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quinta-feira, 28 de março de 2019

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (25 – Psicologia)

Olá!


Uns tempos atrás, comecei a sentir engulhos recorrentes. Não chegava a ser aquelas ânsias com iminência de se botar os bofes para fora, mas um enjoo constante, que tirava o ânimo de comer até a porcaria mais apetitosa. Era uma coisa estranha, imotivada. Cheguei a perder uns bons quilinhos com a brincadeira, mas era preciso fazer alguma coisa. A princípio, lembrei que havia trocado de medicamentos para a diabete, e talvez a resposta viesse por aí. A médica dra. Ana Júlia achou improvável, mas, de toda forma, eu podia voltar às mezinhas anteriores, com a recomendação de procurar um gastro. Não deu certo, nem um, nem outro. Os engulhos continuavam, e a consulta só para trinta dias. Havia uma sobrevivência a ser tentada, e o jeito foi apelar para uma dieta à base de legumes e verduras sem tempero. Melhorei bastante, mas o desconforto voltava ocasionalmente, de maneira especial pela manhã, rumo ao batente.

Dia desses, eu estava perfeitamente bem, quando chega a ligação, lá pelo meio da tarde: reunião urgente, traga relatórios, mas eu não tenho, se vira, a chapa tá quente. Foi automático, ou melhor, somático. O enjoo voltou na hora, como se eu tivesse tomado um litro de chá de louro. Daí por diante, foi possível estabelecer todas as correlações que levavam à suposta patologia – acúmulo de stress, derivado da tensão no trabalho. A recomendação médica foi o mesmíssimo Plasil© que eu vinha tomando para controlar a náusea, tirar um bom período de férias e procurar um psicólogo. Na prática, como bom assalariado, só cumpri a primeira, com a promessa interior de me desligar o tanto quanto possível do mundo laborativo.

Essas ocorrências ajudam a reforçar algumas lições que aprendemos no curso da vida, especialmente em momentos nos quais nosso ímpeto por descobertas nos faz tirar conclusões apressadas e equivocadas, na maioria das vezes. Lembro-me muito bem do quanto eu ridicularizava a profissão de psicólogo, dizendo que quem se dispunha a estudar a matéria o fazia por ter conflitos interiores a resolver. Em outras palavras, o psicólogo tinha problemas psicológicos. É o que dá acreditar em estereótipos: o audiente soturno instalado atrás do divã, que parece pensar na janta enquanto o paciente verbaliza seus mais inconfessáveis recônditos da memória. A história da pessoa que se interessa por Psicologia por ter problemas psicológicos é uma das mais retumbantes bobagens que eu já pensei na minha vida. Afinal de contas, não é a dor de dente que leva ao interesse pela Odontologia, nem o carro quebrado pela Engenharia, mas uma inclinação a conhecer mais e melhor cada uma dessas áreas, a entender com mais propriedade um conhecimento específico, ao qual tínhamos uma predisposição mais sólida. É a mesma coisa comigo: eu não estudei Filosofia porque sou um lunático que passa o dia inteiro ensimesmado, pensando sobre o Ser e o não-Ser (chavão primeiro – mais clássico), ou um esquerdista petista comunista gayzista do globalismo muçulmano-gramsciano empunhando bandeiras vermelhas para dominar o mundo (chavão segundo – mais recente), mas pura e simplesmente porque gosto de Filosofia, punto e finito. O mesmo se aplica ao psicólogo, que não é um louco que procura se entender, mas um profissional que tem um campo de estudo como outro qualquer. Vamos entender, então, o que é essa tal de Psicologia.



Vocês que me acompanham com alguma frequência já leram inúmeras vezes textos nos quais eu me refiro a autores da Psicologia. Isto se dá pela estreita ligação que esta guarda com a Filosofia, talvez até mais que outras ciências em geral. De fato, é meio difícil discernir até onde vai a Gnosiologia e a Epistemologia, áreas filosóficas, transitando pela Filosofia da Mente, e onde começa a Psicologia, linha muito borrada que divide áreas interpenetradas. Gente importante, como o neurocientista Michael Gazzaniga (de quem lancei mão neste texto), considera que, à medida que o conhecimento sobre os processos fisiológicos nervosos avançarem, a Psicologia mais e mais será arremessada ao campo da pseudociência; não como uma simples crendice, mas como registro histórico superado, assim como a alquimia ajudou a química moderna a se estabelecer, para depois sair de cena.

Verdade é que a profecia de Gazzaniga parece exagerada e ainda vai longe de se cumprir. Os processos mentais são muitíssimo subjetivos, partindo da premissa que temos instrumentos que medem a temperatura, a pressão e o fluxo elétrico do cérebro, mas não há uma maquininha que reproduza as imagens que lá transcorrem. Dessa forma, o que temos ao nosso dispor são as interpretações, que passam pela capacidade descritiva de quem tem as impressões e pelo discernimento de quem as recebe. É tudo muito subjetivo para passar pelo filtro científico. Ou não?

É nesse ponto que a Psicologia difere da Filosofia: na obtenção dos resultados. A Filosofia não tem o compromisso de chegar a resultados empiricamente observáveis e mensuráveis, apenas de se manter em uma linha de lógica e racionalidade. Quando acontece uma eventual comprovação, a Filosofia vira Ciência, como tantas vezes já aconteceu na história. A Psicologia lida com disciplina que a arrasta bastante para o campo especulativo, já que, como falamos, é muito difícil traduzir com precisão os fenômenos mentais. No entanto, se eu não consigo “ler a mente” de um contribuinte qualquer, ainda me resta alguns métodos indiretos – observar os resultados das pesquisas que explicam os processos mentais, especialmente quando estendidas a um volume considerável de análises. Desse viés empírico, é possível medir a cientificidade da Psicologia. Em primeiro lugar, ela tem um objeto claro de estudo: as funções mentais. Esse estudo é feito de maneira racional, desconsiderando instâncias metafísicas que não possam ser experimentadas. Também possui métodos bem definidos, incluindo o estudo de casos clínicos, estatísticas, comparativos e etiologia; do bojo de suas hipóteses é possível estabelecer sistemas teóricos que permitem fazer previsões, que, por sua vez, tem resultados verificáveis. E, o mais importante de tudo, na medida em que uma afirmação é falseável, ela passa pela principal premissa do método científico. E estes dois últimos itens a diferenciam da Filosofia e a enquadram como Ciência. Simples assim.

Mas a Psicologia está no âmbito das Ciências Humanas, o que a coloca naqueles perigosos pântanos de discussão infinita. Ela não é tão afiliada à Matemática como a Física e a Química, que são mais redutíveis a fórmulas. Justamente por não lidar com um campo de estudo facilmente delineável, e por não ter bases unanimemente aceitas, a Psicologia trabalha com várias abordagens diferentes, o que faz um candidato à carreira ficar maluco (epa!) na escolha de sua filosofia de trabalho. Ora voltada para o funcionamento mental, ora para as suas manifestações, a Psicologia se origina de um tempo bem recente, nos fins do século XIX, quando Wilhelm Wundt lança as bases do estudo dos fenômenos que intermedeiam a natureza e a cultura, ou seja, como o homem atua no mundo e por quais motivos o faz. Seu nome significa “estudo do pensamento”, já que o termo grego psiqué significa alma, que, para aquele povo, era a sede dos pensamentos. Daí por diante, as escolas de Psicologia foram variando, tanto no tempo quanto no enfoque, e nós vamos falar rapidamente sobre as principais. Como já falei sobre várias delas em meu post sobre Filosofia da Educação, a pincelada será rápida.

Em um momento onde se convenceu da necessidade de se estudar a Psicologia, surge a primeira e mais fundamental de todas as perguntas: o que é a mente e como ela se organiza? Dada sua inegável complexidade, a mente se erige em uma estrutura, onde estão compartimentalizados os seus diferentes componentes. Neste momento, a preocupação da investigação científica está no funcionamento dos processos de consciência, como, por exemplo, como o indivíduo se reconhece em meio ao mundo no qual habita; nas memórias, seu armazenamento e resgate; na intencionalidade, ou seja, no modo como a mente volta sua atenção a um objeto; nas emoções e no próprio conteúdo dos pensamentos. Em síntese, a Psicologia tem uma orientação inicial de procurar o “esqueleto do prédio” mental, e por esse motivo essa escola ficou conhecida como Estruturalismo. Sua principal ferramenta era a introspecção, que é a observação dos fenômenos mentais do próprio pesquisador. Como esse método tem uma carga de subjetividade muito alta, esta escola teve muita resistência em ter reconhecimento como científica, embora adotasse uma prática laboratorial onde resultados eram coligidos e comparados.

Uma alternativa ao Estruturalismo veio com o Funcionalismo. Nessa linha de pensamento, a mente é investigada como um órgão do corpo. Da mesma forma que os pulmões realizam trocas gasosas, o estômago processa alimentos e a bexiga armazena e retém urina, a mente também possui uma especificidade para o conjunto harmônico do organismo, ou seja, uma função. Fortemente ligada à Teoria da Evolução, o grande interesse desta corrente estava no estudo dos processos psíquicos como ferramentas de adaptação ao meio, ou seja, como a mente fazia para realizar interações que lhe garantiriam não só a sobrevivência, mas maneiras melhores de viver. Dessa forma, o Funcionalismo já não se mostra muito preocupado com o trabalho interno da mente, mas em como o restante do organismo reage à sua função. Essa exterioridade do objeto de pesquisa a tornou muito mais objetiva que o Estruturalismo, e compôs a alternativa que veio a abrir os dois ramos que vieram daí para frente: um foco nos processos internos era derivado do Estruturalismo; nas manifestações exteriores, por sua vez, do Funcionalismo.

Mas a primeira grande escola a causar real burburinho nos meios acadêmicos foi o Behaviorismo, termo derivado do inglês behavior, que significa comportamento. Da mesma maneira que o Funcionalismo, os processos subjetivos estão fora do campo de interesse dos behavioristas, que se ocupam essencialmente do estudo dos comportamentos humanos. A mecânica básica é a investigação de como alguém responde a um estímulo, e como o faz quando este for positivo ou negativo. A grande linha de pesquisa do Behaviorismo foi também sua maior polêmica. Como uma pessoa reage a estímulos, é possível conduzir sua personalidade a um caminho determinado. Isso dá muita margem a manipulações, que vão desde uma simples chantagem emocional até a implantação de reforços ideológicos. Que medo!

Ao lado do estudo comportamental, nasceu na Europa a corrente que talvez seja a mais célebre desta ciência: a Psicanálise. Bebendo na fonte do Estruturalismo, e ainda mais subjetivo que este, os psicanalistas se aprofundaram nos recônditos da alma humana, para descobrir que a consciência nada mais era do que o aspecto perceptível de um arcabouço muito maior, que fugia do controle do indivíduo. A Psicanálise tinha um foco essencialmente terapêutico: essa abordagem construía suas teses principalmente sobre as patologias psíquicas. Fortissimamente calcada em ponderações filosóficas, a Psicanálise sempre teve dificuldades em convencer a academia de sua plena cientificidade, embora possua amplo cabedal de casos clínicos para apresentar como patrimônio empírico e experimental. É da sua formulação de escuta que nasceu o grande clichê do divã e do bloquinho.

Outra corrente de origem europeia veio trazer mais luzes sobre a interação do homem com o ambiente. Fundamentada na Fenomenologia, a Gestalt estuda a forma com a qual o mundo se apresenta à nossa consciência, ou seja, o núcleo de sua atenção está na percepção. Gestalt significa algo como “configuração” em alemão, e ela diz que nos apercebemos da realidade sempre como um todo, sendo que as partes isoladas possuem menos significado do que como participantes da totalidade. Nossa consciência procura desesperadamente por contextos que justifiquem um objeto visto isoladamente. Segundo seus pensadores, o cérebro possui esquemas simplificados do que é a configuração ideal de um todo, e, se alguma parte está em desacordo com o esquema, a mente se encarrega de suprir a falta ou desalinho. Por exemplo, não deixamos de reconhecer uma pessoa se a vemos em uma foto rasgada, porque nossa consciência trata de “costurar” sua imagem e fazer-se reconhecê-la.

A escola do Cognitivismo, por sua vez, refuta o mecanicismo estímulo-resposta do Behaviorismo e propõe que a obtenção do conhecimento é feita de modo muito mais complexo. O uso da inteligência não se limita apenas a receber recompensas ou evitar castigos, mas a organizar internamente os conceitos que são obtidos a partir de experiências novas e agregá-las ao acervo preexistente, e por isso esta corrente investiga todos os processos de memorização, de apreensão e de processamento de informações. Em resumo, os psicólogos cognitivos tentam compreender como se dá o aprendizado. Os cognitivistas estudaram com muito detalhe a destreza mental que cada indivíduo tem em diferentes etapas de sua vida, de modo a estabelecer uma classificação do que é possível a cada uma das faixas etárias conhecer, de acordo com a evolução de seu equipamento mental.

Por fim, vamos pincelar a vertente do Humanismo. Preocupada com a maquinização radical das demais escolas psicológicas, os humanistas estavam preocupados em tornar o analisando em um protagonista na sua relação com o mundo, de modo a não se fechá-lo como um mero fruto do ambiente ou como um possuidor de patologias. Estas ocorrem, em especial, justamente quando há uma incompreensão com a realidade circunstante. Esta é tão móvel quanto a história, que nunca é a mesma, e esse é o princípio que norteia a autorrealização: a consciência de que vivemos a cada dia com um conjunto não estanque de circunstâncias. De cunho mais otimista, os humanistas focavam-se em buscas de significações para a vida, trabalhando a motivação dos indivíduos. Tem cheirinho de auto-ajuda? Tem, mas a escola é séria. O seu uso posterior não é de responsabilidade de seus criadores.

Muitas outras correntes derivaram destas que mencionei, mas vai ficar chato e arrastado se eu ficar discutindo sutilezas. Por ora, dou por cumprida a missão de alimentar este humilde guia, trazendo um mínimo sobre uma área fascinante, que busca sistematizar algumas das questões mais recorrentes que fazemos desde que nos entendemos por gente. Bons ventos a todos!

Recomendações de canais:

As recomendações de hoje serão de alguns dos muitos canais que eu acompanho no YouTube que, evidentemente, tratam do assunto. Para quem quer uma visão rápida sobre diversos conceitos, a boa pedida é o canal Minutos Psíquicos:

Para quem quer uma visão mais próxima da interação que há entre Psicologia e Filosofia, indico o canal do João Vitor Wrobleski, o Filosofia da Psique:

E, finalmente, para tratar mais diretamente sobre temas da prática psicológica, a recomendação vai para o canal Mente Aberta, capitaneado pela Ana Carla.

segunda-feira, 18 de março de 2019

Navegações de cabotagem – O Morro do Maluf no Guarujá: uma vista para a beleza e para o consumo conspícuo

Olá!


Com o tamanho da costa do país do futebol, não é de se estranhar que os nossos principais destinos turísticos sejam as cidades litorâneas. Feriados prolongados são sinônimo de formigueiro à beira-mar, com os consequentes engarrafamentos das rodovias que cumprem a árdua tarefa de dar caminho às praias. É assim mesmo – sol, mar, corpos bronzeados, cerveja e churrasquinho são a combinação perfeita para 99% por cento dos brasileiros. Eu estou no percentual restante.

Ora, direis, que te faz tão rabugento? Nada de substancial. É um misto de frustração com overdose de areia, e acabei perdendo um bom tanto da graça de ficar com o sal grudento nas costas, com a areia urticante nos pés, os mil e um cremes para evitar as queimaduras que me vêm só do mormaço, das intermináveis filas do pão, da carne e da novalgina. Enfim, houve um ponto de inflexão tal que o incômodo com o litoral se tornou maior que o prazer, só isso.

Claro que eu me refiro às repetições contumazes. Se tudo fosse uma grande novidade, com certeza pensaria diferente. Se alguém me convidar para conhecer Jericoacoara ou Porto de Galinhas, arrumo as malas em cinco minutos. Mas a costa paulista, conheço-a toda, de inúmeras farofagens feitas desde a época de pequeno, embora tenha mais de trinta anos quando fui pela última vez às praias do Vale do Ribeira. Acho que iria para lá de boa. É... boa ideia. Vai para a lista de roteiros.

Mas não é só de orla que vivem as cidades do litoral. Algumas são verdadeiramente grandes, centros importantes, tanto nas finanças quanto na cultura, e já fui a Santos só para levar a patroa para ver o time da casa. Tenho também alguns parentes em Itanhaém e um primo em São Sebastião: visitas também são bons motivos para descer a serra. E há concursos públicos.

Mais um? Mais um. Do filho mais velho novamente? Do filho mais velho novamente. É meu jeito de cooperar, entrando com gasolina e pedágio, enquanto ele entra com inscrições e sapiência, já que não posso nem quero fazer as provas em seu lugar. Estamos rumando para o Guarujá, a Pérola do Atlântico, que, para quem não sabe, é totalmente destacada do continente, acessível por balsas ou pontes.

A prova do concurso foi realizada em uma escola de Vicente de Carvalho, o distrito pobre da cidade, perto do porto que ladeia o estuário de Santos. Não tinha nada para fazer por lá em um domingo bem cedinho, nem tomar café em um boteco minimamente confiável. Nesse diapasão, melhor seria encher os olhos com alguma bela vista, nessa cidade que é conhecida como uma das mais bonitas de todo o litoral paulista. O mirante mais próximo e mais fácil é o Morro do Maluf, e é para lá que eu vou, em demanda do meu cafezinho. Achei em um bar que fica no pé de tal logradouro.


O Maluf é um promontório que se projeta mar adentro, de modo a fazer divisa natural entre as praias de Pitangueiras e Enseada. Seu nome nada tem a ver com o famoso político, mas com o empresário Edmundo Maluf, que costuma dar festas de arromba em sua casa localizada no morro. Sobrou o nome e a profunda visão que se tem do mar.


O nome oficial deste mirante é outro. Chama-se de Morro da Campina, mas foi consagrado com o nome tipicamente libanês. Há dois pontos por onde se pode acessá-lo: pela praia das Pitangueiras, cheia de cascalho, por onde temos as portarias dos principais prédios, e que é mais próximo às pedras da orla...


... e pela praia da Enseada, por onde é possível chegar à parte mais alta do morro, cuja ladeira passa por meio do que restou de bosque no local. Da orla, é possível ver o paredão que o pessoal do rapel usa em suas radicalidades. Já, já volto a falar sobre isso.


Quando nós chegamos ao morro, ainda estava bem cedo e tínhamos a “friaca” matinal, com o céu bastante encoberto e meio escurão. Os poucos corajosos que se atreviam pela orla não estavam lá para praticar banhismo. Pelo cheiro de tecido queimado, era outro tipo de atividade. Para quem já foi em São Thomé das Letras dialogar com os artesãos locais, não há muito conservadorismo a ser colocado.


Pela entrada de Pitangueiras, a rampa é toda murada, e, mesmo naquela hora da manhã, não há lá muitas vagas para se parar o carro. Entretanto, é dali que se pode observar a água do mar batendo nas pedras e fazendo sua espuma. Já sentiram uma estranha sensação de que o mar te puxa em mergulho suicida? Pois é, neste lugar me dá esse negócio.


Já pela entrada da Enseada, é possível chegar no topo do mirante. O morro tem uma culminância de 40 metros de altura, contando, evidentemente, do nível do mar. O que lhe restou de vegetação é de gramíneas na parte exposta ao front marítimo, e um quase desaparecido pedacinho de mata atlântica na parte de trás.


É daqui que temos a vista mais bonita, de toda a longa praia da Enseada, e é daí que aprendemos um pouco de geografia: uma enseada é uma espécie de curvatura na linha costeira que forma uma reentrância, mais aberta que uma baía, mas mesmo assim facilmente delimitável. Neste caso, a praia fica entre o Maluf e o Morro da Península, lá do outro lado.


Os antigos marinheiros gostavam de aproveitar estes acidentes geográficos porque os cabos produzem quebra-mares naturais, fazendo com que as águas em seu interior fiquem mais mansas do que em mar francamente aberto. Além disso, os avanços de terra adentrando o mar costumam propiciar um pouco mais de profundidade para as embarcações acostarem.


Podem perceber que, pela mudança de luminosidade e pelo incremento populacional, nós ficamos um tempão lá em cima, já que não havia pressa nenhuma. A princípio, era possível complementar as contemplações ambientais, como as várias ilhas que guarnecem aquele pedaço de litoral, como a Pompeba, para o lado das Pitangueiras; a Moela, para quem olha no sentido das Astúrias, ou a das Cabras, fotografada aí em embaixo.


No entanto, a preguiça matinal vai se esvaindo e intervenções humanas passam a ser mais frequentes que ilhotas ou ondas que batem em pedras. O Maluf, como eu já disse, tem um belo paredão para quem gosta de praticar rapel. Sinceramente, não me vejo praticando esse tipo de diversão, pelo mero aspecto prático de que é muito tempo perdido com parafernálias e segurança para descer uma encosta. Mas admiro quem curte – sou cagão para alturas.


Mais longe, sim, algo que eu adoraria. Uma burguesíssima lancha singrando o mar e fazendo rodeios para lá e para cá, a esmo. Também vi alguns jet-skis, e meu grande barato nem seria uma lancha, mas um barco a vela, o que não significa que não aceitaria de bom grado fazer um rolê náutico em uma dessas.


Algo muito digno de nota, que necessitará de um relatozinho básico: quando eu era pequeno, meu padrinho tinha uma Kombi e outro tio tinha uma Variant, as duas em um estado de conservação que não passaria nem em uma rua secundária, quanto mais em uma rodovia. Mas eram outros tempos e isso não vem ao caso. O que importa era que meu avô elegia uma praia qualquer e para lá íamos farofar em comitiva, com veículos cheios como um ovo cozido. Lembro bem do Maluf, porque era diferente das habituais “planícies” do litoral sul. Já existia o Grande Hotel, mas, no geral, era possível ver uma boa parte dele de longe. Acontece que sua parte traseira está absolutamente tomada por prédios. Não se sabe que há uma elevação quando se chega pela avenida praieira. Ela está completamente cercada pelas edificações.


É bem verdade que ainda existe uma pequena parte do bosque, mas somente é possível entrevê-lo entre um edifício e outro.


O mesmo pode se dizer com relação ao morro descoberto. O paredão abaixo não pode ser aproveitado para praticar rapel, já que vai dar na área dos fundos dos prédios que ficam no acesso de Pitangueiras. Também aqui boa parte do espaço está oculto. A única parte ainda aberta é aquela que está defronte ao mar.


A questão se radicaliza no topo. Se por um lado a praia da Enseada é visível de maneira majestosa, a de Pitangueiras ficou praticamente toda escondida, sendo necessário encontrar um ponto exato para conseguir enxergar uma nesga da areia. Que puta desperdício de beleza. Desperdício, não; privatização, isso sim. Quem está nos prédios tem a visão que foi roubada dos transeuntes.


Isso me obriga a retomar a questão tratada no texto anterior, e recomendo sua leitura. Mas dá para entender este post com independência. Mercadorias tem valor de uso e valor de troca, e só assim são mercadorias. Algumas coisas têm só valor de uso, como o ar que se respira, e não existe essa coisa que tenha valor de troca puro. Mas existem muitas relações de equivalência. O valor de uso só se realiza no próprio uso ou no consumo, e só ganha valor de troca quando se permuta com valor de uso de outras espécies, que dificilmente possuem correlação direta, do tipo “um quilo de arroz vale um quilo de feijão”. Por exemplo, Karl Marx utiliza a comparação entre uma peça de roupa e o tecido necessário para fazê-la. Pensando em termos de uso, um casaco serve para guarnecer o corpo contra o frio, e o linho serve, ora essa, para fazer casacos. Digamos que, colocados em seus valores de troca, um casaco equivalha a duas medidas de linho. Em um pensamento simplista, poderíamos afirmar que a correlação direta se dá na quantidade necessária de linho para manufaturar o casaco, mas, na realidade, esta dá e sobra – há mais linho do que o necessário. 

Por que essa diferença nos valores de troca? Por que há um terceiro elemento, um valor de trabalho embutido no casaco que majora aquele próprio com relação ao material linho. Afinal, não basta jogar o fio para o céu e obter a peça pronta. É preciso tecer, cortar, alinhavar, costurar e dar acabamento. Da mesma forma, qualquer mercadoria carrega consigo uma parcela de valor do trabalho que foi aplicado para constituí-la, mesmo que seja um simples extrair da natureza.

Todas as mercadorias guardam entre si uma correlação de valores de troca, ainda que de maneira distante. Um casaco vale duas medidas de linho, que vale três garrafas de uísque, que valem um quintal de alface, que valem cinco barras de estanho e assim sucessivamente, todos determinados pelo somatório do valor concreto dos materiais e do valor abstrato do trabalho, lembrando que o valor dos materiais já inclui o trabalho que se houve para obtê-lo.

Acontece que, na prática, não vamos à quitanda com barras de estanho para comprar alface. Há inúmeros contratempos para limitar o escambo direto: dificuldade de mobilidade, falta de interesse em uma das partes, limites na avaliação dos valores, impossibilidade de fracionamento em mercadorias indivisíveis. Para solucionar o problema, nasce uma mercadoria cujo valor de uso consiste exatamente no seu valor de troca: o dinheiro, um equivalente universalmente aceito que resolve a questão dos valores de troca. Assim, um casaco custa a mesma quantia em dinheiro das medidas de linho, das garrafas de uísque, da alface, do estanho e de tudo o mais que possua valor de troca, de modo a ser sua posse a necessidade básica para comerciar.

Ocorre que o dinheiro funciona tão bem que esquecemos a verdadeira razão de sua existência, a de representar valores de troca vinculados a mercadorias fisicamente existentes, e passa a ter vida própria. Ele ganha a primazia na relação comercial, e tudo dentro dela passa a ser expresso em cifras, como se o dinheiro fosse uma espécie de fantasma, um componente que surge não se sabe de onde, mas que embute em si todo o campo de relações de trabalho que são parte integrante dos valores de troca das mercadorias. As coisas têm preço, mas já não sabemos bem de onde vem, aparecendo como um feitiço, e não de nossa força de trabalho. Esse é o fetiche da mercadoria.

Percebam que o termo fetiche não tem aqui a conotação sexual que normalmente lhe damos, danadinhos que somos. Portanto, não está ligado apenas ao desejo e ao consumo excessivo, tão característico das elites, mas a toda e qualquer relação de consumo. Afinas de contas, a mercantilização se dá até com bolinhas de gude, e sua cotação no mercado não é algo que se explicite facilmente na etiqueta à borda do pote que as guarda. O fetiche vem da ideia de enfeitiçamento que dá ao dinheiro uma espécie de carga sobrenatural. Portanto, Marx não estava se ocupando em explicar o fenômeno do culto ao supérfluo, e sim à alienação causada pelo fetiche da mercadoria. Mas o fenômeno do preço caro que atrai mais compradores também já foi estudado, e seu principal analista foi o norte-americano de origem norueguesa Thorstein Veblen.

Veblen foi um economista que abraçou um socialismo não-marxista, cujo principal objeto de estudo foi a classe ociosa gerada pelo capitalismo. Os magnatas dos inícios da Revolução Industrial auferiram ganho tal que lhes era impossível consumir toda a própria riqueza, por mais perdulários que pudessem ser. Como distintivo dessa nova classe, nasce um novo culto ao ócio e o consumo conspícuo, termo utilizado por nosso autor para designar o ato de adquirir bens com o único propósito de ostentar riqueza.

A humanidade, diz Veblen, só saiu da sociedade igualitária quando a noção de propriedade individual passou a fazer parte dos objetivos de cada um de seus membros. Mas uma das chaves do sucesso não está apenas na maior aquisição de terras, e sim na apropriação do trabalho alheio, começando justamente pelo das próprias mulheres. Uma vez desobrigado de atividades laborais, essa casta passou a cultuar o ócio, que ganhou um aspecto de quase sacralidade. Devemos nos lembrar que a própria religião dá ao trabalho um estatuto de castigo (“comerás o pão com o suor do seu rosto”), o que reflete o pensamento que vê na atividade voltada a coisas supérfluas como uma espécie de recompensa pela capacidade de ter posses, o que deve ser ostensivamente demonstrado a todos os nichos sociais que o cercam.

De fato, no espectro das classes, quem mais tem interesse em se diferenciar são aquelas do topo da pirâmide. É a posição psicológica de quem precisa ser fonte de determinação de regras. Em uma sociedade guiada pela mercadoria, quem nos indica quais são as melhores são aqueles que as podem consumir sem limites. Passa imediatamente pela nossa cabeça que as mercadorias mais caras são aquelas que melhor se enquadram como objetos de desejo. Portanto, o melhor champagne, o melhor carro, a joia mais preciosa, o estilista mais renomado são justamente aqueles consumidos por quem podem pagar mais. E isso inclui casas à beira-mar.

Percebam como as marcas que produzem mercadorias caras nunca baixam seus preços. Não há uma Ferrari popular, uma Mont Blanc linha B, uma Gréville de baixo custo. Fazer isso significaria perder o seu público habitual, que está disposto a pagar muito caro.

E caro é o preço de um imóvel no interior da faixa de areia, principalmente em um morro como o Maluf. Caríssimo. Somente um estado psicológico em que alguém deseja provar que pode mais do que os outros explica o tanto que se paga a mais por um patrimônio nesta posição. Um imóvel do outro lado da via é muito mais em conta, e a única diferença é atravessá-la. Somente o desafio da inveja, de causá-la, pode explicar o tanto a mais que se investe. Ainda mais porque, junto com este sentimento, vem a raiva pela privatização da paisagem. A visão que se tem da elite é duplamente malfazeja: por um lado, invejamos a posição e as benesses que possuem; por outro, morremos de ódio porque esfregam sua opulência em nossas caras.

O problema é quando sua capacidade de ostentar interfere diretamente em direitos básicos, simples como ter a visão de um morro na beira da praia. Os diferentes governos não deveriam permitir, na minha humilde opinião, a construção de empreendimentos em área que deveria ser pública. O que custa para alguém subir o morro ao lado de todos os outros cidadãos para apreciar o mirante? Os impostos pagos não podem justificar a concessão à vaidade de meia dúzia de abastados em detrimento de todos os demais, mas o fato é que isso ocorre.

O Morro do Maluf, nesse sentido, é um monumento à exclusão que beira a tolice. Por mais que eu entenda que os sonhos de uma sociedade equânime sejam utópicos, certas compras o dinheiro não deveria poder fazer. Nestes tempos em que elegemos governos que primam pela prosperidade das camadas mais abastadas, desprezando ações sociais, não dá para manter muito otimismo. Bons ventos a todos, na medida do possível.

Recomendações:

O Guarujá tem se notabilizado não só pela beleza, mas pela balneabilidade de suas águas. Para quem estiver a fim de uma praia, é o passeio ideal. Fica bem perto, a cerca de 90 Km da capital.

A teoria de valores de Marx está logo nos primeiros capítulos de seu capolavoro, O Capital, a quem já recomendei, com as devidas contingências, neste texto. Vão lá.

Veblen tem uma abordagem bastante original sobre o consumo conspícuo, embora tenha sido considerado um outsider da Economia por um bom tempo, já que a pauta racionalizante era mais significativa do que os aspectos psicológicos que ele gostava de lançar mão. Segue sua obra mais importante:

VEBLEN, Thorstein. A Teoria da Classe Ociosa. Col. Os Economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

sábado, 9 de março de 2019

Navegações de cabotagem - O Memorial da Água de Leme: sobre o direito que temos de transformar nossas cidades

Olá!

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Eu sempre fui um corujão, e transferi essa herança para meu menino mais velho. Menino modo de dizer, o gajo já tem 26 anos, mas é aquela coisa... Filho hoje, filho ontem, filho sempre, e, como tal, acabamos fazendo alguns mimos eternamente. Um deles diz respeito à minha capacidade de render melhor à noite do que de dia, tão bem repassada ao primogênito que ele se torna quase incapaz nas primeiras horas da manhã. Isso porque a vida parece se iniciar para ele depois das vinte. Já era assim na barriga da mãe: silêncio e imobilismo de dia, inquietação e pontapés à noite. Exageros à parte, isso significa que, para ele levantar quase de madrugada no domingo, pegar 200 km de estrada e prestar um concurso público, temos diante de nós uma tarefa quase hercúlea, e até perigosa. Sendo assim, melhor que eu mesmo o embarque em meu inefável Bedelho e o encaminhe até o local de prova, para que ele possa dormir mais duas horas e pouco, mitigando os riscos e dando-lhe um pouco mais de alerta na prestação do certame. Quanto a mim, a natureza do envelhecimento tratou de reduzir muito a necessidade do sono. Se eu for dormir à meia-noite, às cinco estou bem apto a pegar uma rodovia enfadonha como a Bandeirantes por umas quatro ou cinco horas sem tirar de dentro.

Vamos a Leme, cidade da região de Limeira, com seus cerca de 100.000 habitantes. Uma cidade de porte médio, portanto. É daquelas cidades mais novas, do tipo planejado, com a maioria de suas ruas e quarteirões formando quadriláteros perfeitos, um distrito industrial bem definido e alguns bairros mais afastados formando novos núcleos urbanos. Não há muito o que se fazer no domingo, mas esse é um dos espíritos do epicurismo – encontrar prazer onde ele não existe, porque ele existe onde nós quisermos que ele exista. Aff... que confuso. O fato é que nem só de queimar o couro cabeludo no sol se compôs essa minha viagem e minha espera. Há, em um cantinho meio escondido, um local meio inesperado em Leme, e que descobri meio que por acaso. É o Manancial Landgraf, uma espécie de parque de nascente onde está instalado o Memorial da Água. É para lá que eu vou.



Vamos começar fazendo os esclarecimentos necessários. Ricardo Landgraf foi um prefeito de Leme cuja família era a antiga proprietária da área que hoje é ocupada pelo projeto, uma fazenda que possuía um produto absolutamente necessário para a existência do município: água. O nome, por conseguinte, é uma homenagem a essa pessoa.



O cheiro forte de esterco nas redondezas denuncia que estamos em região rural. Isso nos ajuda a compreender que estamos perto das nascentes de fontes naturais, ideais para o consumo de uma população, mas que precisa passar por alguns processos que garantam a qualidade da água.



O processo todo, observado de perto, parece tremendamente simples em uma estação tão pequena, que era adequada para a década de 50, quando foi fundada. E é justamente esse o espírito deste parque – explicar o funcionamento de captação e tratamento hídrico. Como a entrada do memorial é em um baixio, vamos conhecendo o processo na ordem inversa. Os tanques são utilizados para filtragem e armazenamento da água.



A água chega à filtragem por efeito do escoamento, utilizando a boa e velha gravidade, em uma canalização aberta aproveitando o declive natural do terreno, já com seu curso devidamente retificado e de modo a utilizar com maior eficiência a quantidade hídrica disponível.



Isso evidentemente acontece em um determinado ponto, mais acima, onde o pequeno regato começa a penetrar em um adensamento do bosque, ou seja, a mata ciliar foi bem pouco desmatada originalmente para a realização dos trabalhos de coleta.



A manutenção desta área, portanto, foi o principal fato do seu aproveitamento atual. É óbvio que com o grande crescimento populacional de Leme, era impossível que um pequeno vertedouro desse conta do abastecimento do município. Mas foi exatamente essa preservação que permitiu o uso como área de lazer.



Na medida em que se sobe o morro, mais e mais se penetra em meio natural, e ainda mais bonita vai ficando a paisagem. O calçamento deixa de existir, e a diversidade de espécies vai se tornando destaque. Há figueiras, caetés, mangueiras, samambaias e palmeiras, com a correspondente multidão de insetos.



A nascente da fonte d’água fica bem imiscuída por dentro da mata, e o ponto onde é possível começar a acompanhá-la é este aí embaixo. Daí para frente, só o seu pequeno curso natural, que, no final das contas, é a origem do Córrego do Constantino.



O caminho continua através de trilhas. Pelo que consegui entender, o parque abre durante os finais de semana e feriados, mas só até as 16:00. Eu queria ter obtido mais detalhes, mas a partir desse ponto o registro se defrontou com a corrida contra o relógio.



Algumas espécies são bastante curiosas. Eu não consegui entender se os longos ramos desta árvore são naturais ou se houve algum tipo de intervenção humana para deixá-lo alongado assim.



De qualquer forma, o espaço é equipado com lixeiras, placas indicativas e motivacionais (detesto motivacionais), e muito do que é utilizado para sua manutenção vem do reuso de seus recursos. Um exemplo são as madeiras utilizadas nos reforços dos degraus. Certos pontos são meio íngremes demais para contar apenas com a borracha dos calçados.



O final das trilhas mais visíveis é o cerramento das matas. Para o lado de lá, pude saber que há vastas plantações, com uma boa porção de eucaliptos e silos de armazenagem de grãos da CASP, sinal de presença dos agronegócios. Essa vocação vem de muito tempo já, quando foi montada uma pequena gare nas terras de Manoel Leme, visando transportar a produção de café local, e nomeando o futuro município.



A criação do Memorial da Água é, sem dúvida, uma ideia feliz. De um espaço que poderia simplesmente voltar ao seu propósito anterior, uma fazenda como outra qualquer, desenvolveu-se uma proposta pouco comum, que conserva seu aspecto ambiental e reserva seu contexto histórico. Nestes tempos em que se discutem com raiva políticas públicas, é bom perceber que ainda existem atitudes que ao menos discutem algumas velhas questões. Por exemplo: como cidadão, qual é o direito que eu tenho de opinar ou de interferir na constituição do ambiente em que habito? Há democracia na maneira com a qual nossas cidades são construídas? Essas são algumas das perguntas em que podemos nos remeter a Henri Lefébvre para tentar arguir.

Lefébvre foi um filósofo e sociólogo francês do século XX, cujo principal tema de trabalho foi a maneira como o sistema de produção capitalista moldou a edificação do meio urbano e como esse substrato limita os direitos democráticos de participação na vida das cidades. Cheira a marxismo? Sim, cheira, porque É marxismo. Coloque seus preconceitos no baú e conheça o autor antes de criticá-lo, por favor. Não seja mais um tolo.

Muito bom... o que é uma cidade? Curto e grosso, é o espaço físico onde uma sociedade se projeta. Eis que, eminentemente, e ainda que se conserve alguma quota de seu meio natural, a cidade é produto da mão humana, e que carrega suas características. Sendo assim, uma cidade plasma as relações sociais que nela se deslindam. Mas já chegamos nisso, porque a cidade nem sempre foi assim. Aliás, é só a partir da modernidade que a cidade ganha a cara que conhecemos hoje.

Peguemos, por exemplo, as cidades na Idade Média. As pessoas não viviam nelas, mas nos feudos, a divisão territorial composta pelas terras dos nobres, que, via de regra, tinham um castelo senhorial e as habitações dos vassalos em sua redondeza. A cidade, por esta era, consistia no local para onde os camponeses e artesãos se reuniam para praticar o comércio de suas mercadorias, em um ambiente semelhante a uma feira. Esse era o burgo, que deu origem ao termo burguesia, mas esta é outra história, bastando saber que a cidade não era o lugar onde as pessoas habitavam, mas onde levavam uma espécie de vida pública.

Com o advento da industrialização, a cidade ganha um novo sentido, bem diverso daquele que tratamos agora. Vamos olhar para uma república incrustrada em Terra Brasilis, e lá poderemos compreender um pouco melhor o que sustentarei daqui por diante. Vamos para a Mooca, minha terra natal.

Quem a conhece bem, sabe que era composta de um grande número de fábricas e inúmeros cortiços, alguns ainda hoje resistentes. No geral, essa conformação deu lugar ao dueto condomínios e centros comerciais, mas há um autêntico museu urbano a céu aberto, na parte baixa do bairro: na rua dos Trilhos, a enorme fábrica têxtil dos Crespi, família italiana que veio fazer fortuna por aqui, que ainda tem em seu entorno uma grande quantidade de casas e vilas operárias. Em uma época onde a imigração fazia com que mais de dois terços da população de São Paulo fosse estrangeira, a grande indústria era o centro para onde convergia toda uma população satélite. O pequeno estádio do Juventus, no mesmo quadrilátero, tem o nome oficial de Conde Rodolfo Crespi, e não à toa. O Cotonifício Crespi era o dono do campinho, que era franqueado aos operários para seus raros momentos de lazer. Em resumo, toda a vida da comunidade orbitava pelo núcleo da fábrica, em uma lógica que atendia precipuamente seus interesses. Era vantajoso ao empresário que seu empregado morasse por perto – atrasos e ausências ficavam mais difíceis de justificar, e sua influência se fazia sentir até em dias não úteis. Além disso, a disponibilidade da moradia fixava o operário ao seu local de trabalho, e todo o entorno passa a depender do empreendimento maior.

Agora vejam que coisa legal. Na medida da prosperidade, os proprietários deixavam de habitar os anéis que circundavam suas empresas, cheias de operários que poderiam lhe interpelar por melhores condições, cheias de poluição que suas próprias chaminés emanavam, cheias do trânsito complicado que seus próprios embarques causavam, e se deslocavam para bairros afastados, mais calmos e melhor amparados pelo poder público. O próprio Conde Crespi foi morar na Avenida Paulista que, ao lado dos Campos Elíseos e dos Jardins, eram recantos da classe alta. E, dessa forma, a cidade vai se construindo em um novo modelo, completamente dependente dos interesses de quem tem posse de capitais.

Bem, e por que essas áreas eram aprazíveis? Não foi porque Crespi, Matarazzo e compagnia bella meteram as mãos em seus locupletados bolsos, mas porque os sucessivos governos atendiam suas demandas com mais benemerência que aos bairros proletários, simples assim. Com altíssimo investimento em infraestrutura realizado por prefeitura e governo do Estado, é dessas regiões as primeiras ruas asfaltadas, os primeiros postes de iluminação, os primeiros sistemas de saneamento básico, em locais pouco sujeitos a enchentes e outros percalços. A segregação começa no próprio espaço da cidade, que tem áreas reservadas e edificadas para que seu acesso não seja possível a todos. A construção de condomínios é só a cereja do bolo do processo impulsionado pela visão individual do capitalista: a cidade é boa se for boa PARA MIM.

Lefébvre explora o conceito de alienação para compreender porque esse modelo de ocupação espacial é geralmente bem aceito na sociedade. Marx já afirmava que, em um espectro capitalista, o que importava de fato em um bem era seu valor de troca, e não seu valor de uso. Este último diz respeito à satisfação de uma necessidade, enquanto o primeiro faz remissão ao valor que se pode obter deste mesmo objeto. Vou lançar mão de uma conhecidíssima passagem bíblica para exemplificar a diferença: o prato de lentilhas. Vamos transpor o texto do site Bíblia Católica (Gn 25, 24-34).

"Chegado o tempo em que ela devia dar à luz, eis que trazia dois gêmeos no seu ventre. O que saiu primeiro era vermelho, e todo peludo como um manto de peles, e chamaram-no Esaú. Saiu em seguida o seu irmão, segurando pela mão o calcanhar de Esaú, e deram-lhe o nome de Jacó. Isaac tinha sessenta anos quando eles vieram ao mundo. Os meninos cresceram. Esaú tornou-se um hábil caçador, um homem do campo, enquanto Jacó era um homem pacífico, que morava na tenda. Isaac preferia Esaú, porque gostava de caça; Rebeca, porém, se afeiçoou mais a Jacó. Um dia em que Jacó preparava um guisado, voltando Esaú fatigado do campo, disse-lhe: “Deixa-me comer um pouco dessa coisa vermelha, porque estou muito cansado”. (É por isso que puseram o nome a Esaú Edom.) Jacó respondeu-lhe: “Vende-me primeiro o teu direito de primogenitura”. “Morro de fome, que me importa o meu direito de primogenitura?”. “Jura-mo, pois, agora mesmo” – tornou Jacó. Esaú jurou e vendeu o seu direito de primogenitura a Jacó. Este deu-lhe pão e um prato de lentilhas. Esaú comeu, bebeu, depois se levantou e partiu. Foi assim que Esaú des­prezou o seu direito de primogenitura." 

Pois bem. O que é o prato de lentilhas nessa história toda? Um bem, para quem poderia ser atribuído um valor. Esaú lhe atribui um valor de uso, porque tinha uma necessidade imediata a ser satisfeita: aplacar sua fome. O foda-se que ele aplica ao seu direito à primogenitura dá dimensão do que lhe importava naquele momento. Uma insossa tigela de lentilha e um teco de pão parecem muito pouco para quem não tem fome de comida, mas sede de poder. Essa última é a moção de seu irmão Jacó. O prato de lentilha vale bem pouco para lhe saciar a fome, mas lhe garante um investimento – a primogenitura, o direito de autoridade sobre a família após a morte do patriarca, reservado ao seu irmão mais velho por mandato divino, vejam vocês. Para Esaú, a lentilha tem um valor de uso; para Jacó, tem um valor de troca. Vou retomar esse tema em breve, com mais detalhes, até porque é mais complexo do que o exemplo faz transparecer, mas por ora é suficiente.

Quando você vê crianças brincando em um dos raros terrenos da Pauliceia Desvairada, está testemunhando o valor de uso de um espaço. Naquele momento, não há nenhuma preocupação com o preço daquele pequeno território, que tem outras destinações: jogar bola, correr, escavar minhocas, sentar e comer lentilhas como faz Esaú, seja lá o que for. Mas aquele terreno tem um dono, alguém que lhe valora pela troca, e quando esse proprietário achar por bem, pode realizar o preço, como faz Jacó com suas lentilhas, vendendo o terreno para uma construtora, cujo primeiro ato será murá-lo e impedir o acesso. A dissonância entre uso e troca causará estranheza nas crianças, que perguntarão aos seus pais o motivo pelo qual o seu grund da Rua Paulo foi perdido. E aí o modelo de alienação opera: “as coisas são assim mesmo”, em geral associando o fato a alguma vontade divina e a esperança de que um dia o mesmo possa ocorrer a eles, se deus quiser.

Dessa forma, o espaço de convívio público vai se exaurindo cada vez mais. O lugar de brincar agora é um clube, que é pago, ou um parque, que, em nossa pujante metrópole, vem sendo constantemente ameaçado de privatização. Segundo Lefébvre, esses paradigmas ferem o nosso direito à cidade, um direito coletivo de interagir com o meio onde vivemos, de transformá-lo e nos transformar. É por meio da associação de nossas vontades que a cidade se move, pulsa, vibra; e não por uma disposição individual. Há um corpo político em formação a cada vez que nos reconhecemos como uma organização coletiva, como se fôssemos só um, e este é o caminho pelo qual nos tornamos manifestos, mas que muitas vezes se encontra tolhida pela lógica do sistema capitalista, que atribui propriedade a tudo. Se tudo é mercadoria, inclusive o espaço de nosso convívio, e portanto tem dono, como podemos falar em democracia?

A resposta, segundo Lefébvre, é fazer voltar o valor de uso à cidade. Não há sentido em se conformar de passar quatro horas dentro de um ônibus todos os dias para trabalhar. Era o que eu fazia antes de me mudar para a Sé, com custos, evidentemente. Toda alteração de modelo que vise dar benefício a uma coletividade faz parte da proposta de Lefébvre. Há esbravejamentos – instale uma faixa exclusiva de ônibus e veja a grita de quem lança mão do transporte individual. Mas isso também ocorre justamente pelo processo de alienação e a consequente falta de percepção coletiva.

Esta resposta não é definitiva; parece mais um desafio. Afinal de contas, se é a coletividade que deve construir a cidade, é impossível dar fórmulas prontas – cada comunidade tem suas próprias peculiaridades e anseios por uma vida melhor. E é importante não se cair em armadilhas. O conceito de direito à cidade passa a impressão de que dá subvenções a qualquer tipo de ação que seja executada no espaço municipal, mas isso pode enganar. Como o canal da implantação das políticas públicas são os governos, e a inversão de um mecanismo privatista faz logo pensar em uma lógica estatizante, a menção de um direito à cidade dá a ideia de que um poder público que se mexe, que faz coisas, seria o melhor panorama possível. Nem sempre, no entanto. É ótimo que se façam obras públicas, mas, além da questão de existir recursos para tanto, é primordial que não se plasme a mesma engenharia adotada até hoje, o de lançar recursos públicos para benefício de poucos. Um parque, por exemplo, costuma valorizar a área onde é instalado. E por quê? Porque seu acesso não é fácil para a cidade inteira. Uma política mais coerente com o princípio do direito à cidade seria, primeiro, melhorar o acesso de todos aos parques já existentes.

“A voz das pessoas deve ser ouvida”, parece ser o slogan do direito à cidade. Muitas vezes as coisas acontecem por si só, e basta que os governantes deem guarida ao próprio movimento da população. Cito como exemplo a pequena área ao lado da câmara dos vereadores, na esquina da Maria Paula com a Santo Amaro. Até bem pouco tempo atrás, aquilo era uma área vazia, que nunca foi tomada por mendigos porque os vereadores não gostam de ver miséria, espaventando os pobres-diabos para outros recantos do centro. O estranho efeito é que aquilo virou uma área espontânea de lazer, primeiramente com os skatistas, depois com as mães levando as crianças menores para passear e as maiores para brincar um pouco de bola ou de esconde. Um pouco mais tarde, vinham os jovenzinhos para falar bobagens e namorar. O fim da história, desta vez feliz, é que a própria prefeitura oficializou a área de lazer, instalando bancos e brinquedos de playground. Aquela esquininha virou um lugarejo pulsante, ocupado em nome do contentamento, um autêntico caso de uso do direito à cidade.

Eu gostaria de crer que, mesmo indiretamente, o Memorial das Águas vá ao encontro dos desejos e das necessidades da população lemense, que represente um atendimento legítimo ao seu direito à cidade que habita, e que a prática permanente seja um mote para outras cidades e para si mesmos. Bons ventos a todos!

Recomendações:

O Manancial Landgraf, que inclui o Memorial das Águas, é mantido pela Saecil, a companhia responsável pelo abastecimento de água em Leme. Seu acesso é bastante fácil, ficando a 194 Km do marco zero da capital.

Henri Lefébvre foi um escritor muito prolífico, e, como tal, bastante diversificado. Sua maior originalidade vem da abordagem marxista que deu à ocupação urbana. Ele não preconizava uma revolução comunista, mas um ângulo de visão dialético a partir do conflito de classes, entenderam? É por isso que ele é marxista, aprenderam? Para quem tem a mente aberta, recomendo o livro abaixo, que sintetiza seu ideário.

LEFÉBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2001.