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quarta-feira, 15 de junho de 2016

Heurística, o caminho para respostas rápidas e para áreas pantanosas (Pequeno guia das grandes falácias - 27º tomo: o Refletor)

Olá!


Sejam bem vindos, crianças e nem tanto. Está muito frio nos últimos dias, como há muito não fazia, e as ameaças recentes de dengue, chikungunya e zika arrefeceram, depois de se revelarem assustadoras. Isso porque se há um outono para nos enrijecer as articulações, também para o malvadão aedes aegypti o fenômeno climático traz suas afetações. Fato é que as doenças típicas de inverno são outras e tomaram a dianteira, especialmente a malfazeja gripe H1N1, outrora chamada de “gripe suína”, pelo óbvio motivo de que surgiu primeiramente em porcos. É causada por uma variação do vírus influenza, e seus sintomas iniciais são semelhantes aos de uma gripe comum – só que bem mais profundos. O grande busílis desta cepa de vírus é que ela abre as portas para problemas mais graves, como a pneumonia e falência respiratória, além de agravar as complicações decorrentes de doenças crônicas, como a diabetes (ai, ai, ai). O resultado geral é o desespero da população, que passa a correr atrás da vacina enlouquecidamente, a ponto de lotar e causar filas de horas em clínicas particulares, como bem pudemos observar este ano.

Por certo que os governos nos três níveis foram considerados culpados na demora pela distribuição das vacinas, ao menos para as camadas da população mais vulneráveis. Mas, como já soltei nos meus dez mandamentos do raciocínio político, algumas vezes os governos são espantalhos onde despejamos nossas frustrações, o que nem sempre tem correspondência com a realidade. Percebam, por exemplo, que os governos não podem agir na base da compulsividade, e há um calendário a ser seguido – e um orçamento a ser respeitado. Além disso, a gripe H1N1 é de ocorrência rara, muito embora, pela sua gravidade, pareça estar escondida atrás do muro de cada esquina, pronta para nos assaltar a carteira de nossa saúde.

Este é um pequeno exemplo de uma grande paranoia fomentada irracionalmente. As pessoas têm tanto medo de morrer que acabam agindo no impulso, gastando tempo e dinheiro que têm e que não têm para tentar se livrar do perigo. Quanto a mim, o irracional medo de agulhas leva a raciocinar sobre a ponderada necessidade de se vacinar, e acabo não tendo pressa em gastar os R$ 200,00 em uma clínica. Quando chegou o momento de me vacinar na rede pública, peguei uma belíssima gripe, o que acabou por me contraindicar a aplicação. São as voltas que a vida dá.

Mas qual é o combustível que nos alimenta esse desespero irracional? Talvez parte da resposta esteja na heurística. Vamos tentar entender o que é isso.

Heurística é uma palavra de origem grega que tem a mesma fonte da exclamação “eureca”, tão comumente atribuída aos gênios quando matam suas charadas. Uma narrativa que flutua entre o tradicional e o lendário atribui o primeiro uso do termo a Arquimedes, físico grego que viveu no século III a.C. Por essa época, o rei Heiron II lançou-lhe um desafio: descobrir se sua coroa era de ouro puro ou se havia algum outro material menos nobre a lhe ferir a dignidade metálica. O problema era muito difícil de resolver, porque a coroa não poderia ser danificada para se obter resposta. Para medir sua densidade e compará-la a igual parte de ouro sabidamente puro, seria necessário derretê-la. Arquimedes ficou remoendo uma solução, e, seja para relaxar, seja para esconjurar o fedor, foi deitar-se em uma banheira. Ao fazê-lo, deu-se conta de que, na medida em que pousava seu corpo na água, a mesma se elevava em seu nível. Pôs a cachola a pensar no seguinte: se um corpo humano faz o nível da água subir na banheira, outro objeto fará o mesmo. Se este objeto for a coroa do rei, elevará a água a um nível específico. Depois, bastará colocar na banheira a mesma quantidade de ouro puro e medir novamente o nível. Se ambos forem iguais, a coroa é de ouro castiço. Eureca!!!

E saiu gritando peladão pelas ruas de Siracusa, uma Godiva sem cavalo, uma Katia Flávia sem Irajá. Eureca significa “achei”, “encontrei”, “descobri”, coisa que o valha.

A heurística também se baseia nesta arte do encontro e descoberta. Estudada pelo economista Daniel Kahneman e pelo psicólogo Amos Tversky, ambos israelenses, no âmbito do comportamento irracional diante das flutuações econômicas, pode ser definida como uma espécie de caminho mais curto para dar resposta a um problema, diante da necessidade imediata de fazê-lo. Lembro-me bem dos exemplos vindos dos aplicativos antivírus. Como se bem sabe, desde meados da década de 80, os vírus de computadores nos perturbam, às vezes simplesmente jocosos, outras vezes tornando nossas máquinas lentas, estragando nossos dados, formatando nossos discos, embaralhando nossos textos e, mais recentemente, roubando nossas informações. A luta contra essas ações se dá na mesma perspectiva de uma vacinação real, ou seja, primeiro a doença acontece, depois se cria a profilaxia. Nesta lógica, algum estrago já foi feito antes da solução. O que fazer para reverter ou amenizar a situação?

Os fabricantes de antivírus pensaram no seguinte: há uma espécie de padrão no código malicioso dos vírus. Afinal de contas, para estragar dados, é preciso acessá-los de alguma forma. O mesmo para formatar discos e outras misérias que-tais. Assim, qualquer coisa que se tente instalar no computador é supervisionada pelo antivírus, que tenta encontrar o tal padrão malicioso. Desse jeito, muitos vírus novos são reconhecidos antes mesmo de fazerem parte da lista de prevenção.

Só que isso, apesar de muito engenhoso, traz dificuldades. Um sistema qualquer que tenha códigos semelhantes a um vírus é igualmente barrado. Além disso, o processo que faz a leitura heurística torna o fluxo de informações mais lento, depreciando o funcionamento geral do equipamento. E dá-lhe xingar o pessoal da informática...

Sim, o processo heurístico é sujeito a erros, não somente no contexto computacional, mas também em nossa mente. Conforme descobriram Kahneman e Tversky, o cérebro possui a tendência de tentar resolver problemas complexos com soluções simples. Isso é particularmente útil quando precisamos tomar decisões rápidas, quando não há tempo a perder. Suponha que você tem uma firminha qualquer e precise pagar seus funcionários. Suponha ainda que não há rede disponível para você fazer os depósitos via internet. O que você faz antes de iniciar a greve? Ora, vai ao caixa e paga a galera com dinheiro vivo. Essa é a decisão acertada? Nem sempre. Você vai ter um certo trabalho para ajustar o fluxo de seu sistema, vai ter que sacar o dinheiro para repor o caixa, talvez você fique com indisponibilidade monetária para outros pagamentos, vai perder o dinheiro das tarifas do serviço bancário, vai arriscar seus funcionários com dinheiro no bolso nesta cidade indômita. Mas o fato é que você resolveu seu problema imediato. Por isso a heurística existe.

Mas já deu para perceber como esta é uma característica balouçante, não é verdade? É aquela velha história de se ter uma resposta imediata para tudo, muitas vezes sem passar pelo crivo da razão e sem a humildade de falar “não sei” (vide a falácia do Deus das lacunas). Um bom exemplo é quando somos confrontados com perguntas de grande extensão. Se perguntamos qual a solução para o problema da falta de habitação, algo muito geral e complicado, que demanda estudos e pesquisas, tendemos a interpor nossa posição pessoal no momento em que se levanta o questionamento. E daí nascem barbaridades mal pensadas. Se somos donos de várias casas, podemos responder que a solução é tirar direitos de quem já não tem nada, e que a rua é suficientemente grande para que o pessoal habite nela. Se estamos do outro lado, nossa resposta pode ser tomar de quem tem, e destruir o que sobrar, sob paus e pedras. A perguntar heurística, portanto, é: “Como o problema me afeta?”. E não traz grandes soluções, como pudemos observar acima.

Excluída a racionalidade, percebemos que a resposta imediata tem algo que a puxa, que a pressiona, que a dirige, que lhe dá algum tipo de orientação. Essa coisa é o que chamamos de viés. Talvez seja muito mais corriqueiro o termo bias, que serve tanto para o inglês quanto para outras línguas, mas vou optar pela língua pátria. Esses vieses, nos estudos dos autores em tela, têm três categorias:

Representatividade: temos uma tendência em agrupar os indivíduos de acordo com um conjunto de características que os constituem, e este conjunto forma uma representação que permite uma identificação rápida. Desta forma, ao observar um contribuinte qualquer, conseguimos imediatamente verificar algumas similaridades com um determinado grupo que faz com que nosso julgamento siga uma probabilidade. Por exemplo: vemos um negro e já o encaixamos no grupo de afrodescendentes; vemos uma mulher de olhos estreitos e supomos sua ascendência oriental, e vemos uma criança toda suja e rasgada e imediatamente a associamos a um menor abandonado. Mas há erros na probabilidade. Frisando bem – algo provável não é necessariamente transformado em realidade. Então imaginemos um indivíduo desdentado, de pouca cultura, com o registro de alguns antecedentes criminais, cuja única distração seja o futebol. Paulistano: é um corinthiano, certo? Carioca: é um flamenguista, confere? Se você respondeu que sim, usou o viés de representatividade. O conjunto de características acima representa um determinado conceito, mas não há informações suficientes para determinar o time do gajo mencionado, se é que existe algum. Estes modelos de probabilidade não se aplicam indistintamente a qualquer membro de um grupo que seja objeto de um estereótipo, palavra grega que significa “impressão sólida”. Os estereótipos são construções de paradigmas que nem sempre são reflexos do mundo real. No mais das vezes, são construções culturais, que mistificam um grupo sem muito critério e que desconsideram a individualidade de cada um. E, sim, são sementes de preconceito. Férteis.

Disponibilidade: Nessa variação da heurística, temos a tendência em utilizar informações abundantes para realizar nossos julgamentos e fornecer respostas. Aqui, recolhemos dados frequentes obtidos através de nossa experiência e os aplicamos a uma situação qualquer. Recorrendo a outro exemplo futebolístico, podemos dizer que teremos a tendência em apostar nos times que ganharam mais títulos nos últimos tempos para que também vençam os torneios atuais. Portanto, apostaríamos em Barcelona ou Real Madrid para o campeonato espanhol; Juventus, Milan ou Internazionale para o campeonato italiano; Manchester United, Manchester City ou Chelsea para a Liga Inglesa, e já aqui achamos o furo: o mais recente campeão inglês é o improvável Leicester, a quem a crítica esportiva considera como uma espécie de Chapecoense inglesa, sem nenhuma intenção de desrespeito à equipe catarinense. O viés de disponibilidade, portanto, é baseado em uma probabilidade de repetição dos resultados que temos armazenados em nosso equipamento cognitivo, sem reunir melhores elementos para fundamentar nosso julgamento.

Ancoragem: neste caso, o viés é dado por um referencial preexistente, que persiste em ser mantido preso mesmo quando há possibilidade de ajuste. Mais uma vez com o futebol: se eu não entendo absolutamente nada do jogo, procuro algum tipo de referência com quem entende. Se capto a ideia de que um centroavante é necessário para o desempenho do jogo, tenderei a achar que há algo de errado quando eu não vir aquele grandalhão parado na área, aguardando para trombar com os zagueiros e escorar as bolas na direção do gol. Ora, é perfeitamente possível um esquema tático prescindir de um centroavante, mas meu ajuste a essa situação será difícil. Perguntarei quem fará seu papel, como poderemos obter gols com atacantes baixinhos, quem enfrentará de igual para igual a linha de defesa do adversário, e terei a compulsão em sempre insistir em somente aceitar formações com um número 9 fixo.

E é exatamente aqui que vai entrar o pequeno guia. Como os vieses heurísticos produzem os desvios mencionados até aqui, podemos inferir que são argumentos falaciosos. A heurística tem sua matéria-prima, como pudemos ver até agora, em julgamentos rápidos, que dispensem grandes elucubrações mentais. Obviamente, não há aporte cognitivo suficiente para se saber de tudo, portanto é razoavelmente compreensível que façamos tentativas baseadas na probabilidade, e que reputemos que semelhança é identificação. Só que não.

Como é possível perceber, há uma grande influência de elementos externos ao argumento para a utilização da heurística. Quando não sabemos de algo e caçamos um referencial, sem dúvida que, quanto maior a quantidade de repetições e de ênfase em algo que identificamos ao nosso redor, maior será uma influência causada na nossa resposta. Pode ser no boca-a-boca, pode ser nos livros, pode ser nos objetos que estão colocados no ambiente, mas é sem dúvida na mídia que está o principal mecanismo de disseminação de referenciais.

Imagine que em todo jornal que você leia, toda rádio que você escute e toda televisão que você assista está inserido o mantra: “Estamos em crise, estamos em crise, estamos em crise...”. Se alguém perguntar a você em qual situação que se encontra o país, você dirá: “Estamos em crise”. A utilização de assuntos que estão em grande destaque da mídia, repetidos heuristicamente, é chamado pelo simpático nome de falácia do Refletor ou Holofote.

Um destaque exagerado costuma influir na nossa capacidade de decisão

Não há dúvida que o uso de informações que estão sob os holofotes não é um procedimento falacioso em si mesmo. Usando o exemplo, é perfeitamente possível dizer que estejamos em crise, mas isso não está acontecendo porque a mídia dá destaque, mas sim porque há desalinhamentos nas contas, excesso de emissão de moeda, índices crescentes de desemprego, ou outros motivos. Ou seja, a causa da crise é o contexto econômico e político, não a divulgação na mídia. É, portanto, um desvio de relevância.

(Podemos até discutir sobre a influência da mídia na produção de crises, o que tem sido posto em discussão nos últimos tempos – com razão. Mas não será agora).

Outra maneira de se usar a falácia do refletor consiste em julgar uma determinada classe de pessoas pelos seus membros mais destacados. Ou de objetos também, para o bem e para o mal. Digo que todos os refrigerantes fazem mal, baseado no conhecimento de que aquela famosa marca com garrafa sinuosa causa danos à saúde. Penso que um islâmico será sempre violento, dada a divulgação maciça de atos terroristas. Nesse sentido, há semelhança com a falácia da má companhia e com o apelo à maioria, com a diferença de que, nestes últimos casos, há independência com relação ao meio pelo qual o preconceito se dissemina.

Para arrematar, podemos agora fechar o círculo e compreender o porquê da caça desesperada pelas vacinas contra a gripe: uma combinação sórdida de conhecimento obtido acriticamente com a necessidade de uma ação rápida. Pois é, a pressa é inimiga não só da perfeição, mas também da lógica.

Recomendação de leitura:

O livro abaixo é de Daniel Kahneman, mas em seu interior está contido o artigo “Julgamentos sob incertezas: heurísticas e vieses”, que é de autoria também de Tversky, e é a base com a qual esta tese foi construída.

KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar. Duas formas de pensar. São Paulo: Objetiva, 2012.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Pequeno guia das grandes falácias - 26º tomo: o apelo à misericórdia (argumentum ad misericordiam) - e também qualquer coisa sobre a necessidade da piedade

Olá!


O centro da cidade de São Paulo é sui generis. Em todo o mundo, o centro é uma das regiões mais valorizadas de um município, pelos motivos óbvios de uma estrutura bem mais robusta de comércio e serviços. Isso acontece não somente nas grandes metrópoles, mas também nos pequenos lugarejos, onde podemos encontrar os órgãos de serviços públicos, as sedes do governo local, e, no caso do interior do Brasil, a imensa igreja. Não é diferente em São Paulo. Há um amplo sortimento de lojas, vários hospitais, escolas (principalmente universidades), teatros, cinemas, muuuuuuuuita comida, tudo asfaltado, iluminado, com fios soterrados e com gás encanado. Há transporte público em abundância, com quatro terminais de ônibus, metrô e trem, e não se perde mais de cinco minutos para tomar um táxi, mesmo de madrugada.

Mas não mora ninguém no centro. Com exceção do Bixiga e do Glicério, há grandes vazios populacionais em regiões extremamente bem estruturadas. Peguem as ruas do triângulo*, por exemplo. São prédios hoje exclusivamente comerciais que foram construídos para serem moradias, em um passado cada vez mais distante. Quando há moradores, geralmente são os zeladores ou foram objeto de ocupação – algo terrivelmente comum por este pedaço. Em uma cultura do automóvel, a falta de garagens é garantidamente um dos fatores que explicam o vazio.

Eu moro no centro de São Paulo. Na minha rua, há só três prédios com moradores. E todos eles têm o jeito típico de balança-mas-não-cai: apesar de possuir apartamentos grandes, não há porteiro, não há zelador permanente, não há vagas de estacionamento, um único elevador bem antigo, uma cara bem precária na fachada. E, com isso, temos a sensação de certo desgoverno, algo plasmado para a realidade com o fundamento ficcional de um “Sai de Baixo”, o famoso e imaginário prédio do Arouche que captou bem esse espírito anárquico dos prédios residenciais destas plagas. Sem a graça da série, no entanto.

O prédio em que moro não chega a ser uma pequena miscelânea social como ocorre com o Edifício Copan, até mesmo por ser muito pequeno, mas há um recorte social muito claro a dividir seus moradores: aqueles que pagam e aqueles que não pagam. Com relação ao aluguel, problema do dono; já com o condomínio, o buraco é muito mais embaixo.

Sendo as coisas desse jeito, é de se imaginar que o convívio entre as unidades não seja tão regrado quanto ocorre com os modernos condomínios, que, se já não são um primor de organização, há sempre um papa para o qual se reclamar (leia-se síndico). No nosso caso, as coisas vão mais à base do deus-dará.

Este modelo de gestão anárquica não deixa de ter os seus encantos, pois há toda uma antropologia meio que tribal, meio que mística, no sentido de que há a existência de uma entidade invisível chamada proprietário, que ninguém vê, mas sabe que existe, principalmente nas majorações de preço inconcordes. Mas esse sentido não é tão aguçado no clã dos não-pagantes. Afinal de contas, não pagar 100 ou não pagar 1000 é exatamente a mesma coisa. Pena que o déficit condominial recaia exatamente sobre os já dilapidados pagantes. Pois é... Mantenho-me neste estranho templo dada as facilidades de sua localização, e nada mais.

É preciso fazer algum esforço e tentar compreender um pouco da ala oposta. Há muitas senhorinhas de pouca renda e muita idade, que precisam de alguma colaboração para não sofrer despejos. Em contrapartida, quase não consomem água, usam pouco elevador, demandam mínimas vezes a pouco presente zeladoria fornecida pelo proprietário e, dessa forma, uma mão lava a outra com um pouco de boa vontade. Mas há também a turma que não paga porque sabe para quem chorar e não correr riscos de demandas judiciais, e aí a porca torce o rabo.

É exatamente uma dessas personalidades que é dada a visitar os apartamentos dos pagantes para solicitar alguns estipêndios, para encarar despesas emergenciais (mais especificamente, suas vontades transformadas em necessidades, se é que vocês me entendem). Um dos frequentados habituais sou eu, que sou abordado com aquelas jaculatórias costumeiras: leitinho das crianças, “açuquinha” das crianças, remedinho das crianças, gás...

“Gás?! Como assim, gás?” – manifestei-me certa feita. “O prédio tem gás encanado. Quer dizer que você está usando botijão???”

“Ah, é que a minha tubulação estragou, e o dono ainda não mandou consertar” – redarguiu mentindo. O fato é que, dadas às contas vencidas, seu gás foi cortado. Marotamente, a indigitada conseguiu um botijão, não se sabe onde. O problema é que também o gás do botijão acaba, e já é preciso repô-lo para dar asas à criatividade culinária. Se fosse pedida ajuda para pagar as contas em momento aflitivo, eu poderia até cotejar a hipótese. Mas, diante do risco no uso do botijão e do aplique, mandei-a educadamente procurar o papa, ou seja, o proprietário.

Passou um bom tempo, face à recusa, até receber novamente sua visita missionária. A cena é a seguinte: estou com o apartamento quedado silente, em decúbito dorsal no sofá da sala, solitário que me encontro certa tarde, e ouço a inconsueta campainha. O guardião Homem-Cueca ameaça latir, com seu trote aparvalhado de cavalo bravo, e o permito, para que se passe a impressão de ausência humana. Ao contrário do cachorro, chego sorrateiramente à porta e observo pelo olho mágico, e percebo a silhueta imprecisa, porém inequívoca da retro citada figura, desta vez acompanhada por mais dois pequenos vultos: seus filhos. Compreendo de pronto seus propósitos, enterneço-me pelas crianças, mas detecto a jogada suja e mantenho-me oculto. Haverá quem lhe ajude, penso eu, já cansado de ser engabelado.

Mas o mundo não cansa de dar suas voltas, e pouco depois da experiência chega de volta da rua a minha esposa, com o cenho carregado, e logo trata de soltar os marimbondos retidos em sua boca:

“Adivinha quem voltou a atacar? A S***, que veio vender os filhos para pedir dinheiro” – vociferou, feérica e acidulada. “Vender os filhos” é a expressão utilizada pela cara-metade para nominar a intenção de comover e desarmar as defesas da intentada contribuinte. Tudo isso seguido de algumas considerações pouco louváveis (e transcrevíveis) acerca da personalidade da requerente. Dei de ombros, falando que a vida é assim mesmo, e que o máximo que podemos fazer é reclamar para o papa (o proprietário), já sabendo da inutilidade do ato.

Não vou fazer juízo sobre a causa, nem dissertar sobre a mesquinhez de minha atitude, que assumo de pronto. Não falarei também sobre as motivações sociais e antropológicas de tantos pedidos de dinheiro (sempre dinheiro em espécie – não serve a mercadoria leitinho, nem o produto “açuquinha”), nem imputar à crise as mazelas da ilustre, até mesmo porque as vindicações vem desde o tempo em que as coisas andavam de vento em popa. O fato é que usar seus filhos para contar uma historinha triste é o que conhecemos como falácia do apelo à misericórdia, também conhecida pelo pomposo nome de argumentum ad misericordiam.

Um choro é sempre argumento convincente

O apelo à misericórdia é uma boa e velha falácia de dispersão e relevância, no sentido de que dar motivos à piedade pode constituir argumento convincente, mas que foge à lógica de uma proposição. A verdade da asserção investigada é a seguinte: não há disponibilidade de dinheiro porque aquele que existia foi gasto com coisas outras que não leitinho, “açuquinha”, remédio ou gás – e com isso todas essas coisas essenciais acabam por fazer falta. Apelar para a misericórdia é útil neste caso porque produz um desvio desses motivos menos louváveis – e reais.

Ser misericordioso não é um mal em si. Podemos observar que em quase todas as justificativas para ações sociais há alguma forma de apelo à misericórdia, e isso nem sempre é falacioso. A coisa acontece quando a retórica embute um argumento que despreza a lógica e a razão para unicamente jogar com o sentimento de dó das pessoas. Tipo assim: jogo mal demais uma partida na minha academia de truco, fazendo minha trinca perder todos os frangos disponíveis naquela tarde infeliz. Digo aos camaradas para que não me culpem, porque estou com a cabeça cheia do trabalho, com problemas em casa e blá-blá-blá. Meus amigos podem até sentir pena, mas o fato é que perdemos porque eu joguei mal. Todo o resto é acessório. Mas é claro que um mendigo vai sempre apelar para o sentimento de piedade, porque precisa de uma resposta imediata para suas necessidades, e deve mesmo fazê-lo – é o que funciona. Mas os motivos de sua fome vão muito além de sua situação atual. E é isso que precisa ser bem discutido.

Se existe o apelo à misericórdia, é porque existem motivos para usá-la. Isso significa que temos um mundo ao nosso redor que produz necessidades de misericórdia. Vivemos em um sistema capitalista, no qual a existência de miseráveis é inevitável. Vejam bem, não estou aqui tecendo uma crítica, mas fazendo uma constatação. Todos aqueles que não se encaixam no molde, ficam excluídos. Não são somente os pobres, preguiçosos, desidiosos e vagais que se inserem nessa lógica, mas todo aquele que não tem condições mínimas de competir, por n motivos: deficiências, doenças, habitar em regiões mais retiradas, idade... E também condições menos louváveis, como sexo e cor. Não adianta querer tapar o sol com a peneira, estes fatores influenciam as escolhas daqueles que assinam o cheque. Mas vou falar um pouco melhor sobre isso em outro tópico, aguardem.

Outra coisa: não adianta ver o mundo em preto-e-branco, como dissertei no texto sobre a falsa dicotomia. O comunismo, que seria a instância dialética oposta ao capitalismo, não deu certo. Isso é fato e não adianta reclamar. Isso significa que é a única alternativa possível? Não! Isso significa que as opções são o feudalismo e o tribalismo, como em tempos ainda mais pretéritos? Também não. A resposta pode estar no próprio capitalismo, um sistema que não prescinda do lucro e da riqueza, mas que não deixe de fora tanta gente. Neste sentido, os programas de inclusão social são imprescindíveis. Eles podem conter defeitos, é verdade, e cabe à sociedade como um todo se sentar à mesma mesa e discutir ajustes nos seus rumos. Há uma frase famosa que diz que não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar. O diabo é que às vezes não adianta saber pescar, é preciso ter acesso ao rio. Senão, só se poderá pescar nas bancas de peixes dos outros, compreendem?

Mais ainda: vivemos em um mundo acelerado, com relacionamentos que se iniciam e se encerram em um clique de mouse, da noite para o dia. Tudo vai tanto na base da superficialidade que temos um sentimento de pertença muito tênue. Essa espécie de falta de acolhimento nos coloca fragilizados diante de situações em que não nos encontramos como seres humanos, e, com isso, encaramos sintomas depressivos. Vivemos cada vez mais isolados, nós que hoje podemos nos comunicar instantaneamente com o mundo inteiro.

Por isso, o apelo à misericórdia é um sinal que precisamos saber interpretar. É muito raro alguém que não se sinta humilhado em fazê-lo, ao contrário do que tendemos a pensar. Quem pede tem necessidade, sendo esta justa ou injusta. É muito mesquinho de nossa parte achar que todos os que pedem auxílio estão lá porque querem, porque escolheram essa via. Eu mesmo assumo, como já fiz neste texto, que muitas vezes vejo antipaticamente tanto quem me pede na rua, quanto quem faz reinvindicações. É um modus vivendi que nos leva a isso. Estamos convencidos de que existe ameaça na inclusão, de que serão tirados nossos lugares, que pagaremos pelos outros. Enquanto isso ocorrer, existirão apelos à misericórdia não falaciosos.

Recomendação de leitura:

Ariano Suassuna, em sua obra principal, detecta o uso de apelos à misericórdia profusamente, principalmente no desfecho da obra, onde Manuel vai mostrando racionalmente a impossibilidade de salvação de todos os personagens, e a Compadecida vai, um a um, demonstrando como isso pode ser feito através da misericórdia. Duas frases impagáveis:

“Se a senhora continuar a interceder desse jeito por todos, o inferno vai terminar como disse Murilo: feito repartição pública, que existe mas não funciona”.

“Ele diz a misericórdia porque sabe que se fôssemos todos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada”.

É sensacional. Existe a versão cinematográfica, mas há muito de crítica que fica excluído nessa versão. Corram atrás do livro.

SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2014.

* As ruas do triângulo compõem um conjunto de vias circunscritas à Rua Direita, Rua XV de Novembro e Rua São Bento, que compreendem uma forte concentração comercial durante o dia. Para maior segurança dos transeuntes, o trânsito de veículos foi restringido, há um bom tempo, ao transporte essencial de mercadorias e prestação de serviços públicos. O nome deriva do óbvio motivo de formarem um triângulo, como pode ser observado no mapinha abaixo. As ruas interiores e suas adjacências também estão assinaladas com a mesma característica. Para quem não é de São Paulo, acesse o endereço abaixo para entender como é:

quarta-feira, 1 de junho de 2016

A dialética entre os hemisférios cerebrais e o Intérprete - propostas para explicar a síndrome das falsas memórias e outras peculiaridades mentais

Olá!

Ao cabo do texto em que falei sobre a síndrome das falsas memórias, prometi trazer apontamentos complementares sobre o tema. Afinal de contas, os pesquisadores que detectaram tal fenômeno levantaram teses sobre o modo como o mesmo acontece (a reconstrução da memória com peças equivocadas), mas outros cientistas procuraram determinar o porquê de tal fato ocorrer. Vamos a eles?


De cara, informo que nenhuma das observações que se seguirão é conclusiva, permanecendo no campo do hipotético. Afinal de contas, trata-se de neurociências, um campo ainda novo e com um universo inteiro por desvendar. Não me lembro se vi na TV, se ouvi no rádio ou se li em algum lugar, mas algum cientista certa feita falou que hoje em dia sabemos quase tudo sobre o coração, e quase nada sobre o cérebro. De fato, o nível de complexidade entre ambos tem a diferença de um abismo, sem desmerecer nenhum dos dois. O coração é basicamente uma maquininha, cujas panes são bem conhecidas: excessos de gorduras que obstruem as artérias, enrijecimento dos vasos, necroses causadas por infartos, arritmia, disritmia e outras deturpações do ritmo e etc. Mas alguém poderá dizer: “Seu parlapatão! Se o coração é uma mera maquininha, o cérebro não passa de uma maçaroca pouco mais consistente que um pudim”. É verdade, mas é um pudim por onde corre a consciência e o pensamento, coisa que o coração, burrinho, burrinho, só faz na lírica dos poetas.

Pois bem. Como já dissertei neste texto, importante para a compreensão geral do que escrevo agora, o cérebro não aceita bem a exposição a um fato, acontecimento ou conhecimento do qual há uma discrepância entre o percebido e o processado em seu interior, a dissonância cognitiva. Com isso, há a possibilidade de erro, porque temos uma pressão interna para ajustar estes dois panoramas. O resgate de memórias pode ajudar o cérebro a acomodar a dissonância, mesmo que a custa da coerência da cognição. É o que acontece quando, por exemplo, vemos uma pessoa que nos cruza na rua e começa a nos cumprimentar insistentemente. Pode ser que nunca tenhamos visto de fato a pessoa, mas se ela acertar seu nome porque o leu no crachá (que você nem percebeu que estava pendurado no pescoço), você vai buscar na memória algum rosto semelhante, e poderá mesmo ficar convencido de que conhecia o tal transeunte.

Mas o problema continua, porque essa é só mais uma constatação do resgate indevido das memórias. Não entendemos muito bem porque o cérebro se força a encontrar uma solução para a situação desconfortável. Bastaria, mui simplesmente, conformar-se em não recordar a pessoa, mas aquele sentimento de aflição fica remoendo em nosso interior, até que o girar do mundo nos faça esvaí-lo ou achamos outra solução mental, como o erro cometido acima. Essa propensão em forçar a barra para dar um desfecho tem algumas hipóteses interessantes, muito embora, conforme já cuidei de estabelecer, estejam ainda no parque de diversões teórico. Prossigamos.

Vilayanur Ramachandran é um neurocientista indiano que investigou pacientes com deficiências motoras e cognitivas derivadas de acidentes vasculares cerebrais. Um dos reflexos mais comuns é uma doença chamada hemiplegia, que consiste na paralisia de um dos lados do corpo. Como já sabemos, o controle dos movimentos corporais é cruzado: o lado direito do cérebro é responsável pelos sentidos e movimentos do lado esquerdo do corpo e vice-versa. Há estranhos casos em que o paciente nega, com veemência, os sintomas de sua paralisia, em um fenômeno denominado com o trava-línguas anosognosia, construção vinda do grego (“a” – negação; “nosos” – doença; “gnosis” – saber). Desta forma, por mais evidente que sejam as sequelas motoras causadas pelo AVC, o paciente as nega, como se nada houvesse acontecido, em clara distorção da realidade. E o mais estranho de tudo é que isso somente ocorre a pacientes com lesão no hemisfério direito do cérebro, e consequentemente com hemiplegia do lado esquerdo. Obviamente foram descartados os casos em que outras faculdades mentais tenham sido afetadas – mesmo indivíduos cuja única sequela tenham sido motoras eram candidatos a desenvolverem agnosognosia.

A tese de Ramachandran é que os hemisférios cerebrais têm especialização no que diz respeito à absorção e processamento da realidade. Para ele, o hemisfério esquerdo é aquele que armazena os modelos estáticos do mundo. É nele que estão guardados os paradigmas de como tudo deve ser. No exemplo do amigo desconhecido, é nele que está sedimentado que eu devo conhecer uma pessoa que me cumprimenta e me chama pelo nome, porque esta é uma regra geral bem estabelecida – só me chama pelo nome quem me conhece. Portanto, o lado esquerdo do cérebro (em estranho paradoxo com a política) é conservador, porque procura manter o modelo mental a qualquer preço, mesmo com distorções. Já o hemisfério direito é progressista, afeito a mudanças. É a partir dele que surgem as hipóteses de modificações dos paradigmas que temos em nossa cabeça. É dele que vem o impulso para não reconhecer a pessoa que me cumprimenta e acrescentar essa possibilidade ao rol de hipóteses. Esse embate entre os modelos estabelecidos pelo lado esquerdo e a revisão constante do lado direito é que nos possibilita aprender e estabelecer novos conceitos, sem, no entanto, perder o juízo crítico e a segurança do que já sabemos.

E o que ocorre no caso da agnosognosia? Ramachandran entende que, estando desativado o lado direito do cérebro, que “cutuca” insistentemente o lado esquerdo para repropor uma estrutura mental que se modificou (no caso, a paralisia de um lado do corpo, até então inexistente), este último não consegue se desvencilhar do modelo anterior e estabelecer uma nova lógica para a realidade, e a consequência final é a sua distorção, no caso, através de sua negação. Coisa de maluco, né?

Mas a coisa não para por aí. Depois das conclusões de Ramachandran, outros neurocientistas procuraram aprofundar estes estudos para compreender como se dá esse “embate” (confabulação, no jargão técnico) entre ambos os hemisférios cerebrais, onde há destaque para o norte-americano Michael Gazzaniga e seus colaboradores, que investigou pacientes com o cérebro dividido, que consiste mais ou menos no seguinte:

Como é possível supor pelo descrito até agora, o reacionário hemisfério esquerdo e o revolucionário hemisfério direito debatem entre si, e, para tanto, é necessário que exista algum canal de comunicação. Esse meio é constituído por um conjunto de milhões de fibras nervosas, chamado de corpo caloso, que fica enfiado na fissura longitudinal. Em pacientes onde o corpo caloso é inutilizado por uma intervenção denominada calosotomia (normalmente para produzir aplacamento de sintomas graves de epilepsia), temos uma condição conhecida pela comunidade científica como split brain, cérebro dividido. Através de estudos nesses pacientes, foi possível observar como o cérebro possui não só uma divisão dialética entre manutenção e revisão de modelos, mas também uma série de especializações divididas em módulos, sendo que alguns estão no lado esquerdo (como o domínio da linguagem), outros no direito (como a noção de espacialidade). Um desses módulos se encarrega justamente de fazer a ligação entre os demais módulos, e é forçado a fazê-lo sempre, ainda que com elementos destoantes entre si. Esse módulo foi chamado por Gazzaniga de intérprete, e está localizado no lado esquerdo.

Como foi deduzida a existência desse intérprete? Através de um sem-número de testes, que tinham por princípio básico a diferença de comportamento entre os dois hemisférios. É sabido que as pessoas que tem o corpo caloso cindido, por vezes, apresentam comportamentos inesperados, como realizar com uma das mãos alguma atividade totalmente discrepante da outra, como tentar se vestir de um lado e se despir do outro. Parece engraçado, mas só na ficção. Dependendo do lado do corpo em que uma sensação é obtida, a reação do hemisfério correspondente é diferente do que seria se o hemisfério oposto a tivesse recebido. Os testes, portanto sempre se baseiam em produzir um estímulo em um lado do corpo – tátil, visual ou auditivo – sem permitir que a mesma sensação seja percebida pelo outro. Por exemplo: para expor um quadro ao cérebro esquerdo, tapa-se o olho esquerdo e deixa-se aberto apenas o olho direito. Pelo cruzamento dos nervos, temos o cérebro esquerdo ativado e o cérebro direito inibido. Vice-versa também vale.

Vamos agora pensar em um bom exemplo para que a coisa fique simples. Imagine uma atividade corriqueira, como o ato de se lavar o carro. Alguns passos são absolutamente típicos, como tirar o carro da garagem, separar o sabão e as flanelas para secagem, encher um ou dois baldes com água, esfregar, remover o sabão, secar e guardar o carro novamente, esvaziar os baldes e guardar tudo em seu lugar. É um roteiro do qual não há muito como fugir, estabelecendo uma certa estrutura sequencial da qual realizamos um mapeamento no cérebro, na medida em que adquirimos essa experiência. Claro que algumas circunstâncias inesperadas podem ocorrer, como a constatação de que não há panos disponíveis, ou que há premência de chuva, mas o desenho geral da tarefa está bem descrita. Agora imaginem que a lavagem do carro não será efetivamente realizada, mas apresentada em fotos para uma pessoa com cérebro dividido. Tapamos o olho direito, deixando apenas o olho esquerdo disponível e apresentamos ao cérebro direito a seguinte sequência: Carro na calçada, lavar, enxaguar e secar, apenas isso. Em seguida, tapamos o olho esquerdo e apresentamos a mesmíssima sequência ao cérebro esquerdo. Até aqui tudo bem?

O próximo passo será apresentar novamente um conjunto de fotos para cada hemisfério, com a diferença vital de que, desta vez, adicionaremos outras etapas na sequência, algumas que fazem sentido para o desempenho da tarefa, outras não. A pergunta será: quais das fotos que serão apresentadas agora foram exibidas também na primeira sequência? Digamos que a nova sequência apresentada seja a seguinte: carro na calçada, encher os baldes, lavar, enxaguar, dar uma pirueta e secar. Na média, o cérebro direito reconhecerá efetivamente apenas as fotos que constaram da primeira sequência, e descartará as fases de encher os baldes e dar uma pirueta. Já o hemisfério esquerdo tenderá a reconhecer o enchimento dos baldes como uma das fotografias apresentadas, e descartará apenas a pirueta.

Por que isso acontece? Pelo que deduziu Gazzaniga (lembrando que foram vários os testes realizados, alguns muito mais complexos que o tolo exemplo acima), o cérebro direito é literal e não procura fazer interpretações, limitando-se a registrar o que percebe. Já o cérebro esquerdo possui um módulo que cuida de costurar logicamente os elementos que lhe são disponibilizados, procurando desesperadamente acomodá-los ao esquema. Como faz todo o sentido encher os baldes para lavar um carro, o hemisfério esquerdo encaixa esta etapa no processo como um todo; o mesmo não ocorre com a pirueta, totalmente desencaixada do contexto, e, dessa forma, descartada.

Se as teses de Gazzaniga e colaboradores estiverem corretas, o módulo de interpretação pode ser a solução para o problema das falsas memórias apresentado por Elizabeth Loftus. Essa necessidade atávica de coordenar as impressões e preencher as lacunas existentes parece ser suprida com o aproveitamento de outras experiências gravadas, não pertencentes ao contexto, mas logicamente inseríveis ao mesmo. E dessa forma a nova amarração faz todo o sentido, mesmo sendo irreal.

Finalmente, a causa da localização do intérprete no hemisfério esquerdo parece estar ligada ao fato de que a sede da linguagem esteja situada nele. De fato, as noções de espacialidade podem estar no lado direito (o que explica sua literalidade), mas um fenômeno recorrente nos pacientes de split brain é a dificuldade de se exprimir através da linguagem quando estimulados apenas à direita. Mesmo compreendendo o que vê, não se consegue expressar através de palavras, utilizando-se de outras ferramentas para fazer suas indicações, como o uso de gestos. O mesmo não ocorre com o hemisfério esquerdo, mas, dada a coletânea de alternativas disponibilizadas pela linguagem, há um enriquecimento muito grande nas hipóteses possíveis para preencher as lacunas existentes em um determinado processo.

Difícil, né? Mas nem tanto. Um fenômeno complexo tem um explicação trabalhosa, e, mais uma vez repito, ainda não definitiva. E a partir daí, muitas outras elucubrações e propostas de resolução de outros fenômenos vão surgindo. Pode ser, por exemplo, que o conservadorismo do lado esquerdo, previsto por Ramachandran, e a presença do intérprete do mesmo lado, previsto por Gazzaniga, expliquem a questão da mente descontínua (da qual já falei também). Um cérebro adaptado a ver um mundo concreto não consegue buscar modelos opostos ao que consegue perceber, e com isso não possui conhecimento suficiente para repropor medidas gigantescas ou diminutas, minimizando o reconhecimento de processos. O mundo fica limitado ao observável e com pouca possibilidade de ser reinterpretado. Nesse sentido, é bom aprender um pouco a lição de Descartes, que imputa ao raciocínio um caminho para descobrir coisas que vão além dos nossos sentidos.

Recomendações de leitura:

O forte para ler desses autores são os artigos científicos, mas há muita coisa elucidativa nos livros abaixo:

RAMACHANDRAN, Vilayanur S.; BLAKESLEE, Sandra. Fantasmas no cérebro. Uma investigação dos mistérios da mente humana. São Paulo: Record, 2004.


GAZZANIGA, Michael. O cérebro social. A descoberta das redes do pensamento. Almada: Instituto Piaget, 1995.