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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Navegações de cabotagem – o Museu Mazzaropi de Taubaté e o cinema como reflexo da espécie e lugar de escuta

Olá!

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Quem me acompanha com um pouco mais de frequência, sabe das minhas intenções em sair da cidade de São Paulo, tão logo eu esteja um pouco mais solto com relação àqueles velhos compromissos de sempre. Como venho volta e meia namorar a região do Vale do Paraíba, seja na Serra da Bocaina, seja na Vertente Oceânica Norte, seja nas encostas da Mantiqueira, é de se esperar que alguma cidade que esteja no entremeio destas regiões seja algo razoavelmente atraente. É o caso de Taubaté, terra de bom porte e bons recursos, além de ser próxima da própria capital. Quando ‘inda não vivíamos nos pandêmicos dias e não precisávamos de máscaras até para buscar um pãozinho na padaria, fui até lá para a filha mais nova fazer umas tentativas de emprego e estudo. Enquanto ela se debatia com questões e sabatinas, fui procurar o que fazer no tempo disponível, como sempre faço. E fiquei sabendo da existência de um museu dedicado a um dos principais comediantes da velha guarda brasileira, Amácio Mazzaropi. Vamos lá conhecer mais sobre a vida do Jeca.


Em primeiro lugar, algumas informações. Mazzaropi, apesar da localização do museu, não era taubateano, mas paulistano da Santa Cecília. Só aos dois anos mudou-se com os familiares para a terra onde tinha muitos dos seus parentes. Lá, encantou-se primeiramente pelo circo, e que desembocou na decisão de utilizar um meio então mais moderno para a arte de representar. Foi um dos primeiros brasileiros a enriquecer com o negócio do cinema.


Ele produziu e atuou em dezenas de filmes do gênero comédia, principalmente evocando tipos populares da cultura brasileira, como o caipira e o suburbano, geralmente deslocados do próprio meio onde vivem, em uma paródia da real questão do êxodo rural e das transformações do meio urbano, cada vez mais rápidas.

O museu fica localizado no mesmo local onde era sediada a PAM Estúdios, que nada mais era que a produtora de filmes de Mazzaropi. É uma região da periferia de Taubaté, quase no meio rural, e onde também está localizado um hotel-fazenda, que era originalmente utilizado pelas equipes e elencos para estadia.


Trata-se de uma instituição paga, mas de valor quase simbólico, dado seu acervo de mais de 20000 peças. A separação dos espaços é temática, mas por todo lugar para onde se olhe vamos encontrar referências ao homenageado em tela. Como sua produção foi muito grande, há bastante material disponível para visitação, bem como artigos itinerantes que vêm e vão para exposição em outros rincões de Terra Brasilis.


Começa-se pela ala de equipamentos cinematográficos que foram utilizados pela PAM, que não são exatamente iguais aos que se utilizam hoje em dia, mas que, por isso mesmo, podem dar uma ideia mais precisa de como certos processos eram muito mais morosos, porque o mundo analógico de outrora exigia uma habilidade que os preparados digitais contemporâneos não deixam entrever. Lembrem-se: há um ponto em que se torna indistinguível magia e tecnologia. Aqui temos projetores, microfones, bobinadores, câmeras e outros aparelhos utilizados da metade para frente do século passado.


Em seguida, temos uma ala biográfica, representada por vários painéis circulares (para remeter a um rolo de filme?) com amplo sortimento de fotografias e textos. Aqui, temos a descrição da memória de vida e da carreira de Mazzaropi. Já dá para ficar a manhã toda só lendo estes conteúdos e entendendo como se desenrolou sua trajetória. Um dos painéis contém um zootrópio, antiga máquina de simular movimentos.


Há também uma ala que se dedica a explicar como os princípios óticos são utilizados para produzir o cinema, inclusive começando pelo começo: como funciona o olho e como seu esquema é reproduzido na projeção das imagens. Há um olho gigante que pode ser visto por dentro, para entender a dinâmica da inversão e correção daquilo que vemos.


É esse tipo de coisa que vai dando riqueza a uma visita, porque amplia o conhecimento.  No mesmo setor, temos explicações sobre os diferentes processos que levam à ilusão de ótica típica do cinema, como um aparelho giratório que faz entender a sucessão de imagens que faz a constituição de uma imagem plena. Nestas fotos, está ruim, mas dá para captar como funciona a coisa: sucessões de imagens estáticas colocadas em movimento modificam o modo como as percebemos, e a persistência dessas várias imagens dão a impressão de serem uma coisa só.


Em outra ala, pelas estantes e armários, há inúmeros objetos pessoais e cenográficos utilizados em suas diferentes produções, incluindo as célebres camisas xadrezes.


Há um pequeno auditório no interior do próprio museu, onde também há coleções de prêmios recebidos. Lá são ministradas aulas e debates sobre a vida e a obra de Mazzaropi. Embora estivesse fechado naquele dia, há também um anfiteatro maior, onde são oferecidas projeções de filmes, alguns deles remasterizados.


Nestes tempos de selfies, o museu disponibiliza algumas brincadeiras para o pessoal fazer suas gracinhas fotográficas, como chapeuzinhos, vestidos, gravatas e algum ambiente onde possamos brincar de manequins.


Há ainda um mezanino, que contém mais algumas coisas interessantes. Logo no topo da escada, a reprodução de um velho fogão a lenha permite que se veja e ouça alguns depoimentos através de telas digitais e headphones.


Neste mesmo andar, há vários dos ambientes cenográficos utilizados em filmes, organizados do mesmo modo em que estavam dispostos nas filmagens.


Vou começar de cara com uma confissão: não sou muuuuuuuuuuuuuito apreciador da obra de Mazzaropi, embora também não tenha motivos para depreciá-lo. Meu sogro, por exemplo, é fã de carteirinha, pela via da contemporaneidade e da temática interiorana. Era daqueles que ia à porta do cinema assim que uma nova película era lançada. Nos tempos dos videocassetes e DVD’s, era hábito o genitor da patroa fazer maratonas de três ou quatro filmes. Eu assistia no máximo um, e ia, já enfadado, tirar uma pestana no colchão do quarto de cima. Ora, direis, sendo assim, o que foste fazer em casa dedicada ao gajo? Não devias procurar outro afazer, tão abundantes os locais disponíveis nesta aprazível região, ou ao menos sorver café em algum canto?

Nada disso. Ainda que eu não seja exatamente um fã, isso não significa que eu não reconheça seu valor. Gostar ou não de um determinado artista é do campo opinativo, mas eu estou diante de dados e fatos; de conhecimento, em suma, ainda que seja necessário acionar certos filtros para os excessos laudatórios tão comuns nos espaços de homenagem. É a mesma coisa: um corinthiano debocha de um palmeirense (e vice-versa) pela paixão clubística e pela farra, mas negar a grandeza do outro time é cegueira. Sendo assim...

Tem coisas que a gente lembra-se de quando é pequeno que nos trazem um certo rubor. Não é bem o caso, mas não deixa de ser curioso. Trata-se de minha lembrança mais antiga com relação a cinema. Como já contei por aqui e ali, eu morava com outras nove pessoas, sendo que uma delas era meu primo cinco anos mais velho. Em um dia aleatório, vi pelo vitrô ele saindo com uma galera que eu já conhecia, seus colegas de escola, em um grande bando. Eu devia ter uns seis ou sete anos, o que o colocava nos onze ou doze. Curioso, perguntei à minha mãe aonde iriam Plinio et magna comitante caterva, em tamanho estrépito e algaravia. “Ah, eles vão no cinema”, disse a genitora com aquele delicioso defeito linguísitico tipicamente paulistano. “E como é isso?”, redargui. “Bom, é como se fosse uma tevê, só que imensa”. Eu-menino, na minha literalista cabeça infantil, imaginei logo um grande televisor, com o seletor de canais e botões de volume e brilho, igual à Colorado P&B que guarnecia a sala, que era mais ou menos assim:

Fonte: https://vejasp.abril.com.br/blog/memoria/dez-marcas-de-tvs-de-antigamente/

Quando fui efetivamente a um cinema, pouco tempo depois, fiquei um tanto surpreso, porque não tinha tanto a ver com a descrição que formei na minha cabeça. A tela era muito maior do que imaginava, e não havia nenhum vestígio de botoeira, e sim um palco e uma cortina, por baixo de onde brotava uma luminosidade difusa. As salas de cinema, crianças, também não eram parecidas com as que temos hoje, e alguns deles podiam servir também como teatro. Ainda existiam cinemas de rua e, mais ainda, salas de bairros. Tinham capacidade muito maior que os atuais cines de shopping, muitos com mais de 1500 lugares. O cine Amazonas, por exemplo, ficava na Vila Prudente e era bem perto de casa. O mesmo aplicava-se ao Ouro Verde, na Rua da Mooca. Embora já estivessem em declínio, serviram para me dar um encantamento que, mais tarde, foi substituído pelo teatro. Sim, é verdade. Eu mais vou ao teatro que ao cinema*, mas de forma nenhuma isso significa que eu não goste da tela grande. Muito pelo contrário.

É que sempre tivemos, como espécie, uma propensão em contar nossas histórias. Há razões práticas e emotivas para isso. Pragmaticamente: se no exato momento estamos vivos, é porque alguma coisa deu certo em nossas existências, e, levando em conta que há uma espécie de consciência coletiva de espécie, é de bom proveito que todos aqueles ao nosso redor tomem conhecimento das estratégias que tomamos diante de nossas bifurcações. Mas é claro que não somos esses robozinhos**, que fazem tudo de acordo com uma programação. Quando meu tataravô conseguiu fugir do mamute, por exemplo, toda uma carga de emoções veio junto – o pânico inicial, o medo vencido, o insight intuitivo, a apreensão pelo livramento do perigo e a sensação de euforia no sucesso, tudo isso resolvido em um átimo. O resgate dessas memórias se dá com vivacidade, com muito mais subjetividade do que poderia ser uma mera descrição de quem vê tudo à distância. Somos “contaminados” por nossa História e isso reflete em nossas histórias.

Eu falei em vivacidade e isso nos remete ao estereótipo dos imigrantes italianos, que agitam as mãos como uma linguagem própria, e como se fosse impossível comunicar-se apenas com as palavras – a gesticulação complementa o ato comunicativo de maneira imperativa. Isso é só para dar um exemplo, já que muito antes de se sonhar em Itália é provável que os homens lançassem mãos de recursos para ampliar suas representações. Em uma dessas, imagino uma pessoa aproveitando a luz projetada por uma fogueira nas paredes da caverna para fazer sombras com suas próprias mãos, dando mais ânimo ao seu relato. Olha, eu digo a vocês que sou bom nisso, e dá muito certo com crianças. Deve ser porque faltava muita energia elétrica no bairro onde morava, e acabei aprendendo a fazer vários bichinhos com as mãos: cachorros, elefantes, burros, camelos, patos, coelhos, pombos, caramujos, aranhas e congêneres... e com eles contava historinhas aos meus filhos e afilhados, conseguindo uma adesão muito maior de suas atenções. É um truque da pareidolia? É, mas, de uma forma ou de outra, é assim que se forma o nascedouro do cinema: uma necessidade de contar histórias e uma vontade de torná-las mais encantadoras.

E com isso entendemos que há mais alguma coisa a se falar filosoficamente sobre o cinema. Como máquina de contar histórias, a tela grande coloca-se na posição de quem fala, e de quem interage com quem está do lado de cá; entretanto, essa interação não se dá de maneira completamente livre. O cinema é essencialmente um lugar de escuta, não há cinema sem alguém que esteja lá para fechar o circuito da comunicação. E exercitamos algo que tem sido perdido nos últimos tempos, podem notar. Sempre que sentamos com alguém para ouvir seus problemas, rebatemos os mesmos com nossas próprias aflições, e isso é um defeito no sistema de comunicação. Eu tomo por mim mesmo. Tenho uma dificuldade incrível em me abrir, em colocar alguma coisa para fora, e, se chego a este ponto, o de me colocar na posição de confessante, é porque tem algo clamando por ser vomitado. Se neste exato instante meu interlocutor passa a ele mesmo tirar de dentro aquilo que lhe faz mal, meu objetivo estará frustrado. Provavelmente me recolherei novamente e perderei a oportunidade de extravasar aquilo que me corroía internamente. Quando estamos em uma sala de projeção, podemos ter a mesmíssima aflição que nos levaria a interromper a confissão que nos é arremessada pelos atores e pelo diretor, mas ali não é esse lugar. Ali temos que exercer e exercitar nossa audição, porque por trás da tela não há quem nos ouça. O diretor é imperativo, a fala dele é agora, e só há duas opções – ouvir ou fugir. O cinema faz um quê de divindade, poderosa e inamovível, a quem não adianta contestar durante a fala. Só depois, aí sim, podemos levantar o debate, quando a comunicação já foi completa, quando o artista já pode se manifestar inteiramente. E com isso aprendemos a ser melhores audientes, a escutar uma totalidade antes de nós mesmos nos colocarmos, e a compreender uma narrativa como uma completude. Há momentos para o debate, e há momentos para nos colocarmos no momento de passividade da escuta, para chegarmos ao momento ativo do entendimento.

Recomendações:

Vou recomendar o canal de Max Valarezo, dedicado à sétima arte. Encontrei-o quando estava pesquisando sobre a indução das risadas nos filmes, e me inscrevi de bate-pronto. Ele se chama Entre Planos, e não se limita a análise de filmes, mas do cinema como atividade.

https://www.youtube.com/channel/UCZq_CYXRoRjKqidapMPujaQ

Comprei um livro na loja do próprio museu, que traz muitos e muitos dados sobre a filmografia de Amácio Mazzaropi. Não é um livro propriamente para ler numa tarde de domingo, mas para consultar quando se quiser saber algum detalhe sobre a carreira do artista.

SILVA NETO, Antonio Leão da. Enciclopédia Mazzaropi de Cinema. São Bernardo do Campo: Edição do Autor, 2019.

Por fim, é claro, recomendo o próprio museu. Seu endereço é o que segue:

Museu Mazzaropi
Estrada Amácio Mazzaropi, nº 249
Itaim
Taubaté/SP
Aproximadamente 140 Km a partir do centro de São Paulo

* Sempre se lembrando dos impeditivos da atual pandemia.

** Não?

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Navegações de cabotagem – o Museu de História Natural de Atibaia e os humanos como síntese da História

Olá!


(Enquanto escrevo este texto, tenho nos ouvidos o álbum “Of Natural History”, da banda vanguardista Sleepytime Gorilla Museum. Pura maluquice sonora, misturando muita teatralidade com construções musicais insólitas. Seus componentes são multi-instrumentistas que tocam qualquer tipo de coisa – desde instrumentos muito antigos até objetos encontrados em casa, à moda de Hermeto Paschoal. Não é para qualquer um, mas vale a pena conhecer. Dados de recomendação lá embaixo).

Pouco antes da eclosão desta inaudita pandemia que já nos grassa e desgraça há cerca de seis meses, ou melhor, quando ainda tínhamos a expectativa de que 2020 seria um ano como outro qualquer, dei um pulinho aqui e outro ali para ajudar a filha caçula na sua missão de prestar concursos públicos. A indigitada descendente estuda na área de humanas e, como bem sabemos sem nenhum demérito, o destino-base desta formação é atuar na Educação. Sendo assim, às vezes é melhor procurar alguma coisa pelo interior próximo, enquanto não se consegue nada de muito proveitoso em Pauliceia Desvairada.

Vou reabrir a série das Navegações de Cabotagem e, como eu já disse, os quatro textos que se seguirão descrevem fatos que ocorreram todos antes da segunda quinzena de março. Por esta razão, não serão vistas luvas, máscaras ou escudos faciais nas pessoas, assim como não havia de se falar em imprudência ou negligência. Os quatro quilos que eu ganhei desde então são prova de meu bom comportamento epidêmico, embora não o seja no plano estético e lipídico.

Neste episódio, vou para a cidade de Atibaia. Ela não fica longe de SP/SP, algo como 70 km, o que dá para cobrir em cerca de uma hora, e fica na mesma região bragantina que relatei em minha série Para lá da serra que eu vejo na janela, de quem recomendo a leitura. Precisei levantar bem cedo, porque a prova da garota era às 08:00, mas o domingão estava um bocado agradável, naquele meio termo entre céu claro e brisa fresca, e fui procurar o que fazer ao ar livre. Atibaia por si só já é uma cidade linda, mas fiquei sabendo da existência de um parque com coisas legais, então me mandei para lá.


O nome do tal parque é Edmundo Zanoni. Este cidadão foi prefeito da cidade na década de 60 do século passado.  Há tempos atrás, aqui ficava localizado um clube de campo que pertencia à municipalidade, mas que, com fins de democratizar o seu acesso, foi aberto para o público em geral. Tem um relevo em declive, acompanhando o desenho do morro que lhe guarnece. Em seus vários canteiros, há uma bela profusão de flores.


O projeto de paisagística é bastante delicado, em uma área relativamente ampla (cerca de 40 mil m²), e para os moradores dos meios urbanos tem novidades pouco conhecidas, que possuem um fundo estético que explica bem a diferença entre arte e natureza: a beleza está nas duas, mas não são a mesma coisa.


A cidade de Atibaia historicamente faz parte do circuito que foi colonizado por populações nipônicas, como acontece no contexto do Cinturão Verde da metrópole da garoa. Por conta disso, é razoavelmente comum encontrar referências a essa cultura, incluindo um Jardim Japonês no parque, com sua inconfundível carpa, uma espécie de peixe-símbolo da longevidade e fertilidade.


Uma tradição daqui, trazida justamente pelos orientais, é a festa de morangos e flores, realizada todo ano na entrada da primavera. Vi que desta vez não vai ter. Paciência. Com o dia em franca ascensão da temperatura, fui com a patroa matar saudades dos pedalinhos no lago do parque.


Há uma torre de pedra fazendo as vezes de farol na ilhota acessível  por ponte. Fiquei sabendo que toda a área fica enfeitada de cima a baixo por ocasião da festa citada. Nas fotos que vi, fica lindo de verdade.


Para além das sutilezas do sol nascente, há também uma casa de artesanatos, estes expostos de forma permanente, para a apreciação de quem curte um chaveiro. Os carros-chefes são os vasos pintados à mão e os artigos que remetem à própria cidade: morangos, corujas e a Pedra Grande, monumento natural localizado na parte rural.


O parque ainda é sede do Instituto Pró-Carnívoros, uma daquelas entidades que martela em cima de ferro frio para defender uma causa que tem pouca visibilidade. É uma ONG cujo objetivo é a proposta de estratégias para a manutenção da vida dos carnívoros nativos a longo prazo.


Mas vamos ao tema que pretendo abordar com mais detalhe. No miolo do parque, existe um Museu de História Natural cujo nome homenageia o professor Antonio Pérgola, dito Toninho, cuja grande especialidade era a taxidermia, um conjunto de técnicas destinado a preservar, o mais proximamente possível, a forma dos animais quando ainda eram vivos.


Estruturalmente, o espaço é composto por painéis, gaveteiros e dioramas, uma espécie de armário envidraçado em que as peças podem ser dispostas de maneira a reproduzir um certo ambiente. No nosso caso, o ambiente a ser retratado é o habitat das espécies que compõem a região, de modo que os bichos não sejam simplesmente expostos, mas que formem um contexto compreensível.


É preciso elucidar o que é um museu de história natural. Da mesma forma que acontece com as universidades (como já escrevi aqui e aqui), há muita confusão com relação ao seu propósito. A um primeiro olhar, imagina-se que seja um lugar onde as crianças podem ver um monte de bichinhos empalhados, e nada mais que isso. Idem ocorre com os jardins botânicos, que pensamos parecer um imenso jardim, cheio de plantinhas. Não, o que temos nesses espaços são coleções, que possuem um sentido científico que vai além do mero entretenimento.


Claro que não há nada de mau em simplesmente se distrair. E também é claro que a quantidade de recursos disponíveis vai influenciar muito até onde os administradores podem chegar. Museus como os de Viena ou de Nova York têm coleções imensas e caríssimas, que são expandidas através de um círculo de empréstimos entre essas instituições de grande porte. Mas, mesmo em lugares menores, o propósito é basicamente o mesmo: confluir história e natureza para que seja possível compreender como a vida se desenrola no planetinha azul. Por isso, os acervos dos museus de história natural se deslocam em dois eixos: um vertical e diacrônico, em que se procura entender como surgiram as diferentes espécies, e que são sintetizados por ossadas milenares e fósseis...


... e num eixo horizontal e sincrônico, que busca evidenciar como as espécies de determinados locais estão espalhadas pelo espaço geográfico, desde sua origem mais remota, como é o processo de fecundação representados pelos ovos...


... passando pelos primeiros desenvolvimentos do novo ser, que, em condições normais, são pouco visíveis para nós, como pode ser observado através dos embriões e fetos...


 ... passando pelos animais em suas formas adultas...


... até chegar aos seus despojos mortais, onde podemos aprender um pouco mais sobre sua morfologia óssea. Neste caso, a linha do tempo somente é percorrida pelo tempo de vida das espécies atuais, e não no longo tempo histórico das espécies pré-históricas.


Por conta da expectativa da formação de contextos, um museu destes não se limita apenas às espécies animais, mas faz considerações de ordem territorial, podendo lançar mão de amostras da vegetação e dos aspectos minerais também.


O resumo da ópera é: essa modalidade de instituição visa fundir história, biologia e geografia para que seu usuário tenha ferramentas para entender como funciona a interação entre seres e meio físico, que tanto pode ser o do próprio local...


... como de terras mais distantes...


... ou agrupamentos de animais com similaridades, para que se comparem elementos evolutivos...


... ou amostras de elementos isolados, geralmente excêntricas ou em risco de extinção, no que os museus prestam mais de um tipo de serviço.


Enfim, museus são espaços de estudo. E, neste caso específico, o plano temporal tem muito mais importância do que parece em um primeiro olhar. Às vezes não nos damos conta de como a História é tão presente em nossas vidas, e só quando nos deparamos com alguma coisa que nos obriga a nos situarmos no tempo é que passamos a reconhecer nosso lugar na História.
Entretanto, o que somos quando observados no tempo? Segundo Benedetto Croce, filósofo italiano que viveu na virada do século XIX para o XX, somos um processo em curso. Vamos entender melhor essa proposta, e se concordamos ou não com ela.

Croce imagina um conceito de historicismo absoluto, fortemente calcado no Idealismo hegeliano e em seu Geist, mas não vou abordá-lo aqui, para não o tornar aborrecido (leia um pouco melhor sobre isso neste texto). Isso equivale a dizer que qualquer juízo que se faça acerca de tudo, seja algo físico como uma pedra ou abstrato como a própria Filosofia, não pode ser colocado fora da História, e, de certa forma, equivaler-se a ela. Isso acontece porque, por mais que algo possa parecer fortemente preso em um determinado momento distante, absolutamente tudo está ligado pelos liames do tecido histórico, e o momento atual nada mais é do que uma fotografia de um processo em curso permanente. Dessa forma, toda História é História Contemporânea, porque nada é como é sem que tenha sido o que foi.

(Isso me lembrou duma situação que ocorreu quando eu ainda tentava ganhar o mundo com minhas bandas e minhas músicas. Trata-se de uma música chamada Filhos do Passado, que reescrevo agora com um pequeno realce.

Gira o mundo, grande mundo
Ordem e progresso ou poço sem fundo
Um grande fato da nossa história
Ou apenas mais uma escória

Sinas mil do meu Brasil
É tudo belo ou é tudo hostil
Maior derrota ou menor vitória
Longa tragédia ou fútil gloria

Se hoje somos o que somos
Foi porque fomos o que fomos
O bem e o mal foram consumados
Na vida dos filhos do passado

Acorda e vive, grande cidade
Diz a mentira ou a verdade
Seu presente é vil ou é sagrado
Não sabe o futuro ou não lembra o passado

Esse trechinho fazia parte do refrão. Era um rock no estilo hard setentista, apesar de estarmos extemporaneamente na década de 80. Não tínhamos grana, mas tínhamos uma caixa acústica com o alto-falante rasgado, e a usávamos quando queríamos – rá rá rá – simular um Marshall com as válvulas sobrecarregadas. É... Não tinha como dar certo. Mas o ponto é outro – a parte destacada parecia-me ingênua demais, mas era exatamente o que eu queria dizer e se desenvolvia bem harmonicamente. Relendo o presente filósofo, pergunto-me se eu não era croceano antes mesmo de conhecê-lo. Sim, eu sei que é só uma coincidência, mas notem como, de maneira quase infantil, eu consigo exemplificar a tese de nosso caro abruzês).

Segundo pensava Croce, por mais remotos que fossem os fatos passados, eles continuavam reverberando seus efeitos até os dias presentes. Ele utiliza o exemplo do bode expiatório para explicar isso. Se alguma pessoa, seja por princípio religioso, seja por comiseração humana, seja por mero arrependimento, aplica a si mesmo um rito de expiação, ela reproduzirá, ainda que inconscientemente, toda a estrutura estabelecida por um rito das tribos judaicas milenares e de outros povos primitivos, com práticas semelhantes. Dessa forma, todo esse amálgama de passado é tornado presente no momento em que alguém repete o ato, como já faziam os antepassados.

Dessa forma, toda pessoa carrega consigo uma espécie de coletânea de documentos de juízo histórico, que lhe foi imputada por irradiação dos conhecimentos da espécie humana, transmitidas e integradas através dos tempos, e que nos fazem efeito modificador de caráter quando nos defrontamos a um objeto do passado. Reconhecemos um bichinho exposto em um armário e deste confronto com a História contida em nós reagimos particularmente e damos carga novamente a esta mesma História. Um homem é o universo inteiro no sentido histórico. Somos, todos nós, um compêndio de História universal.

Sendo assim, quando estamos em um museu de história natural, não estamos apenas presenciando um pacote de elementos antigos, mas estamos diante de nós mesmos. Cada reação, que se desdobra em curiosidade em conhecer, ou em aflição pela fragilidade, ou em admiração pelo trabalho detalhado, ou até mesmo em indiferença, é uma pequena parte da nossa característica de sermos humanos, que nos foi transmitida através de nossa inserção na História. Não somos humanos sem nossa história. Não é legal isso?

Recomendações:

Começo pela obra de Croce voltada à Filosofia da História. Ele é muito mais amplo do que esse livro, e posso voltar a ele mais vezes, conforme for conveniente.

CROCE, Benedetto. A História como Pensamento e Ação. Rio de Janeiro: Zahar, 1962.

Vai também a recomendação de visita ao Parque Edmundo Zanoni e seu respectivo museu, ainda mais quando a chatíssima pandemia atual permitir. Este é seu endereço:

Parque Edmundo Zanoni
Avenida Horácio Netto, 1030
Vila Loanda
Atibaia/SP
Aproximadamente 70 Km a partir do centro de São Paulo