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quarta-feira, 12 de junho de 2019

Navegações de cabotagem - A praça da matriz de Itu: as desmedidas e a assimetria de quem age e de quem observa

Olá!


Vocês, meus cada vez mais raros leitores, devem estar meio admirados pela quantidade de vezes que já mencionei neste espaço alguma viagem para fins de concursos públicos. Não deixa de ser resultado dos tempos difíceis em que vivemos, quando abandonamos os sonhos de realização profissional para abraçar a causa da estabilidade e do salário pago em dia. Não posso reclamar disso. Passei tantos aperreios na vida, em especial na década de 90, que neste ponto da existência vejo isso como solução, e não como opção. Falta de espírito combativo e de objetivos maiores? Sim, mas lascar o foda-se é tudo o que resta quando há bocas a alimentar.

No entanto, há uma diferença primordial no evento em tela: não conduzo agora o filho mais velho, que se arranjou no interior do Paraná, mas a filha mais nova, que tenta partir para a turma dos barnabés. E o começo da trajetória se dá em grande estilo. Grande mesmo. Estamos em Itu, terra dos exageros. Enquanto a moçoila testa seus conhecimentos, aproveito com a patroa o sol escaldante para visitar o seu logradouro mais célebre, a Praça da Matriz, oficialmente praça Padre Miguel, onde se encontra a famosa série de objetos superdimensionados.


É bem verdade que há outra praça, feita exclusivamente para enaltecer os exageros, que tem muito mais atrativos em tamanho XG, como os lápis, o jogo de xadrez, a garrafa, et cetera. Só que a mesma se encontra fechada para reforma, já há um bom tempo. Sendo assim, fui para a já bem antiga praça da matriz, dedicada a Nossa Senhora da Candelária, construída em 1780. Possui um estilo barroco tardio típico, com muita semelhança de outras igrejas contemporâneas que podem ser vistas no centro de São Paulo.


Sua decoração interior é uma amostra bem característica do período, com um altar-mor ao fundo do presbitério em formato piramidal, como uma escada que leva aos céus, e dois altares laterais enviesados, tudo guarnecido por atavios entalhados típicos do rococó. Um certo exagero na feitura causa grandes problemas na reforma, mas a culpa não é de ninguém – reflete o espírito de uma época que deve ser bem conservada. Falaremos mais disso adiante.


Itu é uma cidade bem antiga, fundada ainda nos tempos dos bandeirantes, e que conserva uma boa parte de seu estilo colonial, o que inclui o conjunto arquitetônico de casas baixas com porão e anteparos adornados sobre portas e janelas, um capricho pouco visto hoje em dia, além das vidraças invertidas, que ficam para o lado da rua, enquanto a parte escura abre para dentro do imóvel.


No entanto, o epíteto de cidade dos exageros levou a uma série de intervenções que, se por um lado são divertidas e lhes dá marca registrada, por outro destoa do conjunto historiográfico. O próprio coreto já não condiz diretamente com a matriz e o casario, apesar de seu estilo sóbrio e suas linhas rebuscadas.


Não criemos celeumas, entretanto. Os objetos supercrescidos são vários, sendo que o mais evidente deles é o renomado orelhão. Outrora, ele era uma reprodução daqueles mantidos pela Telesp, hoje atualizado para a empresa privatizada. Com o advento e o barateamento do celular, creio que dentro em breve as jovens populações não terão mais referências para comparar, já que são aparelhos em plena extinção (como, de resto, já são extintas as fichas que se usavam para fazer as ligações).


Outro equipamento da praça é o semáforo gigante. Ao contrário do orelhão, temos aqui uma peça que é funcional e que de fato é utilizada para controlar o trânsito. Contaram para a gente que tem motoristas que acham que o artigo é decorativo, e acabam não o respeitando. Questão de bom senso e prudência, penso eu.


Para quem gosta de lembrancinhas (!!!), a praça é repleta de lojas que dão continuidade à brincadeira do gigantismo, que não está só nas suas mercadorias, mas em passatempos nos quais o pessoal adora fazer suas graças, como é o caso deste par de chinelos...


... ou desta “xicrinha”. Toda sorte de produto é vendida em modelo maximizado, como os chaveiros que eu adquiri para minha coleção. Há os de lápis, de ficha telefônica, de comprimido e até o infame supositório. E há o sorvete de Itu, um canudo de três cores que deve pesar meio quilo.


Ainda na praça, existe o suntuoso Ituano Clube, outrora um espaço da high society local, onde se realizavam bailes e desfiles. O tempo trouxe a decadência desse estilo de entretenimento, e o clube ficou desativado por um bom tempo.


Hoje o Ituano (não confundir com o time de futebol) abriga um espaço cultural multidisciplinar, que se presta à conservação de acervos, exposições, mostras e pequenas audições, que junta as vantagens de um espaço público com a sua bela arquitetura.


No hall de entrada, com sua bela escadaria de mármore, estava sendo realizada uma exposição de grafismo clássico, as boas e velhas obras de lápis sobre papel, onde os jogos de luzes e contornos são dados pela densidade e pressão do grafite. Os autores são os alunos das EMIA’s, que, se não me engano, são as escolas municipais de artes da cidade.


Em um conjunto de dois cômodos no térreo, há uma exposição de arte sacra com material oriundo da reforma da igreja matriz. Uma parte do material exposto é composto por restos das partes trocadas, que contêm vários fragmentos das obras artísticas de lá, como é o caso dessas tábuas do teto.


Estão expostas ainda peças antigas e fora de uso pelo desgaste ou obsolescência, todas elas alfaias e materiais de uso litúrgico, como este missal escrito em latim, língua oficial do Catolicismo até a década de 1960, já bastante carcomido, mas que preserva bastante do cuidado em sua elaboração...


... bem como este manípulo, um paramento litúrgico que não se utiliza mais, que representa um alívio para o cansaço no exercício das funções sacerdotais. É um artigo que quase não é mais visto modernamente.


Nas entradas do clube, um pequeno acervo de fotos nos mostra aquele que, enfim, é o grande responsável pela fama megalômana desta urbe. É o comediante Francisco Flaviano de Almeida, mais conhecido como Simplício. Dois personagens seus mantém uma forte ligação com Itu. O impertinente menino Rosauro, sempre com a camisa do Ituano, era o rei das perguntas capciosas, deixando seus interlocutores de cabelos em pé; e o Osório, o marido da Ofélia, que cantava loas ao tamanho das coisas em Itu, onde qualquer coisa era desmedida.


Um atributo incontrolável, pelo destaque que a piada tomou. De um personagem de esquetes, surgiu o epíteto que se mantém até hoje. A piada parece ironizar uma cidade minúscula, daquelas da igrejona e da pracinha, o que Itu não é. Tem quase duzentos mil habitantes, um razoável parque industrial e muita importância histórica, especialmente no desenvolvimento da ideia da implantação de uma república no Brasil. Mas o exagero que vem da vaidade do personagem, ironicamente, faz com que pensemos que esta terra seja menor do que ela é realmente. Por que há essa espécie de desnível?

Vamos ter que dar uma voltinha para propor uma chave de solução. Desde já lembrando que temos diante de nós um personagem satírico, e consequentemente desvinculado da factualidade, podemos encarar a coisa de duas maneiras. A primeira, de que temos um mentiroso, pura e simplesmente; a segunda, que temos dois pontos de vista absolutamente distintos, que percebem os objetos postos cada um à sua maneira. Podemos descartar a primeira porque observamos inúmeras vezes a discrepância entre relatos, sem que necessariamente alguém esteja faltando com a verdade. Vou dar um exemplo real, que aconteceu comigo, bem recentemente, e omitindo nomes, já que o fato é constrangedor.

O clima político não anda bom, sabemos todos. O grande mote que levou o atual governo ao poder foi a extensa corrupção que grassa Ilha de Vera Cruz desde os tempos de Ilha de Vera Cruz. Sem julgar méritos e deméritos, foi a alternativa que se apresentou e que a população comprou, como, de resto, já fez outras vezes, sem o sucesso esperado. Este era o tema de reunião na casa de parentes meus, que só não degringolou para samba no Bixiga porque eu e a patroa tiramos o pé, já que a partida era fora de casa. Em tempo: apesar do calor, ninguém se bateu, só debateu. A bandeira era aquela mesma: corrupção, políticos inconfiáveis, velhas práticas, era preciso tentar o novo, mesmo que desse errado. Porque o corrupto rouba leite das crianças, impede remédios aos velhinhos, desgraça suspensões de veículos e tudo o mais. Apesar da simplicidade do argumento, não era nada de que eu pudesse discordar, só não me sentindo confortável com os nomes encontrados. Mas bem. O tema fluiu para o futebol e as barrigas, já locupletadas, induziram à dispersão: meninos de azul para a sala; meninas de rosa para a cozinha – quer coisa mais bem conservada? Conversa vem e vai, e pula para o âmbito trabalhista: passei lá perto da sua casa, sabia? Opa, não! O que foi? Por que não deu uma passada lá? Ah, eu fui a trabalho (N. do A.: o primo trabalha com administração de condomínios). Tem um conjunto novo no Glicério, e fomos fazer uma proposta pro síndico. E deu jogo? Negociando... agora depende do chefe. E como funciona? Eu não faço a mais porca ideia... Bom, além do meu salário fixo, eu ganho uma comissão. Dez por cento do valor pago pelo condomínio é taxa de administração, e dez por cento destes vem para nós, os vendedores. E tem a parte da nota. Parte da nota? É... digamos que o síndico queira fazer cinco mil reais com o condomínio. Neste caso, a empresa emite uma nota com sete mil reais a mais de gasto. Cinco fica para o síndico, mil fica para o dono e mil vem para nós. Para vocês? Isso... não é errado? Bom, eu preciso pensar na família numa hora dessas, tudo tá tão caro, tem a menina...

Pois é. A instantes falávamos de corrupção e de quanto ela é prejudicial para o país; agora, no âmbito privado, ela é plenamente justificável. Juro pela divindade que vocês escolherem que essa pequena historinha se deu exatamente como descrito aqui. É uma questão de hipocrisia pura e simples? Conheço o cidadão o suficiente para dizer que não. A diferenciação, por absurda que seja, é sincera. Ele acredita de fato que sua conduta está ok, e muita gente pensa assim também. Mas na hora de apreciar esta mesma conduta em outras instâncias, a pessoa se revolta.

Algumas coisas a considerar nessa síndrome de autovisão. As sociedades cuja cultura é do tipo individualista tendem a achar o eu distinto do nós. Isso é muito claro nas sociedades ocidentais de economia mais bem consolidada, como nos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e etc. Há muitos motivos para que estas sociedades sejam assim, como a aplicação do capitalismo, a adoção do cristianismo e outras avenças, mas não cabe abordar isso agora. Basta saber que, nestas culturas, o indivíduo é precípuo em relação ao coletivo. O homem aqui deve procurar a autossuficiência antes de se situar no meio onde vive, até porque ele pode fazer isso.

Embora a realidade rume para o polo oposto nas sociedades menos providas de recursos, onde a interdependência torna os laços sociais mais necessários, é fato que o cubo cultural é uma matriz de n dimensões, por isso mesmo uma sociedade pode ser individualista em certos aspectos e comunitarista em outros, e por este motivo o fenômeno pode ser observado em qualquer local do globo, mas, via de regra, uma visão muito egocêntrica tende a exacerbá-lo.

Vamos a ele. Podemos notar que há um paradigma duplo para explicar os comportamentos. Quando analisamos ações negativas dos outros, tendemos a desprezar fatores situacionais e enaltecer fatores disposicionais. Em outras palavras, se alguém faz algo de ruim, dizemos que o defeito é inerente à pessoa; se quem o faz somos nós, tendemos a imputar a má ação à nossa situação, ou seja, a fatores ambientais e externos a nós. O efeito é intercambiável: quando o ato é positivo, os fatores se invertem – somos inerentemente bons, enquanto os outros são levados pela situação a serem bons. Eu sou promovido porque me esforço; meu colega, porque deu sorte. Isso é o que, em Psicologia, se dá o nome de erro fundamental de atribuição.

Tudo é uma questão de perspectiva. Cada pequena atividade que acontece neste acidentado planetinha azul tem um protagonista e, eventualmente, alguém que a contempla. Cada um terá seu próprio ângulo de visão e uma explicação própria para o ocorrido, sendo que as causas podem estar diametralmente opostas.

Vamos pensar em uma cena futebolística, para variar. No final de um jogo encarniçado, um quarto-zagueiro corta um cruzamento especialmente promissor, mandando a bola para escanteio. O ponta-direita ajeita a esférica com todo o carinho, como se fosse bater um pênalti: seu time está sendo derrotado, e sua cobrança pode fazer a diferença na busca do empate. Ataque postado e defesa encastelada, o atacante executa seu mister, inesperadamente pegando com força excessiva, e mandando a pelota para a zona morta oposta, para sair idiotamente em lateral favorável ao adversário.

Este é o fenômeno. Quem observa, dirá: é um perna-de-pau, uma característica de imperícia atribuível diretamente ao pobre-diabo. Ou é um burro, outra característica atribuível ao ser humano em questão. O ponta, por sua vez, instado a se defender, dirá que mandou a bola para o outro lado do campo porque era isso que estava ensaiado – por lá, deveria ter aparecido um lateral-esquerdo livre de marcação, de modo a desorientar a zaga adversária. A atribuição, neste caso, é externa ao agente. Esse desalinhamento entre motivadores externos e internos, o tal erro fundamental de atribuição, é causado, portanto, por uma assimetria entre agentes e assistentes, que é conhecida como efeito ator/observador.

Quem é o ator? É aquele que age, é o sujeito ativo na ação. Ele detém algo que os observadores não tem: a perspectiva da intenção. Só que quem está do lado de fora precisa de explicações para o que vê, e sua cognição está cheia de lacunas. Um cruzamento tão desastrado precisa de uma resposta imediata, e a explicação mais próxima está no próprio ator – ou é inábil, ou é falto de inteligência. Por isso, a perspectiva de quem age e de quem observa nunca é a mesma. Não temos uma leitura interior, como a do ator, e preenchemos as lacunas com as nossas próprias expectativas. E isso também explica os diferentes pontos de vista dos vários observadores, pois cada um preenche essas lacunas com seu pacote de expectativas, que sempre são divergentes com relação aos demais.

Isso tudo pode nos levar a pensar: a nossa percepção do que é real é completamente contaminada pelo sentido que doamos aos fenômenos que ocorrem em nosso meio. Tudo o que consideramos como verdadeiro é uma projeção dos conceitos que já habitam em nós. Preconceitos, portanto? Em certos momentos, é isso mesmo. Por isso, o assunto acaba por sair da especificidade da Psicologia para desembocar na Ética. Nosso julgamento da ação dos outros é enviesado pelo que existe dentro de nós. As lacunas existem porque não temos como conhecer tudo, e é preciso muito cuidado para preenchê-las. Para nos afastar do erro fundamental de atribuição e das armadilhas da assimetria entre ator e observador, a palavra-chave é: alteridade. É uma fórmula tão simples quanto difícil. Precisamos nos esforçar para pensar com a cabeça do ator, que age variavelmente, movido pelas circunstâncias. Não temos condições de assimilar todo o conjunto situacional de qualquer evento, mas temos parâmetros em nós mesmos. Não no sentido de dar respostas prontas, mas de nos perguntar o que nós faríamos em situação igual, ou, melhor ainda, o que nos levaria a agir da mesma forma que o ator que observamos.

E isso é uma regra geral, canônica e bem formulada? O comportamento de quem observamos é sempre justificável? A verdade reside no ator? Evidentemente que não. Tudo tem a ver com a autoimagem que cada um constrói de si mesmo, e neste ponto nosso exemplo ficcional de Itu cabe como uma luva. Nosso caro Osório tem uma imagem maximizada da cidade que vive e ama pelo próprio afeto que ergueu diante dela, e isso gera uma distorção na sua narrativa e na maneira como vê seu pequeno mundo. Eu não esqueci que estamos no campo do humor, mas isso está presente por toda parte, desde aquela avó que vive de gabar-se dos netos até o político que promete o que não pode realizar, mesmo que acredite piamente nisso.

Deixem-me concluir. Itu é uma cidade com muito mais do que os seus exageros, e vale cada minuto de visita. Certamente voltarei a falar sobre ela. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Utilizei dois livros de Psicologia para dar apoio à elaboração deste texto. Segue a citação de ambos.

ARONSON, Elliot; AKERT, Robin; WILSON, Timothy. Psicologia Social. São Paulo: LTC, 2011.

GLEITMAN, Henry; REISBERG, Daniel; GROSS, James. Psicologia. Porto Alegre: Artmed, 2009.

Da sétima arte, o melhor exemplo da multiplicidade de pontos de vistas vem do clássico japonês Rashomon, de Akira Kurosawa. É uma miscelânea de observadores em cima do mesmo fato, que impossibilita a obtenção da verdade. Grande película, para ser vista com muita paciência.

KUROSAWA, Akira. Rashomon. Filme. Japão, 1950. 88 min. P&B.

E, claro, a própria praça da Matriz em Itu, situada a 100 Km de São Paulo.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

O comportamento de manada explica porque temos tanta dificuldade em pensar por nós mesmos (Pequeno Guia das Grandes Falácias – 44º tomo: o Bandwagon, ou Argumentum ad judicium [Apelo à maioria])

"A tendência para o conformismo na nossa sociedade é tão forte que jovens razoavelmente inteligentes e bem intencionados estão dispostos a chamar o branco de preto." - Solomon Asch

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Você está em um prado, em uma daquelas cenas idílicas, típicas de representações do paraíso pré-adâmico. Se há som, é o etéreo farfalhar do vento que acaricia a relva e as folhas das poucas árvores espalhadas por aqui e ali, com o eventual piar de um pássaro. Um convite perfeito para se deitar no chão e aguardar a formação do conceito perfeito de paz.

Mas é impossível não dar continuidade à referência cinematográfica, agora vertida para drama. De olhos fechados, a percepção auditiva é sensibilizada por um ruído difuso, longínquo, que se assemelha a um trovão contínuo. Entreabrindo um dos olhos, nada se nota de diferente no céu, que continua com seu azul yves-kleiniano. Mas o som se aprofunda e se aproxima, de modo a lhe fazer soerguer o tronco, agora de mão em concha na orelha. O ruído se transforma em ribombar, e já é possível detectar de que direção vem vindo: exatamente às suas costas. Ao se voltar, você vê o antigo fundo verde da colina se transformar em uma massa informe, porém móvel, e com movimento em sua direção. Uma manada, inteira, imensa, feroz, incontida. Tudo se aproximando com a velocidade máxima desenvolvida por seus líderes. O resto da história cada um que a construa, a seu modo – uma árvore salvadora, uma corrida patética, um atropelamento. O fato é: seja qual for o desfecho, tudo se iniciará com um único ato – correr.

Agora vamos nos deslocar para a porta de um estádio. Um estádio grande, que receberá a final de um campeonato importante. Você aguarda pacientemente sua vez de entrar, já bastante amargurado pelo preço exorbitante que acharam de colocar para o futebol. Rodeia-lhe uma turba barulhenta, cheia de bandeiras e slogans enaltecendo as virtudes do clube de sua preferência, ou depreciando o adversário da noite. Não mais do que de repente, no miolo da multidão, o som antes coeso, ainda que agressivo, é maculado por uma gritaria desordenada. À mesma moda que o rebanho da imagem anterior, uma verdadeira massa (opte pela combinação desejada: alvinegra, rubronegra, alviverde, alvirrubra, alvianil, rubroverde, diferentes mesclas tricolores) avança com fúria incontrolável. Você tem dois caminhos a seguir: aguardar e ser pisoteado ou correr na direção das catracas, cujas mesmas deverão ser forçadas ou saltadas, ainda que a polícia tente detê-lo. Pare para pensar se o fenômeno todo não é disparado por uma única pessoa, e que os circunstantes não teriam condição de deter o maremoto se raciocinassem por cinco segundos. É o comportamento de manada, um dos pontos culminantes da irracionalidade humana.



Vamos começar colocando tudo na questão da sobrevivência das espécies. Como bem sabemos, há milhares de estratégias estabelecidas na natureza para que uma determinada espécie possa continuar existindo. Algumas delas incluem a vida solitária, e outras lançam mão de grandes cooperações, e há outras ainda que incluem simbioses bastante sofisticadas, mas a maior parte dos mamíferos que não estão no topo das cadeias alimentares são seres gregários, ou seja, vivem em grupos. Essa estratégia visa compartilhar algum benefício para a comunidade que seria impossível obter individualmente, como a obtenção de alimento, de abrigo e de proteção contra ameaças. Por isso, um bando específico age como se fosse ele mesmo um organismo, à medida que o gregarismo não diz respeito apenas a uma questão de proximidade física, mas de um agir contíguo. Enquanto alguns comem, outros vigiam; os mais parrudos se colocam do lado de fora do círculo alimentício, protegendo no interior os mais frágeis, como os filhotes. Todo o grupo trabalha na base da interação e de uma espécie de fé cega. Se aqueles que estão no posto de atalaia ficam alarmados, é fogo morro acima. E a defesa do grupo é ditada pela melhor conveniência do instante, que é a fuga quando há campo aberto, ou o encastelamento quando é impossível fugir. Às vezes, até mesmo uma entrega em sacrifício é possível, para benefício geral do grupo. É assim que as coisas funcionam e que as espécies vão se perpetrando.

O ser humano é mamífero, e, não fosse por sua vida em sociedade, estaria lá pelos meios da cadeia alimentar. Eis que, portanto, há vantagens evolutivas em sermos, também nós, seres gregários. E estão no nosso substrato psíquico os mesmos mecanismos de sobrevivência de bisões e antílopes, ou seja, temos a mesma tendência a absorver e utilizar estratégias instintivas, por mais que tenhamos o tão decantado raciocínio ao nosso favor. Em uma situação de urgência, há a propensão em simplesmente seguir o que todo o rebanho está fazendo, mesmo que a atitude seja sem sentido. O negócio primordial é salvar a pele, essa é a lógica aplicada. Por isso, a reação de um só membro é suficiente para fazer cair a avalanche. O fato é que o stress pela atenção dispensada à própria defesa faz com que fritemos o peixe enquanto vigiamos o gato atavicamente o tempo todo. Eis porque o comportamento de manada é sempre presente. Se houvesse a possibilidade de se articular mentalmente com mais calma, certamente decisões inadequadas poderiam ser melhor avaliadas (e evitadas).

Acontece que nem sempre isso é verdadeiro. Ainda que tenhamos uma boa explicação para as atitudes intempestivas das multidões, não é incomum uma propensão a se seguir o bonde mesmo em situações onde não há uma urgência que justifique o impulso pouco ponderado.

Evidentemente, o comportamento de manada é melhor explicado com ações físicas, semelhantes àquelas que descrevi logo no começo deste texto. Aliás, já referenciei anteriormente este fenômeno em um post bastante antigo, onde tratei do linchamento de um motorista de ônibus, mas o fato é que as redes sociais trouxeram à baila uma nova modalidade para apresentar este comportamento: os ataques virtuais. Essa é uma história que tem sido tão comum que dispensa grandes demonstrações: alguém fala qualquer coisa em um desses feicebuques da vida que desagrade outro alguém, que reage agressivamente. O ato contínuo é seus seguidores serem automaticamente acionados para invadir a área de comentários do agora inimigo, floodando, negativando, descurtindo e tantos outros novos termos que substituem os antigos xingos; melhor ainda, fazendo-lhes incremento. Tudo isso sem medir a pertinência da afirmação original, apenas seguindo a voz que gritou no meio da multidão.

Em síntese, o efeito manada age no plano psicológico e, embora não seja necessariamente agressivo, porque temos habitualidade de copiar outras pessoas (moda, música, novas tendências profissionais), caracteriza-se pela sua instintividade. Como bem sabem aqueles que me acompanhar neste blog, lancei na semana passada um texto que contesta a ideia de  nazismo de esquerda. É pouco provável que aconteça qualquer tsunami, por conta de minha baixíssima audiência, mas é possível que alguém vá lá me ofender, sem grandes motivos; se este contribuinte tiver um número razoável de compatriotas e indicar meu mirrado espaço, pode se desenrolar o fenômeno. Um contraponto racional seria aceitável e até mesmo desejável, mas é nesse ponto em que voltamos a ser humanos, e não gado. Não é o que costuma acontecer. Já disse que o plano de fundo do efeito manada é exatamente sua rapidez, e não sua envergadura intelectual.

Neste post que acabei de mencionar, tentei demonstrar motivações psicológicas para os defensores de ideias como o nazismo de esquerda, através de um viés chamado de wishful thinking, mas o efeito manada também ajuda a explicar este tipo de comportamento, sendo-lhe complementar. Seu nome técnico é conformidade social.

A pergunta central é: até que ponto nossas verdades resistem à opinião do meio social onde vivemos? Vamos desenvolver. Como bem se sabe, uma onda de protestos nascida do descontentamento com um aumento de tarifas descambou em uma avalanche política em Terra Brasilis, e acabou virando hábito manifestações populares que nem sempre sabemos porque participamos. Acho que um dos melhores exemplos (e não são poucos) vem de um videozinho que se tornou muito conhecido, de uma menina de alegados 17 anos que, perguntada por um repórter sobre o porquê de sua posição política, foi correndo perguntar à mãe qual resposta deveria dar. Ou seja, ela não estava lá por vontade ou juízo próprio, mas porque seguia o ditame daquele grupo. Dá vontade de chorar, por isso não vou dar o link do vídeo aqui (até porque acho que todo viu já o viu). Aqui no caso não importa a posição política, mas o modo como dançamos atrás do trio elétrico, suprimindo convicções e desejos em nome de uma posição meio que tribal.

Por falar em trio elétrico (atrás do qual só não vai quem já morreu), outra maneira de classificar o comportamento de manada é bandwagon, sendo que o primeiro dá uma noção mais de instinto e reação, e o segundo mais de influência e convencimento, mas que são complementares entre si. E por que esse nome curioso? Ele nasce das carruagens que anunciavam a chegada dos circos às cidades no século XIX, com grandes desfiles e músicas. Se isso lhe parece estranho, lembre-se de que nem rádio existia à época, e causar estrépito era uma boa fórmula de chamar a atenção. As pessoas seguiam a carruagem porque em cima dela existia uma banda que tocava músicas animadas, com ênfase nos sopros de metal e na percussão, que podiam ser ouvidas de muito longe, atraindo bastante gente. Percebendo a adesão das populações a este modelo de publicidade, os políticos espertalhões piratearam a ideia, de modo a tornar a bandwagon uma mídia de campanha. Diz-se que um dos casos mais notáveis partiu do célebre comediante Dan Rice, que, ao conclamar a população a votar no candidato à presidência dos EUA Zachary Taylor, cunhou o termo jump on the bandwagon, que é utilizado ainda hoje em países anglófonos.

Notem como vivemos constantemente nas bandwagons. Nos fins da década de 80, com a economia em eternos pandarecos, a bandwagon Collor veio com o discurso da modernidade, e corremos atrás dela. Depois, veio Fernando Henrique com a intelectualidade pedindo passagem, seguido por Lula e a retórica do povo no poder. Recentemente, fomos atrás da carruagem que mais parece um tanque de guerra, o dos duros, que prometem o mesmo de todos os outros: um modelo novo de política. Batem nos seus barulhentos tambores e ecoam à beça, e esperamos um novo fracasso, para novamente vir a cabeceira de um circo que nos seduza. Muita gente votou em todos estes projetos de bom grado, mas a maioria das vezes sem se dar conta de que não estavam perscrutando motivos razoáveis, apenas uma empolgação ou uma contrariedade.

Pois bem. Embora a percepção do fenômeno de manada ou de bandwagon seja empírico, era preciso que fosse abordado de maneira científica, o que ganhou notoriedade com o psicólogo polonês Solomon Asch em meados do século XX. Ele elaborou experiências cujo escopo era delinear o quanto somos resistentes ao impulso de conformidade social, ou seja, até que nível nossa percepção individual da realidade que nos cerca é capaz de se manter firme quando diversa do grupo ao qual pertencemos.

Basicamente, as experiências eram muito simples e giravam em torno da exibição e comparação de figuras. Era exibida uma linha a um grupo de participantes, que deveria, um de cada vez, compará-la a um conjunto de três linhas e estabelecer qual destas era igual à linha original. Algo mais ou menos assim:



A ideia era fazer uma prova fácil, onde estivesse muito óbvia a resposta. O pulo do gato do experimento de conformidade estava no fato de que a resposta era explícita, e o grupo não era montado aleatoriamente. Todos os componentes sabiam do teste, com exceção de um, que era estrategicamente colocado ao final da fila de respostas. Sendo orientados a dar uma resposta errônea, seria possível medir o quanto o participante ignorante seria influenciado pela opinião da maioria. Esse procedimento tinha várias rodadas e foi repetido com muitos grupos, de modo a dar menor margem de erro estatístico à experiência.

O resultado foi bastante expressivo. Praticamente três quartos dos participantes, ao menos uma vez, acompanharam o grupo na resposta errada, e alguns deles foram atrás do bandwagon praticamente todas as vezes. A parte final do teste consistia em revelar ao participante o mecanismo por trás dele e entrevistar o pobre-diabo para apurar os motivos que lhe levaram a errar a resposta, fugindo do óbvio. Na maior parte das vezes, a alegação era a pressão sofrida por ver todos os demais componentes apontarem para uma determinada direção, e contrapô-lo poderia significar uma série de coisas: parecer idiota, ser renitente, estar indisposto em colaborar ou demonstrar uma vontade de se excluir do grupo.

Desta forma, Asch demonstrou que, com exceção de uma minoria firme em convicções, os seres humanos tendem a suprimir sua própria noção de verdade em prol do parecer do meio social onde se vive, para se tornar conforme a este. Isso ajuda a explicar o poder que a maioria tem sobre os indivíduos e porque as pessoas fazem coisas que normalmente não fariam no âmbito privado. Pode parecer que isso seja essencialmente ruim, mas algum grau de consenso é necessário em uma sociedade. Portanto, a mesma dinâmica que nos leva a agir como rebanho é a cola que nos gruda uns aos outros. Complicado isso.

Só para concluir. O bandwagon é também uma falácia, que atende pelo pomposo nome de Argumentum ad Judicium, ou, mais simplesmente, apelo à maioria. O judicium, no caso, diz respeito ao juízo comum, aquele cuja maior parte de um grupo é concorde. É a boa e velha falácia de dispersão e relevância que argumenta ser a prática da maioria um critério de validade. Um bom exemplo desse uso vem do teólogo Meric Casaubon, ativo no século XVII, que dizia que “as bruxas devem existir porque, afinal de contas, todo mundo acredita nelas”. Sem comentários.

Bem, bem... O argumento de que o pensamento da maioria é referência segura é uma autêntica navalha assentada na mão de criança. Hitler foi eleito democraticamente, Jesus foi para a cruz por “plebiscito”, milhares de pessoas foram às ruas em 64 para pedir intervenção militar. Nem sempre as massas são racionais. Por isso mesmo, é bom se guardar um pouco nas próprias convicções e não rumar sempre com a manada.

E ad judicium não falacioso, existe? Existe. A justificativa da maioria sempre faz sentido quando é necessário aferir uma vontade popular. Dizer que determinada medida governamental foi adotada porque a maioria da população a quis é argumento plenamente válido, porque (em tese) os projetos de governo devem seguir o rumo que a sociedade lhes dá.

É preciso um pouco de cuidado para não confundir o apelo à maioria com o apelo à popularidade. Neste último caso, a quantidade está relacionada a números significativos, mas que não representam maiorias em um grupo, necessariamente.

Recomendação de leitura:

O livro abaixo contém esta e outras experiências realizadas por Asch, e dá uma noção mais clara de todo seu arcabouço teórico influenciado pela Psicologia da Gestalt.

ASCH, Solomon. Psicologia Social. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1977.