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segunda-feira, 11 de setembro de 2017

A Portuguesa e a tragédia grega posta em prática - Até quando há de brilhar a cruz dos teus brasões?

Olá!

Domingo passado, mais uma vez dei um pulinho no Canindé para acompanhar o calvário da Portuguesa, a mesmíssima Lusa que, apesar dos poucos títulos, tem a simpatia de ser uma espécie de Robin Hood dos paulistanos, sempre empedernindo as coisas para os grandes para depois tropeçar nos pequenos. Isso era nos bons tempos. Mas hoje, ora pois, convive com a segunda divisão do Campeonato Paulista e está fora das disputas nacionais, pela primeira vez em sua história. Quotidianamente, a sua vida é um abismo eterno, cujo fim parece sempre mais fundo.


Neste exato momento, a Portuguesa joga a Copa Paulista, espécie de campeonato tampão que serve para ocupar os times paulistas no segundo semestre, enquanto aguardam o desenrolar dos torneios nacionais. Serve mais para negócios do que propriamente para disputa: o prêmio do campeão é uma vaga na série D do Campeonato Brasileiro e a honra dúbia de um título considerado de segunda linha. Exceção feita ao Juventus, que lota seu pequeno estádio aos domingos pela manhã, é um festival exibido a poucas moscas, esta que vos fala inclusa. O que me leva? Já expliquei no texto acima citado, além do fato de que, com o preço do ingresso de um jogo do Corinthians, dá para assistir quase toda a tal Copa Paulista.

Dá dó de ver a fossa que a Portuguesa se enfiou. Ela está disputando esse desmerecido campeonato pela primeira vez em sua história, atrás da vaga perdida nas divisões nacionais. Sem demérito de ninguém, as semifinais da quarta divisão do Brasileiro foram disputadas por Operário/PR, Atlético/AC, Globo/RN e Juazeirense/BA, clubes que, somados, não tem um décimo da tradição rubro-verde. O clube está todo largado, embora o estádio em si mantenha sua dignidade à moda antiga. Lugar bom de ver jogo, daqueles escadões em que não há restrições nem para quem quer assistir compenetradamente a partida (como eu), nem para quem prefere ficar de pé, pulando e cantando. Um memorial, em suma.

Resolvi redigir este texto com dois propósitos: o de demonstrar a afinação entre Futebol e Filosofia, especialmente no plano estético; e tentar entender se esse destino é justo.

O que há para discutir de estético na atual situação da Portuguesa? Ora, ora, é óbvio... Nietzsche só usou o exemplo da tragédia grega porque não chegou a conhecer o clube do Canindé, por um lapso de meros vinte anos. Teria diante de si uma espécie de materialização da sua visão sem a necessidade de recorrer aos Apolos e Dionísios da vida, que deixaram de ser moda a mais de 2000 anos. E é esse o grande defeito que o bigodão mais famoso da Filosofia encontra no projeto socrático que seguiu ao modelo mitológico. Com o primado da razão, perdeu-se o vínculo com a própria vida. Vamos entender melhor essa coisa toda.

Diferentemente do que a cultura judaico-cristã preconiza com seu monoteísmo, os gregos antigos subordinavam todos os aspectos de sua realidade a diferentes divindades, cada uma delas com seus poderes e idiossincrasias próprios. Havia deuses para tudo: para a morte, para o amor, para os mares, para o comércio, para a justiça. Dois deles, Apolo e Dionísio, regiam princípios que influenciavam não somente a produção artística, mas, por reflexo, o modus vivendi de seus humílimos súditos. Apolo era o deus da harmonia, da forma, das medidas perfeitas, daquele que se sujeita a ficar horas e horas burilando um detalhezinho de uma escultura ou de um traço. Ele se afasta de seu objeto de criação para poder apreciá-lo de modo desapaixonado, sendo crítico de seu próprio trabalho. Tem liberdade para criar, mas sempre dentro de um escopo que lhe estabelece um determinado limite: a dimensão do quadro, o volume da pedra, a área do palco. É, por isso, melhor representado pela pintura, pela escultura e pelas artes cênicas. Já Dionísio é, em boa parte, o oposto de tudo isso. Ele não aceita os limites impostos por uma circunscrição, sendo, portanto, o deus da música, a arte que reconhece o improviso e que não tem um espaço para lhe fechar, já que transcende a própria orquestra – seu som se espalha pelo ambiente todo. Seu afastamento não se dá com relação ao objeto, mas de si próprio. Dionísio se projeta para além de si mesmo, é o deus da embriaguez, do derramamento e do delírio. Ao contrário de Apolo, ele não idealiza o mundo como em um sonho; prefere se atirar nele, viver a vida com tudo o que ela tem de bom e de ruim, já que o belo e a forma perfeita não lhe dizem respeito. Não há projeto para Dionísio. Não lhe faz sentido tê-lo. A vida é vida agora, e só agora.

A síntese possível entre ambos está na tragédia (leiam meus apontamentos já realizados sobre o tema neste texto), que reunia a arte cênica do teatro com a arte musical do coro. Para Nietzsche, a antiga filosofia de vida dos gregos plasmava os princípios apolíneos e dionisíacos da tragédia – eles idealizavam e realizavam, sonhavam e viviam, equilibravam a visão que tinham de si mesmos e do mundo que os rodeavam. Ao contrário do que nos habituamos – que a arte esteja circunscrita a locais próprios – a tragédia, para os gregos, é vivida na própria vida, ou seja, a arte está nos movimentos do dia-a-dia. Não temos em nossa cultura uma ideia de vida como obra de arte, muito embora eu me lembre muito bem das teatralizações dos diálogos de minha já morta mãe com a ainda viva dona Madalena, bem mais velha. Ao saírmos das reuniões mensais do Conseg* Liberdade, para reclamarmos da pouca segurança em nossas maltratadas ruas, a cena se repetia idêntica. Caminhávamos todos juntos, até mesmo para minimizar o risco da precitada segurança exígua, até que o tom de voz de ambas ia aumentando. De repente, lá estavam as duas para trás, gesticulando paradas contra o descaso do poder público, irritadíssimas. Esqueciam dos riscos ao redor e nem se tocavam de que já estavam afastadas do grupo principal, uns trinta passos atrás (cabe aqui um rápido aparte. As reuniões do Conseg ocorriam na última quarta-feira do mês, terminando às 21:30, aproximadamente. Quarta-feira é dia de futebol, o que aumentava minha pressa de chegar em casa, derrubando a tese que eu mesmo propalava de que era necessário ser rápido para evitar o ladrão). Podiam continuar andando e falando as mesmíssimas coisas, mas é o espírito dionisíaco florescente que fazia-as ficar cegadas. Não haveria um quinto da dimensão expressiva pretendida se não parassem para praguejar contra a falta de segurança que elas mesmas contribuíam, com aquela representação, a alimentar. Mas isso era uma eventualidade. Para o grego, que precisava ser artístico até na retórica que aplicava na ágora, o voto que damos aos políticos é uma espécie de mortalha do élan criativo.

Isso porque, com a ascensão de Sócrates e sua ponderação racional, o princípio dionisíaco foi sufocado. A vida do grego deixou de ser um derramamento no turbilhão dos acontecimentos para que se perguntasse passo a passo o que motivava suas ações, tudo muito bem pensado e baseado em um cuidado excessivo com o futuro, tornando algo como uma mera espera pela morte, sem dor, porém. Tudo isso foi reforçado mais tarde com o advento do Cristianismo e seu espírito apostólico, que levou à Grécia e ao mundo todo a doutrina do prêmio post mortem da vida eterna. Os percalços da existência terrena passaram a ser fardos a serem suportados, e não contingências que reescrevem histórias, e, com isso, Dionísio morreu definitivamente. O homem meramente apolíneo se caracteriza pela imposição de limites, que não consegue mais afastar-se de si mesmo para ir além de si mesmo, e fica plantado em sua cadeira de balanço e tricotando, enquanto conta os minutos para a chegada do fim.

De forma que, com relação à Portuguesa, a ideia de tragédia grega revive. Aqueles torcedores que formam o coro ao redor do campo não têm propriamente consciência disso, mas o eixo da tragédia da Lusa não está no fato de que, para frente, haja dias melhores, mas que haja dias. Então nada resta a não ser viver o hoje, a torcer hoje. O torcedor da Portuguesa xinga mais do que o normal por causa disso, porque sofre mais, porque tem o destino mais incerto, porque o juiz rouba mais, porque os dirigentes são ainda mais incompetentes, porque não há dinheiro e daqui a pouco não há mais estádio... É preciso vomitar o que te faz mal exatamente no momento da ânsia, porque ele é o único que seguramente ainda há.

Os times menores já se conformam com seu papel e, nos poucos torcedores sinceros, já repousa cristalizada a consciência de que seu lugar é aquele. Para os grandes, há a certeza de que, passe um ou dez anos, os títulos virão, e virão em abundância. O luso não tem certeza nenhuma, e, por isso mesmo, se entrega ao fluxo da vida, àquilo que ocorrer dentro do campo, o teatro apolíneo daquilo que ele se constitui em coro dionisíaco. Vivem a vida na tragédia do próprio time. Nietzsche se orgulharia dos verde-encarnados.

Agora, se tudo isso é justo ou injusto... Aí é mais difícil de estabelecer. Ou melhor, não é, não. Aproveitando o menosprezo nietzschiano pela racionalidade pura, digo que a torcida não merece o que está acontecendo naquele largado clube da várzea do rio Tietê. Nem vou entrar na esparrela barata e sentimental de dizer que o clube é dos torcedores. Não é. O clube é dos sócios, que podem sobreviver à existência do futebol, como aconteceu com o Atlético Ypiranga e o Guapira, que fecharam seus departamentos de futebol profissional e vão seguindo suas vidas. Mas o time sim, este existe não somente em função dos sócios, que, de resto, elegem os conselheiros que provocaram a derrocada, mas principalmente de seus torcedores. E, ao contrário do Juventus, que é o segundo time de muita gente, quem vai ao Canindé tem a Lusa como time de coração, ainda que sejam poucos. Há exceções, como eu, mas a imensa maioria dos que lá estão tem bandeirinhas penduradas na janela, tem chaveiros no bolso, tem o envelhecido retrato do dúbio título de 73 na parede, além de caçar infindamente roupinhas para seus bebês (tão fáceis de achar para outros times), todos eles com a cruz verde emoldurada pelo escudo vermelho, os mais jovens ladeados pelo leãozinho, os mais velhos pela saudosa Severa, a dançarina de vira que a representava (eu resgataria este símbolo imediatamente). São pessoas que amam o time a valer, sem ter um cartel extenso de títulos para esfregar na cara de ninguém. É a síntese do amor puro e desprovido de racionalidade. Já aqui encerro o debate, e tudo o mais que eu falar é irrelevante.

Mas o fato é que essa tragédia toda não surgiu do nada. Não vou repassar a história quase centenária do clube, bastando relembrar o fatídico Campeonato Brasileiro de 2013. Portuguesa, Flamengo e Fluminense chegam à última rodada do Brasileirão precisando cada um de seus determinados resultados para escapar do rebaixamento à série B. A Lusa depende só de si mesma, e obtém um suficiente empate com o Grêmio, e se safa, restando ao tricolor carioca o indigesto percalço.

Mas um fato novo foi detectado. Perto dos 30 minutos do segundo tempo do embate retro, o jogador Héverton foi mandado a campo pelo treinador rubro-verde. Este jogador, como foi dito depois, estava suspenso por duas partidas e não poderia jogar. Discutiu-se muito o aspecto da validade da comunicação feita pela CBF por e-mail, na sexta-feira anterior ao jogo, à noite, para o advogado luso; o aspecto esportivo dos resultados obtidos em campo e da pouca relevância que representou a entrada do jogador para os placares; os precedentes em que outras equipes tiveram as penalidades convertidas em multa; o histórico do beneficiado Fluminense que, mais de uma vez, teve seus rebaixamentos revertidos; mas a irregularidade estava cometida e o tribunal desportivo usou a letra dura da lei, abiscoitando quatro pontos da Fabulosa, um obtido pelo empate na partida e três de castigo, o suficiente para safar o Flu e arremessar a pobre Portuguesa ao inferno da segundona. Desde então, sem o dinheiro da televisão e bons contratos de patrocínio, a queda foi vertical. Em quatro anos, os lusitanos saíram da elite do futebol nacional para a periferia dos desesperados, que vendem o almoço para barganhar a janta.

Já disse que a torcida não merece o desgosto que vive. O clube em si também não, como instituição. A Portuguesa revelou uma infinidade de craques para o futebol tupiniquim (vejam este texto) e até mesmo já foi considerada um dos clássicos do estado. Sim, meninos e meninas fãs do esporte bretão. Portuguesa versus Corinthians-São Paulo-Santos-Palmeiras já foram jogos de cachorro grande, que valiam esse rótulo. Sem contar o clássico lusitano, na peleja contra o carioca Vasco da Gama. Sempre disputou as principais competições do Brasil e tinha jogadores indicados ao escrete canarinho, como provam Djalma Santos, Jair da Costa e Zé Maria, campeões mundiais jogando pela Portuguesa. É, por isso, relevante para o futebol.

Tentar entender a própria Portuguesa como culpada por seu amargo destino é esquecer que, como instituição, ela é neutra. É bem verdade que certas entidades são más em si mesmas, bastando pensar em associações racistas como a Ku Klux Klan ou órgãos terroristas, mas há gente que confunde uma instituição com as pessoas que as dirigem. Um bom exemplo é a recente onda de demonização do Estado, mas também ele é uma instituição neutra, sendo bom ou ruim dependendo do que se fizer dele. É claro que na ótica brasileira, com governos inchados e corruptos, as opiniões ficam obnubiladas, e essa galera aponta Estados de pouca interferência como exemplos de eficiência administrativa. Se vivêssemos na Escandinávia, talvez nossa visão sobre tamanho do Estado fosse outra. A Portuguesa, nesse sentido, é uma instituição quase neutra. Alíás, é uma entidade que tem um propósito bom. Seu nome completo, Associação Portuguesa de Desportos, denuncia que um grupo de pessoas de uma determinada colônia resolveu se reunir para praticar esportes. Só isso. O clube em si é só mais uma vítima.

Portanto, e mais uma vez, e obviamente, o problema está nas pessoas, que

  1. usam os regulamentos da forma que melhor convém a quem mais interessa;
  2. comandam outros clubes que poderiam se alinhar à causa da Lusinha. Pensem em Brasileirão sem os clubes paulistas;
  3. gerem iniquamente recursos que não lhe pertencem;
  4. estão cagando para quem não tem culpa, justamente os precitados clube e torcida.
Isso porque os dirigentes, sabendo (mas não aprendendo) o quanto a Portuguesa é feita sob medida para ser prejudicada, nunca a prepararam adequadamente para viver sua própria realidade com autonomia. Permitem que se vilipendie o clube, quando não o fazem eles próprios, e não se preocupam com uma dignidade mínima para o seu nome, com um lugar mínimo, que não deveria ser o atual, definitivamente. Mas que é onde se chegou. Por isso, mais do que uma estrutura injusta, que sempre vai privilegiar os clubes maiores, a culpa maior está no próprio corpo diretivo, que, no mínimo dos mínimos, sempre trabalhou com um horizonte irreal.

Vai bem a Lusinha na Copa Paulista. Ontem o jogo foi meio desinteressado, já que a mesma está classificada antecipadamente para a próxima fase, quando o torniquete será naturalmente apertado, e o adversário Taubaté já está matematicamente eliminado. Mas o time vai pegando coesão e entrosamento, mesmo com a repetição de certos erros, como a troca incessante de técnicos e jogadores, e a falta de um meia de ligação. O craque do time, Marcelinho Paraíba, tem 42 anos e nunca jogou nessa função. Seu futebol está visivelmente melhor do que no sonolento empate com o Nacional, no comecinho da competição. Principia lentamente a aparecer um esmaecidíssimo brilho naquilo que hoje vemos como sombras, uma vontade de potência que Nietzsche enxergou em todos os organismos vivos, mesmo que seja para dar o último respiro.

Recomendação de leitura:

Mais do que recomendável, o livro abaixo é uma das essências para compreender o pensamento nietzschiano, onde é explorada a composição dualística da cultura grega.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.


* Os CONSEG’s – Conselhos de Segurança são agrupamentos comunitários em que são discutidas questões relacionadas à (oh!) segurança dos bairros. O ápice é a reunião mensal, onde são levadas as reivindicações aos diferentes órgãos afetados. Além das óbvias polícias, costumam estar presentes representantes da prefeitura, dos órgãos de trânsito, da guarda municipal, eventualmente dos bombeiros e outras entidades municipais e estaduais.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Sobre a bifurcação que leva ou que afasta da cientificidade [Pequeno guia das grandes falácias – 37º tomo: o apelo à ignorância (argumentum ad ignorantiam)]

Olá!


Estava lá. Um pedaço de fita isolante na manopla do carrinho de feira, já se desprendendo e deixando os vãos dos dedos grudentos. Inicialmente, pensou-se em algum reparo à brasileira, o tal jeitinho – uma ferpa que machucasse, um parafuso meio solto, um material escorregadio, sei lá. O fato é que, uma vez extraída, todas essas teses foram derrubadas. A fita não deixou nenhum vestígio de seu propósito, a não ser mais e mais adesivo gosmento.

É incrível, mas isso gerou debate quente em casa. O mistério sherlockiano: quem colocou a fita no carrinho e para quê? Consenso geral: “eu não”. Passa-se a especular alternativas. Eu sugeri alguma molecagem do Saci. Reputaram-se outras hipóteses, como alienígenas, maldições ou milagres. Vai-se saber os desígnios de Deus... No final das contas, não se chegou a conclusão alguma, restando apenas uma aura de desconfiança entre todos na casa.


Será este um episódio que demonstra nossa sanha em achar um culpado para tudo? De certa forma sim, muito embora o motivo real deva ser uma besteira qualquer, e que não causou maiores danos. Mas a verdade é que somos, antes de tudo, seres curiosos. Sempre prontos a tentar dar explicações para tudo, não nos conformamos quando há algum buraco em nosso conhecimento, e facilmente preenchemo-lo com alguma explicação colhida do nada. É o princípio geral do Deus das Lacunas, falácia informal que já abordei nesta casa.

Só que nem toda tentativa de explicar fenômenos que não compreendemos bem pode cair nessa pecha. Toda hipótese científica nasce de uma especulação, que vai ganhando força na medida em que seus rumos vão obtendo comprovações.

Mas vamos com cuidado. Enquanto o Deus das Lacunas procura uma explicação de qualquer natureza para os lapsos do conhecimento, em especial de ordem divina ou mágica, outros métodos procuram a racionalização das questões, e, normalmente, este é o caminho que a Ciência segue. Como as metodologias de investigação científica são muito rigorosas, há uma tendência em se dar um bom nível de credibilidade aos seus corolários. Mas, como eu disse aqui, antes de ser Ciência, uma hipótese é Filosofia, ou seja, nasce da especulação amarrada pela lógica. Em outras palavras, um novo conhecimento nasce de uma ideia que alguém teve, antes de ser comprovado. É óbvio que, do meio de tantas investigações, brotem conclusões inesperadas, como o clássico caso do pesquisador de micro-ondas que descobriu, largando seu sanduíche em lugar errado, que estas servem para aquecer alimentos, mas mesmo aqui foi necessário pesquisa para descobrir o porquê e retirar o fato do campo claudicante dos milagres.

Aqui, temos um ponto de bifurcação perigoso. Podemos ir para o lado do método, que desenvolve uma hipótese até o ponto onde ela pode ser testada com os mecanismos atuais, e, daí para frente, restando aguardar meios para prosseguir com a pesquisa, até que se fixe como teoria ou seja descartada. Ou podemos caminhar até um momento em que a hipótese não tenha como ser testada, não pelo fato de não haver ainda tecnologia disponível para fazê-lo, mas por se recorrer a instâncias não materiais para dar lógica à mesma. O primeiro caminho é a protociência; o segundo, a pseudociência*. E nem sempre são fáceis de distinguir.

Para estabelecer bem a distinção entre ambas, vou dar um exemplo de cada, já tendo em mente o princípio da falseabilidade, de quem já produzi meus pitacos. Comecemos pela protociência, usando, para tanto, a teoria das cordas, de maneira extremamente sucinta.

Desde Lêucipo e Demócrito (vejam informações neste texto), o homem indaga pelas estruturas fundamentais que compõem os corpos – os átomos. Grosso modo, neste momento tínhamos unicamente o palpite de que tudo era feito por partículas mínimas, baseados na observação de que um objeto qualquer podia ser pulverizado em partes cada vez menores. A partir de Dalton, o átomo foi retomado e estudado cada vez com mais acuidade. Daí, descobriu-se que o átomo tinha carga elétrica, através dos desvios produzidos pelas placas eletricamente carregadas em tubos de raios catódicos; que tinha partículas subabtômicas, que não era um contínuo maciço, e que tinha um núcleo e uma eletrosfera, por experiências de radiação através de folhas de ouro; que tinha partículas neutras, sem as quais não seria possível haver estabilidade em núcleos de carga positiva; que mesmo essas partículas subatômicas eram compostas por outras ainda menores, como os quarks. A descoberta mais recente de todas é o bóson de Higgs, apelidada carinhosamente de “partícula de Deus”, e que foi obtida a partir de um enorme e sofisticadíssimo aparelho chamado de colisor, que visa acelerar partículas a velocidades próximas à da luz, até que as mesmas se choquem e liberem enormes quantidades de energia.

Tudo isso vem sendo demonstrado experimentalmente, mas um próximo passo vem sendo tentado, e é muito ousado, já que unificaria a teoria atômica com a teoria das forças**, e, em um limite mais extremo, unir relatividade e mecânica quântica. Segundo a hipótese das cordas, as partículas elementares do átomo não seriam uma espécie de “pedrinhas” fundamentais, ou seja, uma forma de matéria extremamente reduzida, mas sim um filamento de energia que vibraria incessantemente em qualquer direção, e que assumiria também qualquer formato, como se fosse um elástico daqueles de enfeixar dinheiro. Desta forma, toda matéria que existe é, na verdade, energia. Tudo é energia. Se essa hipótese for comprovada, não só serão resolvidos problemas da teoria atômica, como a dupla natureza onda-partícula da luz, mas também as energias gravitacional, eletromagnética e nuclear serão definitivamente reconhecidas como uma só, diferindo unicamente em seus aspectos. Sensacional!

Só que a teoria das cordas ainda não a é de fato no sentido formal da palavra. Recebe este nome mais por uma questão de absorção do público geral do que por haver se consolidado de vez. E ela não se tornará uma teoria definitiva enquanto não puder ser demonstrada experimentalmente ou, melhor ainda, não puder ser falseada, ainda que tenha bom suporte de modelos matemáticos e coerência na sua construção. Será uma hipótese e comporá uma protociência até conseguir atingir os requisitos necessários à sua subida de degrau. A academia científica costuma ser muito rigorosa com essas coisas.

Agora vamos para a outra vertente. Poderia usar como exemplo a homeopatia, a astrologia, a frenologia ou o biorritmo, mas vou partir para um caso em que tive um testemunho pessoal: a radiestesia, e mais especificamente a rabdomancia, técnica para localizar pontos exatos para perfurar poços. Senta, que lá vem história...

Nos anos 90, trabalhei em uma fábrica de suturas. Para quem não sabe, certas suturas precisam ser absorvidas pelo organismo, e, para tanto, são fabricadas com material orgânico. O mais comum deles é a serosa de tripa de boi, conhecida por categute, que precisa ser lavada e relavada para ficar adequada à manufatura, para extração do sal que a conserva e das sujeiras óbvias que lhe acompanham, além da aplicação de outros banhos químicos para amaciamento, colagenação, cromação e outros processos. Cheira mal, viu?

Isso tudo gera uma enorme demanda de água, que, extraída da torneira da Sabesp, custa uma nota preta. Acontece que a empresa tinha os fundos de seu terreno desocupados, e ocorreu de algum filósofo pronunciar da porta de um botequim que deveria haver água naquele subsolo. Como não parecia má ideia, contrataram uma empresa de prospecção para fazer as pesquisas necessárias.

O caso caiu no meu esquecimento até que, dia desses, vi meu colega Bira observando os tais fundos do terreno, mãos para trás e leve sorriso de ironia. Percebendo minha passagem, fez um sinal para que me aproximasse. Disse em tom sarcástico: “Vem ver o levantamento do terreno que estão fazendo para o poço”.

O Bira não era exatamente chegado a uma gracinha. Seu trabalho consistia em cobrar devedores insolventes, o que incluía hospitais e santas-casas em petição de miséria, além de pilantras abundantes na área em questão. Era, por isso, um cara meio soturno, e sua feição jocosa no momento denunciava algo entre o insólito e o burlesco no fenômeno à sua frente. Fiquei ao seu lado e mirei na mesma direção, também de mãos às costas.

Da parte alta do morro, víamos um senhor que realizava uma espécie de ritual: dois passos para frente, um passo para trás, com um certo molejo no corpo que fazia lembrar aqueles estranhos cerimoniais aborígines, e, dessa forma, ia perscrutando todo o terreno. De tempos em tempos, ficava imóvel, e logo em seguida se agachava, ato em que aproveitava para cravar uma estaca no gramado, para logo em seguida retomar seu balancê. Não resisti à tentação de me adiantar uns dez ou quinze passos, para observar melhor o aparelho que ele carregava nas mãos. Em um dos meneios, o explorador virou de frente para mim e pude verificar com clareza. Não era uma sonda, um ultrassom, um raio X, um laser ou alguma outra modernidade. Na verdade, era algo bem mais antigo: uma forquilha!

Voltei-me boquiaberto para o Bira, que adensou o incomum sorriso. Dei mais uma olhada para a prospecção-rito e regressei silente ao lado de meu colega, ainda mais uma vez com as mãos atrás do abdômen, e lá ficamos por mais algum tempo, até um olhar para a cara do outro e achar se tratar de brincadeira ou sacanagem. Eu sabia que era hábito rural e vetusto esse sistema, mas não imaginava seu uso por empresas com CNPJ e registro no Conselho de Engenheiros.

O velho, logo em seguida, cessou a parte coreografada do trabalho e começou a cruzar barbantes de uma estaca a outra, sem uma lógica perceptível. Pouco tempo depois, acenou para nós dois descermos até o emaranhado, onde estava o fruto final do desempenho de seu inabitual mister: no ponto de maior incidência de seus barbantes, fincou uma estaca mais grossa, cilíndrica, oca, metálica, com um logotipo da firma pintado em azul: “É aqui. Podem liberar para o pessoal da broca. Avisem que é fundo”.

Não tínhamos nada com o assunto, mas não nos furtamos de comunicar aos interessados. O resultado final é que brotou água, e que era funda de fato. Penso que, em razão de estarmos a menos de 50 metros do córrego do Ipiranga, aquele das margens plácidas, não fosse difícil haver água no subsolo. Some-se a altura do morro em que nos encontrávamos e temos explicada a profundidade. Apesar de tudo isso, que lógica pode haver na indicação de água subterrânea por um pauzinho?

As explicações geralmente estão relacionadas a mistérios. No caso, a “teoria” geral da radiestesia diz que os corpos têm a capacidade de mútua atração, o que é real e reconhecido pela Ciência, bem como a emissão de radiações que seriam captáveis. O que é difícil de explicar é porque funcionaria com um pedaço de madeira e não com um pedaço de plástico. Aí surgem histórias: o plástico é industrializado e distanciado de seu estado natural, o plástico é privado de água no seu interior, o plástico não tem certos princípios ativos que existem na madeira, essas bossas. Outra coisa: por que uma forquilha de angico (digamos) funciona melhor que uma de nogueira? Mais uma: por que o “equipamento” funciona bem em certas mãos e não em outras?

São estes os pontos de falseabilidade que não existem na pseudociência. Ao se afirmar que a forquilha somente funciona em determinadas mãos ou que captam energia indetectável por instrumentos, temos à nossa frente apenas evidências anedóticas, os depoimentos que não dependem de comprovações concretas, e que se apoiam na crença. E é justamente por causa da crença que as pessoas têm na eficiência da Ciência em produzir resultados confiáveis, que os defensores de pseudociências gostam de se revestir de uma aura científica real, buscando depoimentos de autoridades acadêmicas e generalizando os resultados de pesquisas, de modo a acomodá-los às suas necessidades. 

Só para deixar bem claro. O que dá estatuto de pseudociência a uma determinada prática não é o fato dela funcionar ou não. A acupuntura, por exemplo, tem bons indicativos de causar verdadeiros alívios à dor, em uma proporção que suplanta o placebo. Mas a Ciência acadêmica ainda não conseguiu fechar um veredito sobre sua causação. A pseudociência está na conversa sobre centros energéticos, concentrações de miasmas e outras justificativas que surgem metafisicamente. Sempre há um componente indetectável nesse tipo de fenômeno, e, portanto, algum ponto que não pode ser falseado. Repito: a discussão aqui não é sobre a eficácia, mas sobre a cientificidade da coisa. A Ciência não é tudo no universo – se existe algo metafísico por trás de fenômenos que funcionem, que assim seja. Só que está fora do escopo científico.

Eu já mencionei o confronto entre Ciência e pseudociência neste espaço várias vezes, mas voltei ao assunto porque eu queria fixar bem a questão do surgimento do conhecimento novo. Ele nasce como uma ainda-não-ciência e é confirmado ou não. Se confirmado, vai para a academia dar arcabouço para novas pesquisas, novas protociências e novos devaneios metafísicos, que novamente alimentarão o ciclo, ad infinitum. Se é refutado, então o jeito é descartá-lo e voltar ao passo anterior, talvez até mesmo à estaca zero. Mas esse é um bom momento para surgir a pseudociência: quando alguém se agarra à hipótese moribunda e imputa o descarte a teorias da conspiração. Podem perceber como toda pseudociência tem por trás de si uma tese conspiratória – os cientistas não querem admitir... a Nasa oculta da população... seriam muitas perdas para a indústria... o conhecimento tradicional é menosprezado... blá-blá-blá... blá-blá-blá...

Um dos mecanismos para justificar a validade das pseudociências é o apelo à ignorância, também conhecido por argumentum ad ignorantiam, falácia informal de dispersão e relevância que se baseia na seguinte lógica: eu tenho um argumento qualquer sobre um tema em que não há conhecimento suficiente, portanto, ele é verdadeiro.

Não, não é. O fato de se ter uma hipótese sobre um buraco no conhecimento não a torna válida automaticamente. Se de fato as forquilhas apontam para águas profundas, a resposta para o porquê é um clamoroso e sonoro “não sei”. Mas é exatamente aí que o argumento da ignorância funciona. Como temos a tendência infantil de dar crédito a qualquer coisa que preencham os vazios do nosso conhecimento, achamos essas bazófias fiáveis. É tudo muito parecido com o Deus das Lacunas, com a diferença de que não enfiamos uma divindade na explicação, mas um argumento que não encontra contraposição no outro lado do debate. E também se assemelha à falsa dicotomia, na medida em que, para que sua lógica opere, apenas dois caminhos podem ser possíveis: se o argumento contrário não pode ser corroborado, então o favorável somente pode ser verdadeiro.

É aquela velha história... Propõe-se um sistema de governo diferente, como a atual moda do anarcocapitalismo. Em um determinado ponto, há um questionamento em que não há resposta possível – como lidar com conflitos de fronteira com outros países, por exemplo. Será lícito a um proprietário particular declarar guerra a um país vizinho? Como não há experiências anteriores e existiram desencontros de interesses, a resposta será a dúvida. E o apelo à ignorância decretará que o anarcocapitalismo é um devaneio, o melhor é o liberalismo clássico.

Duas coisas nesse caso. Mesmo que eu ache de verdade o ancap uma barca furada, isso não se deve ao fato de que ele não tenha respostas prontas para tudo. Isso é retórica de político. Sempre haverá uma situação imprevisível, que mesmo o mais bem engendrado dos sistemas não saberá lidar. E, além disso, o anarcocapitalismo ser ruim não quer dizer que a melhor via possível seja o liberalismo clássico (no exemplo específico). Outras vertentes políticas e econômicas podem ser cotejadas, como os estados de bem-estar social, o socialismo e mesmo um capitalismo de estado, como o fascismo – sempre haverá quem ache que estes modelos de condução de governo melhores, e terão lá suas razões. Deste exemplo, podemos notar o caráter dicotômico e desviante que tal falácia possui. Cuidado com ela.

E, por fim, há possibilidade de apelo à ignorância não falacioso? Apesar da malícia com que geralmente é usado, é preciso que se siga as mesmas regras da falsa dicotomia. Isso significa que, sabendo existir duas e apenas duas hipóteses possíveis, ter a consciência de uma das hipóteses já descarta automaticamente a outra. Exemplo boçal: se chego em casa e não vejo ninguém, ainda que eu ignore onde, sei que todo mundo saiu para dar um rolê. Ignorar onde o povo está não faz com que eles estejam em casa. Portanto, se eles não estão em casa, eu sei que estão fora. Entendeu ou ficou confuso?

Recomendação de leitura:

Nunca é simples falar sobre coisas não simples, como é o caso da teoria das cordas. O livro abaixo é apropriado para isso, de modo a ser possível acompanhar de maneira razoável o desenvolvimento desse conjunto de ideias. Mas, mesmo com todo o cuidado, sempre haverá escorregões para que não é da área, como eu.

GREENE, Brian. O universo elegante. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

* Proto, em grego, significa “primeiro”. No sentido aplicado, quer dizer aquilo que vem antes, aquilo que dá início, como em protótipo, um modelo que pretende dar origem a uma série. Já pseudo significa falso, o que não demanda maiores explicações

** As leis da Física levaram, até o presente, à descoberta de quatro tipos de energia que intermedeiam as interações entre os corpos: a força gravitacional, a força eletromagnética, a força nuclear forte e a força nuclear fraca. Há a forte suspeita de que o princípio geral que as rege seja um só, mas ainda não existe uma teoria consolidada para fundamentá-la.