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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Sobre labirintite e a falseabilidade como demarcadora das Ciências (ou: um texto mais elaborado sobre Popper)

(Por que a Ciência traz resultados discrepantes entre si? O que faz com que uma atividade possa ser considerada científica?)

Olá!

"Vamos iniciar. Entre na cabine, feche a porta e coloque os fones. Você ouvirá alguns ruídos de frequência que variarão de intensidade e tom. Avise apenas se ficar insuportável".

"Agora, você ouvirá diversos sinais de intensidade diferente, primeiro no ouvido direito, depois no esquerdo. A cada vez que ouvir um destes sinais, aperte o botão do aparelho, mesmo que seja bem baixinho".

"Vamos agora fazer algo semelhante, só que com palavras. Eu direi uma palavra e o senhor a repetirá, a não ser que não a entenda. Não arrisque acertar; se não compreender, simplesmente não responda. Criança… tijolo… papel… (inaudível)... laranja… quadro… (inaudível)... ovelha… Somente monossilábicas agora: cão… giz… luz… mãe… sol… flor… lei. Tudo bem, pode sair da cabine e sentar na poltrona. Vou colar eletrodos em seu rosto”.

"Observe esta barra. O senhor acompanhará as luzes vermelhas que acenderão diversas vezes, às vezes à direita, às vezes à esquerda. Faça isso apenas com os olhos, sem mover a cabeça. Depois, faremos o mesmo para cima e para baixo".

"Neste momento, perceba que há um ponto vermelho na parede. Vou reclinar a poltrona e rotacionar sua cabeça para a direita. Em seguida, vamos voltar para a posição original e o senhor fixará seu olhar naquele ponto, evitando piscar por trinta segundos. Em seguida, faremos a mesma manobra para a esquerda".

"Vou agora fazer estímulos calóricos nos seus labirintos. Primeiro, faremos soprar ar frio em ambos os ouvidos. Depois faremos o mesmo com ar quente. Relate qualquer incômodo que sentir".

"Está concluído. Seu laudo estará disponível em trinta minutos. Passar bem".

Impedanciometria, audiometria tonal e vocal, nistagmo optocinético e pendular e o palavrão vectoeletronistagmografia, mais facilmente chamado de VENG. Essa é a batelada de exames que me passaram para tentar diagnosticar labirintite, que ameaçou me alcançar no episódio que relatei para vocês neste texto.

Peguei esse pacote todo e fui numa especialista em vertigens, que vaticinou: "você tem uma perda auditiva moderada no ouvido esquerdo. E com relação à labirintite, o resultado é inconclusivo. Passar bem".

Apesar da surdez ser o ápice de um processo degenerativo irreversível, é com uma ponta de altivez que recebo o diagnóstico. É como se fosse uma cicatriz de guerra, que mostramos aos nossos netos como prova de nossa coragem. Mas a minha batalha não envolvia fuzis e bazucas, mas guitarras e baterias. Eu já contei minha história musical, então não vou repisar tudo de novo, bastando que os prezados leitores leiam os seguintes textos (se quiserem): um, dois, três e quatro. A banda na qual eu passei mais tempo e produzi mais e melhor foi o Exílio, típico comboio de duas guitarras, baixo e bateria, com os vocais sendo exercidos em revezamento. Embora as ideias pululassem na cabeça e nas mãos, não tínhamos orçamento que prestasse, mas, como nem tudo é desgraça, o guitarrista-base era eletrônico, então conseguíamos fazer renascer velhos equipamentos que os fregueses deixavam de lado. Com isso, tínhamos instrumentos abaixo da crítica, mas os amplificadores e caixas não iam mal.

Formamos uma parede sonora bastante respeitável no auge. Um amplificador a transistor de 500 watts de potência real alimentava um woofer e duas cornetas próprios, que eram bons para baixo e vozes, e mais uma caixa acústica daquelas com base de concreto, pesadíssima, um inferno para carregar. Ela era alimentada por um amplificador valvulado, daqueles que só dão aquele delicioso fuzz típico dos hardões que tanto amávamos quando seu volume está devidamente arregaçado. O resultado é que qualquer passagenzinha de som fazia as paredes tremerem, para nosso gáudio e desespero da vizinhança. Se um artefato de tijolo e cimento é abalado, o que não se fará com as frágeis membranas de um tímpano perfurado já na infância.

Ah, sim, preciso contar essa também. Eu-menino, assim como qualquer guri da minha idade, imitávamos nossos pais no que eles tinham de pior. O meu velho gostava de limpar os ouvidos com o mesmo palito de fósforo com o qual acendia seus cigarros, para impaciência da minha mãe. Um dia resolvi fazer o mesmo, do alto dos meus quatro anos. Sabedor da censura certa, fui limpar meus ouvidos escondido atrás do tanque, só que com um palito de dentes. O resultado foi a perfuração, a correria para o médico e a posterior sova, tão expressiva de uma época.

Portanto, no final das contas, passa pela cabeça da gente aquele orgulho besta de quem tem uma história por trás da moléstia, uma história gloriosa, invejável até, que nos tira do lugar comum e nos dá uma distinção, e não um mero arrependimento de não ter feito exercícios regularmente.

Só que para além da proto-surdez havia a tal labirintite. Não fiquei feliz de não saber a causa exata das minhas tonteiras. Toda a narrativa que abre este texto demorou uns 40 minutos, e embora nem de longe tenha sido o pior exame que eu já fiz, não dá para dizer que virou um programa a ser repetido por prazer. E o que é pior: falta de diagnóstico representa tratamento claudicante, meio que na base da tentativa e erro. Por enquanto, só tenho a recomendação de evitar daqueles fones intra-auriculares e maneirar com volumes altos. Também devo ficar atento com alterações perceptivas com certas comidas e bebidas, e ça tout. Passe bem e volte se piorar.

Mas aqui cabe lembrar que a medicina está no campo da Ciência, e, por conta disso, os médicos, cientistas que são, não têm certezas. Quem tem certezas são curandeiros, pajés e outros ofertadores de curas milagrosas que multiplicam os dólares em programas de tevê. Com o resultado que tão bem conhecemos.

Mas se a Ciência se diz tão rigorosa com provas e experimentos, por que suas conclusões são tão imprecisas, por que seus resultados são tão variáveis, por que o que vale hoje não vale mais amanhã? Já notaram quantas vezes o ovo fazia mal, para depois fazer bem?

Para responder bem a esta pergunta, vou precisar retomar um antigo texto deste espaço (esse aqui) e formulá-lo melhor, com mais detalhes. Ele foi bom, mas todas as vezes que eu o releio, sinto falta de informações que o situam mais precisamente no tempo e na atual maneira de fazer Ciência. Chegou a hora, vamos nessa. Mas calma, não vou reescrever o projeto da roda.


Seria inviável resgatar historicamente toda a história das ideias científicas, porque eu teria que remontar à mais antiga das antiguidades do pensamento. Basta aqui relembrar as ligações do racionalismo com as deduções e do empirismo com as induções. No primeiro caso, temos a primazia do raciocínio na resolução dos desafios científicos. O Racionalismo prega que a Ciência é formulação, obtida a partir de um processo dedutivo que reduz a realidade a enunciados e axiomas capazes de estabelecer uma verdade universal e necessária. O Empirismo, por sua vez, estabelece que a Ciência tem como base a observação dos fatos através de experiências repetidas, produzindo abundante material observacional, porque se impacta pela maior oferta de experimentação, tornando-se mais firme a partir de mais casos analisados, em um processo francamente indutivo.

O grande problema é que ambas as concepções carregavam consigo dificuldades inerentes. O Racionalismo faz com que a Ciência nunca se descole da Metafísica, porque, embora a expressão matemática e a formulação lógica sejam úteis e necessárias, não se pode chegar a resultado algum sem que se olhe para o próprio cosmos. Já o Empirismo sofre de uma doença já detectada pelo próprio David Hume, um dos seus defensores: o problema da indução. Para que esta funcionasse a contento, precisaríamos de um universo estático e com visão da totalidade das coisas; do contrário, sempre poderemos ter um caso particular que divirja da generalização obtida. Uma indução é sempre incompleta.

O que há de comum em ambas as concepções? De uma forma ou de outra, ambas tentam retratar a realidade. Seja pela via da racionalização, seja pela via da observação, ambas buscam representações do cosmos que nos cerca, e entendem que seu objetivo é obtê-lo de maneira precisa.

Entretanto, desde Kant tornou-se consensual que a racionalidade existe, participa do processo cognitivo, mas que não é nada sem os conteúdos empíricos. Dessa forma, toda a Ciência que se praticou daí por diante deu grande ênfase ao processo indutivo, aquele que é extraído da experiência direta. Por esse motivo, a premissa básica da metodologia científica que imperou desde o Positivismo foi a verificabilidade. Proposta científica, portanto, é aquela que pode ser provada.

Isso andou nesses passos até o início do século XX. Eram épocas onde a Filosofia da Ciência era fortemente influenciada por três sendas: o Neopositivismo do Círculo de Viena (Wiener Kreis), a Filosofia Analítica e, um pouco mais tarde, a marxista Escola de Frankfurt. Karl Popper, pai do atual método científico, era contrário às três, embora seja vinculado pelos historiadores da Filosofia à primeira por questões de naturalidade. Dos frankfurtianos, dizia defenderem teorias sem cientificidade. Aos analíticos, reservava a crítica de que não somente as palavras são capazes de sustentar a Filosofia e, principalmente dos Neopositivistas de Viena, entendia que o critério de verificabilidade era insuficiente para tornar a metodologia científica de então algo que verdadeiramente traduzisse as reais possibilidades de conhecimento.

Estes filósofos eram assim chamados porque retomavam o princípio geral do Positivismo, que dizia ser apenas o conhecimento científico aquele verdadeiramente válido. Isso colocava qualquer outra forma de conhecimento, inclusive filosofias ligadas à Metafísica, no plano do pensamento inútil. Estabeleceram um critério para diferenciar as Ciências dos demais campos do conhecimento: Ciência era o conhecimento verificável. Tudo o mais eram conjecturas sem valor de verdade.

Com relação aos princípios científicos em voga, já havia uma série de críticas ao mecanismo indutivo tão caro ao círculo de Viena. Popper relembra do exercício mental do peru indutivista de Bertrand Russell, que usa do sarcasmo para demonstrar a deficiência do método. Ele é mais ou menos assim: imaginem que um jovem peru tenha chegado no começo do ano a uma granja. Ao receber seu alimento, percebe que ele foi dado às nove horas da manhã. Todos os dias a mesma experiência se repetia - nove horas, ração colocada. O acúmulo de repetições por dias e meses fez com que o peru indutivista conseguisse estabelecer uma regra, e que poderia esperar sua quota de alimentação todos os dias no mesmo horário. Pena que ele percebeu isso no dia 24 de dezembro, véspera de quando ele deixaria de ser alimentado para virar alimento.

A ironia de Russell não é gratuita, porque de fato estamos diante de uma base frágil demais se a pretensão é calcar a verdade, como queriam os positivistas lógicos. Basta uma única ocorrência discrepante para que toda uma teoria seja derrubada. Acompanhando esse raciocínio, Popper ensina que a indução simplesmente não existe, ao menos como geradora de certezas. Ele dá dois exemplos que se tornaram clássicos: sempre se poderá dizer que todos os cisnes são brancos, até se encontrar um que seja negro, e também que todas as moléculas de água serão compostas por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, o que não pode ser uma certeza fechada até que se consiga verificar TODAS as moléculas de água do universo.

Outra crítica dizia respeito à suposta neutralidade do pesquisador. Segundo os vienenses, o cientista deveria se despir de todo juízo prévio antes de realizar suas observações, como na tabula rasa de John Locke. Popper chama essa atitude de observativismo, e dizia que a neutralidade almejada era um mito. A mente de qualquer pessoa não é um papel em branco, mas um quadro-negro, repleto de sinais deixados pelos usos anteriores. Percebem como ficam as lousas apagadas das aulas anteriores? Mesmo sem os riscos de giz, há tantos traços e resíduos que podem mesmo atrapalhar a compreensão da próxima lição que será escrita. Essa metáfora indica que estamos plenos de traços culturais, concepções já absorvidas, informações adquiridas desde o nascimento e, obviamente, preconceitos, em qualquer sentido que se pense. Não há como impedir que toda esse patrimônio preexistente se imbrique com o novo conhecimento pretendido.

Como há toda essa carga cognitiva e cultural já embutida não somente no pesquisador, mas em qualquer ser humano, toda observação nasce não como uma mera atividade, mas como um problema, no seu contexto negativo mesmo: uma perturbação a uma ordem preestabelecida que precisa ser resolvida. Sempre teorizamos as resoluções dos problemas, não há algo como uma mente pura que observa um fenômeno como se fosse uma criança.

Mas então, Popper pensa que a ciência é impossível? Não, apenas que precisa mudar seus próprios paradigmas, o que implica em ajustar sua metodologia e seu objetivo final.

Popper dá a letra de sua filosofia: qualquer quantidade de observações que confirme uma teoria não servirá para prová-la verdadeira, mas uma única observação que a contradiga torná-la-á falsa. Então é isso que um procedimento científico deve procurar - meios de falsificar uma teoria, de provar que ela está errada, e não de confirmá-la.

Como uma experiência de cunho científico nasce de um problema, a sua resolução envolve sempre uma proposta que precisa ser averiguada, uma concatenação lógica de ideias que pressupõe ser uma resposta ou, em uma só palavra, uma hipótese. Hipótese é um termo de origem grega que significa algo como "estar abaixo de uma posição". A hipótese não é uma solução definitiva, mas o nascedouro de uma tese.

Quando um cientista estabelece um objeto de observação, não abrirá mão do processo indutivo. Ele vai utilizá-lo até chegar a um ponto em que o estudo de casos particulares permita estabelecer uma hipótese. É neste ponto, no entanto, que o processo investigativo se estabelecerá. Ele já tem uma premissa universal estabelecida pela hipótese, e seu objetivo será não mais criar uma coleção de casos particulares, prosseguindo assim com o caminho indutivo, mas procurará pontos em que essa sua hipótese será provada falsa. Ele não procurará novos cisnes brancos, mas os cisnes negros. Ele vai combater a própria hipótese, e a cada vez que ela resistir, mais e mais consolidada se tornará. Esse é o seu novo método científico, conhecido como hipotético-dedutivo.

Mas e se a hipótese for falseada? Neste caso, será descartada e uma nova hipótese deverá ser criada. Em casos menos decisivos, no mínimo a hipótese deverá ser corrigida. E isso dá o tom geral na nova Ciência: ela precisa ter a pretensão da verdade, bem como a consciência de sua inatingibilidade, de seu caráter provisório, de sua incerteza. Uma hipótese nunca é provada – o que ocorre é que uma experiência que a coloque a prova pode confirmá-la ou refutá-la. Se a confirma, pode fortalecê-la, mas jamais dar-lhe estatuto de verdade definitiva. Isso acontece porque há uma assimetria lógica entre a verificabilidade e o falseamento. É tipo assim: enquanto o time da verificação vai fazendo gols, ele vai ganhando o jogo; assim que o time da falsificação faz o seu primeiro tento, já ganha o jogo, mesmo que esteja 25 a 1. Para um time, o objetivo é fazer o máximo de gols possível e não tomar nenhum; para o outro, é só fazer unzinho, uma espécie de morte súbita.

Esse é o motivo pelo qual muda-se a demarcação da Ciência. Uma teoria somente pode ganhar o estatuto de científica quando receber o selo de falseabilidade. É um processo que garante claramente o alcance da ciência, bem como onde ela não pode chegar. Não tenta retratar a realidade como queriam tanto racionalistas quanto empiristas, mas aproximar-se dela, o mais possível e pelo maior tempo que der, mas sempre sujeita a ser revista no dia seguinte. O conhecimento gerado por ela não é verdade absoluta, mas verossímil. Nunca teremos teorias definitivas, mas precisamos desafiá-las. É por isso que conhecimentos metafísicos e religiosos costumam se dar mal com o princípio da falseabilidade. Quem prova Deus? Quem demonstra os anjos e as almas? Todas as vezes em que se tentar achar pontos de falseabilidade para teorias envolvendo disposições metafísicas, falhar-se-á. Mas ainda aqui há um certo respeito pela parte de Popper. Pior para ele são as pseudociências (mencionadas aqui), que se travestem de carapaça científica sem o serem. Ele coloca nesse balaio o Historicismo de Marx, a Psicanálise de Freud e a Psicologia Individual de Adler, porque sempre que são mostradas falsas, encontram modos de tergiversar. A Revolução Proletária não ocorreu porque ainda os camponeses e operários estão na alienação, os processos psíquicos sempre são passíveis de ser explicados pela neurose e pela sublimação, e o sentimento de inferioridade possui uma plástica que permite adaptá-lo a qualquer circunstância. As coisas que são apresentadas como contraprovas a essas teorias são todas absorvidas pela sua maleabilidade, como se fossem mistérios divinos. Tudo isso impossibilita pontos de falseamento. E gera inimigos.

Sendo assim, se não há resultado definitivo para meus exames de labirintite, nada mais me resta a não ser se conformar ou procurar outros especialistas que possam se pronunciar no assunto, como um neurologista, por exemplo. Não adianta esperar por um espírito que venha me rastrear os males da alma. Não no âmbito da Ciência.

É claro que, apesar de todo consenso que atingiu nas academias científicas de todo o mundo, as teorias de Popper não são imunes às críticas. Alguns outros filósofos da Ciência, como Paul Feyerabend e Thomas Kuhn, já teceram outras teorias para explicar como pode se dar o desenvolvimento da Ciência. Além disso, as Ciências Humanas tem dificuldades em apresentar pontos de falseabilidade, não porque eles sejam impossíveis, mas porque são difíceis de atingir, como eu já havia dito neste texto. E há uma última questão: qual é o ponto de falseabilidade da teoria da falseabilidade? Onde ela pode ser provada errada?

Para este último ponto, a resposta é simples. Por mais que envolva diretamente a Ciência e seus métodos, trata-se de uma questão filosófica, e não científica. Ela tem um nascedouro especulativo, propõe-se a tratar do fenômeno em sua essência e é todo coberto pela lógica, sem que se precise provar nada a seu respeito. É por isso que Filosofia e Ciência não são a mesma coisa e precisam ter escopos distintos. E há quem diga que a Filosofia não sirva para nada... Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

Impossível não fazer novamente remissão à magnum opus de Popper:

POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1993.

Mas também é possível adicionar outras leituras, como a coletânea de artigos que segue abaixo:

POPPER, Karl. O Mito do Contexto. Em Defesa da Ciência e da Racionalidade. Coimbra: Edições 70, 2016.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (35 - Ecologia)

(O que é Ecologia? O que é esse ramo da Ciência que tantos confundem com ativismo?)

Olá!

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Vamos falar de viagens frequentes. Eu não moro mais com meus filhos, e isso faz com que eu trafegue muito para lá e para cá. A filha mais nova mora em Taubaté, e saindo da capital, a paisagem é composta por longos morros usados para pastagens e plantações, principalmente. Em alguns deles, é possível verificar a presença de bosques, na maioria das vezes com árvores de tronco fino, o que indica que aquela terra era usada para bovinos, ficando exaurida. Com o passar do tempo, foi se recuperando e deixada sem mexer, fazendo crescer as manchas verdes*. Já o filho mais velho mora em Curitiba, e indo por terra corta-se uma boa parte da Serra do Mar, no Vale do Ribeira. Isso faz com que possamos ver trechos de floresta muito mais fechada, efetivamente intocada, especialmente pelas encostas íngremes que lhe são características. Em uma fina faixa mais próxima ao litoral, pode-se ver a cultura humana nos bananais e palmitais.

Então temos duas maneiras bastante distintas de como a humanidade lida com o meio natural. A leste, mesmo estando em área rural, a mão do homem está em toda parte: desde os cercados de arame, até a presença de animais estranhos à área geográfica. A oeste, ainda que a própria estrada seja uma obra humana, percebe-se um pouco mais de manutenção no meio original. E, no meio disso tudo, a Pauliceia Desvairada, onde praticamente nada dos recursos originais podem ser encontrados.

Em toda essa transição, nós vamos perceber diferentes níveis de intervenção do bicho homem na paisagem, ora de maneira mais predatória, ora mais integrada. Isso tudo faz com que o nosso território tenha uma cara muito diferente daquela que havia sob a guarda dos indígenas, quando seo Cabral ainda não havia aportado com os usos e costumes ditos civilizatórios, e daqui se fez uma nova morada aos europeus. Talvez um dos maiores símbolos da presença humana no planeta seja a casa, o lugar que marca onde alguém se estabelece e que lhe dá abrigo. Pensando concretamente, uma casa no horizonte demonstra a presença de um bípede implume nas cercanias, ainda que seja uma tapera perdida numa vastidão verde amazônica. A casa é a sede de onde nos relacionamos com o restante do meio ambiente, e por isso ela foi metaforizada para uma área do conhecimento bastante recente, que combina Geografia com Biologia, cujo nome é composto pela junção dos termos gregos oikos (casa) e logos (estudo). Estou falando da Ecologia.


Eu disse que a Ecologia é uma ciência recente, e isso não é de se admirar. Se levarmos em conta que sua definição é a “Ciência que estuda a interação entre os seres vivos e o ambiente onde eles vivem”, perceberemos que o elemento de desarmonia inserido nessa relação, a ação humana, começa a ser sentida mais fortemente a partir da Revolução Industrial, que ocorreu na Europa a partir dos fins do século XVIII. A aceleração exponencial dos métodos de produção fez com que os meios naturais fossem explorados a níveis altíssimos, suplantando sua capacidade de regeneração por si próprios. Essa mudança tão expressiva na paisagem habitual fez com que a atenção dos pesquisadores fosse voltada a ela pela primeira vez com uma visão especializada.

Nem é preciso ir tão longe. Eu tenho cinquenta e poucos anos, e me lembro bem que as prioridades governamentais nos tempos de eu-menino envolviam muito impacto na paisagem original. Eram tempos da usina de Itaipu, que submergiu Sete Quedas, da usina de Paraibuna que extinguiu os núcleos originais de Redenção da Serra e Natividade da Serra, do colosso da inutilidade chamado Transamazônica, das termonucleares de Angra dos Reis e outros desafios à capacidade de regeneração de nossa natureza. A resposta veio na forma de índices de poluição jamais vistos, resultando em desembocaduras nos humanos, como foi o caso das crianças anencéfalas de Cubatão. Já dizia uma daquelas frases que adoramos atribuir falsamente: a natureza não se defende, apenas se vinga. A atribuição pode ser falsa, mas diz uma verdade.

Há um pouco de confusão quando se fala de Ecologia. Muitas pessoas acham que é uma atitude, mais ou menos intransigente, de defesa da natureza. Não. Ecologia é estudo, é Ciência, e, como tal, procura ser o mais neutra possível. O que ocorre é que, ao se compreender as relações entre seres vivos e o meio, alguns dos estudiosos podem encontrar motivos para realizar a defesa dos meios naturais. Se não, a Ecologia continua sendo o que é: uma ciência que tem um objeto de estudo bem claro, uma metodologia de pesquisa delineada e tem condições de fazer previsões e receber falseamentos. Sobre ambientalismo, falarei melhor em outro momento.

Mas como o ecologista faz seus estudos? De que maneira ele observa seu objeto de investigação? Geralmente, a cadeia observacional do pesquisador é de formato piramidal na quantidade e concêntrico na abrangência, passando de uma abrangência mínima para outra que englobe toda a vida do planetinha azul tão judiadinho. Estes são os níveis clássicos de abrangência:

Organismo: sabemos que as espécies são o agrupamento de seres vivos que compartilham características comuns. Cada indivíduo dessa espécie é um organismo, o objeto mais atômico do estudo ecológico.

População: é o conjunto de organismos de uma mesma espécie que coexistem em um mesmo espaço físico, geralmente delimitados pela possibilidade de se realizarem entrecruzamentos reprodutivos, propiciando a troca de material genético entre estes indivíduos.

Comunidade: como sabemos, uma população não vive sozinha em um espaço físico. Pelo contrário, há muitas outras populações que concorrem e condividem os mesmos recursos, gerando interações que podem ser colaborativas ou predatórias. Esse conjunto de populações é o que chamamos de comunidade.

Ecossistema: até aqui, podemos notar que o olhar está voltado para a parte viva dos sistemas ecológicos. Mas eles não atuam por si só. Quando passamos a observar a porção abiótica e a maneira como se dá a troca de energia entre as duas esferas, passamos a chamar o objeto de ecossistema.

Bioesfera: esse é o conjunto de todos os ecossistemas existentes no planeta, de interação menos direta entre si, mas que ainda assim exercem influência holística.


Algumas classificações incluem o bioma como uma unidade intermediária entre o ecossistema e a biosfera. Entretanto, esse conceito é um pouco mais ligado à Geografia do que propriamente à Ecologia, porque está interessado mais em uma área que contém uma predominância de determinado tipo de vegetação do que nas relações sistêmicas ocorridas em seu interior. Por exemplo, no bioma brasileiro conhecido como Mata Atlântica, caracterizado por grandes recursos hidrográficos, presença de umidade costeira e intensa variação climática, devido à sua grande extensão, pode-se verificar uma heterogeneidade de ecossistemas que também lhe caracterizam, porque o conjunto físico é muito variável. Dessa forma, temos ecossistemas litorâneos, de manguezais, de restingas e de campos de altitude. Um caranguejo, tão típicos do mangue, fazem parte de um ecossistema que está completamente ausente nos planaltos, embora pertençam ao mesmo bioma Mata Atlântica.

Mais uma pequena confusão que se faz com termos é entre bioma e biota, aqui mais ligado à proximidade ortográfica entre ambos. Bioma já vimos o que é, e biota é a parte viva de um ecossistema, enquanto abiota é o conjunto de componentes não vivos do mesmo. Por exemplo: em um meio aquático, onde há água, pedras, areia, oxigênio dissolvido e sais, temos a porção abiótica; já as algas, peixes e moluscos formam a biota, os caras que são usuários deste mesmo meio.

As linhas gerais da ecologia dependem da abordagem que se queira dar ao estudo. Normalmente, os especialistas dividem-na em três grandes áreas, sempre tendo em vista a quantidade de seres vivos envolvida na relação com o ambiente.

A primeira delas é a autoecologia. À primeira vista, parece ser a relação que eu mesmo tenho com o ambiente que me cerca, mas não é nada disso. Auto, neste caso, significa aquele que funciona por si mesmo, e isso significa que a necessidade de estudo é mais restritiva. Nesta área, o pesquisador aponta o foco para uma espécie específica, seja ela vegetal ou animal, e investiga sua interação com o meio. Como nos tempos atuais as correntes mais holísticas costumam preponderar, a autoecologia tem perdido espaço acadêmico. Entretanto, em alguns momentos é ainda muito importante. O melhor exemplo que me ocorre agora é nas espécies em risco de extinção. Nem sempre os fatores que levam à diminuição de uma espécie são óbvios, e, nestes casos, é preciso estudar a espécie em si para que se possa determinar como o ambiente a tem desfavorecido.

Em seguida, temos a demoecologia, que, semelhantemente à primeira, também estuda a interação de uma espécie com o meio ambiente. No entanto, o que interessa aqui é a maneira como uma determinada população como um todo reage com o meio. É uma maneira de estudar a Ecologia de maneira muito mais estatística, porque o que interessa aqui é a dinâmica de uma população com o passar do tempo e através do espaço: porque elas crescem, que fatores fazem com que se distribuam, qual sua taxa de concentração e outros tantos fatores que podem ser traduzidos por números. Por exemplo: temos uma população de coelhos que vive nos prados e outra nas regiões serranas, ambas da mesma espécie. A demoecologia se preocupa em observar como cada uma das populações procura dar manutenção à sua existência, através de estratégias específicas para cada ambiente envolvido. É uma área importante porque pode, a longo prazo, ser componente nos mecanismos de diferenciação que darão origem a novas espécies.

Por fim, a sinecologia é a área da ecologia mais abrangente, que não observa as espécies isoladamente ou em suas populações, mas na interação entre as diferentes espécies que ocupam um mesmo lugar ambiental, que agem em sinergia para dar organicidade ao meio. É aqui que temos as descrições das cadeias alimentares, da riqueza das espécies em um determinado bioma, organizações comunitárias, transferência de recursos no interior dos ecossistemas. Em última instância, o maior ponto de estudo da sinecologia é a própria biosfera, o maior de todos os ecossistemas.

Eu estou falando a todo momento entre interações, interações, interações… Como se dá a interação das espécies entre si e com o meio? Fundamentalmente, há uma expressão que sintetiza esse fenômeno: troca de energia, o que aproxima este ramo da Ciência de outro, a Física. Vejamos isso.

Há um termo da termodinâmica chamado de entropia, que podemos muito mal e parcamente traduzir como a tendência à bagunça. Essa “bagunça” em um sistema fechado qualquer tende a aumentar com o passar do tempo. Isso acontece porque o que mantém as coisas nos seus devidos lugares é a transferência de energia entre seus componentes. Note que o reboco da sua casa nunca tende a ficar mais sólido, mas a rachar e cair. Para que isso não aconteça, é preciso algum dispêndio de energia: produtos contra a umidade, camadas de massa fina, pinturas.

Ocorre que os sistemas biológicos não são sistemas fechados. Eles recebem energia de fora, energia solar no mais das vezes, e com isso podemos observar o mecanismo fotossintético dos vegetais, que produzem seu próprio alimento. Daí para frente, as trocas de energia se dão pelo consumo e pela reposição. Um passarinho, por exemplo, obtém energia dos insetos e das plantas de quem se alimenta. Ao excretar suas sujeiras, ele propicia alimentos para outros insetos e distribuição de sementes pelas plantas, retroalimentando o sistema através da disponibilização de energia. É com esse start que a Ecologia conduz seus estudos: tudo no universo é trânsito de energia, até mesmo a mais simples interação entre uma minhoca e seus resíduos favoritos.

Em rápidas pinceladas, era esse meu breve relato sobre o tema. Bons ventos a todos!

Recomendação de audiência:

É uma indicação meio nostálgica, porque assistia muito ao programa Repórter Eco quando as crianças eram pequenas. É um dos poucos, senão o único, programa jornalístico destinado ao assunto nos moldes de um telejornal convencional. Segue sua página na internet:

https://cultura.uol.com.br/programas/reportereco/

* Os agrupamentos de flora são comuns no caminho de São Paulo a Taubaté, cortando o começo do Vale do Paraíba. Contudo, se levarmos em conta a extensão de 130 Km até lá, dá para perceber como são erráticos. A foto abaixo dá ideia de um dos tantos bosques não originais espalhados pelo meio do caminho:

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Já estive neste lugar: o déjá-vu e o curto-circuito na assembleia neuronal

(Você já se viu em uma situação que parece igual a outra vivida no passado? Isso é um déjù-vu. Vamos filosofar sobre) 

Olá!

Eu nunca tive galinhas na vida. É bem verdade que sempre tive passarinhos, mas o máximo que eu cheguei perto de ter galinhas foi com codornas. Só que minha filha trabalha com gente que mora em bairros rurais, e apareceu em casa com quatro penosas. As galinhas não são minhas, mas o encargo de lhes preparar um galinheiro é meu.

Não vou dizer que foi muito trabalhoso, nem que ficou um primor de engenharia. Pelo contrário, ficou com o estilo de uma favela, malgrado a insistência da patroa em recobri-la de telas de plástico, ao invés de fechá-las com ripas. Melhor ainda, ficou mais fácil. Para tanto, fui atrás de caibros, ripas e duas telhas de brasilite, que não teve escapatória, precisei comprar.

Acontece que choveu e choveu e choveu, impossibilitando por alguns dias a feitura da casinha. Deixei tudo encostado no muro e fui tomar um café, porque não restava muito a fazer. Mais tarde, fui recolher os neodinossauros para dormir, mas quando olhei no quintal não vi nenhuma delas. Entrei assustado e fui procurá-las, até ver que estavam lá, embaixo das telhas que formavam uma cabaninha, para se proteger dos pingos que ainda caíam.

A cena não teria nada demais, não fosse um detalhe. Como eu abri o texto dizendo, nunca tive galinhas, mas todo o transcurso se deu à minha frente como se já houvesse ocorrido em algum momento atrás, e que eu estava novamente o vivenciando.

Não se trata de nenhum fenômeno raro, que somente alguns iniciados têm acesso e que colocam como alguma virtude entregue pelos céus. Na verdade, é bem frequente até. Chama-se déjà-vu, termo francês que significa algo como “já visto”, e corresponde a algum tipo de falha cerebral em que se tem a nítida impressão de que algum evento ocorrido no presente é uma reprodução do mesmo evento ocorrido no passado. Seu nível de realismo é variável, mas por vezes chega a ser assustador, durando inclusive um tempo considerável.

Eu já vivi essa experiência não sei quantas vezes. Sempre em períodos curtos, sem nenhum tipo de gatilho notável, causou-me impressão apenas quando criança. Para ser bem franco, percebo que eles vêm rareando, a ponto de não me lembrar da última vez em que tive outra viagem dessas.

 Mas não deixa de ser interessante esse tipo de curto-circuito cerebral, que não é irrealista como uma alucinação, nem fantasioso como uma história inventada. Achei por bem dar uma pesquisada no assunto, mas – frustração – há pouquíssima coisa esclarecida, sendo que as principais explicações continuam no campo de hipotético.

O grande problema de se estabelecer programas científicos para investigar o déjà-vu está na inconstância do fenômeno. Não dá para selecionar um tanto de participantes, juntá-los em uma sala e dizer: tenham déjà-vus. Também não é possível colocar eletrodos na cabeça dos experimentandos e falar para eles saírem por aí, aguardando ocorrências que podem demorar anos para acontecer. Por esta razão, o conhecimento efetivo que se tem sobre o tema não é tão seguro quanto gostaríamos que fosse. Mas existe a Filosofia, e eu gostaria de tentar alguns palpites sobre o tema.

Algumas das explicações mais comuns trazem um componente metafísico ao fenômeno. Certas correntes esotéricas entendem que o déjà-vu é um modelo de premonição inconsciente, na qual a sensação de repetição se dá porque a descrição do fato não fica na flor da consciência, mas escondida no âmago da mente. Quando o vaticínio se concretiza, a sensação é de que ele já tinha sido vivido. Os espíritas, por sua vez, entendem que o déjà-vu nada mais é do que a repetição de uma experiência em vida passada. Um espírito que vai reencarnar tem o livre-arbítrio de escolher as provas que enfrentará para fazer sua purificação. Algumas delas incluem reviver experiências de vidas passadas para aperfeiçoar sua conduta diante delas. Como há vários marcos temporais que obrigatoriamente precisarão ser revividos (lei do carma), o déjà-vu nada mais é do que uma leve recordação ainda guardada no subconsciente dos fatos que ocorreram em um momento desses.

Mas eu quero traçar hipóteses sobre coisas mais próximas da concretude. E apesar de não ter encontrado uma explicação direta pela área da Psicologia, ainda é nela que eu vou me socorrer. Mais especificamente na teoria de cognição de Donald Hebb, psicólogo canadense, que militou fortemente na área do behaviorismo, o estudo psicológico pelo viés comportamental.

Desde nossa infância, recebemos estímulos que vêm do ambiente que nos cerca. O caminho é sempre o mesmo: algum sentido é excitado e as fibras nervosas encaminham a informação obtida para ser processada pelo sistema nervoso central. De acordo com o que se recebe, certos neurônios são acionados e formar uma rede sináptica, e conforme a mesma experiência se repete, mais e mais reforçados ficam esses conjuntos de neurônios que atuam em conjunto. Digamos que todas as vezes em que nossas mães iriam nos alimentar, elas amarrassem um babador em nosso pescoço. Isso faria com que os neurônios que comandam nosso ato de sucção e do prazer do alimento já fossem escalados no seu conjunto. É esse tipo de agregação de neurônios para realização de uma tarefa que Hebb chamava de assembleia neuronal.

Os neurônios são células que se comportam de maneira peculiar no corpo humano. Enquanto as demais células se multiplicam aos borbotões e morrem com a mesma volúpia, os neurônios somente se desenvolvem até o término do desenvolvimento cerebral. Daí para frente, quando eles morrem, não há reposição, e isso explica muitas das doenças da velhice*. Mas cada um deles não se restringe a uma única tarefa. As assembleias se desfazem assim que o estímulo cessa, e os seus participantes ficam livres para ser incluídos em outras assembleias e em outras sinapses.

Essa formação das assembleias neuronais, portanto, fica inscrita em algum lugar do SNC, e é resgatada assim que recebe o estímulo específico, tratando de acionar toda a cadeia própria daquela tarefa. Quem conhece informática, fica surpreso como esse tipo de funcionamento é semelhante ao que ocorre nos componentes de um computador, e é fazendo essa comparação que me vem à mente uma possibilidade de funcionamento do déjà-vu. Vamos ver se consigo expressá-la.

Um computador precisa de memória, do contrário não teria onde armazenar seus dados. A maior parte destes fica gravada no disco rígido (hard disk em inglês), carinhosamente conhecido como HD, onde lá ficam através do uso de pontos magnéticos. Mas não basta jogar a informação lá e deixá-la grudada. Há toda uma sistematização por trás disso. Vou falar como funciona o armazenamento em um HD de forma extremamente simples. Todo o espaço físico de um disco é separado em milhões de pequenos compartimentos onde as informações são gravadas. Digamos que você tenha uma unidade zerada, e comece a armazenar suas músicas, textos, fotos, vídeos e documentos em geral. Essas informações todas ficarão lá guardadas pelo tempo que você achar necessário. Os dados serão gravados e sobrará uma boa porção de disco para futuros armazenamentos.


Ocorre que existirão certas informações que você quererá descartar um dia. Neste caso, ao apagá-las, ficará no disco um buraco onde antes havia informações.

Este buraco, caso não fosse reaproveitado, tornar-se-ia inútil pelo restante da vida do HD. O que o computador faz é aproveitar esses buracos com informações novas. Entretanto, seria coincidência demais se o arquivo novo tiver o mesmíssimo tamanho que aquele que foi apagado. O que ocorrerá na estúpida maioria das vezes é que tenhamos tamanhos menores ou maiores. Sendo menor, a informação nova preencherá uma parte do espaço e ainda restará um tanto para outras informações.


Se a informação nova for maior, ocupará mais de um buraco, ficando pulverizada por vários pontos do disco rígido.


Ora, se a informação não é armazenada de forma contínua no disco, como o computador sabe qual a sequência certa para poder recuperá-la? É que existe um outro setor no próprio disco que armazena o mapa de gravações de todos os dados nele existentes. É um registro que funciona mais ou menos assim: o documento texto.txt começa no endereço A e vai até o endereço B, daí reinicia no endereço C e vai até o endereço D, daí vai até o endereço E e termina no endereço F, por fim vai ao endereço G e termina no endereço H. Na hora em que a informação é requerida, o controlador do HD pega o seu mapeamento e retorna a informação completa para o computador.


Percebam que este mapeamento é parte integrante da informação, e sem ele o dado gravado é morto. Está lá, mas não serve para nada. Se você pegar o esqueleto desse mapeamento e der um salto de um endereço para qualquer lado, a informação remontada será totalmente desconexa e a central não saberá processá-la. Já tentou abrir um arquivo e deu uma mensagem de erro? Essa é uma das causas possíveis.

Da maneira que estou pensando, algo semelhante ocorre no cérebro quando acontece um déjà-vu. As assembleias neuronais são semelhantes ao mapeamento das informações contido no HD, que serve muito bem quando a informação é coerente, mas que se perde quando há ruídos. Certas situações vão fazer com que um determinado esquema de assembleia seja acionado, seja por semelhança, seja por contiguidade, seja por unidade, seja por pregnância ou por qualquer outro motivo que a evoque. Acontece que a assembleia acionada não corresponde à realidade, apenas possui algum fator em comum análogo a ambas - a situação real e a situação recordada. Ela foi chamada por engano, só que está agora na memória de trabalho e precisa dar uma solução para o fenômeno que tem à sua frente. É como se o mapeamento houvesse sido chamado e sido aplicado para outros dados. Em um sistema de informática, os erros são tratados em uma mensagem amigável, para o usuário compreender que algo está errado, e no cérebro o erro é tratado como se fosse uma situação já ocorrida, justamente porque já existe uma estrutura (a assembleia) preparada para reconhecer o evento preexistente.

Dessa forma, o fenômeno teria a ver com o processo de aprendizagem que cada um de nós passou, e que tem reflexos quando seu acionamento é dissonante com relação ao seu propósito inicial. Não constatamos isso logo de cara porque a formação da assembleia é muito difusa. Essa rede não acontece por nosso próprio impulso. Eu não digo: tenho uma situação X e vou chamar a cadeia de neurônios que respondem a ela, porque isso vai sendo fixado aos poucos, especialmente na infância. Mas, da mesma forma que ocorre com as falsas memórias, com a dissonância cognitiva, com a pareidolia, com a descontinuidade mental e tantos outros, aqui também temos um descompasso cerebral, que lança mão de experiências já passadas para colocar no lugar da cognição não completada.

Não sei se faz sentido o que eu disse. Os comentários estão disponíveis para quem quiser achincalhar (sem xingar), mas é que minha cabeça não é só filosofia, mas informática também. Afinal de contas, foi nessa área que eu encontrei o ganha-pão, já que o salário de professor não é digno em Ilha de Vera Cruz.

Por fim, eu sei que Donald Hebb tem seu lado polêmico, com os estudos e experimentos de privação sensorial que acabaram por redundar em cometimento de ilegalidades pelos órgãos de segurança estadunidenses. São duas coisas: a primeira, é que Hebb não pretendia submeter ninguém a sofrimento psicológico, e a segunda é que o uso de seus estudos ocorreu à revelia dele. Entretanto, o fato é que os abusos ocorreram, e, por isso, faço questão de frisar que tudo o que usei aqui não tem relação com essa parte de suas teorias, mas apenas com sua parte mais relacionada ao funcionamento neuronal.

Vou aproveitar que a chuva deu uma amenizada para terminar minha obra prima de engenharia. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Em italiano.

HEBB, Donald. L’organizzazione del  comportamento. Uma teoria neuropsicologica. Milão: Franco Angeli, 1975.

* Embora existam pesquisas que vem demonstrando que há, sim, uma reprodução contínua nos neurônios cerebrais, mas adotarei o consenso atual para não criar confusões no meu texto.