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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Especismo

Olá!

Conforme solicitado a mim anteriormente, vou retomar o tema deste post, sob outra ótica. Nele, menciono um texto de Robson Fernando, estudante de gestão ambiental que trata do tema do especismo. O autor o trata como um novíssimo preconceito, que se refere à questão da superioridade da espécie humana com relação aos demais animais. A pergunta central é: O que legitima a posição humana de domínio no mundo? A racionalidade é suficiente para embasá-la? Ou ainda: é racional colocar-se em um plano superior?


A questão é difícil, e confesso que ainda hoje não consegui firmar uma posição definitiva sobre o assunto.

Os argumentos dos anti-especistas são bons. Em primeiro lugar, eles têm razão ao dizer que os preconceitos surgem sem que percebamos. Eles não são criados, são descobertos. A história conta-nos que em determinadas épocas, algumas posturas que hoje reputamos por inaceitáveis estavam perfeitamente sedimentadas no senso comum. O autor do texto menciona as diferentes formas de escravidão para justificar suas posições.

(Se bem que é preciso raciocinar se todas as formas de escravidão estão verdadeiramente extintas. Ao atribuir um baixo salário à classe trabalhadora, a elite tira de si a responsabilidade pela tutela de seus empregados - que os senhores de escravos tinham - sob o dissimulado escudo da liberdade, e mantém seus ganhos em alta. Bom, isso é marxismo. Deixemos o assunto para outro momento).

O preconceito, desta forma, instala-se no organismo social na forma de ideologia, e, imperceptivelmente, é tomado por natural e desejável, sendo desta forma perenizado (lá vem Marx de novo). O comércio de animais é hoje tão admissível quanto o tráfico negreiro foi um dia. E se hoje o racismo, o sexismo e a xenofobia são condenáveis, o especismo também deve ser. Não há nenhum sentido em desrespeitar os animais se queremos ser respeitados em nossa condição humana.

Concordo em boa parte com as razões colocadas pelo anti-especistas. Práticas como rodeios, touradas, caças predatórias e utilização de animais em circo são abomináveis. Quanto a isso, ponto final. Toda vida merece um mínimo de dignidade. Usá-la para satisfazer um instinto perverso não tem justificativa. Também a comercialização de animais para fins meramente estéticos pode ser entendida como abusiva. O problema é quando chegamos na questão da sobrevivência. E então, finalmente, podemos encontrar algumas contradições nas justificativas anti-especistas.

Em primeiro lugar, não é verdade que os homens não se vendem mais. Fazem-no sob o nome de "força de trabalho" (sai, Marx!), como mencionei nos primeiros parênteses. Ficamos comovidos com a situação dos bolivianos no Brás*, mas se eles tivessem carteira assinada e situação civil regularizada, nem perceberíamos a sua presença - a não ser para notar que eles tomam postos de trabalho, como se este país não tivesse sido constituído basicamente de imigrantes. Também creio que sua situação de miséria não estaria tão melhor. Portanto, antes de observar se somos especistas, é preciso ver o quanto ainda somos racistas, xenófobos, elitistas.

Depois, é preciso achar uma chave para a solução, e esta encontra-se, mais uma vez, na consciência ética. Tudo começa por um olhar não fundamentalista. Significa que não podemos repudiar pura e simplesmente o comércio de animais por dois motivos básicos:

1º - A sociedade ESTÁ constituída desta forma. Simplesmente TUDO é comercializado. Não se trata aqui de defender o comércio indiscriminado de animais, mas lembrar que desde o mais sagrado até o mais profano é objeto de valor. Vendem-se corpos, vendem-se ideias, vendem-se bênçãos, vende-se conhecimento, apropriam-se de nomes utilizados a séculos, tudo isso aceito com naturalidade. Não estou fazem nenhum juízo purista, esta é apenas uma constatação;

2º - Como mencionei anteriormente, há uma questão de sobrevivência. E nesse momento, é impossível não se tocar na questão alimentar. Não acho indigno que se use os animais para consumo. Muito pelo contrário. O mundo tem imensos bolsões de miséria, não se pode menosprezar as fontes animais de alimentação.

A conduta ética é, como sempre, baseada no respeito. O leão não me desrespeita se matar para comer. Ele está atendendo uma necessidade, e não o fará se não tiver fome ou se sentir ameaçado. A recíproca é verdadeira. É justificável abater um animal para consumo, mas de maneira a causar-lhe o menor sofrimento possível. Voltando ao leão, ele não me matará com requintes de crueldade. Vai me matar e me engolir, pronto. Portanto, o mínimo que se pode fazer é aplicar a tecnologia para mitigar um ato traumático.

Se eu souber que um determinado animal foi morto de maneira indigna, começarei pelo básico: não consumirei estes produtos. Enquanto eu estiver nestes limites, imagino que não estarei fazendo nada de errado, nada de anti-ético. Mas, como disse anteriomente, não tenho ainda uma posição definitiva sobre a questão, o que quer dizer que estou aberto a sugestões de leituras e argumentos contrários.

* Para quem não conhece, o Brás é um dos bairros mais tradicionais da cidade de São Paulo. Formado por famílias operárias vindas de toda parte do mundo (principalmente italianos e sírio-libaneses), na região central da cidade, teve sua história radicalmente transformada com a construção da estação de metrô e expansão da estação de trem, que derrubou a maior parte da área residencial, conforme eu já havia observado aqui. O resultado foi a sua desnaturação. Em outros bairros tradicionais, como a Moóca, o Bexiga, a Barra Funda e o Bom Retiro, ainda é possível encontrar muitos pontos que contam o transcurso do tempo e as suas modificações. Isso quase é imperceptível no Brás. O que sobrou foram as lojas, pequenas tecelagens e seus porões, onde ficam alojados imigrantes andinos (principalmente bolivianos), e que trabalham em regime de semi-escravidão, em especial sob a ameaça de denúncia de suas situações ilegais. É uma pena que sejam mal vistos; são famílias unidas, bastante religiosas. Os pais sempre estão juntos dos filhos, com quem costumam brincar pelas ruas apertadas do bairro. A pobreza não os desnaturou, como ocorreu com o bairro onde hoje vivem.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Arte, vida e arte (ou: sobre instintos e pianos que caem)

Olá!

Dei uma sumida por uns tempos. Sacumé, coisas da vida, apertos, dificuldades, blá, blá, blá. Mas chegou a hora de retomar meus escritos. Então, vamos lá!

A rua Maria Paula é um lugar que frequento diariamente. Na semana, encaro seu trânsito encalacrado, impaciente e sonolento dentro de uma Kombi, sentido Sé. No fim da semana, pego um solzinho em suas calçadas, sentido República. Por lá, já exerci alguns exercícios metafísicos, tratando de instinto, intuição e raciocínio. Não sou Aristóteles, mas dou minhas peripatetizadas. Penso no instinto e no piano que cai (lembra, Rê?).


Instinto... O quanto ele é significativo em nossas representações? O que a arte tem de vida e vice-versa?

Pensar em pianos, afilhados e instinto traz à minha cabeça Antonin Artaud, dramaturgo e teatrólogo francês, em especial sua obra O teatro e seu duplo (Lembra, Rê?)2.

Artaud é criador da corrente denominada O Teatro da Crueldade. Ele teoriza a existência de uma tirania da linguagem escrita e falada nas artes ocidentais. Para ele, a principal fonte de um ethos artístico legítimo é desprezado nesta enfatização da palavra: a transpiração visceral do instinto. Em seu teatro, utilizava surrealisticamente e abusivamente de recursos que, segundo ele, são os mais adequados para expressar uma linguagem mais autêntica - o grito, os tons alternados da voz, as glossolalias, os rictos faciais, a expressão corporal. Tudo o que fugisse das expressões convencionais, insuficientes para dar completude à tarefa de comunicar. Além disso, a representação no palco é indissociável da reação na plateia, que devem ser integrados e fazer parte do mesmo ato. O Teatro da Crueldade é um teatro do instinto e da intuição. A racionalidade não prepondera, porque ela não é o único componente das fontes mentais.

O que podemos tirar disso tudo?

O duplo do teatro é a própria vida. E, pelo que podemos compreender das teses de Artaud, aquele tem ascendência sobre esta. Isso porque o palco é o espaço originário para a representação, é lá que ela é perfeitamente lícita e esperada.

(Abro parênteses para um breve esclarecimento: o conceito de "representação" que utilizo aqui deve ser compreendido no sentido estético. Digo isso porque falei neste post e também neste sobre a representação vista sob o ângulo dos filósofos voluntaristas, em especial Schopenhauer. Representação, neste caso, tem a ver com o sentido da perspectiva individual que a vontade faz com que as coisas sejam enxergadas. Fecho parênteses).

Acontece que a vida obriga-nos a encenar ininterruptamente. Em cada local, um cenário; em cada situação, um script. As contingências produzem os improvisos, o fluxo da vida determina o gênero - há comédia, há drama, há tragédia, há pantomimas, há miscelâneas - e a plateia vaia ou aplaude, ainda que implicitamente. A vida é teatral, empurra-nos a isso. Mesmo os mais autênticos vestem suas personagens (que tal os ternos no verão? Será que as convenções também não são roteiros?).

Não será, contudo, a recíproca também verdadeira? O teatro ser imitação da vida, não é tão óbvio que parece impossível? Ora, invertamos a lógica: se o teatro é o espaço da invenção, da criação e da representação, a vida é o local por excelência da realidade, do quotidiano, das causas e efeitos. Quando o artista incorpora e interpreta o personagem, ele disponibiliza sua energia a tal nível que acaba por conceder realidade a este ser abstrato, e, desta forma, retransforma o teatro em duplo da vida, com prerrogativas desta vez invertidas.

Neste ponto, finalmente, temos o espelho diante do espelho. Teatro e vida introjetam-se mutuamente de um modo inexorável, ainda que a princípio imperceptível. Tolher a manifestação instintiva e intuitiva nesta relação significa empobrecê-la, desconstruí-la (não gosto deste termo). Afinal, se são duplos mutuamente, precisam refletir-se por completo. Sob a pena de não termos defesa contra os pianos que caem (lembra, Rê?)3.

Recomendação de leitura:

Os escritos de Artaud são tão surreais e tresloucados quanto suas atuações. De toda forma, sua escola influenciou e tem influenciado todo o teatro desde os anos 20 do século passado. Por isso, vale a pena tentar compreendê-lo.

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.