da Liberdade, Glicério, Cambuci e Aclimação.
Assim como alguns outros poucos locais do centro, e, na minha humilde opinião,
mais do que qualquer outro, a redondeza assemelha-se a um bairro, mas daqueles
bem pacatos, com muitas casinhas antigas e uma igreja a catalisá-los. Olhe para
todos os lados e você verá prédios e avenidas, cinzentos e lotados todos. Ali,
não. A praça central ajuda no aspecto entre lúdico e provinciano. E não deve
ter muito mais que um quilômetro de distância para a Sé. De casa, posso ir a pé
sem muita dor.
O nome do lugarejo: Santa Ceia. Bem a propósito. Chamou
atenção a singeleza do estabelecimento. Um sobradinho daqueles que remetem às
influências dos muratori italianos
nos bairros operários. Lembra um pouco a Mooca ou o Bixiga. Imagens falam mais
que palavras:
Eles tiveram a sabedoria de manter o estabelecimento em seu
interior com o aspecto da fachada: uma casa da tia gorda, ou da nonna, que nos recebe com lautas
quantidades de calorias. Dá vontade de fuçar na geladeira ou de puxar o gato
pelo rabo, entre outras traquinagens. Vejam se não é verdade.
Um singelo macarrão regado ao molho de tomate esmagado, com
alcaparras e azeitonas, e um conjunto coxa+contracoxa assados compuseram um
prato para comer rezando, para consubstanciar seu religioso nome. Uma peça de
arte. Eis os reles vestígios do que um dia foi um prato sobejamente preenchido:
Ganhou dois fregueses. Eis um dos grandes privilégios de
morar na cidade de São Paulo. Praticamente em todas as cidades do mundo há um
ou alguns lugares onde a prática gastronômica merece receber o estatuto de
notável. Em São Paulo, esse fenômeno se multiplica a cada esquina. Muitos dos
melhores templos da religião do bem comer são simplíssimos, como é o caso da recém-mencionada
Santa Ceia, da Esquina do Fuad e sua chuleta com pasta d’alho, do Garimpo do
Interior e suas mineirices, do extraordinário (EXTRAORDINÁRIO) pastel de palmito
do minúsculo Senhor dos Pastéis, da excelência árabe atingida pelos judeus do
Jacob (!!!!), do simpático bolinho de abóbora com carne seca do Chopp Escuro,
ah... Chega que eu estou babando no teclado. Ah, sim!!! Tem as cavacas das
pretas velhas da palhoça do Parque da Água Branca. Não posso esquecer-me das
bás e seu café forte.
A comida paulistana é distintivo de qualidade até mesmo
quando ela não é o prato principal. Lembram quando eu falei sobre a exposição
de três jovens vegans (neste post)?
Pois então. Foram servidos acepipes aos transeuntes que ali passavam do melhor
bom gosto, e que serviram para desmistificar todo o preconceito que há contra a
comida vegetariana, que é saborosíssima quando confiada a mãos hábeis.
Efetivamente, e sem esquecer que tudo tem um lado comercial,
evidentemente, parece que o paulista faz comida de primeira por boa educação (o
que não é verdadeiro para outras circunstâncias). As pessoas devem procurar as
casas por questões afetivas, a comida delas deve fazer parte das suas histórias.
Por isso mesmo, não vejo nada de mal em recomendar esses endereços todos, e
peço desculpas para aqueles outros meritórios e não indicados, seja por
esquecimento, seja por desconhecimento, seja para não tornar este texto sacal e
com foco perdido. Mas o segredo é tratar dos pratos como o pintor lida com seus
pincéis.
E aí eu me pus a pensar. Se a culinária exige talento e
aguça os sentidos, não será ela uma legítima representante do panteão
artístico? Quais são os limites da arte? Ou melhor, o que podemos chamar de
arte? O talento é o bastante para nominarmos um artefato de nosso dia-a-dia
como objeto de arte? Vamos ver.
Enxergo duas definições válidas para a arte, e cada uma
delas conduz a uma conclusão. Entendo a arte como a significação de uma ideia
ou como a concretização de um talento. Mas há algo que os catedráticos gostam
de diferenciar, e tipificam atividades de cunho estético, tornando algumas
legítimas e outras nem tanto. Vou chamar uma de “arte restrita” e outra de
“arte expandida”. À primeira, considerarei o que habitualmente se chama de
arte: escultura, música, literatura, etc. E à outra, vou pinçar aquelas que são
mais tangíveis e visíveis no nosso dia-a-dia, como é o caso da macarronada em
questão.
Uma das diferenças que poderíamos estabelecer entre as duas
visões que lançamos sobre a arte está calcada no alcance que a Estética
(enquanto visão filosófica) tem sobre cada uma delas. E, neste caso, temos uma
boa notícia para a arte expandida: a Estética tem tudo para considerar ambas
como autênticas obras de arte.
Vamos analisar o que nos dizem as melhores definições sobre
a Estética como disciplina, ou melhor dizendo, área do conhecimento filosófico.
Para começar, precisamos fazer uma pequena porém necessária
triagem. Se falarmos em Estética pura e simplesmente, vamos de pronto imaginar
as clínicas que pululam por aí, prometendo e nem sempre entregando beleza prét-a-porter para as mulheres ávidas –
e muitos homens também – de alcançar o alquímico desejo da longa vida mesclada
a um impossível espelho de Narciso. Não, Estética não é isso. Mas há um ponto
de contato que explica o uso do nome.
Aisthesis: palavra
grega que derivou para o português como Estética. Esta palavra significa a
faculdade de conhecer através dos sentidos. E, claro, o que mais nos afeta é a
beleza. Bela música para ouvir, bela tela para ver, belo acepipe para saborear.
Mas este conceito é extremamente subjetivo, já que está alicerçado nas nuvens:
a capacidade de imaginar, de sonhar, de encontrar formas perfeitas. A Estética
versa sobre o belo, mas não inclui apenas a Arte em seu escopo. Afinal, a
natureza tem um sem número de objetos belos, que não passaram por mãos humanas,
e não dependem da aplicação do seu talento. Para algo entrar no terreno da Arte,
já é preciso que alguma manufatura tenha ocorrido.
Essa manufatura inclui em si não só o talento, mas a
técnica. Nos primórdios, o conceito de arte não indica apenas o criar, mas o
saber fazer. Arte e ofício eram praticamente sinônimos. O artista é aquele que
sabia aplicar sua techné na confecção
das obras.
Essa aplicação da técnica era, e ainda é, coisa para poucos.
Os artistas mais notáveis são aqueles que conseguem exacerbar sua arte através
dos tempos, e torná-la marcante em qualquer lugar onde possa ser compreendida.
Ok, então. Se temos todas essas definições seguras sobre a
Estética, com que cara vamos excluir a arte expandida do seu universo? Há um
pulo do gato para explicar razoavelmente esse egoísmo das belas-artes, e
responde pelo nome de elitismo.
Quando do surgimento da ideia da Estética como conhecimento
do belo, tínhamos como seus cultuadores, na maior parte das vezes, os membros
da aristocracia, já que o povo estava mais ocupado em puxar enxada.
A classificação de arte utilitária e da arte popular como
subalterna ou desqualificada tem a ver com essa posição das elites, de reservar
para si o que há de melhor em todos os estratos, e a Arte por si mesma, a Arte
por excelência, não pode ser distribuída a quem pretensamente não tem
envergadura intelectual para concebê-la.
Não podemos estranhar tanto essa atitude da burguesia nem
achar que não faríamos o mesmo, considerando-nos os melhores humanistas e os
grandes democratas. Não é verdade que muitas vezes achamos que o povo não sabe
votar? Ou que não tem condições para exercer sua própria cidadania, tendo a
necessidade constante de ser tutelado? Se pensamos nisso, mas não fazemos nada
contra esse estado de coisas, então agimos identicamente à aristocracia.
Primeiramente porque achamos impossível que o povo mais excluído tenha mesmo
condições de dar um salto de qualidade em seu conhecimento. E depois porque
queremos dar manutenção ao status quo do
qual fazemos parte.
Os principais especialistas no mundo das artes consideram
que elas devam se justificar por si mesmas, ou seja, sua existência está
vinculada e se basta unicamente no propósito de ocasionar prazer. Sendo assim,
qualquer função utilitária da obra de arte a desqualificaria como tal.
Portanto, atividades que envolvam os sentidos ou exijam talento, mas que tenham
objetivos práticos, estariam fora do contexto das “belas artes”, a quem chamei
neste texto de arte restrita. Eis que atividades como a moda, a oratória, a
perfumaria, o design, a maquiagem, a culinária, a tapeçaria e tantos outros,
por terem objetivos que vão além da mera função artística, estariam em situação
menos nobre, e excluídas deste escopo.
Há um grande problema, no entanto. Essa parece uma tentativa
de tornar a arte justamente o que ela não é – algo definido, canônico,
prescrito, regulamentado – uma Ciência. Há algo neste tipo de descrição que tira
a espontaneidade da atividade artística, e a Arquitetura vira Engenharia, a Literatura
vira manual, o Teatro vira História. Desta forma, não parece favorável dizer
que a arte pode prescindir do talento. E, neste quesito, tanto as belas-artes
quanto as artes utilitárias estão em pé de igualdade. Ninguém pode dizer que
Rafael Sanzio não era talentoso na pintura, assim como ninguém pode dizer que
Antonin Carême não sabia o que fazer com suas panelas.
Pois bem. Isolada a questão do talento, vou partir para a
expressão das ideias, e ver se as “artes práticas” resistem a um confronto com
essa característica. Vou usar as teses do italiano Luigi Pareyson neste imbróglio.
Pareyson é um filósofo um pouquinho subestimado, porque fez
interessantes observações ontológicas e hermenêuticas, mas trabalhou
principalmente com a Estética e a Filosofia da Arte. Sua principal tese é a teoria da formatividade, que diz que a
obra de arte é um objeto em permanente construção. Quando o artista inicia seu
processo criativo, ou seja, quando se inspira, a obra de arte já existe,
independentemente de sua vida física, e isso acontece porque, ainda no seu
pensamento, o artista já agrega e descarta possibilidades em seu constructo.
Por vezes, a obra nem chega a nascer – quando é descartada como um todo – mas nem
por isso deixa de existir como ideia, o que significa que já recebeu algum tipo
de interpretação.
Esse processo é contínuo. O artista, ao escolher o suporte,
interpreta qual o melhor para expressar a ideia, assim como ao optar pelas
cores ou pelos instrumentos. Passa depois pela execução em si, muda de ideia,
reinterpreta e adapta partes, descarta algumas, agrega outras e vai moldando
seu objeto, até lhe dar forma final, o que não significa que as possibilidades
da construção tenham acabado. É preciso escolher o que fazer com a obra.
Guardá-la, vendê-la, expô-la em uma galeria, fazê-la participar de um evento ou
destruí-la são hipóteses. Tudo isso é fruto de uma interpretação de suas
possibilidades. E o processo continuará eternamente, porque o eixo de
interpretação da obra pronta se deslocará do artista para o apreciador, e cada
observação nova de cada um que a analisar será mais um tijolinho na
constituição daquele objeto.
Bom... então ferrou! Como eu faço para interpretar um prato
de spaghetti? A definição de Pareyson
impossibilitou definir comida como arte!
Calma. Se observarmos bem, veremos que é possível, sim,
aplicar a tese pareysoniana até mesmo ao nosso quotidiano arroz-e-feijão. Basta
tirar a grandiloquência de nossa frente e pensar em um ponto menor.
Já definimos que a obra de arte deriva do talento, e que
este pode ser aplicado em coisas do dia-a-dia. É óbvio que já é mais difícil –
mas não impossível – para a dona de casa expressar ideias a cada vez que
precisar realizar a tão famosa dicotomia arroz X feijão. Mas é que estamos
pensando apenas no aspecto prático da coisa. É preciso observar também a sua
teleologia.
Imaginemos, por exemplo, um jantarzinho especial, daqueles
românticos, em que comemoramos um aniversário de casamento. A princípio, vamos
descartar as facilidades modernas, como contratar um terceiro ou jantar fora. A
comida vai ser pensada de modo a agradar o gosto de ambos os cônjuges, teremos
uma entradinha básica, que vai ser pensada de forma a não causar saciedade e
conflitar com o prato principal, que por sua vez vai ser combinado com um
vinhozinho bem escolhido e complementado por uma sobremesa bem articulada,
fechando com o habitual café ou com a sofisticada opção de um licor. Todos os
talheres e porcelanas foram escolhidos a dedo e devidamente posicionados. A
combinação de sabores é feliz e há música suave no fundo. O prosaico
jantarzinho será recordado e comparado com anteriores e posteriores: o vinho
tinto estava ideal, o fondue estava pouco espesso, mas casou bem com a
tentativa de pão sovado no lugar de pão italiano – “Ah, mas por que você fez
essa troca, meu amor?” – “Porque a gente tomou nosso primeiro café da manhã com
pão sovado, queria lembrar disso” – Essas pequenas coisas que dão colorido na
vida de pessoas específicas, e que são banais aos olhos alheios. Não há
expressão de ideias? Não há interpretação de ideias? Não há Estética? Não há Arte?
É dessa forma que são feitas as coisas. Como interpretamos
se um perfume é mais adequado para usar de dia ou de noite? Ora, interpretando
a criação do perfumista, e adotando-a ou descartando-a, e assim por diante. E,
assim, chegamos à conclusão que as coisas práticas, quando executadas com
talento e quando expressam alguma ideia, podem ser consideradas obras de arte,
sem dúvida alguma. Inclusive meu prato de macarrão.
Recomendação de leitura:
Pareyson é um filósofo interessante, e possui um didatismo
raro de se encontrar. Isso o torna fácil de ler, o que é bom para quem não
manja tanto dessa área filosófica.
PAREYSON, Luigi. Os
problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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