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quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Pequeno guia das grandes falácias – 52º tomo: a armadilha de Kafka (uma falácia polêmica e perigosa)

K. não respondeu mais nada; pensou: será que eu preciso me deixar confundir ainda mais pelo palavrório destes subalternos - eles mesmos admitem que o são? Seja como for, falam de coisas que absolutamente não entendem. A segurança deles só é possível por causa da sua estupidez – Franz Kafka, O Processo

Olá!

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Quando você está solto pelo mundo, é natural e mesmo desejável que varie suas atividades para além daquilo que é necessário. O problema são os tempos de pandemia, infinitos, que te deixam um bocado amarrado (ao menos para quem tem vontade de preservar a si e aos seus). Dessa forma, não tenho um campo de possibilidades muito aberto, e continuo fazendo as mesmas coisas que fazia logo no início da desventura, há mais de sete meses. Isso inclui explorar a internet em busca de bandas antigas, como já narrei aqui. Claro que sou fã das sendas do bom e velho rock’n’roll, como conto para vocês há tempos, e esse é o perfil de minhas buscas ainda hoje.

Em uma dessas, fui fazer uma maratona Black Sabbath, de quem sou fã. Não é nada muito original, mas é como o bom e velho arroz-com-feijão: por mais que você tenha carnes e peixes do mundo todo ao seu dispor, tem momentos em que tudo o que você quer é uma boa e simples comidinha caseira. A comparação não é muito própria, mas é o que me ocorreu no momento. Só que eu fui atrás de músicas específicas, ao invés de utilizar uma das muitas playlists encontráveis na internet. Chamei Supertzar, chamei Electric Funeral, chamei Sabbra Cadabra, chamei Fairies Wear Boots. Em todas elas, o algoritmo me obedeceu perfeitamente, como se compreendesse minhas intenções. A coisa deu chabu quando chamei The Warning. Ao invés de surgir a música do lado B do primeiro álbum dos britânicos, aquele da bruxa, surge um vídeo de umas menininhas. Menininhas mesmo, muito jovens, até um pouco desengonçadas, com uma certa desproporção dos instrumentos que tangiam. Torci o nariz e rolei um pouco a página, em busca da música procurada. Mas havia outros e mais outros vídeos das mesmas garotas, e concluí que deveria descartar a preguiça e especificar um pouco melhor minha busca. Entretanto, a curiosidade venceu a desesperança e, sei lá por qual motivo, cliquei no vídeo das meninas, certo da decepção. Não e não e não!!!

The Warning é o nome de uma banda mexicana, composta pelas irmãs Daniela, Paulina e Alejandra, todas de 20 anos para baixo, e que faz um som que vai no meio termo entre o Heavy Metal e o Grunge. Não há nenhuma novidade crucial no som delas, mas uma qualidade surpreendente no produto final, muito melhor do que vem sendo produzido nesses tempos modorrentos. Embora não sejam virtuoses, são ótimas musicistas, especialmente se levarmos em conta a pouca idade, e vem claramente evoluindo em seus misteres, o que gera boas perspectivas. Algumas coisas em especial me trouxeram encanto para o que vi:

1. A banda é um power trio, formação que se consagrou nos anos de ouro do hard rock, com bandas como Blue Cheer, Cream, Beck Bogert and Appice, ZZ Top, Jimi Hendrix Experience, Rush, Triumph, Motorhead, Budgie, Mountain e muitos outros. É um formato que eu adoro, talvez pelo fato de que minha primeira banda tenha sido um desses, ou pelo reconhecimento de que os membros do grupo precisam se desdobrar na função de vocalistas, que baixo e bateria precisam segurar a peteca sozinhos na hora dos solos, o que as garotas em questão fazem com a mesma qualidade conseguida pelas senhoritas do Rock Goddess (outro power trio poderoso);

2. Todas as três componentes também cantam, o que permite a formação de contrapontos e coros mais preenchidos, como acontece com Uriah Heep, Birtha, Vanilla Fudge, Fanny e outras bandas;

3. Cada uma delas faz vocal solo. Isso não é só prova de habilidade, mas dá uma possibilidade de variação na execução das composições. Entre três irmãs, há uma inevitável variabilidade entre vozes, o que pode ser usado a favor de seu trabalho: uma voz mais grave aqui, mais sussurrada lá, mais gritada acolá, mais rascante para além. Tudo isso aumenta o espectro do que as meninas podem fazer;

4. Usam teclados com parcimônia e sabedoria, já que a vida musical delas começou exatamente dessa forma. Sabemos que há uma medida certa para se usar tecladeiras nessa área do rock, e a dose me parece bastante justa – bem pouca;

5.  Elas crescem muito em energia no palco. De fato, bandas aclamadíssimas como o Nirvana perdem demais quando tocam ao vivo, pelos mais diferentes motivos. Algumas escancaram seus limites técnicos, enquanto outras se limitam a reproduzir o que está em seus álbuns. Quem vai a um show não quer ouvir uma reprodução, como se ouvisse um disco na vitrola. Quer ver como uma música evoluiu a partir de sua gravação e como a interação com o público a faz encorpar. Esse é o melhor sentido do trabalho de The Warning: as gurias são muito boas de palco;

6. Ainda continuando no quesito “ao vivo”, elas fazem uma mescla bem interessante de covers com músicas autorais; aliás, estas últimas poderiam ser um ponto fraco, mas não. As canções próprias são bem redondinhas;

7. Mais uma referente a palco. Não consegui perceber utilização de overdubs ou samples para disfarçar incorreções, especialmente vocais. É garganta e braço. Posso estar enganado, nesses tempos em que verdades digitais são criadas com dois cliques de mouse, mas sempre há uma maneira de pegar o erro quando ele é escancarado;

8. Uma frescura minha: a baixista usa baixos de quatro cordas*.

Resumo: as guriazinhas tocam prá caralho, não há outro termo. Elas aparentemente têm um bom suporte financeiro, razoável sucesso e devem continuar crescendo musicalmente. Isso tudo fez renascer em mim um fenômeno muito frequente até metade da década de 90 e que se perdeu daí para frente: a expectativa pelo lançamento de um álbum novo. Acho que o último trabalho que esperei com alguma atenção foi o álbum Versus, do Pearl Jam (aquele da ovelha), mas agora tenho acompanhado de perto as notícias das gravações, que, nesses tempos de iutubes e feicebuques, são quase diárias. Enquanto aguardo, ouço suas músicas disponíveis, no canal próprio e de sua fanbase.

Mas eu fiz a bobagem imperdoável para um cara com minha idade e vivência, enquanto cantarolava “... just go with the flow of the river’s soul”. Em um vídeo qualquer, rolei a página para baixo e cheguei ao subsolo do cemitério, ao porão do aterro, ao lençol freático do chorume, ou, se for melhor uma conotação religiosa, desci à mansão dos mortos, ao sheol, à geena, ao hades dos comentários. E lá encontrei aquilo que já estamos carecas de encontrar.

O que você esperaria se fizesse um bolo de laranja para o café da tarde? Que, para o bem ou para o mal, os convivas falassem do bolo, elogiando, criticando, sugerindo, não está certo? Agora, seu sexo, cor, nacionalidade ou religião não fariam diferença, ao que me consta. Acontece que as coisas não são assim. Nos comentários, as coisas degringolam para temas indiretos que vão se afastando cada vez mais do objeto de origem da discussão, e sempre caminhando para a polarização e para a rudeza, como se fosse possível colocar absolutamente tudo no plano político (vide aqui). E não é só: é normalíssimo descambar para um debate moralizante, com aqueles inúmeros ranços sexuais, ou tematizações de gênero e sexo, em um vídeo de três meninas tocando músicas que não falam sobre nada disso. Quem não está a fim de azedar o estômago, percebe a roubada e cai fora na primeira resposta mal dada, e quem permanece é porque quer briga, seja para defender sua posição política, ou para cumprir sua missão de cruzado, ou coisa que o valha.

Eu nem precisava explicar isso tudo.  O tema das milícias virtuais é recorrente em nossos infelizes dias atuais, e um cara que mantém um blog ao invés de um perfil no Instagram é, certamente, alguém que não está na crista da onda das redes sociais. Mas é preciso perceber como essa mecânica toda tem sua lógica, que é baseada mais em uma guerra discursiva do que em pedras e paus físicos.

Um dos principais exemplos é uma falácia a quem deram o nome de Armadilha de Kafka, que é utilizada especialmente nos confrontos de conservadores contra progressistas, esse enjoativo ringue virtual contemporâneo. Foi proposta pelo desenvolvedor Eric Raymond em 2010 para designar uma modalidade de discurso que imputa culpa a uma pessoa pelo simples fato de não haver o reconhecimento desta mesma culpa. Confuso? Vamos entender esse curioso nome, se essa é de fato uma falácia e como funciona a mecânica do seu uso.


Vai ter um pouco de spoiler, não há como evitar. O livro O Processo é um grande clássico do realismo absurdo, com autoria do tcheco Franz Kafka. Nesta obra, Josef K é o protagonista da história, um homem que vive sua vida medíocre de bancário até que é citado para comparecer em juízo. Total desconhecedor do fato que origina o processo contra si movido, o infeliz é levado a passar por todo tipo de dificuldade nos enredos da burocracia judiciária, no qual não lhe é possível nem ao menos saber do que é acusado. O ambiente distópico é reforçado pelo olhar de todos ao seu redor, que parecem saber de seus delitos como ele próprio não sabe. Prova-se isso com o conselho geral de confissão, o que Josef se recusa a fazer. “Confessar o que, se nem sei do que sou acusado?” é a questão do protagonista. Ele termina mal: como não confessa seu crime, é condenado à morte, o que é feito através de uma facada no peito.

Pois bem. A armadilha de Kafka consiste em atribuir uma culpa a alguém sem que o contribuinte saiba do que se trata a acusação, e a sua negação seria, então, uma prova de seu “crime”. Esse formato de argumento tem sido atribuído nos tempos atuais aos “justiceiros sociais”, maneira pejorativa de denominar grupos e pessoas que sustentam pautas progressistas, notadamente a defesa de minorias. Um exemplo muito famoso diz respeito ao feminismo. Vamos a ele.

No meio daqueles comentários dirigidos aos vídeos da banda, há algumas observações inconvenientes, dirigidas ao modo como as meninas se apresentam ao público. De fato, a indumentária usada por elas não tem nada de especial. Foge à indumentária pontiaguda dos metaleiros, aos andrajos dos grunges ou ao diáfano das divas pop. Usam calça, camiseta, tênis, e é só. Alguém mais saidinho reclama da falta de ousadia das suas roupas e lá vamos ladeira abaixo. A culminância vem na forma daquilo que se convencionou chamar de “lacração”, uma frase ou gesto que encerra a discussão, geralmente de forma agressiva. No caso, vamos pegar a frase “todo homem é um estuprador em potencial”. É uma assertiva forte e de alto poderio acusatório, porque coloca uma carga bastante pesada nas costas de metade da humanidade.

É uma afirmação claramente falaciosa. Por um lado, há aspectos físicos que desmentem a frase: homens castrados, com disfunções eréteis, paralisias, tetraplegias e outras não são ameaças sexuais. Por outro, há pessoas sem a menor disposição sexual para tanto. Há assexuais e homossexuais estritos, que não apresentam nenhum tipo de tesão diante de uma mulher. Mas tudo isso ainda é pouco: tem-se a impressão de que todo homem teria não só a condição física para o estupro, mas uma predisposição em fazê-lo. A violência sexual, dessa forma, parece um pressuposto de um determinado gênero, e isso faz com que o mecanismo de culpa se instale, como se ser homem fosse inerentemente ruim: há uma ferramenta do mal no próprio tipo físico. Creio que poucas pessoas, a não ser que estejam em um polo MUITO extremo, acreditam na verdade dessa afirmação.

Há uma explicação fácil nesse efeito psicológico. Desde pequenos, em nossa sociedade ocidental, somos apresentados à noção de pecado. Lembrem-se de Adão e Eva: sendo os pais originais de toda a humanidade, seu pecado de desobediência (fortemente vinculado à questão sexual de se reconhecerem nus) torna-se algo genético, transmitido a todo e qualquer vivente que lhes seja descendente. É o pecado original, transmitido de geração em geração. É um pecado que carregamos ainda que tenhamos sido as mais puras das criaturas. Com isso, desde a mais tenra idade, o substrato da culpa nos ladeia, de maneira inevitável, por uma ação de outrem realizada há milênios. Pelo menos é isso o que ensinam as religiões, e isso vem no alicerce da construção de sociedades do nosso modelo, por mais que se ache a história fabulesca. O fato, por conseguinte, é que temos uma via traçada em nossa psique para esse sentimento de erro, ainda que imotivado.

Percebemos, portanto, que a armadilha de Kafka é uma falácia que se move por essas peculiaridades. Ela é composta, e conjuga generalização apressada, ao atribuir a toda uma classe uma característica que é própria de alguns indivíduos; culpa por associação, quando se inclui um comportamento indesejável ao grupo que se pretende combater e raciocínio circular, porque a carga que é colocada na recusa à pecha é posta como a própria prova de culpa. Essa lógica pode ser aplicada a qualquer forma de argumento que acuse alguma parte de ter um privilégio do qual deveria se envergonhar, como é a questão do racismo, da homofobia, da xenofobia , do sexismo e da defesa dos animais, só para citar uns exemplos.

Acontece que pau que dá em Chico, dá em Francisco. Claro que classes com privilégios tendem a receber um volume maior de acusações, e também é óbvio que não são todos os argumentos progressistas que são bons, sendo alguns verdadeiramente exagerados, como pudemos ver. Entretanto, o âmbito conservador pode utilizar a mesmíssima lógica de acusação genérica e abrangência generalizada, com uma culpa consequente. Cito a questão do aborto, onde o papel de justiceiro social se inverte e a defesa dos fetos é feita pela esfera conservadora. Aliás, eu nunca compreendi muito bem essa troca de papéis, como já disse neste texto. Aqui, temos uma acusação de assassinato mesmo para quem nunca nem sequer sonhou em ter um filho, com a única condição de se estar no polo oposto. É a mesmíssima lógica. Cito também a acusação de que qualquer pessoa com ideias progressistas convalida os genocídios perpetrados pelos regimes comunistas espalhados pelo mundo no século XX. Mesmo quem vê Stalin, Mao, Pol Pot et magna comitante caterva como fumaça nos olhos é taxado de comunista** se fizer qualquer tipo de objeção ao moralismo dos costumes ou ao liberalismo da economia. Não, pessoas. Pautas sociais não precisam ser defendidas por socialistas, mas por qualquer pessoa ou posição que acredite que há gente que precisa de algum tipo de proteção, como no caso de leis de acesso a deficientes.

Enfim... Acho triste que até mesmo fundamentos filosóficos como a Lógica tenham que ter partido hoje em dia. Apropriações de termos são coisas tão comuns hoje em dia que automaticamente ficam politizados (aqui e aqui), como aconteceu infelizmente com a camisa da seleção, e isso só empobrece nossa vida. Em essência, progressistas não são ruins, liberais não são ruins e conservadores não são ruins. Eles só se tornam ruins quando vão a extremos, como ocorre quando se apropriam de discursos e colocam uma etiqueta na testa de quem discorda deles.

Penso que vou me arrepender deste post, mas agora já foi. Bons ventos a todos.

Recomendações:

Já recomendei o ótimo livro de Kafka neste texto aqui. Vão nele para pegar a referência.

Com relação à banda The Warning, elas possuem um site...

https://www.thewarningband.com/

... e um canal no YouTube:

https://www.youtube.com/user/luisvillarr

Seus dois álbuns lançados até o momento são os seguintes:

THE WARNING. XXI Century Blood. México: Nada Más Records, 2017. 52:50.

THE WARNING. Queen at the Murder Scene. México: Nada Más Records, 2018. 51:11.

* Mentira. Acabei de ver um vídeo onde Alejandra recebe um baixo de cinco cordas para a gravação do novo álbum. Mas eu quis manter o texto mesmo assim.

** Como se ser comunista fosse um crime por si só. Dizer que alguém é nazista já embute na pessoa o racismo que é peculiar a este regime, constituído em sua raiz. Qual crime semelhante há no comunismo? O desrespeito à propriedade privada? Mas os bancos já não tomam bens dos outros? E, sim, eu não sou comunista, podem acreditar.

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Navegações de cabotagem – o Museu do Telefone de Bragança Paulista e a disseminação de informações como “cola” social

Olá!

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Este será o último texto destas navegações de cabotagem até que as coisas se estabilizem de vez e eu possa finalmente retomar minha vida normal, assim como é desejo de tanta gente por aí, embora da minha janela eu veja que a coisa já esteja muito próxima de uma normalidade enviesada. Estou me comportando exemplarmente, com os cabelos a formar um patético rabo-de-cavalo, uns bons quilos a mais e uma adaptação que eu não fazia a mais de trinta anos: rapei fora com o bigode, para melhor me arranjar com a incômoda máscara. Mantive, todavia, a barba, dando a mim um insólito e esotérico aspecto de leprechaun. Mas essas são pequenas intercorrências que eu só coloco aqui para usar a função fática da linguagem. Vamos ao que interessa.

No último dia 01 de março, às portas da pandemia do coronavírus que veio corroer nossas relações, fiz algo que já tinha feito outras vezes: fui a Bragança Paulista para comprar linguiça. Ora (direis), vale a pena ir tão longe só para comprar um saco de embutidos? Respondo que sim, por vários motivos. O primeiro e mais óbvio é que o produto é muito bom mesmo, sua tradição não é à toa. O segundo é a modorra dominical e o terceiro é que Bragança é uma cidade bem bonita, tranquila de se passear. É por este motivo que o passeio não é somente gastronômico, mas também de lazer e (por que não?) cultural. Lá, existe o Museu do Telefone, que resolvi conhecer nesse mesmo dia.


Este museu não está instalado em um lugar aleatório. O prédio abrigava a Companhia Rede Telephonica Bragantina, uma espécie de Vivo que foi unificada com outras empresas para se tornar a Companhia Telefônica Brasileira. Quem for bastante atento, poderá encontrar perdida por aí alguma tampa de poço de visita com as iniciais CTB.


É um casarão típico dos começos do século XX, mais especificamente de 1907, que é a data gravada em seu frontão de pedra. É uma construção de três andares mais porão, com aquela costumeira imprevisão de pavimentos para garagem. Mesmo estando bastante desgastado, guarda uma boa parte de sua beleza original, e há projeto de reforma já aprovado.


Internamente, o espaço utiliza a divisão dos cômodos para separar os equipamentos em uma ordem mais ou menos cronológica. Boa parte dos aparelhos ainda funciona, e se houver disponibilidade, é possível conseguir alguma demonstração.


O telefone é um dos inventos mais contraintuitivos do ser humano. Ao contrário de um motor ou de um sistema hidráulico, a telefonia deixa aquela pulga atrás das orelhas – como minha voz pode correr através de um fio? Um começo de explicação vem da antiga brincadeira do telefone de copo, tão usual na época de eu-menino. A voz falada dentro de um deles produz uma vibração em seu fundo. Esse vai-e-vem é passado ao fio que, uma vez bem esticado, repassa-o aos fundos do outro recipiente, de modo a reproduzir o mesmo padrão vibratório, tornando a emissão original audível. Essa é a mágica por trás do brinquedo.

A lógica aplicável ao telefone propriamente dito é mais ou menos a mesma, com a diferença de que o meio de transmissão não é mecânico, como a vibração do barbante, mas eletromagnético. Este aparelho abaixo é um reversível, muito semelhante ao brinquedo, que tem esse nome por admitir uma única direção de fala, precisando ser revertido para trocar o sentido entre falante e audiente.


Acomodamo-nos a considerar Alexander Graham Bell como inventor do telefone, mas há inúmeras contestações sobre esta autoria. O fato é que ele ganhou a patente e com ela fez fortuna. Sua Bell Company foi uma das fomentadoras da expansão da telefonia a grandes extensões territoriais, utilizando uma base de funcionamento que, na essência, só mudou de arquitetura com o advento da telefonia celular. Embora tenhamos a ilusão de que estamos falando diretamente com  interlocutor na outra ponta da linha, o fato é que acionamos uma central que, por sua vez, promove a ligação entre as duas pontas. Bem nos primórdios, isso era feito através de uma indução magnética promovida pelo giro de uma manivela, como neste velho telefone de faroeste.

Este ato fazia com que a mesa da central recebesse um chamado, através do desarme de um componente chamado “drop”, que nada mais era do que o anteparo do "buraquinho" correspondente à linha que estava chamando. A telefonista introduzia-lhe o plugue do cabo e podia, desta forma, comunicar-se com o demandante da ligação, e transferi-la para o destinatário da mesma.

Essa operação de transferência de ligações é chamada de comutação e passou a ser feita de forma automática nas centrais mais modernas, com a adição de mais e mais linhas, exigindo mesas cada vez maiores e com grande número de operadores.

Entretanto, ainda na época da comutação manual, alguns aparelhos eram ligados diretamente a pontos específicos por uma questão de utilidade pública, como era o caso dos telefones policiais (momento Guarda Belo*). É mais ou menos como ainda acontece com os fones de rodovia, que bastam ser tirados do gancho para fazer uma chamada.

A evolução do telefone fez com que a portatilidade se tornasse não só um desejo, mas uma necessidade, que veio se aprofundando cada vez mais, até os dias de hoje. Mas o uso de pilhas permitiu o uso do aparelho em meio à guerra, através dos telefones de campanha.

Telefone era um troço incrivelmente caro, como já discorri neste texto. Na minha tenra infância, lembro de duas casas que o tinham: a do seu Otávio, por força do trabalho que o exigia, e a do seu Ernesto, que era um pouco melhor situado financeiramente. Quando a linha chegava na casa de algum endividado felizardo, vinha com um aparelho padrão, de disco, como estes abaixo.

Para quem não tinha essa opção, restava os orelhões, aparelhos em franca extinção e que funcionavam na base da ficha, um artefato semelhante a uma moeda com ranhuras, e que garantia três minutos de ligação ao transeunte (18 segundos nas ligações interestaduais).

Por conta desse custo mais alto, era nas empresas onde existia a possibilidade de observar outros usos das linhas telefônicas. Uma das mais fascinantes era o telex, onde era possível transmitir textos escritos entre dois pontos. Nem vou tentar explicar seu confuso funcionamento, com uso de teclados e fitas, mas vou dizer que era uma das grandes ferramentas para que os jornalistas transmitissem suas notícias a longa distância.

Outro aparelho muito comum em escritórios era o fax, que servia para reproduzir remotamente cópias de documentos, através da reprodução de imagens. Tanto o fax quanto o telex caíram em desuso com a chegada do e-mail e dos scanners.

Mais dois: os telefones sem fio (que ainda existem) e as secretárias eletrônicas, com suas pequenas fitas cassete e recados gravados com voz metalizada.


Por fim, há um grande mostruário com vários exemplares de celulares de várias gerações, com destaque aos tijolões que faziam os janotas andarem tortos. Creiam, crianças, que estes desconformes aparelhos limitavam-se unicamente a fazer e a receber ligações. Não havia joguinho algum neles.

Bom... Telefone nunca foi coisa que tenha me atraído a atenção. Bem entendido, os modernos celulares são antes computadores do que telefones, por isso uso à beça. O que me incomoda é aquela vozinha no ouvido e minha interlocução pouco animada. Minhas conversas nunca duram mais do que cinco minutos, e isso já sob uma certa irritação. Há causas? Certamente, mas não consigo interpretá-las muito bem. Talvez algumas das piores notícias de minha vida tenham chegado através do aparelho, no meio das madrugadas. Pode ser também da natureza do meu trabalho, que se baseia em pressão, o que causa um arrepio ao ouvir até o mais baixo dos toques telefônicos. Talvez ainda seja um daqueles estranhos fenômenos que ocorrem quando temos acesso a alguma coisa que jamais imaginamos que teríamos. Nossa sensação de estranhamento faz com que não nos convençamos de nosso direito a usar algo que jamais poderíamos em situação normal. Deve ser por isso que há tantos equipamentos públicos vandalizados, como é o caso das piscinas públicas. Como eu disse, telefone era algo muito caro, e não fazia parte das minhas expectativas de posse até a década de 90, quando já era adulto. Por isso, parece restar algum ranço subconsciente contra o bem. Ora, pensando bem, isso é uma sonora bobagem, porque a patroa era igualmente pobre e igualmente com baixa esperança de adquirir uma linha. Entretanto, quanto a consorte conecta-se com sua mãe, é conversa para horas. Chega a ser estranho. As duas são capazes de ficar tempos a fio em uma linha, e quando se veem pessoalmente a quantidade de mensagens trocadas é muito mais modesta.

Pode ser que seja o conteúdo a explicação. O telefone consegue um nível de privacidade impossível de se obter ao vivo e em cores, mas que dá uma expressividade que não se consegue com palavras escritas. Por isso, indiscrições são mais possíveis de se transmitir através dos pulsos telefônicos. Não digo os grampos que tanto afligem políticos, mas certas coisas são meio inconfessáveis a um público aberto, como é o caso das maledicências, dos maldizeres, das aleivosias, dos murmúrios, das coscuvilhices, das difamações, das futricas, dos fuxicos, das fofocas.

Eu não vou aqui posar de bom moço e dizer que não curto uma fofoquinha. Lembro bem das freguesas da minha mãe que tinham fama de bisbilhoteiras contumazes. O quintal da Edileusa, pedicure do pedaço, era então uma espécie de agência de notícias, especialmente aos sábados. Entretanto, é o tipo de coisa que me causou perturbações nos meus tempos de cristão. Uma frase retumbava em minha cabeça quando me preparava para minhas poucas confissões: “Não é o que entra em sua boca o que o torna impuro, mas o que sai dela” (Mt 15, 11). Isso era uma clara mensagem de que não bastava amar a Deus sobre todas as coisas, não tomar seu santo nome em vão e così via, mas que a língua estava a serviço do diabo e me levava à perdição pelo fato de não saber guardá-la dentro da boca. Dessa forma, tinha comigo que seria necessário uma extensa caderneta para anotar todas as imprecações impiedosas que eram despejadas da minha boca. Mas elas insistiam em estar lá. E, de mais a mais, quando a minha mãe queria puxar o interesse da casa, ela sabia muito bem o que fazer: “gente, vocês não sabem da maior”. Portanto, a fofoca deve ser uma inerência do ser humano, e não simplesmente um defeito. Há teorias para tanto. Uma delas diz que a fofoca é um elemento evolutivo. Vamos ver isso.

Há cerca de 2,5 milhões de anos atrás, um primata diferenciou-se de todos os demais então existentes. Era o Australopithecus, ancestral comum aos hominídeos, e do qual lentamente foram se derivando todas as espécies daquilo que chamamos de gênero homo, do qual nós, bípedes implumes, fazemos parte. Não vou me alongar muito na história, principalmente porque me falta conhecimento para tanto, mas é suficiente dizer que nós, homo sapiens, surgimos no Sul da África há cerca de 200 mil anos, e convivíamos com outras espécies do mesmo gênero, que se espalhavam por todo o globo, como o Homo Erectus, o Homo Heildelbergensis e o Homo Neanderthalensis, além de possivelmente outras espécies. Como é de se supor, a vida em tempos passados era muito mais restrita a uma geografia menor, por isso as espécies tardavam a se espalhar para outras terras. Entretanto, as necessidades de busca por novos territórios levaram nossos ancestrais a tentar sair da África. A expansão mais óbvia era a região do Levante, parte do Oriente Médio ligada ao Mar Mediterrâneo, pelo simples motivo de existir ligação por terra entre os dois continentes. Observações paleontológicas notaram que uma primeira tentativa de incursão pelo Levante ocorreu a cerca de 100 mil anos atrás, onde havia populações neandertais já habitando. O resultado foi ruim, com o desaparecimento desses primeiros aventureiros. Na segunda tentativa, há 70 mil anos, o contrário aconteceu: os sapiens dominaram a área e expandiram seu território cada vez mais, eliminando, expulsando ou se miscigenando com os neandertais, tudo junto ou separado. O que será que houve de diferente entre as duas incursões, que deram resultados tão distintos?

Especula-se na existência de um período em que mudanças drásticas ocorreram no homo sapiens; não em sua conformação física, mas na maneira como a linguagem se desenvolveu, especialmente de modo a dar conta do convívio de grandes grupos. Houve um momento tal em que a capacidade mental da comunidade sapiens conseguiu superar seus limites físicos através da abstração, encontrando um sentido coletivo que dava coesão a massas muito maiores de população, como a introdução de totens e deuses unificadores das tribos. Essa foi a Revolução Cognitiva preconizada por Yuval Harari, professor israelense que é, hoje um dia, um destacado pesquisador das coisas humanas.

Somos animais gregários, ou seja, vivemos em bandos, como eu já disse dezenas de vezes (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui há exemplos). Entretanto, a capacidade de se organizar em grupos tem um limite: a quantidade de membros do grupo. Um grupo muito pequeno é ineficiente; um grupo muito grande é incontrolável. Mesmo um líder muito forte tem dificuldades em manter as rédeas de uma população muito grande. Entretanto, quando se consegue unir algum objetivo comum que vai além da mera concretude do mundo, o grupo tende a se tornar mais homogêneo, através do compartilhamento do mito. Notem como nas histórias antigas das religiões há sempre um deus conduzindo os exércitos, as oferendas pelas boas safras e outros atos que, mesmo desligados da realidade circunstante, tornam possível a agregação de tantos homens. E quanto mais homens, melhor a ocupação em território inimigo, principalmente se eles não tiverem o mesmo nível de coesão do invasor. Na primeira tentativa, pequenos bandos encontraram outras pequenas tribos, mas que tinham a seu favor o conhecimento do terreno e maior disponibilidade de provisões. Na segunda, o jogo virou por conta do volume organizado de gente.

Só que mesmo essa causa comum não é suficiente para explicar o amálgama social. Imaginem um líder que precisa, de uma forma ou de outra, controlar seu pessoal. Em uma população muito grande, ele não terá como perguntar um a um o que está bom ou ruim. Mais ainda: não terá como acompanhar o modo de pensar e a personalidade de cada um dos membros: quem é bom, quem é falso, quem se contraria com suas decisões, quem é fiel e assim por diante. O papel de lhe trazer informações sobre o aparelho social como um todo vem exatamente da fofoca. Ao saber como se posicionavam os membros e o potencial de influência que cada um tinha sobre sua comunidade local, o líder tinha ferramentas para criar uma coesão em torno de propósitos que era impossível antes deste enriquecimento da linguagem. E um grupo coeso faz exatamente aquilo que descrevi logo atrás: tem uma capacidade muito maior de enfrentar um grupo inimigo. Os sapiens, que evoluíram para esse modelo de “compartilhamento de informações”, eram muito mais bem adaptados ao meio do que as dispersas tribos neandertais. Não parece interessante?

Portanto, não fique mangando de sua sogra e vizinhos que fofocam nos telefones e nos muros de nossos bairros. Eles estão apenas sendo humanos. Bons ventos a todos.

Recomendações:

Harari é um dos melhores escritores da atualidade, com um texto altamente fluído. Mas não é só forma – seu conteúdo também é muito bom.

HARARI, Yuval. Sapiens: Uma Breve História da Humanidade. São Paulo: L&PM, 2015.

E recomendo também uma visita ao Museu do Telefone, com a sugestão de pegar uma bela porção de linguiça no restaurante do campo do Bragantino.

Museu do Telefone – Centro Cultural
Praça José Bonifácio, nº 126
Centro
Bragança Paulista/SP

Aproximadamente 90 Km a partir do centro de São Paulo

* Não sei até onde vai o conhecimento dos antigos desenhos da meninada atual. Para quem não sabe, o Guarda Belo era um daqueles famosos personagens secundários essenciais a uma trama. Falo especificamente do desenho Manda-Chuva, que mostra uma caterva de gatos vagabundos que vive às turras com o ordeiro policial em questão. Procurem na internet porque é muito divertido (e um tanto subversivo).

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Navegações de cabotagem – a Gruta da Paz de Limeira, com um nome e um designador rígido para torná-la única

Olá!

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É monocórdio, mas é assim mesmo, amigos que me acompanham neste blog. Talvez seja mais chato para quem lê, porque eu me divirto um bocado com isso, mas peço um pouco de paciência, porque não custa. Ainda no começo deste ano, antes da interminável pandemia, mais um domingo, mais um bate-e-volta, mais um concurso público da menina mais nova, que busca nas prefeituras o espaço que a iniciativa privada lhe nega, praticante da área de Ciências Sociais que é.

Desta vez, estamos em Limeira, cidade bastante próspera que fica situada no centro-leste do estado de São Paulo, em uma região onde a temperatura já começa a se elevar, próximo à depressão periférica paulista. É sabido como há uma diferença grande de temperatura entre a região serrana da qual Sampa faz parte e a área do planalto do interior. É um município grande, com mais de 300 mil habitantes, e que tem alguns prédios bastante antigos espalhados pelo centro urbano, embora, da mesma forma que na Capital da Solidão, tudo tenha ficado meio espalhado em meio à onda modernizante da década de 70.

Entretanto, estamos no interior e a paz reina nos domingos. Dei um pulo no mercado municipal para comprar umas castanhas (fiquei sabendo que pouco tempo depois o prédio sofreu um incêndio de grandes proporções) e fui passear pelas praças para esperar o tempo passar. Em uma delas, vi algo que me chamou a atenção: uma formação inconsueta de pedras, no meio termo entre uma caverna e um castelo, soergue-se em meio às árvores e bancos. É a Gruta da Paz.


Trata-se de um monumento centenário, construído de pedras retiradas de uma fazenda da região pela parte de fora, enquanto por dentro é toda feita de tijolinhos. Foi erguida por ocasião do término da Primeira Guerra Mundial e é cheia de referências religiosas, como os trinta e três degraus de sua escadaria, a idade de Cristo quando morreu.


São quatro tipos diferentes de pedras, para representar o que era entendido na época como as quatro raças humanas, e que constituem uma construção de estilo maneirista, segundo dizem, embora busque recordar um edifício medieval.


Ao redor da construção, há a estrutura de uma lagoa que se encontrava vazia. Não sei se se trata de manutenção ou limpeza, mas ficaram faltando umas carpinhas para dar alegria ao lugar, assim como mais significados religiosos.


O final da escadaria dá em um platô que serviria originalmente como um coreto, para as bandinhas da cidade tocarem suas músicas. Hoje, serve para dar um tapa na pantera. Por uma paulistaníssima prudência e mau costume, achei por bem esperar um pouco para ir até o alto.


O coreto de fato não está nos cimos do monumento, mas um pouco mais para baixo na própria praça, em estilo completamente diferente, guarnecido por uma rara arquibancada de três lances.


Hoje em dia, pelo que pude perceber, a gruta serve como espaço expositivo, mas já serviu como lanchonete e bomboniére. Os arcos ogivais dão um ar meio medieval, ainda que desvirtuados pelas contemporâneas grades de proteção.


A gruta fica na mesma praça onde fica situado o Teatro Vitória, e formam um conjunto bonito em meio a um centro comercial. Embora haja quem lhe conteste a beleza, pelo que andei vendo nessas internets da vida, não deixa de ter sua importância histórica.


Apesar de tão antiga, esse nome oficial, Gruta da Paz, somente veio em 2004. Até então, era apenas um monumento municipal que ficava no meio da Praça Toledo Barros. Nessa ocasião, houve um concurso de poemas. O vencedor virou uma placa que foi para a parede do castelo.


Quem me acompanha neste blog sabe da bronca que eu tenho com mudanças de nomes de logradouros, como pode ser lido neste texto. Salvo honorabilíssimas exceções, penso que um nome deve ser mantido quase sempre, porque carrega consigo um pacote de significados difícil de ser superado por uma homenagem a alguém que nem mesmo soube que tal rua existe.


Arrumaram um sistema na cidade de São Paulo que é ainda pior do que a mudança pura e simples: adiciona-se ao nome original uma designação laudatória, gerando trambolhos inexplicáveis, como é o caso da Rua das Olarias Coronel Camilo Christófaro Marins. Que coisa horrorosa! Nem se guarda a história da rua repleta de olarias que aproveitava a argila das beiras do Rio Tietê, nem se homenageia o gajo em questão com a devida deferência. A um parece querer-se apagar a memória; a outro, dá-se uma aura de desimportância, e a tudo se dá uma impressão de serviço malfeito. E a moda pegou: Ponte do Limão Adhemar Ferreira da Silva, Ponte da Casa Verde Jornalista Walter Abrahão, e por aí afora.


Não é o caso do monumento em questão. Um nome próprio geralmente é muito bom, e ele faz todo sentido quando lembramos que a gruta foi construída nos términos da Primeira Guerra Mundial, quando a esperança (infrutífera) de um mundo melhor vinha à tona de um povo muito assustado. Um nome próprio individualiza e ajuda a reconhecer um objeto mesmo quando falamos dele subjetivamente. É mais ou menos o que acontece com os cachorros, que deixam de ser UM cachorro qualquer para ser específico, O Fulano de Tal (no meu caso, o inefável Homem-Cueca).

Mas essa história toda me fez lembrar de uma das grandes questões da moderna Metafísica e de como o Filosofia da Linguagem costura uma solução para a aporia. Trata-se da Teoria dos Mundos Possíveis e do Designador Rígido, temas tremendamente complexos dos quais vou passar somente uma ideia geral. Vamos nessa.

Essa história toda começa com Leibniz, o pensador alemão das mônadas como componentes do universo (leiam aqui sobre isso, é importante). Ele dizia que as mônadas, uma espécie de centro de energia que seria o elemento fundamental de toda a realidade, acomodavam-se uma às outras através de uma harmonia preestabelecida, que, por sua vez, era fruto de um arranjo divino. Dada sua plasticidade, as mônadas que compõem o universo poderiam se amoldar a qualquer realidade, mas por conta da harmonia guiada por Deus, somente poderiam adotar a forma que percebemos na própria realidade. Diante das inúmeras possibilidades, aquela que nos é plasmada é a mais adequada de todas, em razão de seguirem a perfeição divina. Ainda que as contingências não nos permitam perceber, Leibniz entende que nosso limite intelectual impede-nos de compreender que os caminhos traçados em todo o universo são os melhores possíveis. “O mundo é o melhor dos mundos possíveis”, dizia o tedesco.

É óbvio que, por mais que fosse bem engendrada e não fosse desprovida de sua lógica, essa tese tinha costas largas para tomar paulada. E as mais célebres (dolorosas) vieram das ácidas mãos de Arthur Schopenhauer, o profeta do pessimismo. Ele ridicularizava as teses de Leibniz, tomando-as por pura viagem metafísica. “Eu só conheço o mundo real, não tive o prazer de conhecer os possíveis”, disse ele, asseverando a inutilidade de se pensar em algo que, no limite, não existe. Esse pensamento materialista só admite uma preordenação das coisas se pensado em sua própria metafísica da vontade, onde tudo concorre para tentar saciar o insaciável, em sua mais célebre frase, o exato oposto da assertiva leibniziana: “A existência é uma dívida perpétua que só a morte paga por inteiro. O mundo é o pior dos mundos possíveis”.

Mas o fato é que a ideia de mundos possíveis não foi descartada por completo, sendo retomada em um campo que trafega do metafísico para o lógico-semântico a partir da segunda metade do século passado – ontem, no tempo histórico. E aí vamos começar a fazer algumas perguntas para este novo momento. Ontologicamente, o que é um mundo possível? Seria algo semelhante a uma realidade alternativa, como é comum acontecer em histórias da Marvel? Não é bem isso. Embora exista quem de fato defenda a existência de mundos paralelos ao que temos ao nosso redor*, a questão dos mundos possíveis diz mais respeito a uma condição lógica do que propriamente existencial. Exemplo: Há pouco tempo, tivemos o sorteio dos confrontos para a Copa do Brasil**, e calhou ao Corinthians enfrentar o América Mineiro. Poderia ser um monte de outros times, todos participantes do sorteio: um Derby com o Palmeiras, Majestoso com o São Paulo,  um Clássico Alvinegro com o Santos, um Encontro das Nações com o Flamengo, ou jogos contra Inter, Botafogo, Grêmio, Cuiabá, Bragantino, Athlético Paranaense, Ceará, Juventude, Fortaleza ou Atlético de Goiás, mas lhe coube o Coelho. Esses são todos os mundos possíveis no caso “adversário do Corinthians na Copa do Brasil”, sendo que um corresponderá à realidade e os demais quatorze à possibilidade. Não está no escopo dos mundos possíveis enfrentar o Vasco ou a Portuguesa, porque o primeiro foi desclassificado em etapa anterior e a segunda nem participou do torneio, e, portanto, estes confrontos não estão incluídos nos mundos possíveis definidos neste escopo. Também não está na possibilidade enfrentar a seleção da Argentina, porque é uma copa entre clubes. Idem com relação a times ingleses ou coreanos, porque é um torneio nacional. Pior ainda outras hipóteses mais esdrúxulas: o Corinthians não pode enfrentar a si mesmo, nem a dois adversários ao mesmo tempo. Também não pode enfrentar um time de basquete ou um escrete de jogadores falecidos. Portanto, os mundos possíveis só são extraídos de um escopo bem delimitado e logicamente bem construído. Não é qualquer historinha que é um mundo possível. A coisa está mais para haver uma sinonímia entre mundo possível e mundo logicamente possível, entre os quais um deles é nosso mundo atual. Aristotelicamente falando, o mundo atual é um dos mundos possíveis que está em ato, enquanto os demais mundos estão no estado de potência (para ver mais, leiam aqui).

E existe a chance de que os mundos possíveis possam também ser reais? Tipo assim, de carne e osso? É impossível saber, e nem mesmo é seu propósito descobrir uma pretensa factibilidade. Essa teoria pertence à Filosofia, e não à Ciência. Perceberam a diferença? A ideia central desta teoria é dar uma totalidade entre o concreto e o possível, os dois componentes ontológicos da realidade, e com isso expandir a compreensão que temos do universo. Não é simples, mas eu nunca disse que era.

Pois muito bem. Se um mundo possível vai muito longe de um mundo de conto de fadas, de modo a possuir vastas coincidências entre si, é preciso pedir socorro à linguagem para que se possa chamar pão de pão, e pedra de pedra. O que eu quis dizer com isso? Que os filósofos estabeleceram que deve existir uma ferramenta tal que permita identificar sem sombra de dúvidas um mesmo objeto em diferentes mundos possíveis. Essa ferramenta é o designador rígido, e seus principais baluartes são os nomes próprios.

Em primeiro lugar, um pouco de gramática. Um substantivo é uma classe de palavras variáveis que serve para designar nomes e coisas, e tem esse nome porque pretende dar uma noção da substância do objeto ao qual retrata. Em suma, um substantivo corresponde a um nome. Quando este se refere a uma particularização de uma espécie expressa em um indivíduo, temos um nome próprio, expresso em letras maiúsculas, para dar uma certa “nobreza” a quem lhe recebe. Este é o maior distintivo de individualidade possível. Vamos reservar.

Em uma teoria de mundos possíveis, temos sempre indivíduos que se repetem em diferentes instâncias, sem que estes percam sua particularidade. Todos os termos que se refiram a eles são designadores, ou seja, são palavras que lhe dão precisão na identidade, que distinguem um objeto dos demais. Mas há um índice de “dureza” que torna esses designadores mais ou menos individualizantes. Chamamos de designadores rígidos aqueles em que indicam um único objeto em todos os mundos possíveis, e de designadores flácidos os que podem variar de objeto.

Nomes próprios são designadores rígidos por excelência. Quando falamos do Sport Club Corinthians Paulista, estamos apontando uma agremiação esportiva única, que seria apontado por esse nome sob qualquer condição do sorteio dos confrontos da Copa do Brasil. Já as descrições definidas são os designadores flácidos canônicos. Digamos que a equipe que enfrentará o América Mineiro será o alvinegro do Parque São Jorge. Parece a mesma coisa de dizer que este é o Corinthians, mas suponhamos a hipótese que, em um mundo possível, esta equipe não seja mais alvinegra, ou que haja outro time nessas cores no Parque São Jorge. Digamos ainda que o clube tenha se mudado desse bairro, e que outro tenha se fundado no lugar. São todas condições contingenciais, por mais que se aproximem do consenso. Entretanto, o Corinthians será o Corinthians na Copa do Brasil ou em qualquer outro torneio; continuará o sendo se mudar de bairro, cidade ou estado, e, mesmo que mude as cores, ainda assim vai ser Corinthians. Haverá quem diga: e se ele mudar de nome? Neste caso, teremos um novo designador rígido, que novamente passará a designar esse escrete nos mundos possíveis onde existir. Portanto, o nome próprio sempre se dirigirá a um objeto específico, enquanto uma descrição definida pode mudar de referência, dependendo das contingências.

Ora (direis), seu parlapatão. E se houvesse um time com exatamente este mesmo nome em uma cidade aqui ao lado... Santo André, digamos? Como farás para que sua tese do designador rígido continue funcionando? Para onde irá seu sentido e referência nos casos de homonímia, quando um mesmo nome próprio se referirá a dois objetos distintos. Primeira coisa que farei é explicar que a tese não é minha, mas de Saul Kripke, filósofo norte-americano ainda vivo. Segundo, que é exatamente para isso que servem as descrições definidas, que vão constituindo um feixe de descrições que é amarrado justamente pelo nome próprio. Portanto, este nunca vem sozinho, e por isso é possível obter consenso sobre a quem ele se refere.

Complicadinho... Posso eventualmente voltar ao assunto para falar mais, mas é mais uma importância que existe em se dar um nome ao monumento da Praça Toledo Barros: tornar-lhe único em todo o universo da arte pública, para além de suas cambaleantes descrições. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Kripke é um dos grandes nomes da moderna Metafísica e da Filosofia da Linguagem, e faz muitas inovações na Lógica. É bom ter um pouco de conhecimento anterior nessas áreas antes de começar a lê-lo, ou procurar um bom comentador.

KRIPKE, Saul. O nomear e a necessidade. Lisboa: Gradiva, 2012

E quando estiver passando por Limeira, dê uma passadinha rápida na Gruta da Paz, principalmente se for um pacífico domingo de sol, torcendo para seus tanques estarem cheios novamente.

Gruta da Paz

Praça Toledo Barros, s/nº

Centro

Limeira/SP

Aproximadamente 150 Km a partir do centro de São Paulo


* Não é isso o que a maioria das religiões fazem?

** Para quem não é ligado em futebol, trata-se de um torneio a nível nacional em que diferentes equipes de todo o Brasil vão se enfrentando e se eliminando, até terminar com uma final, obviamente. O campeão ganha uma bolada e uma vaga na Copa Libertadores, a competição mais importante da América do Sul.