Marcadores

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Pequeno guia das grandes falácias - 63º tomo: a evidência suprimida (cherry picking) e as dificuldades de encontrar o Sócrates histórico

(É um grande problema quando não há fontes fiáveis para contar a vida dos antigos. Até onde Sócrates é aquele que nos narram seus contemporâneos? E mais uma falácia para o Pequeno Guia) 

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Depois de meio que me mudar para Taubaté*, comecei a fazer as vezes de agricultor e cuidar de alguns canteiros. Tem couve, alface, hortelã, capim-cidreira, pitaia, uma jabuticabeira e um mamoeiro, coisa pouca porque o terreno não é muito. Cuido deles de maneira orgânica, o que faz com eu tenha um embate jogo limpo com passarinhos: eu sirvo um mamão na casinha deixada para tanto e eles retribuem não atacando as demais frutas. O mesmo não é tão fácil de negociar com as lagartas, e vou aprendendo a fazer os controles sem sujar as plantas com veneno.

Mas meu xodó tem sido os morangueiros, a quem cuido com carinho e que retribuem dando farta produção. Trouxe as mudas de Terra da Garoa, onde já faço um cultivo em vasinhos, mas o pouco espaço não permite grandes safras, embora o sabor das frutas tenha melhorado bastante com o uso de terras boas e adubos adequados. Aqui, a coisa rende muito mais, a ponto de não ter necessitado comprar morangos, nem na feira, nem da quitanda.

Uma boa parte do prazer está em uma pequena vingança. É muito raro conseguir uma venda onde você possa escolher seus morangos, porque eles já estão confinados em bandejinhas. Entende-se: é uma fruta delicada e a manipulação constante dá muito desperdício. Entretanto, a sacanagem é recorrente – por cima, uma camada de primícias motiva a gente a aceitar o preço caro. Quando você abre a barquinha, no entanto, há um broxante desmanchar de frutas, uma geleia involuntária das feiuras que restaram esmagadas. Daqui do canteiro, colho o que quero no tempo certo.

Não é só a questão da desonestidade, mas uma espécie de amostra grátis da nossa pobre realidade tupiniquim. Para fazer bonito ao comércio gordo, você exibe a belezura de suas frutas e esconde as feiosas, as escarradas, as purulentas. Bem, se minha (falecida) vovozinha viesse me visitar, eu bem que optaria pelas melhores frutas na sua salada, mas aí temos o aspecto afetivo. Eu lhe serviria a viçosa ou a imatura? A bonita ou a cagada?


É um processo que ficou célebre com cerejas, mais comuns no hemisfério norte do que por estas verdes plagas. Não se trata de um processo que se faça somente com cerejas, mas com qualquer fruta ou legume que se queira fazer boa impressão. Há, inclusive, alguns gabaritos que tornam possível descartar as frutas menores, já filtrando apenas as peças graúdas. Dessas, ainda são selecionadas as mais vistosas, e olhando uma caixa dessas cerejas, temos a nítida impressão de que aquele pomar só gera frutas maravilhosas, o que, sabemos, não é verdade. A cereja feiosa também faz parte da realidade. 

É mais ou menos o que acontece com a exportação de produtos. As brazilian fruits parecem vindas do paraíso, mas isso só acontece porque é feito um processo rigoroso de seleção dos frutos que povoaram as mesas ianques. Para os residentes de Terra Papagalia restarão os feinhos, ou pagar-se-á com o fígado por produto semelhante, o tal do “tipo exportação”. Com a economia dolarizada, e com a moeda ianque constantemente acima dos cinco reais, certos produtos estão impossíveis de comprar. Coisas do capitalismo. Mas, como nas receitas de marinados, vamos reservar.

Já fiz a experiência com vocês de mentalizar o primeiro filósofo que viesse em suas cabeças. É muito provável que uma grande parte tenha pensado em Sócrates. Não é injusto. O grego em questão é uma espécie de padroeiro laico da filosofia, não porque tenha sido o primeiro a pensar nas coisas através da lógica, mas por ter inaugurado um método e uma postura que fizeram sucesso.

O método é a maiêutica, uma espécie de dialética que busca traçar um itinerário da presunção de sapiência para o reconhecimento da ignorância, e, a partir daí, sair em busca do conhecimento real (o tema merece um texto específico), e a postura é uma recusa em obter fortuna e prestígio através da transmissão do conhecimento, o que o tornou um crítico feroz dos sofistas, que sabiam fazê-lo muito bem.

Sócrates, à moda de antigos líderes religiosos, não legou nada escrito, deixando ao encargo de seus discípulos a tarefa de transcrever seus ensinamentos, assim como Jesus fez posteriormente. Isso traz dois problemas: as narrativas são feitas por entidades não confiáveis e a história do homem retratado fica prejudicada, e não do “mito” construído pela doutrina.

E por que isso? Porque o discípulo não é parte completamente isenta no processo narrativo. É muito difícil separar o que é material próprio de Sócrates e o que saiu da cabeça de seus seguidores. Eu sei que o papel que farei é de advogado do diabo, mas ele é necessário.

Vou começar exercendo uma comparação: por onde conhecemos a vida de Jesus? Pelo relato dos evangelhos, naturalmente. Em tese, foram redigidos por pessoas que estiveram muito próximas de testemunhas oculares de sua vida. O grande problema está na imparcialidade do que cada um desses autores nos conta. Todos aqueles que se propuseram a escrever a vida de Jesus eram devotos, e escreviam com um forte viés de fé. Isso pode servir muito bem para quem igualmente busca sustentação em sua crença, mas para a historiografia é um sufoco e tanto. Com isso, é necessário que se busquem fontes externas ao turbilhão dos fatos, mesmo que sejam igualmente pouco fiáveis, mas que, pelo bojo informativo, possam trazer alguns elementos de confirmação ou refutação.

A crítica histórica normalmente é favorável à existência de um Jesus histórico, ainda que haja pouquíssimos elementos externos, como Flávio Josefo e Cornélio Tácito. Não se busca aqui o Jesus da doutrina, mas o Jesus homem, que tenha vivido e exercido um ministério público, mesmo que sua divindade não tenha sido real. O mesmo acontece com Sócrates. Quase não se discute mais sua existência histórica, só temos dificuldades em estabelecer que Sócrates foi esse. O consenso acadêmico é que há duas fases bem distintas em sua vida, aquela que é mais próxima dos filósofos naturalistas e da nova visão humanista dos sofistas, que é onde se concentram a maior parte de seus detratores, e uma em momento mais maduro, prenhe de ideias que foram aproveitadas por Platão e Xenofonte. E aqui também temos um elemento histórico que suprime a falta de fontes confiáveis tão bem quanto no caso de Jesus: há uma novidade no pensamento. O antes e depois de Sócrates, assim como o antes e depois de Cristo, porque há uma transformação de tal monta no pensamento filosófico que é plenamente compatível com a existência de um pivô em torno do qual girou esta guinada, assim como houve uma reviravolta no pensamento religioso no momento em que Jesus supostamente teve sua vida pública.

De todos os discípulos de Sócrates, o mais abundante de todos é Platão, longe de qualquer dúvida. Ele tomou o mestre como personagem de inúmeros diálogos, que não sabemos ser de audição dos ensinamentos ou se são de lavra própria, usando a imagem socrática para passar uma espécie de certidão sapiencial ou fazer uma homenagem. De uma forma ou de outra, Platão não se preocupou com os aspectos mais históricos, traçando a trajetória ou a personalidade, ficando bem mais atido aos aspectos doutrinários de Sócrates, no que ele foi grande. Platão idealiza no seu mestre o paradigma do sábio, e parecem ser efetivamente reproduções do ideário socrático os seguintes tópicos: a psique como a essência do homem, a areté sendo o próprio conhecimento do homem, a felicidade vinda da própria alma, a razão como ferramenta da não-violência, o autodomínio do prazer e da dor, o método dialético, a assunção da ignorância, dentre outros, em sua maioria temas inéditos ou com nova abordagem, e que guiaram toda a filosofia posterior.

Outro discípulo que deixou registros significativos de Sócrates foi Xenofonte. Como não era homem da Filosofia, este grego se preocupou mais com aspectos práticos dos ensinamentos socráticos. Platão trazia diálogos em que Sócrates discutia os conceitos de coragem e justiça, enquanto Xenofonte nos trazia exemplos da maiêutica referentes ao preparo dos homens para governar. Essa visão mais pragmática era favorável ao conhecimento do Sócrates histórico. Xenofonte traz um Sócrates do dia-a-dia, que dá conselhos úteis para coisas bem menos filosóficas das que Platão nos trouxe, como a alimentação, exercícios físicos e tantas outras coisas. No que ambos se parecem é com o uso da razão: Sócrates sempre desenvolve seus argumentos na forma de longos raciocínios e jogos de perguntas e respostas.

O grande problema comum a Platão e Xenofonte é denunciado pelo próprio nome de duas de suas obras: Apologia de Sócrates. Com um título desses, já nos fica claro que a intenção de ambos era defender as doutrinas e as condutas de seu mestre, o que, no mínimo, já dá alguma mostra de parcialidade. Como bem se sabe, a apologia é um estilo literário de defesa e elogio, bastante utilizado nos textos laudatórios das religiões. É muito provável que nem Platão, nem Xenofonte tenham colocado o que conheciam sobre Sócrates em seus diferentes textos, mas unicamente o que lhes interessava ou fazia sentido no que queria deixar para a posteridade, e, com isso, temos um Sócrates incompleto. Se há algum tipo de acusação, já é preciso também ouvir o lado de lá.

Por  estranho que possa parecer, uma boa fonte para as detrações a Sócrates veio dos comediógrafos, Aristófanes à frente. Em sua peça chamada As Nuvens, ele nos apresenta um Sócrates altamente caricaturizado, com uma atitude muito semelhante à dos sofistas, que arrotavam conhecimento e o vendia a um bom preço. Além disso, em certos momentos o filósofo era colocado como centro do próprio universo que criou: o Pensatório, uma espécie de escola como era comum naquela época. Lá, toda sorte de bobagem era elevada à condição de causa universal. Além disso, o Sócrates de Aristófanes despreza a religião pública, trazendo novas divindades para o panteão de sua instituição.

É óbvio que o trabalho de Aristófanes contém um sem número de argumentos ad hominem e apelos ao ridículo. Devemos sempre lembrar que estamos no campo da comédia, terreno da mofa, do escárnio e do maldizer. Mas também devemos lembrar que, a parte dos exageros típicos, há também uma carga de crítica muito evidente que é peculiar ao humor e ao chiste, de modo que é preciso escavar o angu para verificar se por baixo não há carne. As críticas de Aristófanes, de certa forma, são as mesmas que levaram Sócrates à condenação, o que é um motivador muito mais sério. De fato, como já pudemos ver, Sócrates foi acusado de impiedade e de subverter a juventude, e sua atitude na peça corresponde exatamente à acusação, porque ele proclama as Nuvens como divindades e elabora um sistema que atrai muitos discípulos.

Qual é o verdadeiro Sócrates? O mestre racional de Platão, o homem prático de Xenofonte ou o fanfarrão de Aristófanes? É muito difícil de identificar pelo simples relato, porque acabamos por tomar um partido de cada uma das leituras. Como sempre, a verdade deve estar em um ponto entre os diferentes sujeitos dessa história e seu respectivo objeto, como diria Theodor Adorno. E, para cada versão, o seu autor seleciona o que de melhor convém para o que quer transmitir.

Vamos resgatar a história lá do começo. Sabemos da predisposição que temos em expor o que temos de melhor, e varrer para debaixo do tapete tudo aquilo que não nos interessa mostrar. Isso não acontece somente com histórias ou cerejas, mas com todo argumento que construímos. Da mesma forma que aqueles agricultores que fazem suas frutas passar pelos gabaritos para nos fazer crer que sua terra somente produz os frutos da mais alta excelência, também deixamos de levar em conta muito escolho que faria nossos argumentos serem insuficientes em si mesmos.

Isso é falacioso, e é conhecida por dois nomes. O mais técnico é chamado de evidência suprimida, que ocorre quando sabemos de pontos que invalidam ou enfraquecem nossos argumentos e deixamo-los encostados. O apelido carinhoso é cherry picking, o processo de escolha das cerejas, que aqui são metáforas para a seleção maliciosa dos dados que melhor comprovam nossas hipóteses. É incrivelmente comum em pseudociências ou em defesa religiosa. No primeiro caso, porque todas as variáveis de uma teoria e todas as amostras coletadas precisam ser levadas em consideração em uma pesquisa, não sendo possível descartar injustificadamente aquelas que não concordam com a tese central. No segundo, porque sabemos que há vários itens dos livros sagrados que, embora refutados, são colocados na conta do relativismo, sendo que outros vão para o rol dos argumentos válidos concretamente.

Platão e Xenofonte colhiam suas cerejas relativamente a Sócrates? Parece indubitável que sim, mas o lado de lá, Aristófanes, também o faz. Às vezes acontece de fazermos isso também, nem sempre porque queremos maquiar uma lógica, mas porque não damos atenção devida a fatos que, apesar de não os considerar significativos, existem. Isso é um cuidado que devemos sempre ter. Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

Já mencionei a Apologia escrita por Platão, mas, como a mencionei aqui, segue novamente a recomendação:

PLATÃO. Apologia de Sócrates. Porto Alegre: L&PM, 2008.

A obra de Xenofonte tem o longo nome de Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, mas é conhecida pelo seu nome mais curto. Cito esta obra por ser mais completa do que a sua Apologia.

XENOFONTE. Memoráveis. Coimbra: Fundação Calouste Gulbekian, 2009.

Por fim, segue a indicação da peça teatral de Aristófanes, que, aliás, volta e meia é encenada por estas bandas. Fiquem de olho nos teatros de suas cidades.

ARISTÓFANES. As Nuvens. São Paulo: Zahar, 1995.

 

* Como a história é meio longa, coloco-a aqui no fim para não tolher o ritmo do texto. Eu não mudei completamente para Taubaté. Ainda tenho o mesmíssimo apê alugado no centro velho de São Paulo, e estou aproveitando um cômodo da casa da minha filha mais nova como dormitório, escritório e oficina. Por conta do home office, passo mais tempo aqui do que lá, a ponto de adotar este endereço como meu domicílio. Taubaté é muito legal por ser um hub que facilita o acesso a muita terra legal. Quem sabe eu não acabe me fixando por aqui?

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

A Teoria dos Ídolos de Francis Bacon e o quanto é importante perceber as influências de nossas ideologias no pensamento científico

(A ideologia vai muito além do que o entendimento raso que temos hoje em dia. Ela vem de tempos e era chamada de “ídolos” desde a Idade Moderna).


O intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe – Francis Bacon

Olá!

E agora estou com labirintite. Descobri, evidentemente, da pior forma: tendo uma crise. Pensando bem, poderia ter sido bem pior, tipo dirigindo ou atravessando a Sé, mas foi sentado na cozinha, tomando um café. Fiquei cismado de que ele fosse o culpado, mas tenho um pouco de dimensão das coisas e sei que não é nada disso. É algum distúrbio no ouvido, causado diretamente por um descompasso nos líquidos dos canais semicirculares, o órgão do sentido de equilíbrio de nosso corpo. Pelo menos em tese é isso que tenho, até a realização de exames mais conclusivos.

Eu já tinha ouvido muitos relatos sobre as síndromes vestibulares, mas é só sentindo no couro que ganhamos representatividade. Vertigem e perda de direção são mais fáceis de lidar na teoria do que na prática, e ao levantar da banqueta dei um desvio na direção digno dos carros com suspensão avariada, o que me obrigou a apoiar nas paredes até chegar ao sofá, onde larguei o corpo até me sentir um pouco melhor. Só que junto com a zonzeira vem uma ânsia de vômito daquelas, que só o meu ódio ao ato ajudou a reter. É a mesma sensação de quem fica mareado após horas de balanço no barquinho do mar, daquelas cenas típicas de comédia, mas que não são nada engraçadas para o contribuinte que a suporta.

Enquanto a sala fica girando ao meu redor, fico tentando buscar supostas origens na cabeça confusa. Lembro de quando era bem pequeno e via meu pai limpando os ouvidos com um palito de dentes, o que fui repetir escondido, e me custou uma corrida no médico e um buraco no tímpano. Lembro também da música no talo partindo dos fones de ouvido e dos amplificadores arregaçados ao máximo para conseguir aquele delicioso ruído de válvula sobrecarregada, para desespero dos vizinhos e delírio dos otorrinos, sequiosos por ouvidos estuporados. Bom, na verdade, é um deles que vai me ajudar agora, então não sejamos injustos. Pode ser tudo isso ou nada disso, então vamos examinar o que for necessário.

Impressiona um pouco como podemos ter desvios de percepção. Claramente isso ocorre com mais profundidade na medida em que você está acometido por uma doença ou turvado pelo consumo de certas substâncias, como remédios, álcool ou drogas ilícitas. Sentimos os objetos maiores ou menores, as portas mais próximas ou mais distantes, as paredes tortas. Mas olhando bem, mesmo agora que já estou bem recuperado, noto que a parede realmente não é reta. Pego um fio de prumo e vou tirar a prova dos nove, e, ainda que por poucos milímetros, a parede realmente é torta. Outras paredes, de empreendimentos mais sérios, provavelmente estarão mais bem aprumadas, mas nunca estarão cem por cento ajustadas às métricas. Mas eu assumo que elas estão retas porque, no final das contas, só uma distorção muito grande trará efeitos práticos na minha vida, como uma parede de apartamento cedendo ao peso da laje.

Isso é um problema para quem deriva todo seu pensamento a partir da experiência. Sempre teremos algum grau de distorção que, se no miúdo não faz diferença, no todo é transmitido para a teoria geral. Francis Bacon era desses, e reconhecia o quanto era problemático extrair dados da experiência, e por isso fundou um método todo cheio de nuances. Ele surge no Renascimento e se opõe a três inspirações epistemológicas. Primeiramente, coloca-se radicalmente contra qualquer conhecimento de fundo metafísico, especialmente à escolástica de São Tomás de Aquino, que usava como critério de desempate em um confronto entre Religião e Ciência a primazia da fé sobre a razão. Para Bacon, o valor dos argumentos de autoridade só é válido no campo da fé. Depois, via com desconfiança o racionalismo de René Descartes, que dava mais valor ao raciocínio intrínseco do que aos dados colhidos da realidade. Por fim, não aderia a Galileu Galilei e seu mundo visto sob o prisma das formulações matemáticas, que buscava leis gerais e, delas, fazer deduções sobre o funcionamento do mundo. Bacon, ao contrário de todos, entendia que a ciência deveria ser empírica, baseada na experimentação e na observação de casos particulares, que se acumulam e são registrados para formar conclusões e reforçá-las. Quem procurar ler o livro que recomendei neste link, verá que sua segunda parte é toda composta pela descrição exaustiva de métodos de registro de coletas de informações. Aproveitem para notar o quanto a indução está em utilização em todo o seu esplendor: a anotação de inúmeras e inúmeras ocorrências dos mesmos fenômenos é a base de todo o conhecimento, e, para isso, o registro ad nauseam deve ser rigorosamente realizado.

Há questões: tudo bem que Hume é posterior a Bacon, mas a constatação do problema da indução não quer dizer que magicamente ela passou a ter limitações somente a partir de sua problematização. Isso significa que, grosso modo, uma indução sugere uma aproximação com a realidade, mas não assina o certificado. Tudo por uma constatação simples: só podemos afirmar que todo pênalti mal marcado é perdido até acontecer de um pênalti mal marcado resultar em gol. Ou que todos os cisnes serão brancos até que se ache um cisne preto. Uma conclusão extraída de uma indução nunca é definitiva, e essa constatação é tão importante que a localização de um fenômeno que a desminta virou a principal premissa do método científico atualmente: a falseabilidade.

Acontece que Bacon percebia que não eram somente as encrencas inerentes à indução que eram obstáculos à produção do conhecimento. Segundo ele, os seres humanos em geral possuíam predisposições psicológicas que acabavam por causar distorções na realidade que iam para além dos desvios dos sentidos. É como se o conhecimento precisasse driblar barreiras intelectuais para se fixar o menos distorcido possível. É o que ficou conhecido como teoria dos ídolos.


Bom... o que é um ídolo e porque Bacon usou esse termo para fundamentar sua tese? A palavra vem do grego eidolon, que significa “simulacro”. Digamos que você goste muito de um time, ou de um jogador específico, ou de um artista, coisa que o valha. Você procurará andar próximo deles, mas nem sempre isso será possível, porque o time joga na casa do adversário, o jogador vai junto, o músico sai em turnê e assim vai. Mais ainda: por mais que se queria fazer a tietagem, não há logística possível de você estar perto cem por cento do tempo do seu time favorito. O que você faz então? Compra uma camiseta, coloca um quadro na parede, um fundo de tela no celular, entoa hinos e canções. Você faz questão de espalhar sua preferência para todo mundo através de um objeto que substitua a presença física do objeto da adoração. A camiseta não é o time, o retrato não é o jogador, a canção não é o cantor, mas são simulacros que se colocam nos seus lugares, e é exatamente isso que chamamos de eidolon. Quando chamamos o objeto representado de ídolo, como “o meu ídolo é Fulano”, nada mais estamos fazendo do que criar uma metonímia. O ídolo mesmo é a representação, e não o representado. Mas nós nos dispomos a proteger o ídolo da mesma forma que faríamos com o time em si, com o jogador em si, com o artista em si. Ofender o ídolo é ofender o representado e, como aquilo em que acreditamos diz boa parte do que nós mesmos somos, é ofender a nós mesmos.

Quando Bacon chama de ídolos os desvios psicológicos humanos na pesquisa do conhecimento, está se referindo aos conteúdos prévios da mente como verdades absolutas das quais não estamos dispostos a abrir mão, e que nos fazem ver as coisas como elas não são na realidade. São ídolos porque são caros a nós, que defendemos nossas crenças da mesma forma que defendemos nossas cidadelas.

São quatro os gêneros de ídolos contidos na teoria baconiana, e nós vamos tratar de cada um deles individualmente: ídolos da tribo, da caverna, do fórum e do teatro.

Ídolos da tribo

Quando nós falamos de percepções pelos sentidos, temos em mente as vias de acesso do mundo exterior para o nosso intelecto. Dos cinco sentidos, temos como o mais apurado a visão, seguidos pela audição. Achamos muito bonita nossa capacidade de enxergar, mas às vezes esquecemos do quanto temos limitações nessa faculdade. Quando alguém quer dizer que uma pessoa tem boa capacidade visual, diz que tem visão de águia, ou olhos de lince. Nunca dizemos que alguém tem visão de homem, ou olhos de gente. Isso porque, embora tenhamos uma acuidade visual melhor do que a da maioria dos mamíferos, há inúmeras outras limitações (inclusive na forma de doenças) que tornam nosso aparato muito inferiorizado em relação a outras espécies. Falcões enxergam a mais de 3 km de distância, polvos possuem dezesseis cones de cores (temos humildes três), camaleões possuem visão bilateral independente, aranhas contêm milhares de ocelos em seus olhos múltiplos. Temos nossos dois olhinhos frontais, bons para vigiar leões nos horizontes das savanas, que são suficientes para nossa sobrevivência, mas que produzem muitas distorções. Isso se espraia para os outros sentidos e é inerente à espécie humana.

Bacon chama de ídolos da tribo a predisposição da própria espécie em confiar demasiadamente nos próprios sentidos. Ganha esse nome porque a humanidade como um todo pode ser considerada uma tribo, com suas características peculiares no grande bioma denominado biosfera. E tribo é uma designação primária que damos para agrupamentos com alguma distinção, como a origem e a genealogia comum. Dessa forma, temos a tendência de achar que todo o universo segue a mesma lógica de nossa espécie. Por exemplo: damos imenso valor à nossa liberdade, e sempre que vemos algum bicho aprisionado tendemos a achá-los tristes, não é mesmo? Só que ser livre é importante para nós. Para o bicho, a segurança de estar em uma casa, mesmo que seja um humilde apartamento, pode trazer muito mais conforto do que a pretensa liberdade, muito mais perigosa. Outro exemplo: quando está sol, dizemos que o tempo está bom. Bom para quem? Para nós, que podemos pegar as mochilas e passear, dar um pulo no estádio sem se encharcar, dar um rolê de carro sem riscos de alagamentos e etc. Mas o tempo seco e quente não é bom em si mesmo: ele é neutro, é o que é. Ele é bom para mim, e, com isso, eu antropomorfizo uma qualidade que o clima, na verdade, não tem.

Ídolos da caverna

Embora nós tenhamos reservadas em nós muito das coisas gerais da humanidade enquanto tribo, também é verdade que nós continuamos sendo indivíduos, aos quais se atrelam histórias e experiências próprias, diferentes de qualquer outro ser humano. Nós somos bombardeados diariamente por informações que vêm de nossa família, da religião que praticamos, dos locais de trabalho e da escola, de pessoas de nosso convívio social que, no final das contas, formam aquilo que chamamos de senso comum. São conjuntos de crenças acríticas que, no final das contas, formam no nosso íntimo não o conhecimento, mas a opinião.

Essa é a caverna de Bacon – o mundo interior que se esconde da luz da natureza em si mesma. O resultado é que cada um de nós enxerga em perspectiva própria, sempre “puxando a sardinha” cognitiva para os fatos que nos favorecem. Imagine que você coloque uma camisa do Corinthians à frente de um palmeirense, vice-versa valendo também. Pode colocar o dado que você quiser, o outro time será sempre melhor. Se quisermos melhorar o exemplo, pense na visão que um judeu terá sobre estudos do Holocausto. Ele precisará isolar muito mais sentimentos do que qualquer outra etnia, porque há afetos sendo disparados a todo instante, porque se trata de um fato histórico onde seus ascendentes foram atingidos, em maior ou menor proporção.

Ídolos do fórum

Os ídolos do fórum, também chamados de ídolos do mercado em algumas traduções, dizem respeito aos problemas da linguagem. Todos nós sabemos da dificuldade que temos de traduzir em palavras exatas, ou melhor dizendo, de transformar o mundo que nos cerca em linguagem, embora não nos reste fazer outra coisa, porque esta mexe inclusive com nossa forma de pensar. Tente pensar sem palavras, por exemplo. Não dá, né? Existem formas não verbais de expressão, mas elas sempre vão desembocar nas tais palavras e, se não temos como certificar cem por cento de sua precisão, temos um problema imenso nas mãos: a barreira linguística.

Prestem atenção no problema das polissemias: uma palavra pode assumir inúmeros significados, bem como podemos ter inúmeros sinônimos para o mesmo objeto. No primeiro caso, pensemos na palavra “peça”. Pode significar um ato teatral, um componente de uma máquina, uma parte de uma coleção, um armamento, a divisão de uma casa, uma enganação, uma pessoa com atitudes curiosas, um documento processual, uma pedra do jogo de tabuleiro, um elemento de campanha publicitária, um pedaço de tecido, a primeira pessoa do presente do subjuntivo do verbo pedir e mais algumas coisas. No segundo, podemos pensar em um cigarro de maconha, que recebe inúmeros nomes: ganja, baseado, marijuana, diamba, erva, bagulho, verdinha, beck, canabis, bangue, cigarrinho de artista, pantera, da lata, marola, charuleta et al.

Toda essa confusão na linguagem permite que se faça uso indevido ou malicioso dela, inconscientemente ou não. Tanto no fórum, onde promotores e advogados desencadeiam seus combates jurídicos através da palavra, quanto no mercado, com a concorrência entre os feirantes e no embate de descontos e pechinchas entre mercadores e compradores, a linguagem é usada para dissuadir e convencer, não importando, na prática, onde reside a verdade sobre causas e valores, e por isso o fórum/mercado é metáfora para o espaço de disputa da linguagem.

Ídolos do teatro

O que costumamos assistir no teatro? Um grupo de atores sobre um palco desempenhando algum papel previamente escrito. E o que vemos é a realidade? Não! Vemos uma história sendo contada sem nenhuma necessidade de ter reflexo no mundo real, ainda que ela possa transpor para o concreto uma ideia. Por via das convicções, trazemos todo o pano de fundo que reveste nossos pensamentos: sistemas filosóficos, disposições religiosas, tradições, princípios científicos. Entretanto, essas convicções podem constituir fábulas que resistem à absorção de conhecimento que divirja de seus ditames.

Bacon diz que estes ídolos são incutidos nas mentes dos seres humanos, já que, ao contrário dos demais, não são inerência pura da espécie, da individualidade e da linguagem. Sendo assim, eles representam aquilo que hoje em dia conhecemos por ideologia. Ele apontava seus canhões retóricos contra os três grupos de ideias que mencionei mais acima, mas era contra o seu contemporâneo Racionalismo, que apresentava uma nova forma de encarar a Epistemologia, e que havia convencido muita gente com relação à primazia do intelecto sobre a experiência, que tinha seu alvo mais aguçado.

A teoria dos ídolos de Bacon, mesmo com toda idade que já tem, é um índice interessante para que ainda hoje se tome cuidado com a questão da preexistência de convicções. A Fenomenologia, por exemplo, tem como método que o pesquisador se dispa de todas as suas capas de cultura, que acabam por nublar sua consciência ao estudar um determinado objeto, e isso é exatamente o que queria Bacon quando nos advertia de nossos ídolos. Especialmente para reconhecer nossos próprios preconceitos.

Bons ventos a todos!

Recomendações:

Preciso indicar novamente o magnum opus de Bacon, não tem como fugir:

BACON, Francis. Novum organum: Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. São Paulo: Nova Cultural, 1999.


Queria indicar também um canal que me ajudou na confecção deste texto, do casal Vitor e Evelyn Lima, chamado Isso Não É Filosofia. É muito bom e claro:

https://www.youtube.com/c/Iston%C3%A3o%C3%A9Filosofia/featured

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

O que são os tais dos mistérios órficos e como colaboraram na formação da Filosofia

(A Filosofia nasce quando a razão passa a ser o motor da especulação. Mas isso não quer dizer que elementos mitológicos não tenham tido sua participação neste processo)

Olá!

Não sei se isso é uma coisa típica dos paulistas, dos brasileiros, dos latinos ou dos humanos, mas já notaram como conversamos com as outras pessoas como se já as conhecêssemos há anos? Eu já tinha notado isso na patroa, mas é perfeitamente possível perceber em mim também. Às vezes eu me empolgo falando de futebol com meu moleque mais velho, e começo a falar de times e jogadores da década de 80 como se ele fosse testemunha ocular dos fatos. Outro dia, saí escalando Carlos, Nelson, Nelsinho, Deodoro e Bizi; Paulo Martins, Gatãozinho e César; Sidnei, Bira e Trajano como se estivéssemos juntos no Parque São Jorge, naquele longínquo 3 de maio de 1983, dia em que o glorioso Juventus da Mooca conquistou a Taça de Prata em cima do CSA, sob a batuta do técnico Candinho, o maior título de sua história. A pergunta cabível era irônica: “se não foi na Javari, como o seu Antonio fez para vender os canolis (sic)? Porque eu não sei uma vírgula do que você falou aí”. Toquei-me, claro, e ainda remexi um pouco na sua memória, para lhe dizer que o lateral-direito Nelson era o mesmíssimo Nelsinho que comandou o Corinthians em seu triste rebaixamento de 2007. Disso, o primogênito lembrou.

Dei essa volta toda apenas para dizer que eu faço mancadas dessas neste humilde espaço. Mas não custa tentar fazer reparos. Um dos exemplos diz respeito aos mistérios órficos, como eu citei no meu último texto. Eu falei deles mais de uma vez, como se todo mundo que me lê soubesse perfeitamente bem do que eu estou falando. Isso acontece porque há assuntos que tratamos com tal naturalidade que, lá no nosso subconsciente, achamos que faça todo sentido que a humanidade inteira conheça em pé de igualdade. No exemplo juventino, não basta que o interlocutor goste do time mooquense, mas também tenha idade suficiente para recordar dos fatos, mesmo que não tenha sido testemunha presencial do título em tela, como eu fui (sem contar que o local da contenda dá um certo sabor alvinegro à conquista).

Minha missão aqui, portanto, será dar um painel que explique como o culto a Orfeu colaborou com a formação da Filosofia ocidental, e dar um pouco de base para quando eu voltar a mencioná-los no futuro. Isso vai incluir entender um pouco melhor o registro religioso dos gregos antigos. Allora andiamo via.

Os gregos antigos possuíam uma religião pública, praticada em certa medida pela maioria das cidades, mas não seguiam cem por cento dos seus ditames, pelos mais diferentes motivos. Primeiro, porque não possuíam um livro de regulamentos, como é o caso da Bíblia*. Depois, os sacerdotes não representavam uma credencial política muito significativa. E, por último, o culto deixava lacunas que causavam incômodo.

A religião pública grega é bastante conhecida, fundamento mais famoso do que conhecemos por Mitologia. Baseava-se fundamentalmente na antropomorfização dos fenômenos e na amplificação das características do próprio ser humano, e representava uma evolução do animismo mais primevo, que divinizava os entes da natureza em si mesmos, como o Sol, as águas e as estações do ano. Desta forma, tínhamos deuses que regiam todos os aspectos da existência cósmica, como os ciclos naturais, as condições atmosféricas, as disposições geográficas, as atividades humanas e tudo o mais que ocorresse neste planetinha azul e fora dele. Por exemplo, Zeus era o responsável por arremessar raios e relâmpagos do céu para a Terra, Posêidon agitava os mares, Afrodite imperava sobre as relações e daí para frente. Uma entidade dessas se diferenciava de um homem comum basicamente pelo poderio e regência dos elementos sob sua alçada e por sua imortalidade. Esse último tópico é um pouco diferente do que estamos acostumados no substrato cultural do ocidente. A imortalidade dos deuses era algo físico, e eles viviam eternamente lá pelos seus montes Olimpo, Parnaso, Hélicon e arrabaldes. Já aos homens, a morte representava extinção. Não havia nenhuma instância existencial para além do mundo tangível, e isso dava a dimensão de como a vida precisava ser heroica, com as grandes epopeias relatando os feitos humanos e divinos, porque era aqui que as coisas precisavam ser feitas.

Isso gerava perguntas. Era indiferente ter vida virtuosa ou eivada de vícios, já que o fim era exatamente o mesmo: o nada. Mesmo a imortalidade dos deuses era um fenômeno terreno, sendo que não havia outro plano além daquele percebido no próprio mundo. Por conta de aporias como essas, os gregos procuravam respostas em outras sendas, as chamadas religiões mistagógicas, ou, em coloquial, nas religiões de mistérios, especialmente naquela conhecida como Orfismo.

Vale contextualizar um pouco. Esse nome deriva de Orfeu, um vate da Trácia que tem sua história toda obnubilada por lendas, sendo inclusive muito difícil estabelecer se ele teve a existência real de qualquer contribuinte ou se é fruto de uma conjunção de narrativas míticas que se centralizaram ao redor de um personagem. Orfeu era um grande músico, e que versava sua literatura em cantos acompanhados por lira. Além dos temas ligados aos deuses, os cantos de Orfeu estavam relacionados a linhas de pensamento que não se coadunavam com a religião pública, e davam uma dimensão alternativa para a questão do monismo preconizado pela mesma. A principal passagem que se conta sobre ele diz respeito à sua amada Eurídice, que também se apaixonou por sua música. Era muito bela e admirada, o que lhe trouxe dores de cabeça. Perseguida pelo pastor Aristeu, que também desejava seu amor, a bela ninfa se colocou em fuga, quando tropeçou em uma serpente. Sendo picada, ela veio a falecer, e foi parar no reino de Hades, o deus dos mortos. Inconformado com o destino de Eurídice, Orfeu vai ao mundo dos mortos e convence Hades a libertar sua esposa, sob a condição de que, no caminho, em nenhum momento ele olhasse para trás. Quando já estava no portal de saída do inferno, Orfeu comete a imprudência e vai se certificar se Eurídice ainda o seguia. Diante do descumprimento do trato, imediatamente a infeliz é resgatada pelas profundezas, de onde nunca mais poderia sair.

Tomado de profunda tristeza, Orfeu não mais entoou sua música e nem se relacionou novamente com mulheres. Essa melancolia se espalhou por toda sua terra, e causou a fúria das egoístas mênades, as ninfas cultuadoras do deus Dioniso, lascivas como as forças da natureza instintiva. Elas despedaçaram todo seu corpo, sendo que sua cabeça, junto de sua lira, foi para o mar, onde desembocou na ilha de Lesbos. Os habitantes de lá enterraram sua cabeça e erigiram um santuário para seu culto. Ao mesmo passo, Orfeu desceu ao reino dos mortos, desta vez desencarnado, onde pode se reencontrar com Eurídice e novamente achar a felicidade. É com esse fundamento mítico que surge o Orfismo. Ufa!

Comecem a notar que aqui já introduzimos vidas que se seguem à morte, e o monismo público encontra um contraponto. Mas há ainda mais para explicar a mistagogia órfica e, para isso, precisaremos novamente recorrer à Mitologia. Acompanhem porque a história é interessante.

Como bem sabem aqueles que curtem as histórias gregas, Zeus não era exatamente um representante da pudica família tradicional brasileira, e se envolvia em puladas de cerca daquelas de originar provérbios. Uma de suas vítimas foi sua filha (sim, filha) Perséfone, que além de tudo era esposa de Hades, irmão do poderoso talarico. Dessa união involuntária, nasceu Zagreu, uma das encarnações do deus Dioniso. A deusa Hera, esposa de Zeus, traída com frequência por seu incontido marido, evidentemente não ficou nada satisfeita, e mandou os Titãs, divindades concorrentes dos olímpicos, assassinarem o incômodo enteado. Semelhantemente a Orfeu, Zagreu vinha tendo seu corpo dilacerado, quando Zeus, dando-se conta do massacre, calcinou os Titãs com seus costumeiros raios, a ponto de ainda salvar o coração do infeliz. Da mistura dos restos mortais de Zagreu e das cinzas dos Titãs brotou a humanidade, composta pela parte divina oriunda de Dioniso e da parte corpórea dos Titãs, de onde surge uma dupla natureza: a soma titânica é a cadeia que aprisiona a psique dionisíaca, uma estrutura inédita no pensamento grego, eterna, imperecível.

Qual é a grande novidade do culto a Orfeu? A principal é que a perspectiva monista da religião pública é convolada em um dualismo corpo-alma, e toda a realidade passou a ser dupla. Em cada homem reside uma porção divina, representada pela alma (o coração de Dioniso), e uma parte terrena, advinda das cinzas dos titãs. A porção psique do homem é uma alma que fica aprisionada em um corpo por conta de uma culpa original, interpretada como derivada do ataque dos Titãs ao Zagreu. Dessa forma, uma alma degenerada junta-se a um corpo que carrega uma corrupção. Essa alma não nasce junto com o corpo e não se extingue com ele, como diria o paganismo grego, mas, ao contrário, subsiste a ele e pode voltar a encarnar em outros corpos, até que todo resquício de erro de sua culpa original seja purificado, saindo do ciclo de encarnações. O princípio geral para a saída desse ciclo infinito é a adoção de uma vida regrada, próxima ao ascetismo, sendo que a recompensa é um regresso ao divino, livre das intempéries da vida terrena. A alma é o homem divinizado, e o próprio eu de cada um tende a procurar formas de purificação para uma reaproximação à deidade.

Perceba-se que da religião pública se extraiu uma forte ligação com a natureza, o que explica a busca pela arché e os inúmeros trabalhos denominados De Natura (Sobre a Natureza) que foram exatamente os primeiros tratados de cunho filosófico, já calcados no raciocínio, e não na Mitologia. Mas dos mistérios órficos ganha-se uma explicação e uma nova lógica para as condutas durante a existência, que passam a incluir um prêmio (o retorno aos deuses) ou penalidade (a obrigação de reencarnar), de acordo com a virtude aplicada às ações de cada um. Isso tira da pauta o naturalismo da religião pública e coloca um reconhecimento do homem como um candidato a um plano multidimensional.

Quais são os reflexos disso tudo? Certos pensadores são totalmente dependentes da mistagogia órfica, como Pitágoras, Empédocles e Heráclito, porque somente a perspectiva dualista faz com que suas filosofias tenham sentido. O Hiperurânio platônico tem forte conotação metafísica a partir de uma mesma visão dual, o que acabou respingando nos seus sucedâneos helênicos, especialmente estoicos e epicureus (embora o entendimento público seja mais expressivo nessas correntes), e também os adaptadores do platonismo ao Cristianismo, como Santo Agostinho. Todas as religiões de matriz abraâmica acompanham o mesmo pano de fundo soma-psique, ainda que sob a égide de uma divindade monolítica, o que inclui a noção de pecado original e remissão de pecados, mesmo que estes não tenham sido cometidos pelo indivíduo. As religiões orientais, africanas e mesmo o moderno Espiritismo adotam, com diferentes níveis de aderência, à noção de metempsicose proclamada pelos órficos, cujo exemplo mais próximo que tenho em mente é o do Budismo. Vejam só quanta coisa. 

Por fim, por que chamamos o Orfismo e outras correntes divergentes da religião popular grega de religiões de mistérios? Isso ocorre porque, como eu já disse, a mitologia clássica preponderante não possuía um corpus sistematizado, que estivesse baixada por escrito em algum livro. Também não tinha um caráter normativo ou dogmático, impondo grande quantidade de regras éticas para moldar o meio social, com poucas cargas rituais e litúrgicas. Mais ainda: a falta de uma perspectiva de revelação divina fez com que a religião não fosse custodiada por uma casta sacerdotal, que, até mesmo por isso, não exercia grandes influências políticas e sociais, bem ao contrário do que ocorre em outras religiões. Até mesmo por essa falta de rigor, ocorria com essa religião o que víamos com frequência no Brasil: se o sujeito não tem uma religião muito bem fixada e com poucos hábitos culturais, ele diz que é católico, para ficar inserido em uma zona de conforto, batizando os filhos porque ele mesmo foi batizado, indo a casamentos e exéquias e, eventualmente, assistindo uma missa. O seguimento das regras é bem mais rígido que isso, mas o nível de cobrança é bastante baixo.

Já as religiões de mistérios são muito mais rigorosas no quesito custódia. O mistagogo (do grego mystes+agogos, aquele que transmite o ensinamento dos mistérios) é o detentor de um conhecimento que não está disponível para qualquer um, que necessita enfrentar ritos iniciáticos e passar por etapas graduais para atingir um determinado nível na hierarquia da religião. Não se trata de uma religião oculta, mas que possui um cerne conhecido e franqueado unicamente a indivíduos escolhidos ou preparados para cuidar dos rituais, em algo mais ou menos assemelhado a sociedades como a Maçonaria ou Rosa Cruz. Neste sentido, é o oposto da religião pública, aberta a qualquer cidadão sem a necessidade de iniciação.

Então é isso. Cumpri minha obrigação de deixar mais claro o modo com que os antigos gregos davam tratos às suas bolas e desenvolveram todo esse cartel de sabedoria a partir de suas crenças e de suas mitologias, sem esquecer que a Filosofia nasce a partir da racionalização de todas essas histórias. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

O artigo abaixo é um bom ponto de apoio para que se possa entender um pouco melhor o que é e como se desenvolveu o culto órfico:

TARZIA, Milena. As Práticas Órficas: Conexão entre Rito e Mito. In: Anais da Jornada de Estudos Antigos e Medievais. Maringá: UEM, 2015. Disponível em: http://ppe.uem.br/jeam/anais/2015/pdf/035.pdf Acesso em: 18.11.2021.

* É preciso lembrar que livros como a Teogonia de Hesíodo e Ilíada e Odisseia de Homero não eram livros de regras religiosas, mas narrativas sobre a origem e vida dos deuses.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Sobre os quatro elementos, seu dinamismo e overdose de incensos

(Com certeza você já ouviu falar sobre os quatro elementos. Mesmo que dois deles sejam uma coisa só, o fato é que o imaginário sobre estes não é novidade, e boa filosofia já foi construída sobre essa ideia)

Olá!

Eu tinha uma chefe que gostava de incensos. Até aí, nada de mais. Eu mesmo gosto de incensos, principalmente aqueles que tem cheiro de… incenso! Acontece que, como sabemos, a utilização dessas pequenas varetas tem todo um aspecto místico, e a superiora intuiu, ou previu, ou (mais provavelmente) ouviu de alguém que deveria manter um desses artefatos aceso por cem por cento do tempo do expediente. E lá vem sândalo, mirra, almíscar, jasmim, patchouli, citronela, cravo, pinho, alfazema, âmbar, mel silvestre e qualquer outra maconha que você puder imaginar. Como eu disse, não tenho problemas com incensos, mas ter nove horas seguidas de fumacinha nas narinas chega a fazer mal, não só em um mero enjoo, mas a causar sintomas respiratórios, como tosse e pigarro. A chefa era visitada frequentemente por um rapaz que lhe trazia novidades que chegavam "diretamente" da Índia e cercanias. A coisa pretejou de vez quando ele trouxe um produto que prometia quarenta e cinco minutos de queima sem tirar de dentro, o que me revirou o estômago só de ouvir falar. Eu precisava fazer alguma coisa, porém sem riscos para a vida funcional.

Isso já faz muito tempo. Nessa época, minha ainda não defunta mãe era metida lá com suas brujerías, cercada de cristais, mandalas e - vejam só - incensos. À minha descrição, ela disse que esse uso não somente é errado, como também é egoísta e perigoso. Errado porque a quantidade de incenso não influencia na limpeza do ambiente (em termos metafísicos, porque em termos atmosféricos o ar fica é bem sujo). Egoísta porque qualquer ação esotérica precisa levar em conta as pessoas que te rodeiam, e perigoso porque muito incenso não limpa somente energias ruins, mas toda e qualquer energia, gerando o efeito oposto ao que se desejaria. Ela perguntou se eu não me sentia mais enfraquecido, no que eu respondo que não, me sentia mais irritado, isso sim. Ela deixou para lá a parte consultiva diante de dromedário tão recalcitrante e passou à proposta de resolução.

"A questão não é de confrontar a chefe, mas de educá-la", disse a sortilégica genitora. "Vamos preparar um presente para ela, tão bonito que vai seduzi-la e ensiná-la a lidar com os elementos. Vai fazer bem para ela e para todo mundo ao redor".

Meu pai era daqueles peões típicos, que diziam que chefes nasceram para ser odiados. Eu nunca cheguei a tanto, mas aprendi parte da lição, e me incomodava esse negócio de bajular os superiores, especialmente dando presentinhos. Mas fui convencido porque a causa era nobre e o conjunto era realmente bonito: um bowl de vidro assemelhado a um aquário, com o fundo recoberto de pedras. Essa tigela era para ser preenchida com a água mais pura possível, e ainda havia o acompanhamento de uma pequena vela flutuante em uma barquinha, um vidrinho de essência suave e uma caixinha de incensos. Mas a principal arma era um pequeno livretinho, feito de papel sulfite e impresso em jato de tinta. Era a descrição do uso de toda a parafernália.

A ideia era mais ou menos a seguinte: o conjunto tinha em si os quatro elementos do cosmos: terra, água, fogo e ar. A terra era representada pelas pedras, a água pela água (puxa!), o fogo pela velinha e o ar pelo incenso. Em cada dia da semana, um dos elementos deveria ser ativado. Para ativar o elemento terra, retirava-se uma pedra e pingava-se uma gota de essência sobre ela. Para ativar a água, uma gota de essência também. No caso do fogo, encaixava-se a velinha no barquinho flutuante e deixava-se acesa, até acabar. Para o ar, queimava-se o incenso. Na sexta-feira, todos os elementos eram ativados juntos, todos eles APENAS UMA VEZ por dia. Ou seja, acabou a vela, acabou o ritual, idem para o incenso. Aproveitei um dos raros momentos em que não tinha ninguém na sala e entreguei a feitiçaria toda, explicando que todas as instruções estavam no folheto.

A consequência é que a chefa gostou tanto que resolveu levar tudo para casa, ao invés de deixar no trabalho, evidenciando a miséria do meu fracasso. Mas, seja porque estendeu as instruções do conjunto à sua prática diária, seja porque leu meu apelo nas entrelinhas, fato é que a coisa acabou por funcionar, já que ela paulatinamente foi reduzindo a quantidade de palitos queimados, a ponto de não causar mais transtornos (e aborrecer seu traf… mascate de produtos hindus).

Essa questão dos quatro elementos não é nada nova nem única. Está na estruturação dos signos do zodíaco, na medicina antroposófica, nas artes e mesmo o conceito de quintessência depende deles. Também a Filosofia se serve do tema para dar polimento às suas ideias. Vamos dar uma olhada.

Uma das principais correntes da filosofia antiga era a dos eleatas, Parmênides à frente. Tinham esse nome por conta de sua concentração na escola de Eleia, onde discutiam a imobilidade do Ser. Eles diziam que o Ser era permanentemente o mesmo, sem tirar nem por. Diziam isso em contraste com o devir de Heráclito, que via como principal característica da realidade o eterno movimento, um fluxo contínuo onde cada coisa do universo rumava para o seu próprio oposto.

Embora o pensamento eleático fosse muito bem desenvolvido, o fato é que dele resultava uma aporia: se o Ser é sempre apenas um, como poderia ser explicado o fato de que todos os objetos do cosmos surgem e desaparecem, nascem e morrem? Outra coisa: se o Ser é um só para sempre, imutável, não sujeito a transformações, igual a si mesmo, que não pode não-ser, como podem ser a mesma coisa o frio e o quente, o claro e o escuro, o novo e o velho? Para onde vão as coisas que fenecem? De onde vem as coisas que aparecem? É absolutamente impossível que vão e venham do vazio, que é o não-ser por excelência, e, portanto, de onde vem e para onde vão?

Embora respostas monistas anteriores, como a água de Tales e o ar de Anaxímenes, e até mesmo o sofisticado apeiron de Anaximandro pudessem dar uma justificativa ao dilema, o fato é que pareciam insuficientes, porque os elementos únicos que eram dados como arché não poderiam ser contrários a si mesmos. Como dizer, por exemplo, que o ar não é ar? Se o ar é pedra, então rumou para seu contrário, como diria Heráclito, e não Parmênides.

A resposta de Empédocles, da cidade de Agrigento (hoje situada na Sicília, mas então pertencente à Magna Grécia), é a primeira que leva em consideração a dificuldade eleática. De fato, Empédocles concordava com tudo o que Parmênides e sua claque diziam a respeito do Ser: ele é e não pode não ser. A resposta dada tem um belo nome em grego: rizomata, ou raiz, na última flor do Lácio. Segundo ele, o nascer e o desaparecer seriam o resultado do agregar e do desagregar das raízes em determinadas proporções. Essa substância que surge seria a reunião de raízes que estariam disponíveis no universo, enquanto o desaparecimento dessa mesma substância seria o retorno desses elementos aos seus estágios originários.

Teríamos então uma explicação para um mundo em aparente devir, consistente nas inúmeras formas de combinação das raízes, mas que é sempre o mesmo porque, uma vez isoladas, estas seriam eternamente iguais a si mesmas, imutáveis e perenes. Portanto, o Ser residiria na rizomata, e não em cada uma das coisas individualmente que vemos ao nosso redor.

Tá, mas quais seriam essas tais de raízes? Seriam exatamente os quatro elementos tão conhecidos no esoterismo e na poesia: terra, fogo, ar e água, que parecem, no campo da intuição, ter um grupo de propriedades distintas que caracterizariam fortemente cada um deles. Esses componentes consistem na grande novidade de Empédocles: suas qualidades são inalteráveis e cada uma das raízes, individualmente, não são objeto de transformação.

Nota-se aqui uma transformação na concepção de arché que originalmente procurava por um elemento distinto que compusesse o substrato da natureza. Os monistas eram assim chamados porque criam em uma única substância originária, que não precisava de nenhum processo em especial para sua agregação. Só que esse é um processo de transformação, inadmissível para as teses parmenidesianas. Quando Empédocles propõe a rizomata, faz nascer o pluralismo e possibilita que as próprias transformações sejam ilusórias, já que as raízes isoladas não mudam, apenas as proporções que as mesmas geram. Dessa forma, substâncias quentes sempre conterão o elemento fogo em maior quantidade, as frias terão a água, e daí para frente. Além disso, o estado do objeto também evidencia a proporção: sólidos contém primazia da terra, líquidos da água, gasosos do ar e plasmáticos do fogo. Hoje nós sabemos que o plasma como estado da matéria nada mais é que parte do estado gasoso, mas precisamos tomar cuidado para não sermos anacrônicos.

A própria lenda sobre a morte de Empédocles tem um certo sabor da teoria por ele estabelecida. Dizia-se que nosso filósofo, muito ativo politicamente e com ares místicos de milagreiro, à medida que envelhecia, sentia cada vez menos vigor, como se dele se desprendessem aos poucos os elementos que lhe seriam constitutivos. Certa feita, em um dos cultos do qual era sacerdote, resolveu subir ao alto do Etna, um dos vulcões mais famosos da história e ainda hoje ativo, para acelerar seu processo de retorno ao Ser, ou seja, às quatro raízes, atirando-se na cratera do acidente geográfico. Não se faz a mínima ideia de que isso seja verdade, mas carrega um narrar simbólico muito expressivo, porque lá temos um dos exemplos mais visíveis do que seriam os quatro elementos em franca atividade ao mesmo tempo: a terra derretida na forma de lava, o fogo expresso pelo calor, a água que surge através das fumarolas e o ar que evola como fumaça.

Entretanto, há ainda uma dificuldade que precisava ser superada pela dinâmica pluralista de Empédocles. Quando falamos nos monistas, podemos contar com o benefício da unicidade de sua substância – água mais água continua sendo água. Mas uma rizomata tem natureza diferente de outra, e é preciso que se responda a uma pergunta: qual é a “cola” que mantêm os elementos unidos?

Dei uma rápida espanadinha no assunto aqui, mas vamos detalhar. Em primeiro lugar, é preciso entender que Empédocles via física e misticismo como aspectos de uma mesma unidade. As suas raízes não são elementos passivos, que se deixam levar pelo tempo, mas são substâncias divinas. Sendo assim, e de acordo com a concepção órfica, o universo é um todo onde a menor de suas partes tem influência sobre o restante do cosmos. Para explicar a questão do agregar e desagregar, Empédocles lança mão de um conceito de forças cósmicas, que receberão os nomes de philía e neikos, respectivamente “amor” e “ódio” em grego, sendo que também os termos “amizade” e “contenda” são utilizados. É possível que nosso herói tenha observado que o relacionamento pessoal agia de forma semelhante à crença de que tudo se atrai ou repele, e pegou emprestado esses nomes para designar essas formas de energia divinizadas.

Ocorre que as dosagens de philía e neikos variavam de acordo com o momento temporal em que se vivia. Ao se ter um instante de preponderância da philía, víamos o surgimento de um determinado elemento e, pelo contrário, seu desaparecimento se dava pela ação do neikos. Só que essa atividade nunca se dava em momentos extremos. Quando a prevalência da philía chegava ao seu auge, todos os elementos se reuniam em tal unidade que formavam uma única massa absolutamente compacta, semelhante a uma esfera, onde qualquer ponto é equidistante do centro. Pelo contrário, quando a predominância se dava no campo do neikos, a desagregação era total, de modo a nada existir a não ser as raízes totalmente separadas. Todo o cosmos existente está entre estes dois extremos, já que da compactação absoluta da philía nada escapa, assim como da separação absoluta do neikos nada se constitui. E, percebe-se, toda a realidade se dá em ciclos, que variam de acordo com a geração e a corrupção.

Essa conformidade de fenômenos ainda vai dar um aspecto cognitivo aos pensares de Empédocles. Ele imagina uma lei de semelhança (que nada tem a ver com o ideário da homeopatia) onde as porções de cada elemento existentes em nossos corpos conseguem reconhecer o elemento correspondente nos objetos, ou seja, com o tanto de terra que temos em nós, reconhecemos o que há de terra no objeto que observamos. Isso se dá na forma de eflúvios: os sentidos reconhecem essa espécie de emanação impalpável que é desprendida de cada corpo e faz uma conexão através do mesmo elemento contido no próprio organismo. Assim, quando olhamos para uma vareta de incenso, são os receptores do elemento ar que percebem os aromas, os de fogo que sentem a ponta quente e assim por diante.

Empédocles, dessa forma, cria uma filosofia de fundo materialista, mesmo que com um misticismo subjacente, e vai dar a primeira base para que Lêucipo e Demócrito cheguem ao atomismo, já completamente esvaziado de elementos divinos e bem mais próximo do que nossa moderna Ciência conseguiu concluir.

E era isso. Quando houver alguma discussão que envolva o papo dos quatro elementos, saibam que não é de hoje que ele nasceu, e que há maneiras bastante sérias de pensar sobre o assunto, mesmo que estejam superadas hoje em dia. E fica a dica do truque do papelzinho dobrado para quando vocês correrem o risco de intoxicação por excesso de esoterismo. Bons ventos a todos!

Recomendações:

De Empédocles, somente temos fragmentos de seus poemas De Natura e Carme Lustral. Dessa forma, mais uma vez apelei para a famosa coleção Os Pensadores:

SOUZA, José Cavalcante (org.). Os Pré-socráticos. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

E vou recomendar aqui uma coisa insólita – um incenso! Trata-se do Olibanum Eritreia, que é vendido em grãos pela empresa brasileira Milagros. Sim, é uma reminiscência dos meus tempos de Catolicismo, mas é um aroma bastante suave e agradável, que, queimado em pequenas quantidades sobre um braseiro, perfuma o ambiente com um certo exotismo.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Sobre o problema da indução e a tangência com o ceticismo de Hume

(“Faça isso e acontecerá aquilo” é uma lógica que nos parece tão natural que nem questionamos se essa regra é real).

Olá!

“É o costume do pito que entorta o beiço", dizia um dos vizinhos dos meus avós, que não fumava cachimbo. Aplicava-se este dito a pessoas com manias reiteradas, que acabava por marcá-las e até apelidá-las. Acontece que todos nós temos nossos costumes, que acabam por ficar automatizados. Eu tenho vários, e um deles é o de encher a talha todos os dias de manhã, para não faltar água filtrada durante o dia. Aqui cabe uma rápida explicação.

Eu tenho uma daquelas talhas de barro, comuníssimas. Esse tipo de artefato normalmente é enchido com um jarro, pegando água do sistema público diretamente da torneira. Minha talha fica em uma cantoneira, deixando-a bem acima do nível da pia. Como era uma chatice ter que subir no banquinho para encher o utensílio, bolei um esqueminha que consiste em uma torneirinha secundária, de onde sai uma fina mangueira diretamente no reservatório, entrando através de um orifício que eu fiz na tampa com arame quente. Dessa forma, consigo encher o filtro sem a necessidade do sobe-e-desce. O sistema não é perfeito, porque não consigo ver o nível em que a água se encontra, e por vezes ela transborda, mas, com a prática, peguei uma noção de tempo que se demonstra suficiente para suprir a necessidade diária. Logo depois do café, abro o registro da talha e vou abrir a janela dos passarinhos, ajeitando as plantas que ficam na varanda. No retorno, já posso fechar a torneirinha. Esse é o tempo certo que mencionei logo atrás.

Tudo muito bonito, mas já aconteceu de haver grandes transbordamentos, fazendo perder o serviço da louça escorrida que fica logo abaixo, e assemelhando a pia a um dos tantos bairros que se alagam nesta metrópole da solidão. Em uma dessas manhãs, eu percorri todo o trajeto que mencionei para vocês, mas já ao chegar de volta à sala foi possível ouvir o ruído de uma miniatura de cachoeira. A patroa diz que é desleixo, e eu fico encafifado: por que funciona todo santo dia, mas há momentos em que a lógica falha?


É através de uma cena tão quotidiana como esta que tivemos um dos maiores desafios ao racionalismo cartesiano, com um forte reforço no empirismo e quase beirando o ceticismo. É uma questão tão importante que eu nem sei como ficou de fora até hoje no meu espaço. Antes, porém, seria importante se dar conta das propostas do tal racionalismo, que podem ser lidas neste texto, e do embate que o mesmo teve com o empirismo*. Falei muitas vezes sobre isso, mas podem tomar conhecimento aqui. Isso feito, vamos falar sobre as ideias de David Hume.

Hume foi um filósofo escocês, bastante precoce, mas que demorou um pouco a emplacar notoriedade. É considerado o empirista que mais radicalmente carregou seu projeto epistemológico, a ponto de quase retomar o antigo ceticismo pirrônico, que entendia ser impossível conhecer.

Mas vamos passo a passo. Os empiristas seguiam a linha geral da tabula rasa, expressão latina que significa algo como “papel em branco”. Essa é uma metáfora que indica que todos os operandos para o funcionamento da razão humana são obtidos de fora, ou seja, dos objetos aos quais somos apresentados. Não há, segundo eles, nenhuma coisa que venha a priori, como tanto defendiam os racionalistas. Portanto, todo o conhecimento é obtido a partir da experiência e por intermédio dos nossos sentidos, que são a ponte entre nossa razão e o mundo.  É necessária uma experiência** para que tenhamos em nós conteúdo cognitivo novo, e vem daí o nome da corrente (empeiria=experiência em grego).

Mas como essa coleta de informações vinda do ambiente e de outros sujeitos é processada em nossas mentes? Enfim, como as percepções absorvidas pelos sentidos ganham estatuto de conhecimento? Segundo Hume, os dados obtidos do meio externo ficam gravados na forma de impressões e de ideias. As impressões são os meios primários com os quais nosso cérebro é atingido, e se dá pelo contato direto com o objeto da cognição. Por exemplo, digamos que eu tenha uma bola de futebol em minhas mãos. Percebo nela uma série de características simples: suas cores, seu peso, sua esfericidade, seu material. Nenhuma delas representa uma bola isoladamente, mas é necessário que todos esses componentes de impressões simples estejam lá para que eu tenha uma impressão complexa: o objeto bola. Enquanto a tenho comigo, ela imprime uma forte percepção em minha mente, já que todos os meus sentidos estão atuando para recolher informações sobre ela. A impressão, portanto, é extremamente vívida, presente e correspondente ao real.

O que acontecerá, entretanto, se eu pegar essa mesma bola e jogá-la em um canto do quintal, afastando-a dos meus sentidos? Bem, ainda assim eu serei capaz de articular mentalmente com o objeto, só que agora na forma de ideia. Ocorrerá que o objeto ficará cada vez menos nítido, empalidecido, mas com uma vantagem em relação à impressão. Imaginemos um técnico que vê seu time jogando uma partida sofrível. Os lances, passes e tática estão ali em campo, visíveis, e estão sendo escritos na sua mente na forma de impressão. A partir do momento em que nosso pobre treinador começa a imaginar formas de corrigir o posicionamento de sua equipe, ele não está mais coletando dados da realidade presente, mas utilizando informações vindas de suas experiências anteriores, até que consiga pensar em formas de transpô-las para as quatro linhas. Essa é a vantagem das ideias: como o objeto não estará mais tomando toda a minha atenção, terei mais facilidade para articulá-lo com outras ideias, no que resultará em nosso processo de abstração. Com a impressão, temos o que sentimos; com a ideia, o que pensamos.

Segundo o empirismo, o inatismo é impossível, e ele é imprescindível para a lógica racionalista. Hume explica como o inatismo é falacioso por conta dos mecanismos de associações que produzimos em nossas mentes. Entidades abstratas são reconhecidas por conta de conhecimentos preexistentes vindos dos sentidos. Um deus, por exemplo, é uma continuação dos homens que são efetivamente conhecidos: através da ideia de humanidade, maximizam-se seus valores e temos o deus infinitamente misericordioso. Através do domínio da natureza que o próprio homem tem, chega-se à onipotência divina, e assim sucessivamente. Aliás, falando em infinito, outra concepção abstrata tida como inata, é através do aprendizado dos tempos cada vez maiores e dos espaços cada vez mais distantes, que se associam uns aos outros, que se chega à ideia abstrata de infinitude. Ou seja, mesmo o mais abstrato dos devaneios não é feito por criação exclusiva da mente humana. Antes disso, é com elementos já existentes nas ideias que a abstração se cria.

Apesar deste golpe no racionalismo, Hume também chuta a canela do próprio empirismo, e o faz de maneira dolorida. Segundo ele, a mente opera através de três processos de associação de ideias: semelhança, contiguidade e causação. O primeiro é dado pelo óbvio mecanismo de remissão de uma coisa para a outra. Uma bola de futebol se assemelha a uma de basquete, que se assemelha a uma de vôlei e assim por diante. Até mesmo algum esporte não inventado, que esteja somente em minha imaginação, pode ter uma bola envolvida se eu associá-la a este ambiente por semelhança. Já a contiguidade se forma pelo reconhecimento de que as coisas andam habitualmente juntas. Seguindo o exemplo do futebol, uma bola já faz pressupor campo, jogadores, torcida, árbitro, partida, campeonato e via discorrendo. Por fim, o processo de causação é a clássica relação de causa e efeito, onde tudo o que acontece é consequência de um fenômeno que lhes deu origem. O chute é a causa do gol, o gol é a consequência do chute; a falta é a consequência da jogada violenta, a jogada violenta é a causa da falta, seguindo ad nauseam por quantos exemplos se queiram. Acontece que o processo empírico se serve profusamente das associações de causação, e é aí que está todo o problema. Tenham um pouco de paciência que a gente já chega lá.

Hume entende que há dois gêneros de objetos que são processados em nossos cérebros. Temos relações de ideias, que são desdobramentos de pensamentos inferidos unicamente pelo próprio raciocínio, e que ficam circunscritos à definição de conceitos lógicos e matemáticos. Não se trata dos mesmos pensamentos inatos que Hume tanto combate, mas de derivações daquelas ideias que já perderam o vínculo com a concretude que lhes originou. Aqui ficam os conceitos, os entes matemáticos, os desenvolvimentos lógicos formais, as descrições geométricas e tantas outras relações que se assemelham muito aos juízos apriorísticos kantianos. É uma relação de ideias, por exemplo, afirmar que duas retas paralelas são aquelas que não possuem nenhum ponto em comum, ou que um cubo é um sólido de seis faces, ou ainda que a décima potência de 2 é igual a 1024. As relações de ideias são baseadas no princípio da não-contradição, o que significa que uma inversão lógica a torna completamente inválida. Não é possível afirmar que um círculo é quadrado, ou que eu vou e não vou ao jogo de futebol ao mesmo tempo.

O outro gênero são os dados de fatos. São estes que são colhidos diretamente da experiência, iniciando como uma impressão e posteriormente indo para o campo das ideias. São exatamente eles que retratam o ato empírico, e é por eles que disparamos as associações de ideias. Ou seja, não há aqui nada que seja apriorístico, porque só conseguimos atinar qualquer fenômeno a partir do seu acontecimento. Quando eu usei o exemplo da bola para falar sobre a aquisição de uma impressão, era um dado de fato que eu tinha em minhas mãos. Então eu poderia fazer um sem-número de associações a partir daquele objeto: a similaridade com qualquer outra bola e a contiguidade do seu uso em um campo ou quadra. Naturalmente, eu também podia fazer associações de causa e efeito com ela. A bola é consequência do couro, que é consequência do boi, que é consequência da grama, que é consequência da terra e qualquer outro tipo de bobagem meramente ilustrativo. Enfim, o princípio da causalidade diz que qualquer objeto ou fenômeno tem uma causa que lhe dê origem. Só que é aí que tem uma pegadinha. Para demonstrar isso, vamos ao exemplo do próprio Hume.

Vamos imaginar uma mesa de bilhar onde estão duas bolas colocadas livremente, sem que nenhuma delas esteja encostada nos limites do móvel. Quando você der a tacada de uma na direção da outra, o que esperará? Ora, que o choque impulsione a bola que estiver parada. Isso acontece porque vemos isso acontecer uma vez, duas vezes, três vezes, todas as vezes em que se repetir o movimento. Acontece que ver o choque entre duas bolas de bilhar é um dado de fato, e aqui o princípio da não-contradição é inaplicável. Ao contrário de afirmar que um triângulo tem dois lados, não há nenhuma espécie de contradição lógica em dizer que uma bola não se moverá com o impacto da outra. Isso pode se dar por qualquer motivo: que uma das bolas seja imprevisivelmente pesada, que esteja imantada na mesa, que possua uma trava sob ela, não importa. Não há nada que assegure a repetição da causa e do efeito.

Mas por que diabos vemos as coisas se repetirem? Por que o sol nasce todos os dias e se põe todas as noites? Porque as coisas caem quando as soltamos no ar? É que nós possuímos um esquema mental que está preparado para a habitualidade. A repetição dos fenômenos faz com que tomemos por verdade lógica uma determinada sequência de causa e consequência que, in extremis, não existe. Isso porque os dados de fatos não precisam seguir o princípio da não-contradição. O sol nasce todos os dias, mas é possível dizer que ele não nascerá sem que se caia em uma contradição. Diga-o a alguém que esteja na noite de seis meses dos polos ou no lado escuro da lua. Também não há contradição em dizer que algo não vai cair por ação da gravidade, bastando estar no espaço sideral. E, por fim, um dia o sol vai se apagar, e o efeito da gravidade pode ter uma condição tal em que seja anulado de uma hora para outra, quem pode dizer?

O fato, para Hume, é que o hábito ilude. Nós não nos damos conta de que a repetição dos fenômenos não é uma questão de conhecimento, mas de crença. Nós não sabemos que algo vai acontecer em consequência de uma causa, mas cremos que vai acontecer. Isso arremessa de cabeça a indução para a Metafísica, porque não é possível inferir necessidade*** a priori. Se fosse, por qual motivo precisaríamos observar empiricamente o resultado de uma ação? A causa e efeito retirados de uma relação lógica se tornam algo como uma fé, que não está no escopo do empírico. As relações de ideias estão a salvo disso tudo, porque definições não são derivadas de causação, e estão submetidas ao princípio da não-contradição, como eu disse anteriormente.

E por que isso é um grande problema? Porque toda a Ciência se baseia em indução. Os antigos silogismos aristotélicos eram muito elegantes, mas se prestavam a inferir logicamente as coisas que já possuíam predicação em si mesmas, enquanto o que trazia novidades de fato eram os encadeamentos indutivos, que buscavam exatamente a repetição dos fenômenos para trazer cada vez mais força aos seus argumentos. O problema da indução levantado por Hume nos faz questionar se de fato a Ciência é capaz de produzir conhecimento, já que se baseia na observação de fenômenos que, reduzidos a inferências, não tem poderio lógico de se sustentar.

O desconforto, mais uma vez, vem do desconhecimento sobre a maneira com a qual a Ciência se apoia na observação dos fenômenos para obter seu combustível. Os cientistas sabem disso, e trabalham no sentido de uma aproximação com a verdade, e não com a verdade em si, que é coisa difícil de atingir. É por isso que os métodos buscam cada vez maior aperfeiçoamento, e o critério da falseabilidade é a melhor prova de que a indução pode ser trabalhada de forma mais inteligente, e mesmo o método popperiano já foi levado mais além, de modo que os corolários de uma teoria sejam atacados antes do seu cerne. Além disso, o próprio Hume afirmava que as relações de causa e efeito podiam não ser logicamente consistentes, mas eram úteis. Embora a indução seja contingente, ela fornece graus competentes de probabilidade quando levantada com rigor. Isso porque o objetivo de Hume não é imobilizar o processo de busca do conhecimento, como fariam os antigos céticos, mas o de descortinar qualquer procedimento que não fosse baseado na realidade e nas verdadeiras possibilidades cognitivas.

Evidentemente, as propostas de Hume são desafiadoras, mas ele mesmo diria que não são definitivas. Pouco tempo depois, Kant faria a genial conciliação entre as duas correntes, descrevendo o que é apriorístico e o que é empírico na cognição, e dando um limite muito mais preciso da participação da consciência individual nessas relações, mas ele mesmo atribui a Hume seu despertar do sono dogmático, o que por si só já é um elogio de inflar o balão. Espero que tenha ficado bem claro. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Hume é altamente crítico neste seu tratado, e é uma das obras mais pedidas nas faculdades de Filosofia. Para quem se interessa pelo tema, é um prato cheio.

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. São Paulo: Unesp, 2009.


* Para quem estiver com preguiça de ler os links: o racionalismo entende que a razão é prioritária no desenvolvimento do conhecimento, porque certas relações cognitivas já vêm de fábrica no ser humano. Já o empirismo acha que todo o conhecimento é externo ao contribuinte, sendo adquirido através dos sentidos e, aí sim, processado pela mente.

** Não no sentido propriamente científico, como as experiências realizadas em laboratório, mas na vivência dos fenômenos que nos cercam.

*** Em Filosofia, necessário é aquilo que é de uma forma e não poderia ser de outra.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

O café filosófico do quotidiano - os números como realidade metafísica em Pitágoras

(Números. São entidades abstratas que sintetizam a realidade ao nosso redor. Mas teve gente que achou que eles eram muito mais do que isso).

Olá!

Clique aqui para ler mais cafezinhos de minha lavra

De todos os métodos de extração de café que tenho em casa, o mais oneroso de todos mesmo foi uma máquina de café espresso. Nada daquelas que vemos nos bares, com recursos xis e ypsilon e que tira oito xícaras de uma vez, mas uma miniatura que tem todos os ademanes necessários: bico duplo, tampo aquecido, vaporizador, diversos níveis de saída, 20 bars de pressão. Não foi exatamente barata, mas nada que um crediário não resolvesse.

Tive um pouco de problema no começo. O depósito de água cheirava forte a plástico e traduzia esse desagrado para o café. Acionei a garantia e a assistência técnica me trocou o tanquinho, recomendando ainda que tivesse um pouco de paciência e deixasse-o aberto por alguns dias. Deu certo.

Lembro de quando eu era jovem, como tantas vezes já recordei aqui, e de como era raro lugares que serviam café espresso, um método tipicamente italiano. O mais frequente eram aquelas grandes cafeteiras que ocultavam um filtro de pano, comuns até hoje, e que são praticamente um distintivo do botecão onde nos conformamos antes de encarar o batente, ainda sonoloentos. Acontece que, de pouco em pouco, essas máquinas com aspecto modernoso foram se tornando cada vez mais comuns, especialmente nas casas especializadas.

O líquido que se extrai de uma dessas é denso, encorpado, para quem gosta de café forte. Para quem prefere cafés mais suaves, é possível pedir ao barista que dê uma "cariocada" na mistura, o que significa dobrar a dose com água quente e liquefazendo a solução. Perguntei a um carioca se fazia sentido o uso do gentílico, e ele disse que não tem nada a ver. Coisas que dançam entre a lenda e o preconceito.

O café espresso bem feito deixa uma boa camada de crema, a espuminha que é tão desejada pelos amantes de coffee art, aqueles desenhos feitos na espuma com leite e caramelo. O espresso é feito para se tomar em pequenas doses, dado seu sabor marcado e altas doses de cafeína, capazes de arribar os contribuintes mais sonolentos. Na Itália, é costume usar doses realmente pequenas, de 15 a 25 ml, a quem chamam de ristretto.


Nome do método: café espresso

Tipo de técnica: pressurização pneumática

Dificuldade: média

Espessura do pó: médio

Dinâmica: O pó é colocado em uma cápsula e deixado no cachimbo, que é encaixado na máquina e submetido a uma faixa de pressão e temperatura de modo a permitir sua rápida extração, que é feita por escoamento diretamente na xícara

Resíduos: pouco

Temperatura de saída: média/alta

Nível de ritual: médio

Eu sempre dou uma travada na hora de preparar meu espresso. Se vou fazer uma dose, há uma certa quantidade de pó e um aperto adequado do tamper no cachimbo. Se vou escoar duas, não se trata de simplesmente colocar o dobro, mas uma medida intermediária, para não produzir um petróleo pouco palatável, com um aperto um pouco mais leve. Além disso, há uma quantidade máxima que o cachimbo suporta, e há regulagens de tempo e de pressão, que não pode ser pouca para que o café não crie cremosidade, nem muita para que ele passe rápido demais, perdendo a oportunidade de extrair os óleos essenciais adequadamente. Mais ainda: há que se considerar se não será cometido o crime de se misturar leite, e com isso calcular as medidas para vaporização. E os cálculos vão se multiplicando na minha cabeça, produzindo uma matematização que me leva, por vezes, ao erro. Era sobre isso que eu pensava diante da minha xícara de café. Espresso.


De fato, nunca fui brilhante com números. Nunca tive dificuldades para aprender as operações básicas, embora eu tivesse alguns tropeços com divisões de mais de três números na chave. Bom, acho que todo mundo tinha. Mas desde que fui apresentado a limites, derivadas e integrais que a coisa migrou do embaraço para a ojeriza. Acontece que o mundo não se guia pelos meus conhecimentos e a evolução das ciências, de modo particularíssimo a Física, deve boa parte de sua robustez aos avanços matemáticos. Os números traduzem a realidade de forma quase mística, porque você olha para a imensidão do universo e o resume em uma folha de papel, com caracteres que, estando isolados, nada representam. Eles estão em toda parte e traduzem toda a natureza. Se não o fazem ainda, um dia o farão, é o que prometem cientistas e matemáticos. Isso quando já não representam coisas que nem sabemos ainda o que são, como as matrizes multidimensionais.

Tal propriedade dos números, de representar a realidade através de elementos absolutamente abstratos, faz com que qualquer fenômeno que ocorra neste pequeno arrabalde chamado de universo tenha sua participação, ainda que de maneira tácita. Em uma época em que os antigos filósofos ainda procuravam pela arché, essa característica levou a uma transformação no modo de pensar. Enquanto os pensadores da escola de Mileto e pósteros procuravam um elemento físico que constituísse o princípio de todas as coisas, surgia em Crotona uma corrente que via nos números e na matemática esse princípio fundamental. Eram Pitágoras e sua trupe.

Mas as coisas começaram de ordem inversa. Pitágoras primeiro iniciou seus estudos através da matemática, e por ele, chegou à conclusão metafísica, ao seu inusitado princípio basilar. O olhar foi lançado curiosamente sobre a música, e dela se teve a ideia de que a harmonia musical poderia ser reduzida a harmonia numérica. Pitágoras e seus asseclas davam tanta importância à música por conta de ser um elemento de catarse, muito semelhante à que era produzida pela tragédia grega: uma purificação em que um homem se coloca em estado de espírito absoluto, como se fosse possível se reencontrar com um plano divino. Isso dava à apreciação musical uma condição quase que sagrada aos pitagóricos.

De fato, há muita matematização na música. Olhe para a escala de um violão e perceba como os trastes não estão dispostos equidistantes, mas com espaços que progressivamente são menores, partindo da pestana na direção da ponte. Entretanto, se você dividir uma corda exatamente ao meio, perceberá que teremos a mesma nota, porém mais aguda. Além disso, os acordes são constituídos minimamente em tríades, que podem ser variados de acordo com a tônica escolhida, sempre mantendo a estrutura de possuir uma dominante e uma  subdominante. Faça isso com um piano, uma flauta, uma gaita, um bombardino ou teremin e você chegará a outras conclusões igualmente matemáticas. Pitágoras e sua magna comitante caterva, desse modo, notaram que a matemática por trás da música era semelhante a uma alma em relação ao corpo, sendo sua efetiva porção divina.

Isso significa que Pitágoras e seus Blue Caps viam a existência de um número físico, efetivamente existente? Bem, é meio complexo de dizer, porque temos contemporaneamente uma ideia de pura abstração com relação aos números. Eles representam sem existir, são puros entes abstratos. Entretanto, os pitagóricos enxergavam algo de físico na realidade numérica, exatamente como o substrato da arché. Todos os fenômenos se explicavam tão bem através da matemática que eles viam o número da mesma forma que, um dia mais tarde, Demócrito veria o átomo.

Ocorre que Pitágoras e compagnia bella observavam tanto a fundamentação da realidade pelos números que acabaram por vê-los até mesmo onde não existiam. Eles fundaram uma espécie de seita onde o culto era ao número, e, quando essas coisas de adoração acontecem, sabemos bem onde as coisas vão parar. Diziam, por exemplo, que a justiça era regida por números quadrados como o quatro (2²) ou o nove (3²), porque expressam a exponenciação da equidade. Bem… não é muito distante do conceito atual de numerologia.

Estando as coisas neste ponto, temos Pitágoras et al elaborando aplicações reais e verdadeiramente geniais, como o célebre teorema, onde se conclui que, em um triângulo retângulo, a soma do quadrado dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa, o que revolucionou as regras trigonométricas até hoje. Mas ao lado disso temos complexas elucubrações que, no final das contas, não levaram a nada que não fossem corroborações metafisicas do aspecto místico dos numerais. O principal exemplo vem da relação entre contingência e infinitude. Uma vez que toda a realidade deriva dos números, eles precisam expressar tanto os elementos finitos quanto os infinitos. Para isso, os números contêm em si mesmos um fator indeterminado e outro determinante. Nos números pares, por exemplo, temos elementos que podem ser colocados lado a lado, como se fossem fileiras. Se colocarmos um vetor entre essas duas fileiras, veremos que ele poderá seguir ao infinito, sem nenhum tipo de obstrução, o que os torna do tipo indeterminado e, por este motivo, menos perfeitos. 

Por outro lado, os números ímpares, colocados da mesma forma, farão perceber que haverá um elemento que sobra. Este elemento, colocado no desvão das fileiras, é um limitador para o mesmo vetor que corria solto no exemplo anterior. Colocar um delimitante faz, no entender de Pitágoras e confraria, um número se torna mais perfeito, porque ganha determinação, uma característica que lhe assegura maior precisão. Vamos ver um desenho que demonstra isso, comparando os números 10 e 11:

Notem como no número 11 há uma unidade que delimita o fluxo do vetor, dando o aperfeiçoamento apontado logo acima. No número 10, os vários casais são meio que uma “encheção de linguiça”, e por isso os números pares não são “tão bons assim”*. Assim como este, há inúmeros outros estudos pitagóricos que vão no mesmo sentido. Tudo isso pode soar esquisito, mas essa é a primeira vez nos registros da humanidade que tivemos uma visão estruturada da realidade, que nem tinha o componente mágico das mitologias, nem a mera busca de um meio físico comum dos primeiros filósofos. Os sistemas matemáticos demonstraram-se capazes de estabelecer ordem nas coisas, assim como dar ferramentas indubitáveis para o raciocínio. Já ouvimos dizer que os números não mentem (o que os contadores contestam), justamente porque conseguimos com eles uma precisão impossível com a linguagem.

Duas curiosidades só para fechar. Fiquei com uma gracinha de Pitágoras e seus isso, Pitágoras e seus aquilo porque nunca é possível falar de Pitágoras isoladamente. É sabido que ele formou uma escola semelhante a um culto, e que ele nunca escreveu nada. Sendo assim, Pitágoras era cercado de epígonos, aqueles discípulos que escrevem em nome do mestre, mas que tornam absolutamente impossível de discernir o que é legítimo e o que é apócrifo.

Outra coisa é que o misticismo pitagórico não se limitou unicamente à questão dos números. Assim como várias religiões de matriz oriental, e influenciado pelos mistérios órficos, Pitágoras cria na metempsicose, que nada mais é do que a migração das almas entre diferentes corpos. Isso envolvia não somente as reencarnações em outros seres humanos, mas também nos corpos de animais, que eram visto como seres inferiores, e cuja passagem fazia parte do processo de purificação da alma. Isso fazia com que os pitagóricos adotassem uma rígida disciplina moral. Viver em comunhão com as divindades era um sinônimo de encontrar uma vida regrada e em enxergar as realidades da natureza, voltando aí a lançar mão das ciências e da matemática.

Pois é... Vejam como a busca da precisão não exclui a possibilidade de uma transcendência. Às vezes é exatamente isso o que acontece enquanto divago diante de uma xícara de bom café. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Como eu disse, Pitágoras não deixou nada escrito, e de seus seguidores só existem fragmentos incertos. O jeito é recorrer aos manuais, e indico a livro abaixo:

NICOLA, Ubaldo. Antologia Ilustrada de Filosofia. Das Origens à Idade Moderna. São Paulo: Globo, 2005  

* É bem verdade que o 10 não é o melhor exemplo que eu poderia usar. Ele é tido como um dos números onde os pitagóricos mais enxergavam relações um chamado “número triangular”, constituído da soma das dez primeiras unidades (1+2+3+4) e que pode ser disposto igualmente por todos os três lados de um triangulo perfeitamente equilátero.