Marcadores

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Navegações de cabotagem – O Templo Odsal Ling de Cotia: há contradição entre o desprendimento do mundo e a apreciação estética?

Olá!


Desde o dia em que visitamos o Templo Kadampa nestas navegações de cabotagem (leiam aqui), a patroa e a patroinha ficaram encantadas com o conceito dos templos budistas, seus detalhes e o esmero nas suas nuances. Eu também gostei bastante, e fui procurar outros parecidos que ficassem nas imediações da gloriosa capital da garoa.

Ora, direis, não és tu aquele que habita o centro desta enorme urbe, e o bairro da Liberdade não é seu circunvizinho, freguesia essa prenhe de orientais e de suas consequentes culturas? Não procuras tu para além do horizonte algo que recebe os ventos de suas ventas? Só que responderei que é verdade, mas que esses eu já conheço, pois não? Já resolvido com meu imaginário interlocutor, descubro que na mui próxima cidade de Cotia existem dois deles, e os elejo para conhecer de uma só feita, em dia de superação da preguiça dominical. Mas vou tratar de um por vez, porque assunto não falta. Pela ordem, vou começar falando sobre o templo Odsal Ling.



Seu nome completo é Chagdud Gonpa Odsal Ling, e representa a vertente tibetana do budismo, o vajrayana, da qual falarei um pouco mais. Segue o estilo típico dos templos existentes na cordilheira do Himalaia, que são bastante famosos no mundo todo por conta de seus líderes, como o Dalai Lama.



Há inúmeros elementos estéticos espalhados por toda parte, cada um com seu significado próprio e que carrega uma dose das características da corrente em questão. Não há nada que esteja lá apenas por enfeite. A presença das bandeiras multicolores, por exemplo, representa os diferentes povos e pessoas convivendo em harmonia.



Pelos jardins da parte baixa, há alguns dos elementos típicos da prática budista. É extremamente comum o uso de incensos nestes templos, não só pelo bom cheiro ou pela sensação inebriante de alguns, mas porque traz, para os budistas, o sentido das boas ações e da moralidade adequada, porque aquele que bem age evola seus bons aromas para o ambiente que o rodeia. Sim, amiguinhos, certos rituais vão muito além do que imaginamos. É a mesma coisa que ocorre com o incenso no Cristianismo. Alguém pode achar que seu uso é para tirar a ziquizira da nave, mas ali existe o sentido da oração que sobe aos céus, como faz a fumaça.



No Budismo vajrayana, nós temos a figura do lama, que é uma espécie de mestre do dharma, a lei cósmica que rege todas as criaturas. Não é apenas um sacerdote, mas um guia espiritual que atingiu um nível elevado de conhecimento tântrico, um dos aspectos sui generis da vertente. O lama fundador do Odsal Ling é Chagdud Tulku Rinpoche. Atualmente, a líder do local é a lama Tsering Everest, uma norte-americana que vive por lá desde 1995. Também vi por aqui a VJ Soninha Francine, que foi vereadora em São Paulo.



Mas o que é esse tantra no qual o Budismo vajrayana se baseia? É um conceito mais antigo que a própria escola, e que concilia corpo, mente e ambiente como instrumentos para a iluminação. Como veremos mais adiante, a tradição à qual nos dirigimos agora visa uma saída mais rápida do ciclo de contínuas reencarnações a que nos submetemos por conta do sofrimento. Parte desse ferramental é composto por símbolos, que estão espalhados por toda parte. No adro do templo, por exemplo, estão pintados no chão os assim chamados "oito símbolos auspiciosos". Segundo a tradição tibetana, esses símbolos foram entregues ao Buda Shakyamuni assim que ele atingiu a iluminação. Eu não tirei nenhuma foto competente dessas pinturas, então junto aqui um ex-libris que possui o mesmo conteúdo. Na ordem, os símbolos são o parassol, peixes dourados, vaso precioso, flor de lótus, concha, nó sem fim, bandeira da vitória e roda de dharma.



Já na parte superior, lindeira ao prédio principal do templo, há uma grande imagem de um Buda deitado, em um tablado ornado pelos mesmos símbolos mencionados anteriormente.



Por várias vezes durante o dia, voluntários vinculados ao espaço fazem rápidas tours para explicar alguma coisa para leigos como eu, o que acaba por ensinar que a representação aqui obtida diz respeito à impermanência. Mesmo um ser já iluminado mantém aspectos humanos, e sua contemplação não pode ser confundida com adoração, já que os budas não são deuses, segundo sua crença.



Ao divisar o templo em si, o número de detalhes estéticos é ainda maior. Por um pedido dos orientadores, não se pode tirar fotografias do interior do templo, o que obedeci. Lá, há uma grande série de objetos rituais, incluindo imagens típicas e gongos, além de fileiras de uma espécie de balcões bem baixos, onde se praticam rituais de joelhos ou em lótus, numa profusão explosiva de cores, mais ou menos como acontece com o próprio pórtico de entrada.



Também do lado de fora alguns painéis contam histórias e ritos, onde podemos presenciar iconografias importantes, como o clássico desenho do caminho óctuplo representado em uma roda da vida, símbolo universal dos ciclos.



A tradição vajrayana tem algumas sutilezas que a diferenciam das demais correntes do budismo, justamente pelo fato de sua maior interação com o ambiente que cerca seus ritos. Por este motivo, há alguns objetos peculiares por aqui, como esta roda de oração.



É um lugar onde se entoam mantras enquanto se anda ao passo da roda, em um movimento circular que simula um caminho infinito, porém com o ruído de um sino que se repete a cada volta, para se lembrar do início e o fim de cada ciclo.



Há duas casas de roda no Odsal Ling. A da frente representa o bem, com desenhos de budas e bodhisattvas em situações de alegria; a outra, sugere o medo e o ódio, com desenhos de demônios e espíritos de trevas, para que se lembre de que nunca se está livre das más influências.



Falando novamente do lado de fora, o Pavilhão Lótus é uma construção mais eclética. Segundo os próprios orientadores, é um grande "guarda-chuva" que permite concentrar um número maior de pessoas, e mais propício para palestras e cursos, com a possibilidade de um contato visual com a natureza que é impossível no templo principal.



A parte de baixo do templo, cuja entrada fica ao lado do Pavilhão Lótus, contém a parte menos espiritual da casa. É onde se localiza um restaurante e uma lojinha, além de um salão mais informal.



A informalidade daqui não significa que ela seja mais malcuidada e de que se desvirtue do propósito geral da casa. Na verdade, há ainda muita coisa interessante, em especial essa imagem de parede inteira, representando uma sucessão de Budas.



Fiquei um bom tempo contemplando os detalhes da obra de arte. De fato, as técnicas orientais são de uma delicadeza ímpar.



Muitos artistas foram influenciados por esta forma de preciosismo e cuidado, especialmente destinada a transmitir paz interior e integração com a natureza. Lembremos que todas as correntes budistas se caracterizam por uma atitude contemplativa, que diferem em boa parte da aceleração ocidental.



As figuras de budas e bodhisattvas são naturalmente frequentes, incluindo uma boa quota de personagens femininas. Na entrada da loja há exposta uma bela amostra de arte oriental que nos mostra uma delas.



A grande pergunta que cabe é a seguinte: a principal chave para a saída da roda do samsara (nascimento, maturação, decrepitude e morte que se dá nos diferentes mundos por todos os seres) é o desprendimento de tudo o que faz com que alguém ainda sofra. Mas eu fico pensando comigo mesmo. Na minha casa, eu tenho quadros e esculturas que eu gosto muito. Também tenho fotografias que me trazem boas recordações e músicas que embevecem minh’alma. São coisas das quais eu não quero me desfazer, e sentiria falta se fosse para uma ilha deserta em busca de paz. Mas são distintivos do apego: são coisas transitórias, perecíveis, imperenes, impermanentes, como reza a própria lógica budista, e que tenho medo que se percam, que se estraguem. De uma forma ou de outra, trazem-me sofrimento ainda que nada disso aconteça, pela simples expectativa de que algo de mau lhes aconteça. Se a própria contemplação de tudo o que é belo pode ancorar uma pessoa ao prazer terreno, por que a elaboração do rito se preocupa tanto com aspectos estéticos? Não lhes parece uma contradição, meus nobres? Para tentar responder, vamos ter que dar uma voltinha, passando pelas vertentes mais significativas do Budismo. Como não sou um especialista na questão, já de cara me ofereço a correções, que podem ser feitas aí embaixo, nos comentários.

Os ensinamentos de Sidarta Gautama, o primeiro sistematizador do Budismo, apontavam para uma solução do conflito ético gerado pelo sofrimento. Se por trás dele estava o desejo incessante, era necessário exercitar o desapego. Seguindo estas linhas gerais, os primeiros seguidores destes ideais buscavam adotar uma atitude mais monástica, em que o afastamento do fluxo mundano, grande gerador de desejos, auxiliaria na tarefa do desprendimento. Essa busca pela quebra da lógica do desejo e alcance da iluminação é uma iniciativa que não passa da pessoa que busca esse objetivo – não se pode atribuir os atos e pensamentos a outrem, a não ser a si mesmo. É até injusto que se faça isso – é uma responsabilidade nossa, intransferível, inalienável. Desta forma, a busca pela iluminação inclui uma intensa prática meditativa e uma vida anacorética rigorosa, sendo que nossa visão estereotipada dos monges budistas vem desta corrente, o theravada. É bem pouco comum no ocidente, sendo mais praticado na Tailândia, na Birmânia (Mianmar) e no Ceilão (Sri Lanka). Seus ritos são bastante simples, baseados essencialmente na recitação de mantras, queima de incenso e leitura dos sutras, em especial o tripitaka, a compilação dos ensinamentos tradicionais budistas.

Na Índia da época do primeiro desenvolvimento do Budismo, no entanto, havia um ambiente bastante complexo, com muita concorrência de diversas etnias, e o Hinduísmo também levou influências no meio do cadinho cultural asiático. Desta forma, o Budismo variou para vertentes mais inclusivas, que considerasse o laicato não só como um meio de prover os monges, mas de também ele ter possibilidades de buscar instrução e, consequentemente, o nirvana (saída do ciclo do samsara). A maneira como isso foi feito se dá através de uma lógica de compaixão universal. A coisa é mais ou menos assim: quando alguém entra no caminho da virtude, adquire experiência essencial para sair da roda do samsara. Ao conseguir se livrar por completo da sombra dos desejos e consequentes sofrimentos, atinge a budeidade, ou seja, ele mesmo se transforma em um buda. No entanto, um dos componentes do caminho da iluminação é justamente o meio de vida correto, no qual se entende ser necessário fazer o bem a todos os seres. Com esse propósito, alguns daqueles que conseguiram reunir os elementos necessários para atingir o nirvana compreendem ser objeto de piedade se manter no ciclo de reencarnações para ajudar a conduzir os outros seres sencientes para a luz. Esses iluminados são os bodhisattvas, que literalmente significa “seres iluminados”. Eles compõem o cerne da corrente mahayana, que está situada especialmente na China, na Coreia e no Japão.

Sendo “agenciadores” do caminho ao nirvana, os bodhisattvas funcionam, em uma comparação bem precária, como os santos do Catolicismo, que, por sua própria história ou elementos ligados ao seu sacrifício, dão exemplos de como atingir o modelo salvífico de sua fé. Por exemplo, São Jorge representa o combate contra o mal; São Francisco, a interação com a totalidade das criaturas; Santa Inês, a pureza de intenções e assim sucessivamente. Sua iconografia se encarrega de fazer representar a cada fiel os valores a serem perseguidos para se chegar à vida eterna, no caso. Os bodhisattvas, cada um deles, fazem práticas de perfeição que são representadas para os seguidores através de suas manifestações artísticas. Avalokiteshvara, por exemplo, é representado com símbolos de compaixão, como o seu próprio nome, “aquele que olha para baixo”, no sentido de alguém que está acima de nós, mas que nos volta seu olhar, e também seus múltiplos braços, em atitude orante. Uma versão feminina é Tara, cujo valor apresentado é a ilusão na distinção entre o masculino e o feminino. Assim, através de elementos visuais estéticos, a história e as doutrinas do Budismo são contadas por seus ícones.

Detratores do uso da iconografia diriam que se trata de idolatria, mas não é sobre esse tipo de papo que trataremos aqui. O que podemos pensar filosoficamente é onde as imagens nos afetam. E podemos dizer que nós, pobres bípedes implumes, temos dois defeitos que a iconografia pode nos ajudar a mitigar. O primeiro se dá na questão do exemplo. Como temos, de certa forma, uma mente conservadora, que tem sua origem no instinto de sobrevivência, tendemos a coletar protótipos que deram certo, para que os sigamos com uma possibilidade menor de fracasso. Sendo assim, um exemplo de vida que já funcionou dá indicativos do que devemos fazer. A outra vem na formulação do modelo. Pela lei do menor esforço, é mais fácil para nós utilizar uma norma pronta do que a elaborarmos por nós mesmos. E com isso temos as duas pontas para laçar o nosso nó. Um exemplo e um paradigma facilitam sobejamente nossa linha de conduta, e é exatamente isso o que diz a disciplina mahayana a respeito dos bodhisattvas: estão aí para conduzir a humanidade e o restante do universo vivo para a santidade, e lança-se mão de objetos estéticos para representá-los. Não se trata de adoração, mas de utilização de elementos didáticos.

Isso tudo o que falei até agora pode ser uma boa hipótese para justificar a utilização de imagens, mas o fato é que a estética budista não se limita a isto. Rituais elaborados, com a utilização de inúmeros objetos litúrgicos, com uma forte carga dramática são práticas comuns, em especial no ramo praticado no Tibete e na Mongólia. Essa tendência se chama vajrayana e é uma variação dentro da prática mahayana. A sua principal proposta consiste em abreviar o número de encarnações necessárias para que um ser atinja a sua iluminação, já que o caminho do nirvana pode ser muito longo.

Os adeptos do vajrayana acreditam que a luz, para ser atingida em tempo mais conciso, não pode ser apenas racionalizada, mas sentida, respirada, vivenciada, experimentada. Isso porque, apesar do caráter racional do Budismo, não temos como nos dissociar da nossa via emotiva, e é preciso que justamente ela seja “domesticada” para a budeidade. É nesse contexto que entra o tantra, com a prática da yoga, dos gestuais e das encenações, em que um praticante assume o papel de um buda. Não se fica limitado a uma meditação à frente de uma imagem que represente um determinado objetivo, procura-se encarnar esse próprio objetivo, e, sendo assim, aproximar-se dele. Isso não se faz só com a mente, como quer a meditação, mas com o corpo e com todo o ambiente que está ao nosso redor. Sem eles, não é possível (ou não é fácil) sentir a budeidade.

Os ambientes destes templos são altamente elaborados justamente por causa desse envolvimento emocional exigido pela prática vajrayana. A arte budista é levada ao seu máximo ponto com elementos oriundos do thangka, a principal escola pictórica utilizada, que preenchem tapetes, paredes e bandeiras. Além disso, todas essas obras de arte vieram de uma tradição com objetivo mais político, que é a de educar os peregrinos e mercadores que passavam pelos mosteiros. Muitos deles eram analfabetos, e a utilização das imagens era plenamente didática. Mantendo a comparação com o Cristianismo, este expediente também foi muito utilizado em igrejas medievais, com vitrais e pinturas contando histórias do evangelho ou dos santos padroeiros para soldados e lavradores incultos (e mesmo para nobres).

Tudo isso é muito belo, como pudemos ver no Templo Odsal Ling, e, de certa forma, aponta para o problema inicial, mas a própria liturgia se encarrega de demonstrar o contrário. Um dos rituais mais interessantes é a construção de mandalas de areia, que podem demorar horas. Como na arte thangka, são pintadas na mandala budas e bodhisattvas com fins meditacionais, e são mantidas pelo tempo de duração de uma determinada cerimônia, para depois serem completamente desfeitas. Apesar da beleza, as mandalas são destruídas exatamente para representar a transitoriedade de toda a natureza que nos cerca, o que desmistifica a ideia de que todo o aparato estético possa se destinar a aumentar nosso enclausuramento ao mundo.

Pode até não se destinar, mas acaba acontecendo? Pode ser que sim. Por este motivo que não dá para visitar um templo budista sem ter um mínimo de conhecimento dos seus significados. Um templo desses não é bonito como um bibelô na estante, mas como a preconização de um mundo melhor. A beleza, no caso, deve ser subjacente à sua filosofia religiosa, e não à sua mera objetivação artística.

Em resumo, foi muito bom vir aqui. Em breve eu volto à temática budista, porque no mesmo dia fui com a galera para outro templo, a uns quinze minutos de distância. Até lá e bons ventos a todos!!!

Recomendações:

Obviamente, começamos pelo próprio templo:

Templo Odsal Ling – Rua dos Agrimensores, 1461 – Cotia/SP, a 30 Km da Capital.

Estando por lá, adquiri um livro composto pelo próprio lama fundador, que é bastante esclarecedor sobre as sutilezas da tradição vajrayana e do próprio Budismo em si:

RINPOCHE, Chagdud Tulku. Os portões da prática budista. Porto Alegre: Rigdzin, 2000.

Por fim, já que mencionei o bodhisattva Avalokiteshvara, tenho um livro em forma de tabuinhas contendo alguns sutras (ensinamento em forma de oração) que a tradição lhe imputa a autoria. Para ler em momentos de calmaria.

YÜN, Hsing (Venerável Mestre). Sutra Coração da Prajña Paramita. Sutra Lótus – Capítulo Habilidade Universal do Bodhisattva Avalokiteshvara. Cotia: Zu Lai, s. d.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (30 – Pedagogia)

Olá!


Rumo célere à faixa dos 50 anos. Isso significa que minha vida útil letiva se iniciou na década de 70. Por aquela época, eram comuns as escolas das Comunidades Eclesiais de Base, mantidas pela CNBB, tocada por sua vez por Dom Paulo Evaristo Arns, cuja ação transpunha muito o âmbito da sua religião. Baratíssimas, essas escolas eram uma opção à falta física de estabelecimentos públicos de ensino básico. Sim, estou falando de São Paulo, já então uma das cidades mais populosas do mundo. Imagino que deveria custar algo em torno de 50 das atuais moedas tupiniquins, e se destinava a filhos de proletários, que não podiam nem sonhar em frequentar as caríssimas escolas tradicionais da igreja católica. As CEB’s eram, portanto, uma iniciativa quase inédita de se olhar para os mais pobres. Luxo não havia, apenas o grande espaço por detrás da paróquia, com um picadeiro para as crianças menores e playground para os mais taludinhos. Para ser baratas deste jeito, os custos precisavam ser baixos. Normalmente, ofereciam do Jardim da Infância à 4ª série, o que correspondia ao antigo primário. Isso porque a exigência no caso era de um professor por sala, o que, se a memória não me trai, dava um corpo de seis professores, coordenados pelo vigário padre Antônio, também ele docente. Néli, Amélia, Marlene... Lembro dessas três. Turno da manhã e da tarde e era simples assim – nenhuma revolução pedagógica, mas um serviço sem preço que pouca gente lembra. Uns, porque achavam que escola de igreja era coisa doutrinadora; outros, porque pensavam que a igreja tinha que se ocupar de almas, e não de aulas.

O fato é que, com sua truculência e indigência intelectiva habituais, o governo militar resolveu a coisa. Foi tornado obrigatório que toda escola de 1º grau oferecesse a grade completa, que ia da 1ª à 8ª série. A partir da 5ª, cada disciplina deveria ser ministrada por professor próprio. A alegação era que os alunos deveriam poder cumprir todo seu ensino fundamental em um só lugar. Digamos que houvesse sinceridade nas pretensões governamentais (no que eu não creio), mas ela serviu direitinho para matar o modelo da CNBB. A cruel derivação desta política foi colocar as escolinhas de CEB’s num beco sem saída. Uma escolinha como a do padre Antônio precisava de muito pouco: umas oito salas bastavam. Já para manter um 1º grau inteiro, precisaria dobrar as construções, preparar uma quadra de Educação Física, um laboratório de Ciências e contratar muitos professores especializados. Não seria possível cobrar cinquentinha para manter toda essa estrutura, e, assim como a dele, muitas escolinhas de CEB morreram, no máximo abrigando creches ou pré-escolas. Foi exatamente esta virada que eu peguei.

Apesar do incremento de alunos e da escassez de vagas dar medo, fui para uma escola estadual, enorme, de fato bem estruturada, com duas quadras, pista para saltos, área de merenda, salas amplas e demais quitutes. Tudo em processo de destruição, é bem verdade, mas o prédio estava lá e, afortunadamente, era bem próxima de casa. A rotina diária antes do início das aulas era muito mais complexa que o sinal-da-cruz-padre-nosso-ave-maria-sinal-da-cruz típico dos católicos da escolinha do padre Antônio. Na escola pública, toda a patuleia se agremiava no pátio maior, aguardando o toque da primeira cigarra. Nesse momento, as classes começavam a se agrupar por filas, sempre uma de meninos e outra de meninas, em ordem de tamanho do infante. Ao segundo toque, era exigido silêncio absoluto. Aqueles que ainda não estivessem compostos, enfileirados e vestidos em seus aventais iriam se ver com o diretor, seo Toninho. Aparadas as arestas, as filas, duas a duas, eram conduzidas pelos bedéis até o pátio superior, onde ficavam os mastros e o aparelho de som, que vivia quebrado. Quando as últimas oitavas séries se perfilavam, três alunos eram escolhidos a esmo para puxar a cordinha que hasteava as bandeiras do Brasil, de São Paulo e da escola, enquanto o som do Hino Nacional era reproduzido em tom de taquara rachada na vetusta caixa acústica e nas gargantas mal treinadas de alunos e professores, muitas vezes a capella. Findo o ato cívico, os alunos davam meia-volta à ordem da inspetora-chefe e seguiam para suas salas, ainda em fila. Era dessa forma que aprendíamos a amar a pátria, com ordem unida e passo de marcha.

Em uma, mesas espalhadas pela sala em uma caótica alegria; em outra, as filas rigorosas de mesas alinhadas, que pretendiam garantir a ordem para obter o progresso, com sucesso incerto. Métodos distintos e resultados idem. Por que estou contando todas essas histórias? Para que tenhamos uma impressão inicial de que há uma imensa quantidade de circunstâncias que cercam o ensino, e que, de uma forma ou de outra, vão influenciar nos processos de aprendizagem. O que é melhor para que estes se desenvolvam? A informalidade da escolinha do padre Antônio, o rigorismo do escolão ou outro sistema? O ensino se basta ou é só mais um dos componentes da formação educacional? Os processos educacionais dependem unicamente do contato com o conhecimento ou todo o ambiente influencia no aprendizado? São perguntas que se lançam para a Pedagogia.



Em um primeiro momento, vamos diferenciar a Filosofia da Educação da Pedagogia. E não é tarefa das mais complexas. A primeira diz respeito à análise dos processos cognitivos que conduzem ao aprendizado, e sua relação com a conformação da sociedade. Já a Pedagogia se preocupa com os métodos de ensino, as ferramentas educacionais e sua adequação a diferentes perfis estudantis. Ou seja, uma é mais especulativa; outra, mais técnica. Envolvem temas amados por políticos, que vivem falando que vão cuidar da educação. É que os processos educativos hoje em dia são tão naturais que muitas vezes esquecemos de pensar neles em si mesmos. É como fazem os candidatos à eleição: a cantilena educação, educação, educação, educação-prioridade, educação-investimento, educação-solução, educação-cidadania, educação, educação, educação é uma mera falácia quando não sabemos exatamente sobre o que estamos falando, conforme já expus neste texto. Antigamente, tínhamos um problema grave da escola como espaço físico mesmo. A disponibilização das vagas, no entanto, não resolveu a questão. Isso tudo porque o papel da escola extravasa a função de ensinar, e a educação vai muito além disso.

O homem, em seu estado natural, tirou muita vantagem da sua faculdade de aprender. A retenção e a transmissão de conteúdos se mostraram eficazes para que os pequenos grupos comunitários pudessem manter e melhorar os sistemas que lhes permitiam crescer com mais desenvoltura que o restante dos membros de seus biomas. No entanto, na medida em que se aperfeiçoavam as técnicas, mais e mais complexas se tornavam as relações sociais. Por esse motivo, o aprendizado foi abandonando suas funções meramente pragmáticas, de objetivar a sobrevivência, para garantir que as relações interpessoais e coletivas atingissem um patamar mais elevado, considerando também não só um estar, mas um bem-estar. Com isso, a educação deixa de ser uma mera aprendizagem de técnicas para se tornar a ferramenta de ampliação intelectiva.

Até aí, podemos pensar em transmissão de conhecimentos, mas em que momento se passou a institucionalizar uma função escolar, ou, melhor dizendo, a especialização da tarefa de ensinar? Em que ponto da nossa história a Filosofia volta seus olhos para os processos de Educação? E como eles são sistematizados para seguir o objetivo de ensinar?

Nos antigos gregos, floresce a noção de Paideia, a formação global do ser humano a partir da infância. Essa é a origem mais remota do termo Pedagogia, que significa “ensino de crianças” (paidós – criança + agogé – condução). Tendo como referência seus ancestrais, e como modelo seus heróis (principalmente próceres sociais e deuses mitológicos), buscava-se ensinar às crianças a perfeição da cidadania: bom cidadão era aquele útil para o seu meio social. Por isso mesmo, a educação era pensada de forma a abarcar até mesmo atividades físicas, para que o cidadão gozasse de boa saúde para o momento em que o Estado precisasse de seus bons préstimos. Platão entendia que o ponto ideal da cidadania se encontraria na exata avaliação dos momentos de mandar e de obedecer. Esse exercício não se dá sem uma ideia arraigada de justiça, que deveria ser a base de toda a educação. Talvez hoje em dia divirjamos nos métodos, mas me parece que a noção de cidadania não escapa muito disso.

No entanto, a maneira como os gregos tratavam da educação em nada se parece com os conceitos escolares que temos modernamente. Aliás, no desenvolvimento histórico da Pedagogia pudemos observar algumas variações nos focos educacionais e na maneira como o Estado se envolve com a questão, mas o fato é que, uma vez consolidado o modelo onde o professor tem a centralidade na relação didática, estabeleceu-se uma tradição que ainda perdura, e metodologias alternativas só foram surgir com mais relevo a partir do século XX. Esse desenho em que há um personagem expondo conhecimento e alunos como registradores é o que chamamos de pedagogia tradicional, cuja principal característica é a fixação dos conteúdos, que são absorvidos de um jeito mais passivo: questionamentos geralmente são circunscritos à própria matéria que está sendo trabalhada.

Há muitas críticas a esse modelo, que costumamos aceitar bem por osmose. Como a maioria de nós foi educada desta forma, tem-se a sensação de que a mesma funciona. A resposta é: mais ou menos. Para quem está em uma faculdade, ok. Já há uma busca grande por objetividade, e este modelo é pá-pum. Mas isso funciona bem com crianças, que não têm um foco fechado e um patrimônio sofisticado? A escola tradicional, apesar de algumas verdadeiras virtudes, não é muito estimulante. Como os objetivos são fixos e os caminhos para chegar a eles também, progressivamente a coisa cansa. Basta que se pense: quantas vezes, você que me lê, ficou de porre na hora de ir para a escola? O nível de absorção do conhecimento em um dia desses tende a zero. Só que o sentimento se arrasta por dias e dias e dias... Tendo esse fator em vista, uma série de educadores passou a se ocupar com novos modelos de ensino, e de cem anos para cá muitas vertentes se abriram no horizonte educacional. Vou mencionar algumas.

Já nos séculos XVIII e XIX, uma preocupação com a reforma da sociedade através da educação começou a pontear pela Europa. A ideia de liberalismo então reinante via a liberdade mais como um meio para fundamentar as riquezas acumuladas do que como um direito essencial e universal do homem. Esse sentimento é replicado até os dias de hoje, quando uma camada significativa dos componentes sociais e políticos entende ser a meritocracia a forma mais basilar desta liberdade. Apesar de isso representar um aumento nas diferenças entre as classes sociais, tivemos o efeito colateral parcialmente benéfico de se entender que a educação precisava considerar os alunos em sua individualidade. O conteudismo típico das vertentes tradicionais vai sendo aos poucos contestado por uma abordagem que se propunha mais adequada ao status psíquico infantil, sempre tendo em mente as diferenças individuais de cada um.

Antes disso, no entanto, filosofias políticas e sociais marcantes traçaram seus itinerários sobre a educação. O Positivismo enfatizava a necessidade de se transformar qualquer tipo de visão metafísica em científica, e, para tanto, uma aplicação mais pragmática se fazia necessária, com a introdução de noções científicas e abolição de disciplinas filosóficas e religiosas. Como os positivistas entendem ser normal que uma determinada classe sobrepuje as demais, a educação não teria o condão de ser uma ferramenta de transformação social. 

Visão absolutamente contrária tinham os pensadores marxistas, que visavam 
uma democratização radical do ensino, que deveria ser promovido pelo Estado para que fosse distribuído igualitariamente. A escola não poderia ser um divisor de classes, em que a uma camada mais empobrecida fosse destinado apenas o conteúdo técnico, enquanto a uma classe dirigente seria reservado toda a educação intelectual.

Mas é a partir do finalzinho do século XIX que a Pedagogia recebe uma quantidade exponencial de novas propostas, incluindo não só os conteúdos ministrados, mas, em especial, as estruturas da transmissão do conhecimento. Refletindo as profundas mudanças sociais em curso, modelos mais flexíveis e recursivos começaram a ser experimentados. A corrente renovadora, mais conhecida como Escola Nova, abrangeu um leque de pedagogos que deram ênfase ao processo de aquisição de conhecimento por descoberta, e não imposição de conteúdos. Estes autores confiam na atitude de aprendizagem consensual implícita no grupo, ou seja, de que o interesse tenha um aspecto social. Nesse panorama, o professor deixa de ser um provedor para ser um organizador daquilo que os alunos buscam conhecer. A Escola Nova traz um aspecto democrático para a sala de aula, de modo a reproduzir valores sociais no meio estudantil. A reforma do espaço da sala de aula, a utilização de materiais manipuláveis para o aprendizado por contato (e não meramente teórico), o entendimento de que a exacerbação da disciplina sufoca a espontaneidade, o uso das recentes descobertas da Psicologia Cognitiva e a compreensão de que o centro da relação de ensino-aprendizagem está no aluno são algumas das características em comum de uma gama bastante extensa de autores, que também possuem suas peculiaridades, o que dificulta fazer um escopo definitivo da corrente. A vinda de novas tendências pedagógicas, que veremos mais adiante, não cessou o uso de todos esses axiomas até os dias de hoje, o que ainda a coloca como um objeto em transformação, o que, no fundo, é mesmo o seu substrato.

Em meados do século XX, fortemente influenciada pelo pensamento existencialista-fenomenológico e pela psicanálise freudiana, surge a vertente antiautoritária, também chamada de Escola Livre. Segundo o pensador austríaco, todo o aparato psíquico de um ser humano seria resultante dos moldes pelos quais ele passou em sua infância. De acordo com sua teoria das instâncias psicológicas, a consciência de uma pessoa é impulsionada pelo instinto e refreada pelas paredes morais, a quem ele chamava de superego. Esses limites inconscientes são, primariamente, incutidos pelos pais, que dizem à criança o que ela pode e o que não pode fazer. A partir do momento em que esta se insere na educação formal, outro mecanismo psíquico é colocado em ação, a transferência. Neste, a criança identifica o educador com o pai, e imputa a ele o mesmo papel na relação disciplinar. Desta forma, a alimentação do superego continua, e tende a perpetuar a sensação repressiva, desfavorecendo os processos de aprendizagem. O que os pensadores antiautoritários propõem é a substituição da prática pedagógica repressiva por uma sistemática que não faça os alunos reprimir seus impulsos naturais. A desvinculação com a figura da autoridade inclui todos os aspectos possíveis em sala, incluindo hierarquia religiosa, civil e militar. Estes pedagogos acreditavam em uma espécie de disciplina natural, que não era baseada em autoritarismo, mas na compreensão progressiva do funcionamento dos mecanismos sociais. Essa compreensão se daria na base dos limites estabelecidos à própria liberdade pela liberdade do outro, sem a espada de uma autoridade por sobre a cabeça. Desta forma, não há que se falar em uma educação anárquica, mas autorreguladora.

Embora as vertentes tenham trazido um arejamento na sistemática escolar, enfatizando o papel do aluno na relação do aprendizado, o fato é que suas ideias conviveram com um fator muito preponderante: as duas guerras mundiais e seus sucedâneos, como as guerras da Coreia e do Vietnã, das violências no ressurgimento do estado de Israel e nas revoluções coloniais da África e da Ásia. Dessa forma, o pensamento pedagógico deixou de lado a centralidade meramente educacional e passou a olhar fortemente seu aspecto político. Essa é a tendência conhecida como Escola Crítica, que procurou demonstrar o quanto o ambiente educacional reproduz a própria sociedade. Alguns de seus pensadores eram marcadamente marxistas, de forma que sua pesquisa assumiu o conceito de luta de classes, especialmente detectando as mesmas diferenças de educação para as classes burguesas e proletárias. Além disso, esta última seria vítima da violência simbólica da imposição de uma cultura dominante, que, no final das contas, teria na escola seu principal meio de inoculação. Entendem que a educação deve ser marcada pela cultura do grupo com o qual se trabalha. A compreensão do mundo e da realidade se dá de maneira muito mais eficaz a partir das experiências vivenciadas concretamente, de modo a se partir para conteúdos mais abstratos unicamente após uma fase de maturação. Muitos dos pensadores da Escola Crítica são oriundos de nações anteriormente colonizadas, porque, pela primeira vez, uma corrente do hemisfério norte se encontra com os ideais libertários do terceiro mundo.

Eu poderia citar ainda muitas outras vertentes do pensamento pedagógico, mas este texto não é um livro, não é algo acadêmico, e só tem o propósito de oferecer uma pálida ideia do que é essa tal de Pedagogia. Percebam que não citei autores específicos, nem me aprofundei muito em nada. Para tanto, achei melhor fazer a seguinte

Recomendação de leitura:

GADOTTI, Moacir. História das Ideias Pedagógicas. São Paulo: Ática, 2003.

É um belo manual de referência com relação às diferentes tradições educacionais, simples, direto e com boa escolha de textos. Bons ventos a todos!!!

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (29 – História da Filosofia)

Olá!


Muito embora eu já houvesse passado há muito tempo da juventude, ainda havia em mim um bom tanto de idealismo quando entrei na faculdade de Filosofia. Eu já sabia que pesquisar ou ensinar não seriam provavelmente minhas atividades principais, mas um troco extra dando aulas à noite ou escrevendo artiguinhos não seria nada mau, especialmente em tempos sombrios como os que vivemos hoje.

Uma das obrigações concorrentes do curso era a prestação de um longo estágio, que incluía análise de plano gestor, projeto político-pedagógico e atividades de sala de aula, com observação, participação e regência. Nas duas escolas em que estagiei, o começo foi o mesmo: sentar no meio da trupe como se um aluno fosse, e acompanhar o professor no exercício de sua arte. Dava dó, em boa parte. Alguns dos alunos dormiam, outros conversavam em volumes crescentes, e uns poucos abnegados prestavam real atenção aos esforçados docentes.

Isso me incomodava um bocado, mas eu tive que relembrar dos tempos de eu-estudante-secundarista, e resgatar meu desinteresse por um monte de disciplinas. Mas também tive um despertar da autocrítica enquanto parte da minha consciência de (futura) classe. As aulas de Filosofia eram tratadas como se fosse uma espécie de História II, começando com os pré-socráticos e chegando aos nossos dias. Até mesmo para mim a coisa era meio pesada, porque via no miúdo coisas que eu estudava mais profundamente na faculdade, tornando a aula arrastada. “Quando chegar meu momento de reger, vou tratar do assunto de maneira mais dinâmica, abordando temáticas, e não uma enxurrada de autores ligados pelo fio histórico”, era minha intenção.

Chegado tal momento, o meu supervisor de estágio mandou-me preparar os planos de aula, dando a mim liberdade para optar entre a continuidade ao seu trabalho ou o tratamento de algum tema lateral. Achei que tinha chegado a chance.

Quando eu sentei na mesa da cozinha de casa para rabiscar as linhas gerais do meu projeto de aula, começaram os problemas. Tamborilando com a caneta sobre meus lábios e olhando para o picumã que pendia do cantinho do teto, comecei a traçar um plano que sempre travava no mesmo ponto. Se eu quisesse falar de ética, teria que começar em Sócrates; se quisesse falar de conhecimento, iria começar ali também. Se eu pensasse em metafísica, teria que ir antes ainda. Se apelasse para a estética, começaria de Platão. Mesmo que eu fosse tratar de assuntos atuais, eu começava a fazer o retrocesso mental: “Isso vem disso, quem antes vinha daquilo, e que mais anteriormente vinha do outro”, em uma linha de eterno retorno (nada a ver com Nietszche). 

Mudei de estratégia. E se eu falasse do painel político de então? Já vivíamos em tempos de polarização, e seria inevitável tocar em temas como liberalismo e marxismo. Mas como eu falaria em Marx sem citar Hegel, e como falar de Hegel sem mencionar Kant, e como tratar de Kant sem conhecer Descartes e Bacon? Como falar de liberais sem mencionar os filósofos da Revolução Francesa e do contratualismo? É possível fazer isso, mas sem substância nenhuma, e esse não pode ser o objetivo de um professor. De achismo, o mundo está cheio, vitaminado por uma internet que mais confunde do que ajuda. Ao contrário do que dizem aqueles que tanto desmerecem a classe, o professor tem o dever moral de ser um lastro para onde possamos correr nos momentos em que nos crivamos de dúvidas.

Não foi propriamente um momento de desânimo, mas uma espécie de reconhecimento. Não temos como fugir da História, e é dela que devemos extrair nossa matéria-prima. Se queremos ensinar temáticas, é preciso ter o eixo histórico como rotor e, a partir dele, fazer florescer os diferentes temas. Para ensinar Filosofia, é preciso conhecer essa tal de História da Filosofia, e é sobre isso o que falaremos agora.



Se pensarmos em qualquer atividade humana, observaremos uma linha condutora de suas transformações. Traçando a história do futebol, por exemplo, vamos encontrar a milênios a prática do episkiros grego, do harpastum romano, do kuju chinês, do kemari japonês, os vetos na Idade Média e a modernização no século XIX, com a formalização de regras que o tornarão já muito semelhante à sua forma atual. No entanto, com a Filosofia a linha não é tão reta. O perfil cultural de uma época sempre é sentido em uma prática, mas, como a Filosofia está intimamente ligada ao cerne do pensamento humano, é possível perceber que sua flutuação está sempre colada aos acontecimentos históricos, muitas vezes até mesmo os precedendo. Por este motivo, podemos notar que sua evolução e divisão temporal é muito semelhante ao que os historiadores atribuem à História Geral.

Quando pensamos em uma História da Filosofia, devemos fazer um mea culpa e reconhecer nosso eurocentrismo, mas não se trata unicamente de uma questão de primazia da cultura ocidental, e sim de preservação de fontes seguras. Sabemos da existência de filosofias africanas e asiáticas altamente elaboradas, mas ou elas são muito fragmentárias no registro, ou são predominantemente orais, ou fundeiam menos nossa cultura predominante do que a origem grega. Esses são alguns dos motivos pelos quais nossas academias dão relevo maior a esse ramal. Não concordo substancialmente com essa conduta, mas é o que tem para a janta.

Assim como a História Geral, a Filosofia tem também sua pré-história. Os tempos inomináveis já marcavam a necessidade de que o homem satisfizesse sua sanha de saber. Acontece que não é tudo que está ao alcance de nossas mãos, e é no campo da suposição que estes antigos contribuintes operavam. No mais das vezes, coisas grandiosas exigiam causas grandiosas, e dessa lógica aparentemente simplista aparecem narrativas verdadeiramente complexas, onde deuses e entidades metafísicas intervêm no cosmos para torná-lo o que ele é. É a Mitologia, não exclusiva dos gregos, mas de todos os povos.

A História da Filosofia principia de fato quando há um ponto de inflexão na estrutura do pensamento. Tudo começa quando a mitologia grega e os mistérios órficos deixam de dar conta das dúvidas e aflições dos homens, e os pensadores passam a buscar as causas no próprio cosmos. O poder subjacente ao ciclo de causas e consequências não está mais em uma divindade, mas no logos, a razão humana que se entrega à Lógica. O primeiro a fazer isso que se tem registro é Tales, que buscava a arché, como expliquei em detalhes neste texto. Sendo uma busca pela constituição universal, esses primeiros pensadores foram conhecidos como filósofos da physis. No entanto, em termos de História, são mais conhecidos como pré-socráticos, os inauguradores da Filosofia Antiga.

Ainda no âmbito da Filosofia Antiga, as mudanças na polis grega fez surgir a primeira grande guinada da Filosofia. Os sofistas e Sócrates deslocam a análise do cosmos para o homem, fazendo surgir o antropocentrismo tão característico da Filosofia Clássica, o momento de máximo esplendor do pensamento grego, por onde ainda militariam Platão e Aristóteles. Na esteira destes mestres, surgem os filósofos helenistas, que aprofundam a discussão ética e elaboram códigos de conduta para a busca da eudaimonia. São os estoicos, os epicureus, os cínicos e os céticos, entre outros. Como já abordei todos, recomendo que vocês acompanhem os links para saber mais.

O curso da História, neste momento, fornece subsídios para uma viragem na Filosofia. O Cristianismo que vivia oculto nas catacumbas torna-se a religião oficial do Império Romano, hegemônico naqueles dias, e, com isso, seu modo de pensar ganha liberdade e preponderância. Os conflitos éticos até então discutidos perdem a relevância, uma vez que todas as suas respostas estão contidas na moral cristã. As discussões passam a ser voltadas para as relações com o deus monoteísta, uno e trino na concepção cristã, e no modo como a religião é reflexo da vontade divina. É a ascensão do teocentrismo. Mais do que uma Filosofia da Religião, a investigação intelectual se transforma em uma Teologia.

Embora a Idade Medieval da Filosofia não seja tão monotemática quanto se reputa, como já explanei aqui, o fato é que a discussão teológica foi o principal tema dos filósofos de então. Duas grandes vertentes se sucederam no entendimento filosófico-teológico deste longo período: a patrística de santo Agostinho, calcada no platonismo, e a escolástica de são Tomás de Aquino, que trouxe as ideias aristotélicas para o terreno do Cristianismo.

A Filosofia Medieval perdurou por muito tempo, mantida substancialmente nos mosteiros, conventos e abadias, enquanto nos feudos em geral corria a vida mundana, com pouco espaço para o conhecimento que não fosse prático. Entretanto, a tomada de Constantinopla pelos turcos e o consequente ciclo de grandes navegações levou a Europa a uma mudança cultural sem precedentes. A importação de produtos desconhecidos, a coleta de animais e plantas inimagináveis e os relatos dos nautas sobre culturas improváveis sacudiu os ditames da Igreja e trouxe novos questionamentos e algumas respostas. Em seu interior, pensadores como Roger Bacon, Guilherme de Ockham e Roberto Grosseteste, ou fora dela, gente como Galileu Galilei e Giordano Bruno, ainda no fim da Idade Média, já começaram a se descolar do teocentrismo, mas é com Nicolau Maquiavel no campo da política que novamente o homem volta ao centro dos debates. Um retorno artístico e cultural à Antiguidade Clássica e o ressurgimento do pensamento científico, que os historiadores denominam de Renascença, dão começo à Filosofia Moderna.

Dois filósofos em especial dividem os rumos da Teoria do Conhecimento. René Descartes dá primazia ao raciocínio inato e funda o Racionalismo, enquanto Francis Bacon prefere a experiência e faz renascer o Empirismo. Ambas as correntes puxam inúmeros seguidores: Pascal, Leibniz, Espinoza de um lado; Locke, Hobbes, Hume do outro. Essa divisão e seus consequentes debates (por vezes acalorados) perdurará até a epistemologia kantiana, que modifica a compreensão que se tinha sobre a razão e dá um novo rumo à temática.

Grandes descobertas no campo científico são concomitantes a uma espécie de libertação das consciências do jugo dogmático dos sistemas político-religiosos representados pelas aristocracias. Ainda no âmbito da investigação humanista, o Iluminismo passa a mirar o homem como ser político. Este movimento quer soltar o homem das amarras da monarquia e do misticismo religioso, constituindo um fortalecimento do indivíduo. Vai desembocar na Revolução Francesa, e, a partir daí, o leque filosófico vai se desdobrar como nunca aconteceu antes. A transição para a Filosofia Contemporânea conta com o idealismo alemão que culmina com a fenomenologia do espírito de Hegel, que influencia diretamente Karl Marx e Friedrich Engels. Os voluntaristas reerguem a temática ética com Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche. O Positivismo que é inaugurado por Comte tenta conduzir todo conhecimento para a via da Ciência, e muitos dos debates que se davam no contexto da Filosofia acabam sendo especializados, como a Antropologia, a Sociologia e a Psicologia.

Já no século XX, novas escolas procurar rever a Metafísica, como a fenomenologia de Husserl, a evolução criadora de Bergson e o existencialismo de Heidegger e Sartre, dentre outros. O marxismo sai da esfera revolucionária e vai motivar autores como Gramsci, Lukács e a Escola de Frankfurt. O foco da pesquisa filosófica passa a ser mais cada vez mais diversificado, incluindo pesquisas sobre a linguagem, o ambiente e a mente. E por aí vamos seguindo por novos caminhos, esperando para ver no que podemos ajudar daqui por diante.

Eu gostaria de fazer uma observação rápida. Temos visto nos últimos tempos uma forte movimentação no sentido de desqualificar os meios acadêmicos como repositórios do conhecimento, o que é bem visível nos ataques à Ciência feitos por teorias da conspiração. O que está no bojo de maluquices como terra plana, vacina autista e água alcalina é a incapacidade da academia em se comunicar com os leigos. Isso não vale somente para a Ciência, mas para a Filosofia também. Tornamo-nos tão herméticos e autossuficientes que esquecemos de que o público em geral não capisce un’accidente do que se fala no jargão. Às vezes, esquecemos de que nosso papel não é só pesquisar e produzir conhecimento, mas traduzir seus significados, senão continuarão a surgir charlatães que tão bem conhecemos e que, por saberem usar muito bem a linguagem a seu favor, conseguem fazer suprimir aquilo que levou anos, décadas e séculos para ser desenvolvido. E esse pessoal pode até mesmo se aproximar perigosamente do poder. Aí, nosso grito não valerá mais nada. A História ensina, é bom aprender.

Para finalizar, acho que alguém pode ter ficado curioso em saber como resolvi a questão do meu primeiro plano de aulas posto em prática. Pois bem, como nosso caro professor Arnaldo estava abordando Nietzsche, resolvi usar esse meu fenômeno epifânico e fui buscar as raízes budistas da vontade, passando por Kierkegaard e Schopenhauer. Modéstia à parte, ficou bem instigante e consegui um pouco de atenção da audiência, comprovado pela quantidade de cabeças que se encontravam erguidas. Pensando bem, vou explorar a questão aqui no blog, e é para logo. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

Para quem se interessa por qualquer tema, é sempre bom ter um manual respeitável para dar algum tipo de base. O que eu tenho no meu criado-mudo é o seguinte:

ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 1990.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Navegações de cabotagem – A Rota do Vinho de São Roque e a verdade que reside no vinho, ainda que não percebamos

Olá!


Embriagai-vos! De vinho, poesia ou virtude…
Baudelaire

Vocês gostam de vinho? Eu não sei se eu gosto. Pelo menos não no sentido que afirmariam os enólogos, de todo o cerimonial que acompanha a degustação do líquido, que exigem temperatura e acompanhamento certos, tempo preciso para abertura da garrafa, velocidade justa da absorção e outros que-tais. Por este ponto de vista, sou um legítimo representante do povo, e digo se gosto ou não de um vinho se ele me agrada ao paladar. Isso posto, dei uma olhada na adeguinha de doze garrafas que tenho na sala e a vi vazia. É muito triste quando um móvel não cumpre sua função, e, por isso, fui consultar a carteira para delinear o horizonte. Não dava para ir para a Borgonha, mas era possível ir a São Roque. Então vamos.

Para uma turnê etílica, é sempre importante levar consigo algum motorista abstêmio ou que goste mais de dirigir do que de beber. É exatamente o caso do meu quase-sobrinho Santiago, a quem lanço mão frequentemente nessas situações. São Roque é um lugar que eu frequento desde que comprei meu primeiro carro, um claudicante Fiat Rally 78 que não permitia viagens muito extensas, dado o avanço de sua idade e sua manutenção que flutuava entre o precário e o minimamente aceitável. Hoje em dia, o meu carro é um pouco mais seguro, mas o propósito continua o mesmo: percorrer a Rota do Vinho e passar em todas as vinícolas, comprando ao menos uma garrafa em cada uma delas.

Mas o que é a Rota do Vinho? É uma estradinha de mão dupla, bastante estreita, na beira da qual se estabeleceu a produção e o comércio dos vinhos produzidos pelos italianos que colonizaram aquela região.


Não há mais tantos parreirais quanto outrora, mas ainda é possível encontrar um ou outro para entender como é. Não são todas as uvas que dá para chupar. As uvas para vinhos finos, por exemplo, são de casca mais grossa e bagos pequenos, e seu sabor é muito diferente daquelas uvas que compramos na feira, sendo que estas últimas são capacitadas para produzir os chamados vinhos de mesa.


Às vezes eu esqueço que quem me lê nem sempre é de São Paulo. A cidade de São Roque pegou a fama de terra do vinho em um tempo em que era possível conhecer todo o sistema de produção do líquido, de um modo direto. Algumas vinícolas cada vez mais deixaram de ter aquela cara de casa de fazenda e passaram a ser mais temáticas, além de explorar outros produtos. A Bella Aurora, por exemplo, tem decoração típica e um plantel de cachaças muito interessante.


A maioria das vinícolas de São Roque se agrupou nas margens dessa estrada que ficou conhecida como Rota do Vinho, que era toda de terra há tempos atrás. Com generosidade, podemos dizer que ela tem o formato aproximado de uma ferradura, pois é possível começar e terminar seu percurso pela rodovia Raposo Tavares, ladeando a via férrea da região. Pelo seu ramal principal, começamos pela adega Terra do Vinho e terminamos com a vinícola Palmeiras, que tem como diferencial produtos cosméticos à base de vinho. Nesse caminho, passamos por Frank, Santa Cecília, Bella Quinta, Palmares, Góes e outras que citaremos mais adiante.


A maioria das vinícolas expandiu seus negócios de modo a tornar São Roque não somente um conglomerado de adegas, mas também um polo gastronômico, agregando um pacote de atrações completo. Uma das vinícolas que mais se transformou de uns anos para cá foi a Canguera, cuja entrada do restaurante vemos abaixo.


No espaço onde antes tínhamos um terreno com as plantações, pouco acessíveis a visitantes, foi construído um espaço múltiplo de lazer, para que adultos engordem e crianças brinquem...


... e que aprendam como é uma videira.


O tempo estava muito oscilante, e aproveitamos essa parada para provar um pouco da (caríssima) culinária local antes de buscar um almoço completo, enquanto a garoa molhava nossos cabelos. Nenhum susto para alguém da Pauliceia.


O que nós fomos mastigar é uma outra tradição da cidade, o pastel de alcachofra. Estas flores não tem bem o aspecto estético de uma rosa, principalmente porque são colhidas antes da floração completa, mas possuem um sabor sui generis e vão bem com um vinho.


De uns tempos para cá, não vemos mais as colheitas e processo produtivo, tão comum em outros tempos. Para satisfazer a curiosidade dos visitantes, as várias vinícolas disponibilizam museus e exposições contendo um pouco das suas histórias.


Na Canguera, podemos ver vários equipamentos antigos, fabricados em ferro fundido, e também a evolução dos rótulos de seus produtos.


Há também em São Roque outras adegas e vinícolas que não estão na beirada da Estrada do Vinho, mas em bairros adjacentes, onde se encontram coisas bem interessantes. No Santa Maria, por exemplo, existe a Quinta do Nino.


É um lugar onde se vende a melhor jeropiga* da região, além de queijos e artesanato. Os diplomas dos prêmios na festa do vinho provam que é um dos estabelecimentos mais tradicionais da cidade.


Eu me lembro que, logo ao lado, havia outra adega, chamada Vinícola Maravilha, que foi encampada pela Quinta, o que multiplicou o número de seus rótulos. Vários dos produtos históricos ficam expostos em uma das estantes.


Assim como em outras casas, aqui também temos muito maquinário em desuso exposto para que o visitante aprenda um pouco sobre a produção do líquido. Esta geringonça abaixo é uma transferidora de mosto, que nada mais é do que o produto das uvas obtido após a prensagem.


Um ramal da estrada dá acesso ao bairro Sorocamirim, onde se localiza a vinícola homônima. Esta, com certeza, é uma das que mais se manteve à moda antiga, e tem um dos melhores vinhos, na minha humilde. É um lugar onde a gente pega um queijo na entrada e sai saboreando cada um dos rótulos, batendo papo com o taberneiro. Ainda lembro quando os vinhedos ficavam logo ao lado da loja, mas hoje eles ficam bem mais distantes.


Na mesma estradinha, um pouco antes, tem a vinícola XV de Novembro, mais no estilo balcãozão de venda, também com muitas provas e com um ótimo cooler, o que é considerado uma aberração pelos puristas.


Achar que a obtenção do mosto ainda é feita através de pisadas é um anacronismo. Já há muito tempo que as prensas mecânicas substituíram os deselegantes pezões dos vinhateiros, e hoje só temos este método aplicado em dias de festas.


Devidamente digeridos, os pastéis de alcachofra deram lugar à necessidade de uma refeição mais lauta. Fiz uma rápida revisão orçamentária para saber o tamanho do rombo já aberto e de quantos cartões de crédito eu precisaria usar para comer em plena estrada, com seus restaurantes caríssimos, e concluí que ainda dava para se atrever, se houvesse parcelamento. Fomos na Quinta do Olivardo, especialista em culinária portuguesa, onde nos foi servida uma alheira defumada com batatas...


... e uma espetada madeirense, composta por nacos de contra-filé que são assados em um galho verde de loureiro, o que lhe dá um aroma peculiar. É típico da Ilha da Madeira, ora pois, na parte insular de Portugal.


É uma casa bem mais nova que as demais, e quando eu comecei a vir para estes lados ainda estava longe de existir. Mas, a despeito do preço, a comida é boa e o lugar foi muito bem feito, e ainda possui uma ampla área que nos permite visitas, incluindo a réplica de uma capelinha dedicada a Santo Antonio, que seria, pelo que sei, a primeira igreja de São Roque.


A Rota do Vinho é um passeio particularmente bacana de se fazer em um domingo preguiçoso. Dá para passar por todas as vinícolas e adegas sem grandes correrias. Mas voltando à pergunta inicial, não sei se gosto de vinho. Eu gosto não só de passear em São Roque, mas também daquilo que eles produzem. Mas seus vinhos não guardam boa fama no meio dos entendidos. Alguns, cheios de dedos, dizem que carecem de complexidade, porque faltam taninos x e y, sobram outras coisas e o resultado não é exuberante. Outros, mais debochados, dizem que são zurrapas feitas de Tang© com álcool. Eu não sei dizer. Só sei que eu gosto do que encontro por lá.

Os tais dos vinhos complexos são coisas curiosas. Quando fiz bodas de prata, juntei os cobres e levei a patroa para um jantar de verdade, um bacalhau à Gomes de Sá com entrada de frutos do mar. Uma delícia, mas uma delícia cara, daquelas que só uma ocasião especial justifica (ou uma renda de nababo, o que não é o caso). Não ia botar uma Coca© zero para acompanhar tão nobre peixe, não é mesmo? Então fui na carta de vinhos, cujos preços se equiparavam ao do prato principal. Diante daquela geleia de letras e números, senti-me como um arco de barril: completamente por fora. Pedi o apoio do especialista, que falou que o vinho isto tem aquilo, que o vinho aquilo tem isto, taninos, taninos, taninos, aroma e complexidade. Fiquei com a primeira sugestão, um vinho português que casa bem com peixes, segundo o precitado sabedor. O garçom abriu a garrafa na minha frente e me deu um trisco para provar. Ao contato, o líquido repuxou toda minha boca para dentro, como se formasse um vácuo. Não era propriamente um sabor azedo ou de estragado, mas uma sensação estranha. Devem ser os tais de sabores complexos. Evidentemente, não desci do pedestal e disse que estava ótimo, no que o rapaz encheu minha taça e a da chefinha, onerando o desfecho da conta. Mas eu deveria ter ficado com a Coca zero.

Fiquei invocado com o fato, e procurei me inteirar um pouco mais desse universo que trafega entre o hermético e o mistagógico. Algumas coisas me fascinaram, como o quase culto que se deve prestar diante de um vinho de qualidade, a paciência irrestrita para que uma bebida seja sorvida no fluxo certo, sem pressa por um lado, sem oxidação por outro. Mas outros fatos me intrigaram. Como diz a sommeliére Valéria Pilon (aqui), bons vinhos podem ter aromas absolutamente esdrúxulos, cheirando a coisas como terra, gasolina, suor ou xixi de gato. Sério. Eu prefiro tomar Tang com álcool a xixi de gato. Com álcool.

Apesar de caro, não deixou de ser um aprendizado. E que eu aproveitei em outras ocasiões. Menciono, por exemplo, o caso das cervejas. A primeira vez que eu tomei uma IPA, tomei um susto semelhante: um torrão de madeira queimada é o que parecia haver naquele líquido, mas a lógica dos enólogos pode ser aplicada aqui - tome devagar e tente compreender o sabor. E, dessa forma, passei a apreciar muito mais esse estilo de cerveja.

In vino veritas. No vinho está a verdade, dizia o velho Plínio, não meu padrinho, mas o filósofo romano da antiguidade. Mas é difícil perscrutar a verdade do próprio vinho, e não só aquelas geradas pela desinibição que seu espírito confere. Por que não percebo a qualidade que os especialistas tanto propalam em vinhos de fino trato, e me divirto às escâncaras com produtos reputados por meia-boca? Ou será que é uma mera rendição à empáfia de um grupo de iniciados que se arroga a me ditar o que é bom ou não? O que há de verdade nisso?

Talvez a resposta esteja na maneira como absorvemos nossos conhecimentos, e, com isso, ganhamos traquejo para compreender nuances dantes desconhecidas. De uma forma ou de outra, tudo aquilo que aprendo passa a fazer parte de meu patrimônio intelectivo, e, in extremis, parte de mim mesmo. Só que sempre resta a dúvida de como se dá está interação entre nós e o mundo, por isso, ficamos oscilantes à frente do processo de conhecimento que pode nos ajudar a apreciar um bom vinho. No que a Filosofia pode nos ajudar nesta causa?

Penso em Johann Fichte, um dos filósofos alemães que pavimentaram a ponte entre dois grandes sistemas de pensamento, a epistemologia crítica de Kant e a fenomenologia do espírito de Hegel, inaugurando o idealismo alemão. Mas, para compreendê-lo, precisamos revisar rapidamente os princípios kantianos do conhecimento, o que já fiz aqui e aqui. Prometo ser rápido.

Kant põe fim ao longo debate entre racionalistas e empiristas. Desses últimos, afirma terem razão quando dizem que o conhecimento vem da experiência, ou seja, é preciso um contato a posteriori com um objeto para saber o que ele é. Mas também dá razão aos primeiros, porque certos conhecimentos independem de um contato com um objeto, sendo apriorísticos. Por exemplo: escrevo este texto em um lugar amplo, um parque. Consigo imaginar o espaço que me circunda sem mim, ficando a mesa vazia ao sabor dos pombos. Mas o que seria de mim sem um espaço ao meu redor? É possível conceber isso? Não estou pensando em estar solto no espaço sideral, como seria fácil supor, mas sem espaço algum. A mesma coisa se aplica ao tempo. Posso imaginar o tempo que passa na mesa no parque sem mim, uma mesa vazia de manhã, de tarde e de noite. Mas não me vejo fora do tempo, rigorosamente imóvel por dias a fio. Dias a fio, aliás, já é uma noção temporal, enquanto a imobilidade é uma noção espacial. Tempo e espaço, portanto, independem da experiência, essa apreensão é inata, apriorística, no jargão filosófico. Ou seja, há também conhecimentos que independem da experiência.

Só que aí encontramos um problema. Embora todo o conhecimento possa ser encaixado nas estruturas mentais de um bípede implume, cada um absorve o universo de maneira peculiar, única, própria. A apreensão dos objetos do conhecimento é feita por uma pessoa que não possui nenhum gêmeo perfeito. Dessa forma, podemos afirmar que o mundo se apresenta a consciências, o direcionamento mental humano movido propositadamente. Se cada consciência é própria, então sempre temos uma versão particular de conhecimento do objeto. Nunca chegamos ao númeno, à coisa-em-si, mas ao fenômeno, uma manifestação privativa desta.

Fichte era um kantiano convicto. O objetivo inicial de sua teoria do conhecimento foi aperfeiçoar as teses de seu mestre, procurando explicar como se dá o processo de aquisição e de enrobustecimento da consciência. Isso se dá em três passos: o Eu põe a si mesmo, o Eu opõe a si um não-eu e a transição entre ambos. Falando assim, não dá para entender nada. Então vamos explicar.

O que pensamos quando queremos definir o que é o Eu? Podemos nos autodefinir de inúmeras formas: ao olhar para o nosso próprio corpo ou para uma fotografia nossa, miramos nossa instância física, mas aqui nos defrontamos com o limite kantiano no fenômeno - vemos uma manifestação de nós mesmos como objeto, filtrado por nossos sentidos e por nossa consciência, vemos um fenômeno de nós mesmos, mas não o Eu em si. Basta que perguntemos a alguém sobre nossa foto. Achamo-nos bonitões, inclusive buscando qualidades objetivas de simetria, proporções e arranjo, mas quem nos observa enxerga outro conjunto. O mesmo se dá se buscarmos o Eu no aspecto intelectual, lendo as coisas que escrevemos, analisando os gostos que temos ou sintetizando as percepções do mundo que construímos. A questão permanece a mesma, é uma visão fenomênica. O que traz a identidade do Eu?

Para Fichte, o Eu é aquele que se põe a si mesmo. É uma intuição intelectual que se detecta como algo que se distingue do mundo, que tem existência própria. O Eu puro é o saber de sua existência de forma autônoma com relação a todo o universo. Dessa forma, o Eu coloca o sentido a tudo o que existe no mundo. Em suma, o Eu puro de Fichte, independente de corpo ou espírito, sabe-se colocado em uma relação com o mundo, e que é distinto das demais coisas.

Por outro lado, o Eu tem o conhecimento do mundo, e isso está inscrito em sua consciência. O Eu tem a intuição do que ele é, e também de tudo o que não é ele. Esse é no não-eu que se opõe ao Eu. É bem verdade que existe uma distinção a ser feita: a consciência está dentro do Eu, não existe uma consciência que não pertença a uma cabeça pensante. Sendo assim, quem está em estado de oposição não é simplesmente o Eu versus o mundo, mas aquele Eu puro que se limita com o próprio restante da consciência.

E é aí que entra o conhecimento. Ele está nesse exato limite entre o Eu e o não-Eu. Tudo aquilo que se conhece já faz parte do Eu, já o ajuda a perceber as coisas do mundo de sua maneira própria, e a cada vez que se absorve um novo conhecimento, há o tráfego entre um e outro, quando o não-Eu é interiorizado e passa a fazer parte do patrimônio intelectivo do patrício onde isso ocorre. 

Notem que há uma linha com plasticidade e dinamismo entre ambos, que representa a absorção do não-Eu pelo Eu, que se retroalimenta na medida em que se tenha contato com o novo, e o não-Eu se expanda novamente.
Notem que Fichte, desta forma, não só inicia uma divisão da consciência que será, mais tarde, reescrita por Freud, mas também inaugura uma maneira própria de pensar que será marcante no Idealismo alemão, e que encontrará a sua máxima expressão em Hegel: a dialética. O Eu é uma tese à qual se opõe o não-Eu, sua instância antitética. Deste confronto, resulta a síntese da delimitação recíproca, já que ambos se determinam: estando o Eu e o não-Eu dentro da mesma consciência, dinamicamente traçam seus perímetros, e é a sua interpenetração que amolda cada um.

Como deu para perceber, Fichte não tem nada de simples. E, por isso mesmo, eu só dei algumas indicações bem superficiais do seu pensamento. Basta para dar base ao que eu quero dizer. Talvez ainda eu tenha que usar a plasticidade do meu Eu para confrontar com mais critério a questão da complexidade dos vinhos. Devo respeitar a opinião dos especialistas sérios, que conhecem de assunto que para mim é uma mera curtição. Se no vinho está a verdade, eu quero conhecê-la, sem deixar, enquanto isso, de curtir minha adeguinha humilde, que tanto me compraz com a simplicidade dos vinhos de São Roque, principalmente quando ela está repleta.

Recomendação de leitura:

Fichte não é para os fracos, e é necessário conhecer um bom tanto de Kant para conseguir compreendê-lo. Em todo caso, segue a indicação de sua obra.

FICHTE, Johann. A doutrina da ciência. São Paulo: Abril Cultural, 1991. Col. Os pensadores.

Outra coisa: vá a São Roque sem preconceito. Curta as visitas à Rota do Vinho e veja como sempre você poderá encontrar um sabor que lhe agradará. Fica muito perto da capital, a cerca de 70 Km, com boa infraestrutura, e não tem como não lhe agradar. A não ser que você prefira xixi de gato.

* Jeropiga é um vinho ao qual foi acrescentado alguma aguardente, como a bagaceira, durante o processo de fermentação, da mesma forma que ocorre com o vinho do Porto. Tem um estilo abafado, com teor alcoólico mais expressivo do que em um vinho castiço.