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segunda-feira, 25 de maio de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 11º tomo - O escocês de verdade (exclusão do grupo)

Olá!


Nas pesquisas que tenho realizado para a elaboração deste pequeno guia, nenhuma das falácias é tão unânime quanto a que falarei hoje com relação aos corolários que a definem. Trata-se da falácia da exclusão do grupo, mais conhecida como falácia do escocês de verdade, que tem como protagonista um tal de Angus.

Não há escocês que ponha açúcar em seu mingau

Vamos ver como funciona a coisa. Imaginando o seguinte debate...
“- Os escoceses são um povo casca grossa. Nenhum escocês come mingau com açúcar.
- Ora, mas eu conheço um escocês, o Angus, que coloca açúcar no seu mingau.
- Ah, nesse caso, seu amigo não é um escocês de verdade”
... verificamos que existe um fato (Angus é escocês e põe açúcar no mingau) que contradiz uma tese (Nenhum escocês põe açúcar no mingau), jogando-a por água abaixo. Só que o interlocutor inicial rebate a antítese, desqualificando-a (Não é um escocês de verdade), com o objetivo de manter válida sua proposição. 

Portanto, a falácia do escocês de verdade é utilizada quando queremos expulsar um integrante incômodo de um conjunto, justamente por ferir e contradizer a convicção que se pretende defender. Vou extrair um exemplo de um fenômeno recente nas redes sociais, decorrente da ignorância política e histórica.

Tem sido muito frequente, pela parte de defensores do liberalismo econômico ou do conservadorismo moral, que os regimes fascistas (nazismo incluso) eram, na verdade, regimes socialistas. Baseiam essas declarações em argumentos pobres, como o fato de que o nome completo do partido de Hitler era Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, e que o termo “socialista” inserido seria o suficiente para colocá-lo como um modelo do marxismo. Mas há argumentos um pouco melhores, como aquele que diz que o estado quase absoluto dos nazistas possuía um intervencionismo incompatível com o pensamento liberal, não podendo, portanto, ser considerado um regime de direita. E é aí onde o escocês entra, seja no desconhecimento histórico, seja na desonestidade intelectual.

É fato que o fascismo como um todo propunha um estado forte. O lema de Mussolini, por exemplo, era “tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”. Mas vejam só. Hitler chegou ao poder pela via eleitoral, democrática, e o comunismo sempre se deu pela via revolucionária. O povo fez a escolha, e sabem por quê? Porque as elites alemãs estavam, naquele momento, se borrando inteiras de medo do comunismo, que prometia, como já se havia visto na Rússia, remover toda propriedade dos meios de produção. Um estado forte, com uma política de segurança interna altamente policial, era melhor para proteger a propriedade privada do que um estado mínimo. Sendo a propriedade o centro para o qual converge todo o mecanismo liberal, preferiu-se abrir mão do estado pequeno, mas desprotegido, e optou-se pela radicalização de sua proteção. Sim, crianças. Nazismo é direita, a extrema-direita, o liberal que usa o estado para se proteger, e o vitamina ao máximo para que ninguém mexa em sua casa. Não adianta querer excluí-lo pelo incômodo que causa.

Marxistas devem estar satisfeitos com o meu texto até agora, mas a mesma mecânica vale para o outro lado. Já li e escutei muita gente dizendo que o comunismo, da maneira que foi aplicado na União Soviética e satélites, não pode ser considerado marxismo, em especial o modelo aplicado por Stalin, que, por exemplo, desconsiderou a doutrina internacionalista de Marx. Isso não é verdade. O comunismo aplicou na prática a coletivização dos meios de produção, a ditadura do proletariado (ainda que de maneira dúbia), a expansão estatal. Isso tudo são premissas do marxismo. É sempre possível afirmar que há outras maneiras de aplicá-lo, mas não se pode excluir o comunismo soviético do rol de suas possibilidades, apenas pelo fato de ter se mostrado um modelo fracassado. Desta forma, o comunismo no modelo soviético também é marxismo, ainda que haja outras vertentes dentro do próprio comunismo.

Notaram como tanto de uma maneira como de outra se tenta excluir o escocês incômodo? Mas há maneiras ainda mais dissimuladas de fazer uma expulsão do grupo.

Vou recorrer agora à nossa memória pessoal. No meu tempo de criança, eu e meus amigos formávamos vários grupos para cometer peraltices, grupos estes que, às vezes, eram reduzidos a duplas. Lembro-me de uma traquinagem em especial, que era chamada de “Operação Resgate”, composta de uma série de procedimentos razoavelmente complexos para atingir um objetivo pouco nobre, mas vamos a ela.

Meu amigo Rogério, quando pequeno, era a personificação do capeta. Batia no irmão, afrontava diariamente a mãe, fugia da escola, brigava na rua, etc, etc e muitos etc’s. Gostava também de presepar toda a casa na ausência de sua sofrida mãe, a dona Marlene, a ponto de a mesma deixá-lo na rua, trancado para fora, quando ela precisava ir a algum lugar. É verdade! Uma prisão às avessas. Isso, para nosso aventureiro amigo, não era um castigo. Era um desafio, que precisava ser vencido... Quem era o escudeiro do moço? Tentem adivinhar...

Pois bem. Para invadir a casa do Rogério, era preciso acessá-la pelos fundos. Tratava-se de um daqueles sobrados construídos pelo proprietário em uma peça só, e depois divididos com paredes. Portanto, não havia corredores laterais. No fundo, havia em cada casa um pequeno quintal, com a lavanderia coberta por uma laje, também construída em bloco único. Como o seu sobrado ficava no meio de uma série de outros idênticos, era preciso invadir a casa do Moacir (amigo do meu primo e compadre Plínio, que na época já não morava mais lá), pela parte de baixo da rua. Subíamos pelo portão no muro lateral e caminhávamos até o tablado da laje coletiva, equilibrando-se também pela mureta que dividia os fundos do conjunto de casas com o pátio da fabriquinha de chinelos.

A outra opção era entrar pelo cortiço do seu Antônio, nome adotivo de um húngaro bravo que vociferava em sua língua de abundantes consoantes quando nos percebia a tungar seus abacates. Por ali, o acesso era mais fácil: no espaço do poço, logo após o primeiro bloco de quartos, apoiava-se no tronco do abacateiro e subia-se na laje. Usávamos menos essa opção porque o cortiço estava sempre movimentado. Desenhei um croqui meia-boca para todos entenderem melhor.


O croqui meia-boca, com os dois acessos possíveis ao lajeado

Estando no tablado da laje, caminhávamos até aquela concernente ao Rogério, onde havia um pequeno telhadinho ligando a laje à janela do quarto dos fundos, que era facilmente destravada com o uso de uma chave de fenda. Só que esse telhadinho era feito de material ordinário – aquelas telhinhas onduladas de plástico – que, para sustentar, eram necessárias duas traves de pouca resistência, dado o pouco peso das peças. Mesmo sendo nosso herói um menino, o telhadinho era tão frágil que não conseguiria suportá-lo sem romper. Para solucionar o problema, eu descia da laje e montava uma escora com paus de rodo, enquanto meu amigo engatinhava por cima das telhas. Destravava a ventana, entrava por ela e corria ao andar debaixo, para abrir a porta do fundo. E lá íamos pegar os cigarros e a cachaça do pai dele.  Sim, é verdade... Tínhamos todo esse trabalho para pegar dois cigarros (o péssimo Luiz XV, por sinal) e dois cálices de pinga de corotinho... Pura subversão, só faltava ser vodka.

Contei essa história toda para dar a dimensão da importância que uma aventura reputada como idiota pelos adultos pode ser importante para as crianças. Elas conseguem penetrar tão fortemente no universo paralelo de suas brincadeiras que esta ganha estatuto de realidade. Um jogo na rua é como se ocorresse no estádio, uma corrida parece valer medalha, e uma guerra de barro parece a batalha do Monte Castelo.

Com relação a isso, podemos perceber que a realidade percebida pelas crianças sempre é um pouco ignorada pelos adultos, ou mesmo pelas crianças mais velhas. Lembram-se dos “café-com-leite”, os meninos menores que brincavam junto dos grupos, mas que nunca eram empurrados para as mulas, para os pegadores, para os bate-caras? Eram os escoceses que não eram de verdade, uma forma branda de exclusão, ainda que para não cometer injustiças.

Nisso, chego a uma obra-prima da literatura infanto-juvenil. Um daqueles livros feitos para entreter crianças e tocar adultos, chamado “Os meninos da rua Paulo”. A história é uma grande parábola da guerra, que, na época (começo do século XX), já se encontrava às portas da Europa. Passa-se em Budapeste, onde um grupo de meninos utiliza um terreno para desenvolver suas brincadeiras, especialmente um jogo chamado de pela, algo semelhante com um tênis que se joga em grupo. Esse terreno, o grund, torna-se objeto de desejo de outro grupo, que passa a juntar esforços para tomá-lo para si, e consequentemente há a resistência daqueles que lá já estão. O autor, Ferenc Molnar, apresenta os personagens de maneira plural, mas que orbitam em torno de um objetivo comum. Desta forma, temos os frágeis, os indecisos, os inconsequentes, os racionais, os emotivos, dando todo um universo social em um mundo microscópico.

Há todos os elementos de uma guerra: a situação de desequilíbrio, o objeto de conquista, a diplomacia, os líderes, os traidores, os espiões, a pressão psicológica, as táticas, o conflito em si, a violência e suas vítimas, em especial o pequeno Ernö Nemecsek, que personifica o soldado fiel, aquele que dá a vida pela sua nação, pelo seu grund. Um conflito – ainda que pequeno – nunca deixa de ser um conflito.

E existe a exclusão do grupo não falaciosa? Sim, desde que a condição de exclusão seja verdadeira. Por exemplo: poderíamos dizer que todas as tiranias são antidemocráticas, mas que havia um país, o Brasil, que teve eleições durante o período ditatorial. Se dissermos que o Brasil não tinha uma democracia de verdade, estaremos corretos, porque a democracia não se caracteriza apenas por eleições. Aliás, eleições estas que excluíam o voto para presidente, para governadores, prefeitos de capitais, etc. Não são as eleições que definem a democracia, mas o Estado de Direito, a característica de não existir ninguém acima da lei.

Recomendação de leitura:

O livro de Ferenc Molnar é daqueles livros raros, que podem ser lidos tanto por crianças como por adultos, como também acontece com O Pequeno Príncipe, Alice no País das Maravilhas, As Aventuras de Huckleberry Finn e outros. Para mim, leitura obrigatória.

MOLNAR, Ferenc. Os meninos da rua Paulo. São Paulo: Ediouro, 1996.

Agradeço à minha patroinha por emprestar suas pernas para personalizar o escocês (No caso, escocesa).

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