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sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Navegações de cabotagem – A Breganha de Taubaté e a indefinida loucura que insistimos em não ver

(A loucura não é mais o que pensávamos, mas ainda não é o que sabemos)

A indiferença é você ignorar o que se passa, é fingir que não vê

Daniela Arbex

Olá!

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Certos “espíritos” que não existem mais na Capital da Garoa ainda podem ser vistos nas cidades de interior, mesmo as maiorzinhas. É aquela coisa de procissões que atravessam por bairros, defuntos velados em casa, vendedores que batem de porta em porta, praças lotadas nos domingos e outras coisas que ficaram esquecidas nas metrópoles. Taubaté está entre as tais maiorzinhas, mas ainda conserva estas tradições, como já falei sobre a Casa do Figureiro. Mas existe um evento dominical que é tão célebre na região do Vale do Paraíba que chega a ser considerado uma atração turística da cidade. Trata-se da Breganha.

Breganha? Que nome é esse? É uma corruptela da palavra “barganha”, adaptada do linguajar popular para indicar trocas diretas feitas entre donos de objetos, com aquelas famosas pechinchas tentando fazer um valor mais camarada. É tradicionalíssima em Taubaté, porque existe, segundo algumas fontes, desde o século XVII, mas, na redondeza do Mercado Municipal, está há mais de um século.

Não era prática incomum no momento em que surgiu. Os tropeiros que saíam do litoral paulista rumo aos campos de minérios na região de Minas Gerais tinham pontos de parada em seus longos trajetos onde faziam pequenas compras que iam além do comércio estritamente necessário ao seu labor, e isso atraía à beira dos mercados pessoas que traziam miudezas.

A Breganha tem de tudo, novos e usados, secos e molhados, desde manufaturas para produtos tipicamente locais…

… até produtos realmente usados, mas que são vendidos a um preço tão baixo que ainda encontram compradores. Volto já, já a falar sobre isso.

Há algumas velharias, entretanto, que são de fato interessantes, com valor de coleção ou de reposição difícil. Vejam a quantidade de câmeras fotográficas analógicas. Algumas são antigas até para um cara da minha idade.

Por essa razão, a Breganha é insólita e tem valor turístico, já que escavadores podem achar artigos que, de fato, possuem uso de relevo ou raridade, a preços de fato pequenos, com a possibilidade de negociar trocas e pechinchas, como se fazia nas feiras livres até não muito tempo atrás. Mas há também toda sorte de velharia onde se tenta exercer a criatividade para conseguir utilidade. Há artesãos que passam por aqui pelo simples fato de encontrar algum objeto que os inspire, como um prego velho, uma lata enferrujada e outras coisas que só encontram proveito no engenho mental humano...



... bem como há coisas belas, históricas e úteis por si só. Tem de tudo, em resumo.


Há, no entanto, o entorno, e lá, como em qualquer cidade maiorzinha, vemos um universo inteiro de pedintes. Eles estão não somente em Taubaté, mas existem em profusão nas feiras mais conhecidas, como a popularíssima feira do Glicério ou na chiquérrima feira do Pacaembu. Aqui, estão aqueles que não conseguem estar no miolo, mas nas beiras, esperando suas migalhas. São os miseráveis, os bêbados, os drogados, os mendigos, aqueles a quem a bebida e a desgraça fizeram soltar os miolos, ou, do contrário, por não terem o juízo todo, ficaram excluídos do mundo do trabalho, não tendo forma de ganho que lhes sustente.

Mas é muito discutível que os pedintes que rodeiam os mercados e as feiras sejam chamados de loucos. Esta é uma designação genérica para aqueles que não se integram ao meio social por ter algum tipo de deficiência cognitiva. Mas vejam só como é o mundo. Enquanto a patroa negociava uma sapateira de madeira, eu vi que tinha um moço na saída da Breganha que estava sentado quieto, com um saco de tampinhas que ele parecia admirar, uma por uma. Pegava uma do saco e ficava olhando e olhando, depois outra, e mais outra. Ele ficou por lá até alguém berrar para ele, do outro lado da rua:

"Ô, doido! Sabe onde tem mais uma tampinha?" - apontando para sua genitália, naquelas brincadeiras típicas de quinta-série, e saiu dando risada sozinho. O doido meneou a cabeça e se limitou a dizer: "eu que sou o doido…", e continuou na sua atividade de doido.

Aquilo me colocou a pensar e a lembrar de algumas histórias. Não são somente contos inocentes que surgem através da cambaia definição que damos aos transtornos mentais, mas desventuras que terminam mal. Vejam só.

O nome fictício era Silvio. Era um homem em uma faixa de idade incerta, mas que flutuava entre os 30 e 40 anos. Um cidadão periférico típico dos princípios da década de 80, com as mesmas características de qualquer um. Ou quase. De externo, era portador de estrabismo divergente discreto, o famoso zarolho. Isso já lhe rendia uma pequena dificuldade de enxergar e uma grande dificuldade de se relacionar, já que ele encarou por toda a sua vida aquela velha pecha de ter um olho em deus, outro no diabo. Mais que isso, o problema de visão o afastava dos empregos mais decentes, e, em casa de oito irmãos, isso era uma questão.

Esse ainda não era seu pior problema, entretanto. Sua volumosa família, pai, mãe, irmãos, não era exatamente unida, e a lei da evolução ganhava naquela apertada casa de três cômodos um microcosmo que seria fascinante, se não tivesse seu aspecto desumano. Lá, Silvio (nome fictício) era a personificação do mais fraco. Em qualquer disputa era o errado, o que tinha que ceder, o que tinha que apanhar. Se havia alguém em posição de ser descartado, era ele.

De resto, alguns poucos hábitos marcantes. A dificuldade visual lhe fazia assistir a televisão muito de perto, e gostava de se enfiar em seu quartinho nas tardes de domingo para assistir o Silvio Santos, seu fictício xará, tomando uma garrafa de soda limonada, seu refrigerante preferido. Causava incômodo por seus arroubos e lhe construíram um quartinho do lado de fora da casa, para que por lá tivesse suas manias.

Diziam ser louco. De fato, foi parar uma vez no sanatório, aviado pelo padre da paróquia em que militava. Excesso de nervosismo, o diagnóstico, que lhe dava acessos de fúria. Mas, por tudo o que ouvi, nada mais tinha do que um transtorno de humor, algo que qualquer Ritalina resolveria. Alternava períodos de grande quietude com acessos de explosão verbal, no más. Sem quebradeiras, sem violência física, mas com momentos de muita gritaria. E este comportamento não era imotivado. Vinha do espírito belicoso da casa, sempre cheia de brigas, de todos contra todos. Todos gritavam e se enervavam, mas era nele que estava colado o rótulo: o Silvio, de nome fictício, tinha doença na cabeça. Entre todos, é o que sofria as piores consequências, porque tinha menos ligeireza de pensamento, talvez. Ou porque fosse menos desprovido fisicamente, não sei dizer, só ouvi dizer.

Das irmãs, tinha a peia nas costas; dos irmãos, os punhos mesmo. Do pai, a indiferença e da mãe o olhar complacente, embora não lhe poupasse a censura. De todos: é o doido. Família de mineiros, viviam lhe prometendo colocar no trem, mesmo que esse não existisse mais. Já falo mais sobre ele.

Numa tarde de domingo, Silvio tomou um copo de soda. Não a limonada de sua preferência, mas a cáustica. Estupidamente, deram-lhe leite como socorro, inócuo diante da alcalinidade do preparado. Foi parar no hospital e, estando com o trato digestivo todo calcinado, lá ficou por meses, em permanente alimentação parenteral. Diziam que cometeu sua derradeira loucura por um amor mal resolvido, mas que ninguém chegou a conhecer. Aliás, nunca se soube de que naquele momento estivesse a namorar ou mesmo pretendendo. Só que a narrativa ganhou unanimidade, pois trazia alívio a todos que pudessem sentir alguma culpa. Morreu seco como a figueira bíblica, e no seu enterro havia muita choradeira. Todos os irmãos bradavam por perdão. "Perdão, meu irmão, me perdoe"... Mas por que pediam perdão, se a causadora da desgraça foi uma paixão arrebatadora? Que culpa poderiam ter nisso para tantas escusas? De uma das bocas, eu ouvi que não foi por loucura que ele tivesse, mas por loucura que lhe impuseram. É a boca mais confiável de todas, e a única que eu acredito nesse imbróglio.

O tema da loucura é tabu porque é embaraçoso e espinhoso. Já se dizia que de poeta e louco todo mundo tem um pouco, e as abordagens atuais sobre saúde mental parecem corroborar cada vez mais isso. É importante que seja assim, para que se desmistifique cada vez mais os padrões de comportamento. Há momentos em que eles, por si só, já são removidos da norma pelo simples fato de causar estranheza, sem que qualquer prejuízo seja evidente, tanto à pessoa, quanto a quem a cerca. Quem de nós não tem seus momentos de esquisitice? Guimarães Rosa fala sobre isso em seu rápido conto "Sorôco, sua mãe, sua filha" de maneira brilhante. Fala da história de um homem simples, lavrador viúvo que leva sua mãe e sua filha até a estação do "trem de doido", a composição que leva os acusados de loucura até o manicômio de Barbacena, de onde nunca sairão, o mesmo trem que prometiam enfiar o pobre Silvio (nome fictício). A única loucura aparente de sua filha é uma canção suave, que ela canta de maneira meio alheada. olhando para o céu. Na hora de embarcar no vagão, sua avó, mãe de Sorôco, começa a entoar o mesmo canto. Depois que o trem parte, é a vez do próprio Sorôco retomar a melodia, o que também é feito pouco a pouco por toda a gente que veio acompanhar a partida e lhe dar solidariedade. A beleza subjacente ao conto está na repetição das mesmas ações que levaram a menina a ser encaminhada ao sanatório por todos, um fenômeno comum que é considerado loucura ou normalidade de maneira seletiva. 

Também Lô Borges, outro mineiro, captou com maestria esse espírito de exclusão com todos que caem na vala comum da loucura. Vou colocar aqui a letra de sua música "Trem de Doido":

Noite azul, pedra e chão

Amigos num hotel, muito além do céu

Nada a temer, nada a conquistar

Depois que esse trem começa andar, andar

Deixando pelo chão os ratos mortos na praça

Do mercado

 

Quero estar, onde estão

Os sonhos desse hotel, muito além do céu

Nada a temer, nada a combinar

Na hora de achar meu lugar no trem

E não sentir pavor dos ratos soltos na praça

Minha casa

 

Não precisa ir muito além dessa estrada

Os ratos não sabem morrer na calçada

É hora de você achar o trem e não sentir pavor

Dos ratos soltos na casa, sua casa.


O eu-lírico se põe na posição dupla do alheamento dos doidos que embarcam para a reclusão e na metáfora dos ratos, a praga indesejada de quem só se quer o extermínio. Fala de mercado, fala de praça, fala dos ratos. Fala da exclusão dos indesejados.

Esse trem de doido era a maneira com a qual os mineiros tratavam o deslocamento de pretensos doentes mentais para o manicômio de Barbacena, cujo nome oficial era Colônia, localizado na região do Campo das Vertentes. Por lá, existia um amplo complexo que utilizava os métodos consagrados até a segunda metade do século XX para controle de doenças mentais: eletrochoques, sossega-leões, camisas de força e outros procedimentos que visavam controlar os surtos psicóticos dos pacientes. Era o que se imaginava possível de se fazer à época.

O que havia de mais triste, entretanto, era que lugares como Barbacena se tornaram pontos de despejo dos indesejáveis, os ratos da canção de Lô Borges. Para lá iam pessoas que teriam tratamento em suas casas, em suas cidades, mas que eram consideradas irremediavelmente insanas, e que precisavam de controle permanente. Pior ainda: para lá iam não só os considerados loucos, mas aqueles que tinham qualquer atitude que pudesse ser considerada desvio de conduta, como as "meninas namoradeiras" que tinham vida sexual ativa, e que destoavam da moral da época. Iam aqueles que tinham tendências homossexuais, os que não se davam com o trabalho, os que não se enquadravam no modelo social, enfim.

Todas essas histórias estão contadas no chocante livro da jornalista Daniela Arbex, recomendado abaixo, que nos conta como inúmeras vidas foram dizimadas naquele hospital, em um período histórico que vem sendo chamado de Holocausto Brasileiro, dados os pontos de coincidência com o evento ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial. Estima-se que 60 mil pacientes morreram no Colônia, seja pelos excessos cometidos nos “tratamentos”, seja pelas condições sanitárias abaixo de qualquer crítica, pela alimentação precária ou pelo frio. Era um imenso quarto de despejo, mais infecto que o mais ordinário dos valhacoutos. Os próprios internos eram encarregados de fazer a pouca comida disponível, acumularem-se para se proteger do frio e enterrar os mortos. Mais não conto, porque é livro de leitura obrigatória.

Hoje em dia, o modo como é encarada a doença psíquica mudou demais, para nosso gáudio. Os profissionais “psi”, em que pesem eventuais tropeços, passaram a ser vistos com mais respeito, e fazer terapia deixou de ser sinônimo de tratamento para malucos, mas de um hábito saudável de quem reconhece não ser um super homem infalível. Fala-se muito em depressão hoje em dia não porque o modus vivendi moderno a favoreça, mas porque ela é uma condição mais estudada e compreendida. Falamos em TOC, em TDAH, em transtorno bipolar porque hoje somos capazes de entender que o cérebro é uma máquina complexa e sujeita a defeitos, mas que não faz sentido jogá-los todos no senso comum da loucura, que deveria ter uma definição bem mais restrita, ou mesmo inexistente. É bom que todas as questões de saúde mental sejam adequadamente segregadas, porque a vala comum tende a produzir tratamentos comuns, mas a camisa de força não serve para qualquer coisa, se é que serve para alguma.

Um porém. Tenho alguma preocupação com essa maneira com a qual a coisa está sendo levada, e para tanto vou dar um exemplo. A atriz Letícia Sabatella, talentosíssima, de quem já vi peças de teatro dignas de meus textos (aqui), foi diagnosticada com autismo, como pode ser lido aqui. A par disso, lembro que tenho uma vizinha que também tem uma filha autista. A menina é uma graça, alegre, lépida e saudável. Quero dizer que não há nada fisicamente que denuncie sua condição, mas a dificuldade de comunicação que ela tem é digna de nota. Ela vive efetivamente em um mundo próprio, e só sai dele quando alguma condição especial e desconhecida mesmo de sua mãe faz com que ela peça água, praticamente sua única verbalização de vontade. No mais, praticamente nenhuma interação existe, e é difícil até mesmo conseguir escola para ela.

Não é possível nenhum nível de comparação entre as duas condições. Se alguém conviver com a atriz, talvez a ache um pouco estranha, no máximo. Tipo distraída, ou incomodada com coisas pequenas. Eu que vejo a menina todos os dias, compreendo que suas limitações vão muito, mas muito além disso. Não entendo que, ainda que falando de níveis diferentes, possamos colocar ambas no mesmo bojo. Uma não teve impedida uma carreira de sucesso e reconhecimento público, a outra quase que luta para sobreviver. Neste sentido, a classificação tende a ir ao sentido oposto do desejado: e de generalizar, ao invés de especificar, exatamente como se chamam os loucos da Breganha. Como não sou especialista da área, não vou ficar dando pitacos, mas é uma sensação que tenho e que gostaria de externar.

Então, se aquele moço que estava com as tampinhas na Breganha pudesse me ouvir, eu diria para ele não ligar para quem o chama de doido. A humanidade erra demais e provavelmente o faria no seu caso, que mereceria mais atenção social do que propriamente psíquica. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Vão de trambolhão hoje. A primeira é o famoso livro de contos de Guimarães Rosa, que já continha sua peculiar maneira de contar histórias.

ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1969.


Depois, vai a música transcrita, uma pérola dentro de um disco fantástico, um hard rock no meio da MPB para provar todo o ecletismo do movimento.

BORGES, Márcio; BORGES, Salomão. Trem de Doido. In: Clube da Esquina. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1972.


Como não poderia deixar de ser, o essencial livro-denúncia da jornalista Daniela Arbex, contendo toda a desgraça que foi a existência dessa instituição.

ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. Genocídio: 60 mil Mortos no Maior Hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editorial, 2013.


E, finalmente, a Breganha em si, que pode ser visitada todo domingo de manhã, no endereço abaixo:

Feira da Breganha

Av. Des. Paulo de Oliveira Costa, 1030-1054

Centro

Taubaté/SP

A aproximadamente 130 Km do centro de São Paulo