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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Sobre a colonização e suas implicâncias na auto-estima dos povos (Ou: Mandela e Fanon como herois da conciliação)

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.”
(Mandela)

“A explosão não vai acontecer hoje. Ainda é muito cedo... ou tarde demais. Não venho armado de verdades decisivas. Minha consciência não é dotada de fulgurâncias essenciais. Entretanto, com toda a serenidade, penso que é bom que certas coisas sejam ditas. Essas coisas, vou dizê-las, não gritá-las. Pois há muito tempo que o grito não faz mais parte de minha vida.”
(Frantz Fanon)
Olá!
Não posso deixar de enfrentar a notícia da morte de Nelson Mandela. É um dos homens mais importantes do nosso tempo.
Não vou aqui me deter em relatos pungentes, podem ficar calmos. Também não vou contar em detalhes toda a retrospectiva de sua longa vida. A grandeza de Nelson Mandela se resume, paradoxalmente, a algo muito simples, muito fácil de compreender. Quando ele foi eleito presidente da África do Sul, o principal temor residia na arquitetura de um projeto de vingança, em que os brancos, minoria numérica, poderiam transformar-se também em minoria excluída.

(Rapidíssima explicação sobre o apartheid, destinada aos mais jovens: foi um regime de segregação racial que perdurou de 1948 a 1994 na África do Sul, quando a minoria branca governante – descendentes de ingleses e holandeses – estabeleceu uma divisão formal entre as diferenças raças existentes no país, incluindo a impossibilidade de casamentos inter-raciais e a criação de áreas específicas para moradia, com as piores destinadas aos negros. Inúmeros direitos eram reservados aos brancos, como o voto para as instâncias superiores do poder e o emprego público. Tudo era dividido. Havia ônibus, trens, ambulâncias, hospitais, escolas, bibliotecas para brancos – sempre melhores – e para negros. O descumprimento das regras sempre terminavam em cadeia ou sjambok, o temível chicote utilizado pela polícia).


Mandela conseguiu restabelecer os direitos dos negros sem que, com isso, a minoria branca fosse execrada no país. Sua palavra de ordem se baseou na reconciliação, o que tornou a iniciativa de reformas que distribuíssem renda aos mais pobres muito mais lenta do que se podia imaginar, mas, de toda forma, conseguiu que isso fosse feito de maneira plenamente democrática, e evitou confrontos que poderiam levar à guerra civil.

Ou seja, Mandela brindou a humanidade com algo raríssimo: inteligência.
Mas, se Mandela foi um homem de ação, que soube por em prática um projeto de reconstrução de toda uma etnia, é bem certo que ele também soube captar os ensinamentos de um outro negro, um grande intelectual, um tanto quanto menosprezado nos meios acadêmicos, mas que figura como um dos maiores pensadores da segregação racial. Seu nome: Frantz Fanon.

Frantz Fanon foi um médico e psicanalista francês, nascido na Martinica, situada no Caribe. É uma província ultramarina francesa, com a predominância populacional de descendentes de escravos africanos. Na juventude, foi participar da Segunda Guerra Mundial, na campanha de libertação da Argélia. Daí, foi à França estudar, onde tomou contato com os literatos da chamada Négritude, além de se transformar em um fã de Jean-Paul Sartre, o papa do Existencialismo, de quem recebeu influências (e depois influenciou). Ele falava com a rara autoridade de quem, a despeito de sua cor, conseguiu se inserir no meio acadêmico.
O principal núcleo de seu ideário reside na Psicopatologia da Colonização. Diante de sua vivência em uma terra colonizada há séculos, e das viagens que fez a outros países em igual situação, fez a constatação de que o racismo não é simplesmente uma atitude de exclusão adotada por uma determinada classe dominante, mas uma estrutura que habita o cerne da máquina social, com evidentes reflexos psicossociais.

A dominação age em nível psicológico. O mundo perfeito é apresentado aos negros como uma dádiva concedida aos homens brancos. Esta condição é interiorizada de tal modo que ganha o estatuto de verdade, por mais incômodo que possa ser. A mais famosa frase de Fanon diz que só há um destino para o negro, e ele é branco. Ou seja, o negro deve reconhecer sua condição de inferioridade econômica, social, territorial e principalmente cultural, e deve desejar que a solução para essa inferioridade seja a transformação de suas características, para que se assemelhe cada vez mais ao europeu.
Isso traz à luz uma visão psicológica inédita da questão do racismo. Fanon entende que é racista aquele que reconhece a hierarquia das raças, esteja ele no polo ativo, que reprime e impõe sua cultura como superior, esteja ele no polo passivo, que reconhece e aceita a condição de inferioridade. Isso significa que também o negro é racista, mas de uma forma muito mais dolorosa: aceita sua própria dor, entende a si mesmo como um ser que deve buscar um aperfeiçoamento desvinculando-se de suas raízes. Ser racista, em suma, é reconhecer a existência de raças.

Isso tudo acontece porque o europeu, em sua sanha de conquista e de colonização, possui uma patologia que Fanon vai chamar de “complexo de autoridade”. Trata-se de uma síndrome que “obriga” o homem branco a titular todos aqueles que não se encaixam em seu padrão civilizatório. Não há um ser humano do outro lado da relação, há alguém diferente. Mas não é uma diferença meramente cultural, em que é possível se estabelecer uma dialética positiva. Para o branco europeu (e todos os outros brancos, não nos enganemos), a hierarquia das etnias é uma realidade posta, incontestável. Basta que se verifique o avanço tecnológico e o progresso científico de cada nação para que se dê essa conclusão. Há, portanto, uma relação de colonização que tem o véu de ser natural (e, em um passado mais remoto, divina), devendo ser admissível por todas as partes envolvidas, esteja na situação em que estiver.
Desse complexo de autoridade, teremos uma derivação psicológica muito cruel. O ser colonizado, como sói acontecer, é extremamente vigiado. Tem seus costumes desnaturados, na forma de repressão, que, evidentemente, vão transpor suas barreiras físicas e atingir seu inconsciente. Como deve recalcar seus desejos, estes ficam represados e esperando a oportunidade para extravasar. As ocasiões para dar essa vazão são raras, e vão sendo introjetadas cada vez mais, até o ponto em que o mecanismo psíquico perde os seus sustentáculos e acabam por explodir, de forma violenta. O colonizado poderia voltar essa violência contra seu dominador, mas este se encontra guarnecido; tem armas, tem poder, tem dinheiro. Conclusão: o colonizado sujeitado volta toda essa violência em seu próprio gueto, contra si mesmo. É um processo de auto-destruição, que pode ser visto nos índices de criminalidade dos bairros mais pobres. Como a estrutura racista se alimenta de fatos que deponham contra a etnia que quer dominar, o negro ganha mais um estatuto, o de violento, inadequado para a vida em sociedade.

Nosso caro filósofo, como eu disse anteriormente, teve contato na França com um movimento denominado négritude, que tinha entre seus líderes os escritores Aimé Césaire, igualmente martinicano e Léopold Senghor, senegalês. Estes intelectuais negros eram defensores de que a cultura africana era suficientemente rica para construir uma contraposição à cultura europeia. Para levar esta ideia a cabo, era necessário trazer evidências das melhores características do pensamento negro. Para eles, à razão sistemática das escolas europeias, em sua maioria calcada no distante logos grego, era preciso demonstrar que o substrato da intelectualidade e do modus vivendi da África era fundeada pela emotividade. O caso aqui não é de negar a natureza impulsiva do africano, mas de confirmá-la. O negro deve se estabelecer como diferente do branco, e não baixar a cabeça diante da dominação.
Fanon tinha uma visão oposta a esta. Para ele, movimentos como o Négritude nada mais fazem do que repetir a ação do homem branco. Não à toa, esse movimento foi a base intelectual para os movimentos de independência das diversas colônias da África, sempre levadas a termo de forma sangrenta, porque contrapunham duas forças sem possibilidade de conciliação. Com isso, a diferença sempre irá persistir. O próprio termo “negro” é uma invenção do colonizador para colocá-lo em situação passiva. É como se existisse um organograma onde devemos dar nome às “caixinhas”, e partir para o confronto aberto, ainda que seja uma reivindicação justa, fará apenas com que se troquem os nomes no organograma. Parafraseando Sartre, negro é aquele que os outros chamam de negro. Para Fanon, não há negros, nem brancos; o que existem são seres humanos. Eles querem e devem ser reconhecidos como tal, e ponto. Dividi-los e classificá-los sempre vai estabelecer uma posição de guerra mútua, porque nessa relação não se conhece respeito mútuo.

Fanon está, em meu entender, no mesmo nível do citado Mandela ou de Gandhi, por exemplo. Há uma novidade em seu pensamento que poderia diminuir o sofrimento dos povos sem que se derrame milhões de litros de sangue. Pensem bem: não está hoje em dia a ciência chegando à conclusão de que raças não existem, de que são conceitos criados a partir de uma ideia não experienciável? Pois bem, Fanon já tinha detectado isso há muito tempo atrás...
Comecei este texto com o início do livro que recomendo logo abaixo. Encerro-o com sua conclusão, de forte sabor existecialista. É um pouco longo, mas vale muitíssimo a pena. Sejam pacientes e procurem lê-lo:

Desperto um belo dia no mundo e me atribuo um único direito: exigirdo outro um comportamento humano.

Um único dever: o de nunca, através de minhas opções, renegar minhaliberdade.

Não quero ser a vítima da Astúcia de um mundo negro.

Minha vida não deve ser dedicada a fazer uma avaliação dos valores negros.

Não há mundo branco, não há ética branca, nem tampouco inteligência branca.

Há, de um lado e do outro do mundo, homens que procuram.

Não sou prisioneiro da História. Não devo procurar nela o sentido do meu destino.

Devo me lembrar, a todo instante, que o verdadeiro salto consiste em introduzir a invenção na existência.

No mundo em que me encaminho, eu me recrio continuamente.

Sou solidário do Ser na medida em que o ultrapasso.

E vemos, através de um problema particular, colocar-se o problema da Ação. Lançado neste mundo, em determinada situação, “embarcado”, como dizia Pascal, vou acumular armas?

Vou exigir do homem branco de hoje que se responsabilize pelos negreiros do século XVII?

Vou tentar por todos os meios fazer nascer a Culpabilidade nas almas? A dor moral diante da densidade do Passado? Sou preto, e toneladas de grilhões, tempestades de pancada, torrentes de escarro escorrem pelas minhas costas.

Mas não tenho o direito de me deixar paralisar. Não tenho o direito de admitir a mínima parcela de ser na minha existência. Não tenho o direito de me deixar atolar nas determinações do passado.

Não sou escravo da Escravidão que desumanizou meus pais.

Para muitos intelectuais de cor, a cultura europeia apresenta um caráter de exterioridade. Além do mais, nas relações humanas, o negro pode se sentir estrangeiro ao mundo ocidental. Sem querer bancar o parente pobre, o filho adotivo, o bastardo rejeitado, o negro deve tentar avidamente descobrir uma civilização negra?

Não quero, acima de tudo, ser mal compreendido. Estou convencido de que há grande interesse em entrar em contato com uma literatura ou uma arquitetura negras do século III a.C.. Ficaríamos muito felizes em saber que existe uma correspondência entre tal filósofo preto e Platão. Mas não vemos, absolutamente, em que este fato poderia mudar a situação dos meninos de oito anos que trabalham nas plantações de cana da Martinica ou de Guadalupe.

Não se deve tentar fixar o homem, pois o seu destino é ser solto.

A densidade da História não determina nenhum de meus atos.

Eu sou meu próprio fundamento.

É superando o dado histórico, instrumental, que introduzo o ciclo de minha liberdade.

A desgraça do homem de cor é ter sido escravizado.

A desgraça e a desumanidade do branco consistem em ter matado o homem em algum lugar. Consiste, ainda hoje, em organizar racionalmente essa desumanização. Mas, eu, homem de cor, na medida em que me é possível existir absolutamente, não tenho o direito de me enquadrar em um mundo de reparações retroativas.

Eu, homem de cor, só quero uma coisa:

Que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para sempre a servidão do homem pelo homem. Ou seja, de mim por um outro. Que me seja permitido descobrir e querer bem ao homem, onde quer que ele se encontre.

O preto não é. Não mais do que o branco.

Todos os dois têm de se afastar das vozes desumanas de seus ancestrais respectivos, a fim de que nasça uma autêntica comunicação. Antes de se engajar na voz positiva, há a ser realizada uma tentativa de desalienação em prol da liberdade. Um homem, no início de sua existência, é sempre congestionado, envolvido pela contingência. A infelicidade do homem é ter sido criança.

É através de uma tentativa de retomada de si e de despojamento, é pela tensão permanente de sua liberdade que os homens podem criar as condições de existência ideais em um mundo humano.

Superioridade? Inferioridade?

Por que simplesmente não tentar sensibilizar o outro, sentir o outro, revelar-me outro?

Não conquistei minha liberdade justamente para edificar o mundo do Ti?

Ao fim deste trabalho, gostaríamos que as pessoas sintam, como nós, a dimensão aberta da consciência.

Minha última prece:

Ó meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!

Recomendação de leitura:
É comum encontrarmos leituras sociológicas e políticas dos motivos e dos efeitos do racismo. Fanon dá uma alternativa psicológica bastante interessante, que compensa muito conhecer. Sugiro sua obra-prima para entender melhor seu pensamento.

FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.

sábado, 28 de dezembro de 2013

Eclesiastes, o livro de filosofia da Bíblia

Olá!

Boas festas, meus amigos! E, aproveitando desse espírito, resolvi remexer em alguns apontamentos relacionados à religião vista sob o ângulo da Filosofia. É bem certo que a Bíblia, verificada sob um prisma neutro, é um livro preponderantemente teológico, é óbvio, mas dela é possível extrair muito mais. Por exemplo, o mais bem acabado retrato da história de formação judaica está contido em suas páginas, coligidas que são da tradição oral e influenciada pelos acontecimentos de um povo que se viu, desde cedo, dominado e sob interferência das mais variadas culturas impetradas pelos impérios que por lá passaram. É também um compêndio legal, e nos mostra uma população que imputou o sagrado em seu quotidiano de forma muito mais marcante do que faziam gregos e romanos, para citar dois exemplos, porque o Deus dos judeus não era um ser semelhante aos homens como os Júpiteres e Netunos da vida, mas havia ali uma relação de hierarquia e sua correspondente reverência bem estabelecidas. Há também a poética dos salmos e do Cântico dos Cânticos, além de esparsas informações geográficas (embora significativas).
A Filosofia permeia, sim, toda a Bíblia, principalmente quando observamos a área da ética e da política, mas isso ocorre de maneira pulverizada e secundária, e é necessário que se interprete cada uma das passagens para extrair esses princípios. Porém, existe um livro específico, menos popular que os Evangelhos, as cartas paulinas ou os livros proféticos, mas que tem seu foco especificamente voltado para um olhar filosófico. Trata-se do Eclesiastes, ou Qohelet.


Começando pelo nome: Eclesiastes é uma palavra grega que quer dizer algo como “pregador”. Em sua raiz, está a palavra “Ecclesia”, que significa “Igreja”. Ou seja, o Eclesiastes não é um livro necessariamente de um autor (a crítica não é favorável à indicação de que se trate do rei Salomão), mas de uma comunidade. Já o termo “Qohelet” (aportuguesando-se: Coélet) é a variação judaica para o termo descrito acima. Pertence ao grupo de livros denominados “sapienciais”, mas que possui um viés bastante diferenciado dos demais quando observado de perto.

O ponto principal do livro é a fugacidade e transitoriedade de tudo na vida. A palavra “vaidade” é utilizada inúmeras vezes para indicar o quanto o espírito humano é variável e falível, não possuindo aporte suficiente para perceber que o fluxo de mudanças captado pelos sentidos é ilusório. Neste ponto, é impossível não associar as ideias do Eclesiastes com Parmênides e a oposição ao panta rhei de Heráclito. Para compreender melhor, é preciso lembrar um pouco destes conceitos.

Os pensadores que vieram antes de Sócrates eram chamados de filósofos da physis. Eles procuravam um elemento que fosse comum à constituição de todas as coisas, chamado de arché. Assim, Tales pensou na água, Empédocles nos quatro elementos, Anaxímenes no ar; Anaximandro imaginou uma substância intangível, que preenchesse não só os corpos físicos, mas também os espaços vazios, o ápeiron. Heráclito muda substancialmente o foco da pesquisa filosófica. A constituição cosmológica já não se dá no campo físico, mas no devir, na constante transformação. Desta forma, suplantamos as instâncias físicas e inauguramos uma visão metafísica da realidade. Ele é autor de uma frase famosíssima em filosofia que diz: “não se banha duas vezes no mesmo rio”. Isso significa que, por trás de uma aparente imobilidade, encontra-se um universo dinâmico, em constante transformação. Mesmo que o rio pareça sempre o mesmo, suas águas já são outras quando me dirijo novamente para me lavar. E mesmo eu já me mudei – de um dia para outro, milhões de células do meu corpo se esvaíram, e outras nasceram; as minhas ideias e impressões já variaram, ainda que minimamente. É exatamente isso o que quer dizer panta rhei: tudo flui, em inesgotável transformação. E isso se traduz em um devir eterno, que tem até mesmo uma conotação física: o quente esfria, o grande encolhe, o claro escurece. A mudança, portanto, se explica pelo fluxo de contrários, que acabam por se harmonizar no cosmos.
Parmênides trabalha no polo oposto. Para ele, tudo é sempre e permanentemente igual. O movimento pensado por Heráclito é, este sim, ilusório. Isso porque ele pensa a realidade como a existência do Ser, nas coisas que existem essencialmente. Se o Ser é o que o identifica no mundo, não há a possibilidade de ele não ser. Confuso, não é mesmo?

É que Parmênides entende que não é possível que algo exista e não exista ao mesmo tempo. Quando algo está em movimento, este algo se desposiciona de seu próprio ser, não está mais onde deveria estar, transforma-se em não-ser. E não é possível alguma coisa ser e não-ser ao mesmo tempo. A explicação é que o universo não se movimenta em opostos: quente e frio, grande e pequeno, escuro e claro, como gostaria Heráclito – são todos aspectos de um mesmo Ser. Se o céu está escuro ou claro, ele não deixa de ser céu. Se o tempo está frio ou quente, ele não deixa de ser tempo. Se um objeto está presente ou ausente, ele não perde sua essência, a de ser um objeto bem definido. Não importa que uma mosca esteja com asas, que seja preta, que voe apenas à noite, ela é uma mosca, porque tem a essência da mosca, tem o Ser da mosca. A impressão que temos de se tratar de coisas diferentes provém de nossa incapacidade de perceber claramente a unidade universal, porque nossos sentidos são frágeis. Eles não têm o potencial de observar diretamente o Ser em sua essência, mas apenas os seus fenômenos (ser quente, frio, claro, escuro, alto, baixo, etc).
Qohelet alinha-se a Parmênides na questão da imobilidade do Ser, pelo menos enquanto o mundo que se refere a aparências. O termo “vaidade” ganha aqui seus contornos definitivos. De toda a sua poética, é possível extrair que a subsistência da realidade se dá pela impossibilidade da transformação:

“Uma geração passa, outra vem; mas a terra sempre subsiste. O sol se levanta, o sol se põe; apressa-se a voltar a seu lugar; em seguida, se levanta de novo. O vento vai em direção ao sul, vai em direção ao norte, volteia e gira nos mesmos circuitos. Todos os rios se dirigem para o mar, e o mar não transborda. Em direção ao mar, para onde correm os rios, eles continuam a correr. Todas as coisas se afadigam, mais do que se pode dizer. A vista não se farta de ver, o ouvido nunca se sacia de ouvir. O que foi é o que será: o que acontece é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol. Se é encontrada alguma coisa da qual se diz: Veja: isto é novo, ela já existia nos tempos passados. Não há memória do que é antigo, e nossos descendentes não deixarão memória junto daqueles que virão depois deles.”

Ao afirmar que “não há nada de novo sob o Sol”, Qohelet constata e estabelece uma diferenciação que, desta vez, leva-nos a uma referência platônica (que, diga-se de passagem, é bem posterior à redação do livro ora dissecado). O cuidado de observar que estas coisas se passam “debaixo do Sol” indica que o autor imagina existir um lugar onde habite a essência das coisas. O que estaria acima do Sol? Deus, com certeza. Eterno, imutável, onipresente, absoluto. O que torna possível identificá-lo com o mundo das ideias de Platão, onde seria possível enxergar a essência das coisas. Tanto Deus para Qohelet, quanto o Hiperurânio (significa supra-celeste, o que está acima dos céus) para Platão, são o habitáculo de um mundo inteligível, extra-sensório, que somente é perceptível pelo intelecto. Ambos os autores se afastam radicalmente do materialismo para vislumbrar a questão do Ser permanente de Parmênides.
Desta constatação metafísica, Qohelet obtém uma referência ética, e que por vezes parece contraditória à lógica judaico-cristã. Se o mundo é imutável (“Reconheci que tudo o que Deus fez subsistirá sempre, sem que se possa ajuntar nada, nem nada suprimir. (...) Aquilo que é, já existia, e aquilo que há de ser, já existiu; Deus chama de novo o que passou.), de nada vale ao ser humano procurar antecipar ou postergar sua própria existência. A vida é feita para ser vivida no momento, sem, no entanto, a absorção de princípios materialistas. Essa característica aproxima Qohelet dos estoicos (leiam aqui) e afasta dos epicuristas, porque essa vivência se dá sem uma busca desenfreada de prazer, mas de resignação pelo que é possível alcançar. Outros livros bíblicos estão revestidos de angústia, como é o caso das Lamentações de Jeremias. Mas, neste caso, temos um motivador histórico muito forte, que é a invasão e destruição da cidade de Jerusalém pelos babilônios. Eclesiastes não tem esse pano de fundo. O que provoca sua marca de angústia é uma constatação existencial, a própria vida é um mistério de difícil deslindamento e solução. Esse é o grande diferencial desse livro com relação aos demais presentes na Bíblia, que procuram oferecer como solução a vida futura, post-mortem. O Eclesiastes pensa o presente e a vida inserida no tempo perceptível ao intelecto.

O livro de Eclesiastes toma, portanto, um aspecto negativista e pessimista, e assim o é. Li em algum lugar que se trata do Schopenhauer bíblico, principalmente pelas inúmeras referências que faz à inexorabilidade do destino, que é a morte. Em Qohelet, temos a morte como fundamento de igualdade ao ser humano: o rei e o plebeu, o sábio e o insensato, o poderoso e o escravo, todos tem um final comum e um fardo a carregar – o esquecimento. O sistema social parece apontar para um enaltecimento das virtudes da riqueza, da exploração do trabalho, mas essa sensação é uma derivação da arrogância humana e da crueldade dos tiranos.

Para concluir, podemos observar que o livro de Eclasiastes é, bem mais que um tratado de teologia ou uma obra de filosofia, um texto humano. É um livro que espelha as referências de seu tempo, escrito por uma comunidade que nunca conseguiu se constituir como nação. É, enfim, um livro um tanto quanto menosprezado pela Filosofia por estar circunscrito ao círculo teológico, mas ele vai muito além disso ao retratar, com precisão cirúrgica, toda a fragilidade das convicções dos seres humanos.

Se você gostou deste texto e quiser ler uma abordagem sobre o tempo em Eclesiastes, convido-o a acessar esta postagem.

Recomendação de leitura:
O livro do Eclesiastes é encontrável em qualquer versão da Bíblia. É uma leitura bastante gratificante, principalmente por conta da poética e da forma diferente de tratar a questão da existência. Para elaborar este texto, utilizei a seguinte versão:

BÍBLIA SAGRADA. Eclesiastes. São Paulo: Ave Maria, 2003.

(publiquei outro texto em que fala mais algumas coisas sobre o Eclesiastes, mais notadamente na questão do tempo contido neste escrito. Quem tiver vontade pode lê-lo neste link).

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Uma casca de nós

“Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó* que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.”


Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) – Trecho d’A Tabacaria – Na minha humilde opinião, um dos melhores (senão o melhor) poema de todos os tempos


* Dominó: espécie de fantasia semelhante a um grande paletó
Olá!

A feira de orgânicos do parque da Água Branca (oficialmente: Parque Fernando Costa), onde me encontro neste momento, é um lugar curioso. Seus consumidores, no todo, buscam alimentação saudável e saborosa, mas que costumam fazer mal a um órgão especialmente suscetível a cólicas e espasmos, que é o bolso. Munido de espírito crítico, tenho a tendência a não aceitar fácil o preço das feiosinhas maçãs e dos esquálidos abacates; mas que eles são mais saborosos, isso são. Posto isso, acabo por me conformar. As pessoas costumam vir para cá paramentadas meio que a caráter, numa mistura algo insólita de saias indianas, mocassins, sandálias de couro cru, camisetas com slogans e faixas na cabeça – nossa, como gostam de faixas na cabeça. Dificilmente estas mesmíssimas pessoas utilizam estas indumentárias em seus quotidianos. Não imagino o rapaz em seu escritório de advocacia com uma calça de algodão cru, nem a menina indo prá faculdade embrulhada num sári, ou as senhoras indo ao bingo com aquelas pedras brilhantes coladas no meio da testa. Mas, entre mortos e feridos, percebo que as pessoas que frequentam o lugar têm uma boa média de cultura, conversam de assuntos um pouco mais elevados que a média geral, têm preocupações ambientais sinceras, que fogem um pouco do individual – não raro, há palestras interessantes sobre ecologia, biodiversidade e outras bossas do gênero, ou há escritores do assunto fazendo lançamentos e autografando suas obras. Isso tudo dá um ar meio hippie a estes eventos, o que me agrada. Por isso mesmo, tenho trazido meu caderno e fico sentado nas mesinhas do lado de fora da feira, enquanto aguardo, cercado de abelhas (leiam aqui), as aflitivas aquisições de minha esposa e filha – não, elas não usam faixas na cabeça (só às vezes) – e acabei por gostar do lugar, onde logo pela manhã tomo um ar fresco e sinto o agradável cheiro do café orgânico sendo passado. Acontece que, neste exatíssimo instante, estou sendo expulso do local onde estava sentado porque há pessoas que estão consumindo e não tem cadeiras disponíveis para sentar. Como eram idosos os que estavam aguardando, não criei caso, até mesmo porque, como é natural nas pessoas que escrevem, eu estava de cabeça baixa e não vi ninguém esperando. Mas, a partir de agora, passei a detestar o lugar que a 30 segundos atrás me agradava. Como a vida é dinâmica, não?
Mas isso tudo me levou a refletir. Por que as pessoas têm indumentárias diferentes nos diferentes lugares? Mais que isso: por que as pessoas têm comportamentos diferentes em diferentes locais e situações? Haverá uma verdade pública e outra privada? A multiplicidade de características é algo que devemos encarar como normalidade ou somos todos falsos?

Em primeiro lugar, precisamos ter consciência de duas coisas: existem diferentes ângulos de visão e também a diferença entre algo que é visto em seu todo e algo que é visto em suas partes. Sobre esse segundo aspecto, vejam o estudo de caso (absolutamente informal) que segue:
Peguemos como exemplo a própria cidade de São Paulo. Grande, multifacetada, costumam dizer que é a cidade dos negócios. Pode ser mesmo. Aqui, temos uma enorme quantidade de ruas com atividades especializadas, e em cada delas temos um volume de compras, vendas e escambos que seriam dignos de qualificar e nomear qualquer cidade que praticasse as mesmas atividades. Como podemos considerar a cidade em seus aspectos mais particulares?  Ela é suntuosa como os lustres da Consolação ou espartana como os uniformes da Tiradentes?  É moderna como os eletrônicos da Santa Ifigênia ou arcaica como os antiquários da Dom Orione? É rica como as boutiques da Oscar Freire ou popular como as “lodgínias” da Oriente e da José Paulino? É idealista como os vestidos de noiva da São Caetano ou realista como as máquinas usadas da Piratininga? Tem o cheiro forte das madeiras da rua do Gasômetro ou a fragrância suave das essências da Silveira Martins?  Tem a sisudez dos bancos da Quinze ou a descontração das fantasias da Porto Geral? É de labor masculino como as ferramentas da Florêncio de Abreu ou feminino como as máquinas de costura da Rua da Graça? Tem a cara de quem está por ser preparado dos cereais da Santa Rosa ou da tarefa realizada nas panelas da Paula Souza (claro que me refiro a comida)? Tem sorriso de criança como nos enxovais infantis da Maria Marcolina ou a compenetração da caça e pesca da Brigadeiro Tobias? É arte para os ouvidos como a dos instrumentos musicais da Rua do Seminário ou é arte para os olhos como a que sai dos equipamentos fotográficos da Conselheiro Crispiniano?  É limpa como as casas médicas da Borges Lagoa ou empoeirada como os móveis usados da Marechal? Trafega nos sonhos como as agências de viagem da São Luiz ou trabalha a realidade dura como as cordoarias da Senador Queiroz? É ágil como os telefônicos da Gusmões ou leve como os artigos orientais da Galvão Bueno? É multicolorida como as flores do Arouche ou monocromática como o ouro da Barão de Paranapiacaba? Anda célere nos carros das agências da Anhaia Melo ou lentamente nos calçados da Rua Cavalheiro? Aponta para o futuro como as auto-peças da Barão de Limeira ou remete ao passado das mãos das avós e seus tecidos da 25? Adere ao chão como os panos de saco da Bresser ou pensa que vai para o céu como as comércio sacro da Sarzedas? É milionária como os carrões da Avenida Europa ou miserável como a feirinha de rolo da Rua do Glicério?


Veja que a cidade é uma e também são várias. Quem olha o todo, vê uma cidade grande, pujante; quem vê o detalhe, percebe o quanto ela é diversificada, e que se coloca em posição de paradoxo com relação ao que foi citado para o todo. A cidade é grande, mas ainda tem área rural; é opulenta, mas tem enormes bolsões de pobreza; é moderna, mas possui um restinho de memória no casario antigo dos primeiros bairros; é mal estruturada, mas tem setores invejáveis e verdadeiramente funcionais; é, ao mesmo tempo, uma cidade com um colapso educacional na base e com o maior número de universidades do país; oferece ao visitante a melhor gastronomia do mundo e os piores índices de violência urbana. Tudo isso é verdadeiro, e as pessoas também são assim.

Se as pessoas são várias em seus aspectos, é porque o ser humano é uma espécie em constante adaptação ao meio em que vive. Recebe influências externas e percebe que, a cada uma delas, há algo a temer, que afeta sua sobrevivência, e daí luta para se adaptar.

Certa vez, assisti a uma palestra do historiador Leandro Karnal, e ele dizia sobre o contraponto do pensamento de três importantes pensadores dos séculos XVII e XVIII. Olhem só como teorizavam os pensadores contratualistas.
Para Thomas Hobbes, o homem era essencialmente um átomo de egoísmo. Isso significa dizer que cada homem é único e se reconhece como tal. Todas as relações humanas não se baseiam em um consenso natural, como ocorre com os animais, por um motivo muito simples: ele não existe. Como o homem é movido por egoísmo e por interesse próprio, a situação típica de uma relação é de guerra de todos contra todos. Enquanto os animais, quando se debatem entre si, tem como pano de fundo a preservação da espécie, no homem se configura a preservação de si mesmo. Daí a famosa utilização hobbesiana da frase de Plauto: “homo homini lupus - o homem é o lobo do homem” . Neste estado de coisas, e como o egoísmo do homem é extremo, ele reconhece o risco de perder seu bem maior, que é a própria vida. Desta forma, o homem estabelece acordos não escritos com os outros homens, de maneira que todos reconheçam entre si esse direito maior, e assim nasce a sociedade e o Estado, que implica no reconhecimento consensual de uma autoridade maior. Hobbes chamou o Estado de Leviatan, que é o nome de um monstro bíblico encontrado no livro de Jó, e representa o poder invencível. Em resumo, o homem é mau por natureza e necessita do Estado para controlar sua barbárie.

Em Jean Jacques Rousseau, o pensamento vai para o polo oposto: o homem era naturalmente bom. A natureza era um reflexo da divindade, e o ser humano inserido neste meio teria todos os elementos necessários para exercer sua harmonia e liberdade, em um princípio filosófico que foi fortemente identificado na literatura como bom selvagem. Só que o meio social acabava por distorcer suas virtudes originárias através da supressão da liberdade, daí sua célebre frase: “O homem nasce livre, e por toda a parte se encontra acorrentado”.  Segundo o filósofo genebrino, o homem perdeu sua pureza e bondade natural a partir do momento em que cercou um pedaço de terra e disse: “Isso é meu”.  Como os demais homens, ao invés de admoestá-lo a parar de falar bobagens, trataram de fazer o mesmo, estabeleceu-se o princípio da propriedade, e, por causa dele, todo tipo de guerra e discórdia floresceu. Essa é a triste gênese da sociedade. Para se tornar possível a vida em comum, estabeleceu-se que a vontade individual deveria ser suprimida a favor de uma vontade coletiva, o que, naturalmente, desagrada muita gente. Sumarizando: o homem é bom, mas se torna mau por influência social.
Já para John Locke, o homem era tabula rasa. Sua mente era um papel em branco no qual seria escrito tudo aquilo que sua experiência pudesse captar. Ele se tornaria aquilo que fosse escrito em sua alma, seja para o bem, seja para o mal. Não há aqui nenhuma predisposição inata, o homem não carregaria bondade nem maldade do berço. Aliás, Locke dava grande valor à educação como formadora da personalidade das crianças, e atribuía ao educador papel vital em exercitar no aluno o uso de sua razão. A sociedade se forma, ao contrário do que dizem Hobbes e Rousseau, não da necessidade de cerceamento dos instintos selvagens, mas do próprio uso da razão, na medida em que deve garantir que a liberdade de uns não seja restritiva para a liberdade de outros. Desta forma, nasce a ideia do Liberalismo, que reduz a necessidade do Estado como ferramenta de coerção e aloca-o como guardião da lei. No final das contas: o homem não é nem bom, nem mau; ele é o que fizerem dele.

Conclusão geral: não há consenso (se esses três, que são colocados na plêiade dos principais filósofos da história não chegam a um acordo entre si, não chegam a um denominador comum, que poderei fazer eu, pobre filósofo de porta de botequim?). E o consenso não existe porque as pessoas são formadas pelos mais variados aspectos, reagindo diferentemente em cada uma de suas situações. Tendemos a indicar a falsidade como um defeito, e ela é mesmo, mas é preciso compreender porque o comportamento humano nem sempre é legítimo.
A pessoa tem uma tendência óbvia de maximizar suas qualidades e mascarar os seus defeitos até mesmo como mecanismo de defesa. Um mundo onde se vive em constante espírito de competição tem a tendência de fazer com que as pessoas se munam com todas as armas que tem ao seu dispor.  E isso se enraíza de maneira tão profunda que dificilmente as pessoas se desnudam completamente. Estão sempre como uma noz: envolvidas por uma casca impenetrável, mesmo quando desnecessário, porque é-nos muito duro reconhecer a falibilidade, a fraqueza, a incoerência...

Incoerência! Quantas vezes não nos obrigamos a suportar o que detestamos, só por uma questão de conveniência. Quantas vezes fazemos em casa o que jamais faríamos na rua. Quantas vezes repreendemos em nossos filhos o que elogiamos nos filhos alheios. Quantas vezes debochamos de uma etiqueta que nunca deixamos de usar. Ou, pior ainda, quantas vezes condenamos preconceitos dos quais nunca conseguimos nos livrar no foro íntimo.
Sim, o homem se adapta às mais diversas circunstâncias, e usa tudo para isso, e dá bela ênfase à mentira e à falsidade, por um motivo absolutamente simples: ela é muito mais moldável do que a verdade. Mas não devemos nos colocar no exílio por causa disso – é também uma questão de sobrevivência. Afinal, a mimetização e a camuflagem nos animais não é, de certa forma, uma mentira necessária à vida?

Não estou erguendo um estandarte à falta de caráter do ser humano. Muito pelo contrário. Estou reconhecendo que o homem usa armas que fogem a qualquer compromisso ético. Apenas estou constatando uma característica nossa: a de moldar uma face para cada tipo de luz que ilumina seu ambiente, sem que isso seja um motivo essencial para condenações. Somos, para o mundo, uma casca de nós. A aparência que se extrai de nossas atitudes não denuncia, necessariamente, o que se pode observar de dentro.
Dessa forma, o aspecto que apresentamos ao mundo depende essencialmente do aspecto de cada uma de nossas relações. Não há uma verdade por inteiro. Que isso não nos desnature também por inteiro.

Recomendações de leitura:
São os contratualistas que eu citei. É muito interessante analisar as discrepâncias entre suas teorias.

HOBBES, Thomas. Leviatan ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
LOCKE, John. Ensaio Acerca do Entendimento Humano. São Paulo: Nova Cultural, 1997.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Saraiva, 2011.

PS: Resolvi acrescentar as palavras do Pedro Debs Brito no Facebook, para enriquecer ainda mais este texto:

" E se puder adicionar algumas poucas palavras, essas seriam as seguintes: do Riobaldo, lá do grande sertão: "este mundo é muito misturado" e aí uma consideração do Edgar Morin, filósofo: o ser humano é complexo, do sentido original do termo, complexus significa aquilo que é tecido junto; tece e entretece... são os vários fios e as diversas partes que se unidas formam uma casca. Dessa maneira a questão pra mim se concentra no olhar; ou melhor, na forma como olhamos. Se buscarmos olhar de uma maneira compreensiva, de natureza complexa, conseguiremos - acredito eu - enxergar melhor, não enxergar mais, mas enxergar melhor. Ter em conta que não olhamos coisas, mas pessoas, fenômenos dinâmicos e nada integrados: ao contrário, espalhados. "Vou mostrando como sou, e vou sendo como posso. Jogando meu corpo no mundo, andando por todos os cantos e pela lei natural dos encontros: eu deixo e recebo um tanto" disseram os Novos Baianos.

Tudo isso pra dizer que vejo que somos feito casca de nozes compostos por diálogos infinitos e compreensões plurais; são essas coisas que ficam em nós das nossas relações que formam nossas identidades (no plural mesmo)."

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O eterno retorno como alegoria e como ferramenta do auto-questionamento

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!’ Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: ‘Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!’ Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: ‘Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?’ pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” (aforismo 56 – Gaia Ciência – Nietzsche).

Olá!
Em geral, as redes sociais são permeadas de besteiras, mas tem seus lados agradáveis também, dispondo ao pretenso filósofo várias oportunidades de ostentar (tal qual uma passista na escola de samba) seus bandeirosos conhecimentos. Dia desses, estava pululando prá lá e prá cá em uma delas e deparei com um comentário de uma amiga chamada Eliana, que dizia o seguinte: “Quem nunca se imaginou voltando ao passado e fazendo sua vida de outra maneira?”. Não titubeei nem por um segundo e tasquei o famoso aforismo nietzschiano reproduzido acima, na íntegra, que é o axioma de sua doutrina do eterno retorno, uma das mais conhecidas.


Já tratei de Nietzsche por aqui, quando tratei do tema dos feriados sem significado, e também já falei do eterno retorno, que não é uma criação do bigodudo, mas dos estóicos. No entanto, como tenho percebido que o tema é tratado por alguns de forma quase mística e esotérica, colocando o nosso caríssimo filósofo e filólogo alemão em uma espécie de altar (o que, creio eu, desagradá-lo-ia bastante), achei por bem dar uma pincelada um pouco mais apurada nessa doutrina, para que meus leitores possam discutir comigo qual é a extensão de sua validade.
Quando começou a escrever, Nietzsche já era um leitor de Schopenhauer, o filósofo do pessimismo (de quem já falei aqui). O núcleo de sua filosofia voluntarista era a centralização da vontade como entidade única e inobservável, e da representação que cada um tinha dela. Se relembrarmos de Kant, veremos que o mundo é dual: temos a coisa-em-si, identificada com a essência, chamada de noumeno, e as coisas em suas contingências e acidentes, chamadas de fenômenos. O que está disponível para nossa percepção são apenas os fenômenos, as coisas tais como são apresentadas a nós, porque apenas podemos apreender através dos sentidos. Explicação ultra-rápida: não temos como visualizar a essência do céu, por exemplo; o que enxergamos são aspectos circunstanciais dele – límpido ou nublado, claro ou escuro, estrelado ou vazio. Schopenhauer identificou o noumeno kantiano com a vontade, e os fenômenos com as representações.

A vontade (que mais tarde Freud identificou com as pulsões e os desejos) era o motor do mundo, incessante, inesgotável, eterna. Schopenhauer tirou da razão o estatuto de identificador humano prioritário e a arrancou dos pedestais. O verdadeiro comando, o verdadeiro guia era a vontade.

Tudo era movido por essa estranha entidade, mas como cada homem possui um conjunto orgânico próprio, um aporte intelectual exclusivo e uma história particular, a vontade era diferentemente manifestada para cada um deles. Então, esse mundo constituído em seu substrato pela vontade una, tomava diferentes aspectos e diferentes representações. Resumindo: a vontade é uma só, o que mudam são suas representações, já que estas são tomadas a partir de uma determinada e irrepetível perspectiva.
Só que a vontade não se exaure nunca. A cada vez que um homem a persegue e não realiza, se angustia. Por outro lado, se a vontade é realizada, imediatamente toma corpo outra representação, com um outro desejo, e também aqui surge a angústia. A vontade plena nunca se realizará, e o homem continuará eternamente a ser presa dela. Desta forma, a vida se torna vazia de sentido: é um eterno movimento entre as representações da vontade, que nunca é atingida, mas está sempre presente. A única alternativa é uma atitude ascética – um autêntico “não ligo”. E isso pode ser obtido através da contemplação artística, do isolamento, etc.

Nietzsche concorda com quase tudo o que teoriza Schopenhauer com relação à vontade, mas discorda em um ponto tão central que acaba por tornar sua tese totalmente oposta, que é sua perspectiva moral. Para ele, a vontade não tem esse aspecto negativo que fez pousar um urubu sobre a efígie do mencionado filósofo. Muito pelo contrário.
Para Nietzsche, a vontade é vontade de poder (ou vontade de potência, de acordo com alguns tradutores). E o que esse termo implica? Se para Schopenhauer a vontade é baseada em um instinto de auto-preservação, este só pode ser baseado no medo, e, consequentemente, na covardia e na apatia. Já se a vontade se baseia em um desejo ardente de se tornar sempre o maior, o melhor, o mais potente, o mais poderoso, ela naturalmente impulsionará o homem para além de si mesmo. Essa vontade de poder é ativa quando domina e quando resiste. Não só aquele que ataca a tem, mas também aquele que se defende renhidamente é movido por esse princípio. Dessa forma, a vontade de potência é chave da combatividade, da intensidade e do desejo de viver no mundo, e deveria fazer com que a vida dos homens fosse um paralelo com a vida dos animais: uma espécie de seleção natural com um adicional, onde haveria o domínio dos melhores, dos mais fortes, dos mais bem preparados, daqueles que fossem além de sua própria humanidade. A vontade de poder é uma busca pela superação dos limites.

Mas por que eu disse “deveria” no parágrafo anterior? Porque, segundo Nietzsche, há uma força em sentido contrário à vontade de poder que ele denominou “moral de rebanho” ou “moral de escravos”, cujo principal inoculador era a religião, em especial o Cristianismo. É um tipo de moral que subverte a ordem natural e inverte a plenitude obtida pelo forte. As chaves do sucesso para que os mais fracos consigam inverter os valores e colocar o forte na defensiva são exatamente aquilo que lhes restam de armas diante do inimigo melhor preparado: seu instinto gregário – o rebanho; e o seu discurso, a linguagem. Através dela, o rebanho fustiga aquelas qualidades que fazem com que o homem se sobressaia individualmente – que se destaque do rebanho. Tudo aquilo que não é encontrado no seio comum ganha um atributo de mau, perverso, demoníaco. Assim, a coletividade se sobrepõe ao indivíduo e o oprime, de modo a imputar o valor de mentira a tudo aquilo que lhe escapa. Por exemplo: dificilmente vemos alguma pessoa assumir que é ótima em uma determinada área. É raro alguém dizer: “Sou bom músico”, “não conheço ninguém que faça poemas como os meus”, “sou fera no meu trabalho”. As pessoas se trancam em uma humildade irreal, e dizem: “Eu me esforço”, “meu trabalho não seria nada sem ajuda”, “dou o melhor de mim”, “é um dom que me foi dado”. Reconhecer-se a si mesmo como bom é ruim, é tido como arrogância, como imodéstia. Essa construção do rebanho impede que o indivíduo colocado em relevo seja tido como coisa boa, e este se sente culpado por aquilo que ele tem de melhor, e tende a se igualar ao rebanho como um todo. Torna-se um ser humano comum, como qualquer outro; não se diferencia de um animal como outro qualquer, como a ovelha no rebanho.
Nietzsche propõe o eterno retorno como metáfora para que o indivíduo avalie se sua vida vale a pena. A pergunta é simples, e tive a oportunidade de fazê-la em classe, quando estava substituindo o professor Arnaldo Zaki na ETE Carlos de Campos: você está satisfeito com a sua vida? Você certamente gostaria de renascer após sua morte, mas você gostaria que ela fosse absolutamente idêntica ao que ela foi até hoje? A resposta foi uma surpreendente unanimidade: não, ninguém gostaria que suas vidas fossem idênticas ao que já tinham vivido. Uma menina inclusive disse que, se fosse para assim ser, preferiria que a vida não se repetisse.

Pois é exatamente esse ponto que Nietzsche quer tocar. Os homens SUPORTAM suas vidas, quando deveriam, na verdade, amá-las. Deveriam pautar sua existência em realizações nela própria, ao invés de esperar pelos prêmios de uma suposta vida futura. Nietzsche aceita com regozijo e sobrevaloriza exatamente aquilo que Schopenhauer amaldiçoa e que as religiões ensinam a aceitar compassivamente: amor fati, o gosto pelo destino, seja da maneira que vier, como consequência de nossos atos, como casualidade inevitável, como o destino trágico que o herói grego sofre. Portanto, o eterno retorno não é um dogma de equilíbrio do universo como imaginavam os estoicos. Em Nietzsche, ele está mais para uma alegoria, como é o mito da caverna platônico, e que serve para indicar um caminho para a constatação do que estamos fazendo de nossas vidas, um exame de consciência que permite estabelecer se nossa existência vale a pena ser vivida.
Não vou, neste momento, fazer juízos de valores sobre estas ideias de Nietzsche, bastante controversas, por sinal. Muito já se reclamou da sua doutrina da vontade de poder, principalmente por causa da expansão do nazismo, mas é precisa advertir, antes de mais nada, que seu uso é indevido. Vontade de poder é uma guerra de equilíbrios universais que transcendem motivações meramente políticas, que está presente em qualquer situação de confronto, vinda de ambos os lados, desde uma onda que colide na rocha e esta resiste, até a mais elaborada criação humana e seus paradoxos intelectivos.

Recomendação de leitura:
A maior parte do que me concentrei em explanar neste texto encontra-se n’ A Gaia Ciência, livro que já recomendei anteriormente. Por esse motivo, vou recomendar outro livro, que trata com mais afinco da doutrina da moral de rebanho.

NIETZCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Sobre o modo como o Black Sabbath usa os demônios para colocar o dedo nas nossas feridas

Olá!

Quando eu era menino novo, morava junto dos meus primos em uma casa velha da Vila Ema. Isso era nas décadas de 70 e 80. Para situar um pouco meus leitores no tempo, naquela época a hoje Avenida Luiz Ignácio de Anhaia Melo (conhecida pelo intenso comércio de veículos usados) era um longo rosário de chácaras, serpenteado em seu meio pelo então descoberto e já mal cheiroso Córrego da Moóca. Meu primo mais velho e compadre, infelizmente in memorian, tinha alguns discos de hard rock, que costumava colocar em volume considerável, e que contrastava com o então em voga John Travolta e seus meneios e visagens disco.
Não tínhamos uma rádio lendária como a Eldopop em São Paulo (somente na segunda metade da década de 80 surgiram a rádio 97 de Santo André e a ilegal Ladrão do Mar, com programação voltada exclusivamente para o rock – a 89 veio um pouco depois), os lançamentos de discos tinham uma diferença de meses ou anos entre o exterior e aqui (isso quando eram lançados) e baixar música... Bom, isso não existia nem em sonho, nem nos mais otimistas prognósticos. Shows de artistas internacionais era outra coisa impossível, porque os pobres tupiniquins não faziam parte do roteiro das turnês. Malemá me lembro das passagens do Queen, do Van Halen e do Kiss. O Brasil só começou a entrar na rota dos grandes eventos a partir do Rock in Rio, de 1985. Por conta disso, o grande intercâmbio se dava pelo trânsito das fitas cassete e rodízio de LP’s feito entre os amigos. Desta forma, tomávamos conhecimentos dos lançamentos, das novidades e das notícias de uma forma que se aproximava da tradição oral, tão cara aos nossos antepassados. Lojas de disco que traziam novidades, como a Woodstock ou algumas pérolas da Galeria do Rock viviam lotadas até a tampa.
As coisas eram um pouco diferentes do que são hoje em dia. Costumávamos acompanhar o mais de perto possível a carreira de nossos ídolos, mas sem se importar com detalhes tão pessoais, como as cores preferidas, as boutiques mais frequentadas e outras efemérides. O que importava mais eram as tendências que cada álbum seguiria, o acolhimento das excursões, as datas dos próximos lançamentos. Tanto fazia se guitarrista tal era homossexual, se baixista X era religioso ou se baterista Y traía a mulher. O que mais importava era o produto entregue. Mas era possível detectar algumas características comuns e algumas sutilezas que diferenciava determinada banda de todas as outras.
Havia um tripé que sustentava toda a cena hard rock de então: Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabbath. Do primeiro, tínhamos as raízes blues e o misticismo contrapostos a uma seção rítmica poderosa. Do segundo, um ar mais de pesquisa (era o única das três que tinha um tecladista de ofício, o excelente Jon Lord) e velocidade. Do terceiro, a atmosfera macabra e o peso, digno de estourar crânios. Ao todo, em suas formações clássicas, eram treze músicos, doze deles exímios. O único que não era um virtuoso executor era o Ozzy Osbourne. Mas, longe de qualquer dúvida, era o mais essencial de todos, porque sintetizava todo o pensamento daquela juventude que aflorou nos fins da década de 60. E esse era permeado pela revolta e pela violência.
O que tínhamos naquela época? Um mundo na premência da guerra. Lembremo-nos que aqueles eram os anos do pós-guerra mundial e da guerra fria. Estados Unidos e União Soviética espalhavam seu imperialismo pelo mundo e colocavam a humanidade sob constante ameaça de um combate nuclear. Eram tempos da guerra do Vietnã em pleno curso, onde milhares de soldados foram enviados a uma terra totalmente desconhecida, onde um povo absolutamente distinto procurava dar um rumo para a sua vida. Eram os anos do apartheid, e a minoria branca não só exercia o poder discricionariamente, mas também transformava a África do Sul em um imenso gueto.
Uma boa parte da juventude, na verdade a esmagadora maioria, era contrária à guerra. A luta entre os sistemas gerava um sentimento de medo e vontade de fuga, e nasce com isso uma série de movimentos de contestação, dos quais os hippies provavelmente foram os mais conhecidos.

Acontece que os hippies eram movidos por um pacifismo que chocava pelo comportamento coletivista, pelo sexo livre e pelo consumo de drogas, mas ainda não havia chegado ao âmago do stablishment. Flower Power significava um desejo de paz e liberdade, mas não era uma denúncia aberta; era uma fuga, um não-enfrentamento. Faltava algo mais.
Quando o Black Sabbath resolveu falar de inferno e de demônios, acabou atingindo a base da construção moral da ocidentalidade, e atirou na cara dos senhores da guerra que a sua atitude belicista era algo que gerava contra si mesma as armas erigidas por seus maiores medos. Os demônios, nesse libelo acusatório, nada mais são do que metáforas e consequências deste modo de agir, mas que incomodam demais. Vejam o que diz uma parte da letra de Wicked World:

“The world today is such a wicked thing
Fighting going on between the human race
People give good wishes to all their friends
While people just across the sea are counting the dead”

Traduzindo…

“O mundo hoje é como algo perverso
A luta continuará entre a raça humana
As pessoas desejam boa sorte para todos os seus amigos
Enquanto as pessoas do outro lado do mar estão contando os mortos”

A atitude da sociedade ocidental é paradoxal, e o Sabbath deixa isso claro. Enquanto apregoa uma religião judaico-cristã que se baseia na tríade fé, esperança e amor, também lança bombas, napalm e agente laranja na cabeça dos coreanos e vietnamitas. E tomam um cacete exemplar. Essa mesma filosofia religiosa garante punição ao mal, e mesmo que a manutenção do sistema sangrento seja justificada como uma defesa da própria vida, lá no seu íntimo sabe-se que haverá uma penalidade a ser remida. Esse fardo era pesado de arrastar, e o Sabbath soube compreender e explorar isso.
Mas o fato é que a sociedade ocidental, ao menos no que se refere a uma visão global, funcionava bem. Tanto é verdade que ela existe até hoje, talvez com uma ferocidade mais dissimulada (mas não extinta – que se lembre rapidamente da invasão do Iraque). Isso quer dizer que tanto o pacifismo do flower power quanto a ferocidade do Sabbath estavam errados? Eram, de fato, desajustados sociais que não compreenderam o funcionamento da máquina política? Hmmmmm... Vamos ver. E, para ver, vamos convocar Erich Fromm, que manjava bem dessas coisas.

Erich Fromm era um psicanalista alemão que divergia em alguns pontos do grande mentor desta ciência, Sigmund Freud, e que trazia uma inédita visão marxista sobre a psicanálise. Ele acreditava que a grande contribuição de Freud foi a descoberta do inconsciente, mas que tal descoberta se deu de maneira limitada. Isto é algo típico do desenvolvimento de novas ciências, mas o ideário freudiano foi tão encantador que seus seguidores tiveram dificuldade em confrontá-lo. Já tematizei a questão da consciência freudiana por aqui, mas vamos fazer uma rápida retomada. A mente humana opera em três níveis de consciência, chamados de instâncias: o id irracional, o ego consciente e o superego censurador. O primeiro e o último se opõem radicalmente. Enquanto o id é a sede dos instintos e das reações imediatas, o superego é constituído pelas amarras morais que refreiam as ações instintivas. Para Freud e seus seguidores, esta disposição mental, quando em desequilíbrio, denota o transtorno do indivíduo.
De forma mais ou menos intensa, Freud e seus seguidores acreditavam que a sociedade tinha mecanismos de acomodação que faziam com que suas virtudes fossem exaltadas e seus defeitos amainados. O que provava essa tese era o fato de que, de uma forma ou de outra, a sociedade funcionava de maneira adequada: havia uma ordem estabelecida, existiam regras nas relações e seus componentes sabiam razoavelmente bem os scripts a serem seguidos para viver sob sua égide. E aí surgiam aqueles indivíduos que não se enquadravam adequadamente a esses esquemas, e temos com isso os desajustados – os criminosos, os mendigos, os neuróticos – sendo que esses últimos interessavam grandemente à psicanálise, incluindo aí o estudo sobre os seus desajustes ao chamado “mundo normal”. O ego destas pessoas não conseguia equilibrar os limites impostos ao superego pelos mecanismos sociais. Ou seja, tentava-se responder à seguinte pergunta: Por que há indivíduos que fogem de um determinado padrão social?

Fromm foi radicalmente contrário a essa visão. Para ele, a existência de indivíduos desajustados não denota simplesmente um erro pessoal, mas uma doença da sociedade: ela não deve prover e se preocupar unicamente com as necessidades físicas do cidadão, mas também suas necessidades psíquicas. Os homens não tem sua consciência formada de modo meramente biológico, comprimida pelo instinto de preservação e pelo imperativo dos instintos sexuais. Por consequência, Fromm entende que a psicanálise, como praticada até então, era mecanicista e determinista, além de não se prestar a esclarecer nada sobre a psicologia dos grupos, das etnias, das comunidades.
Para dar conta desta última característica, Fromm acreditava na existência de um influenciador de atitudes, que era o inconsciente social. É uma forma aproximadamente semelhante ao inconsciente coletivo preconizado por Jung (do qual falei neste post), ou seja, existe um tipo de estrutura mental que atinge as pessoas coletivamente, extrapolando os limites dos indivíduos. A diferença básica entre os dois tipos de inconscientes é que no coletivo temos estruturas universais e permanentes, denominadas arquétipos, enquanto no social o que temos é a repressão de partes da consciência pela própria sociedade, causadora de alienação. E uma diferença consequente é que os arquétipos são muito mais difíceis de florescer na consciência, porque são atávicos e inerentes à espécie, enquanto a alienação é mais fácil de ser trazida à consciência e combatida, como todo bom marxista acredita.

Mas como o inconsciente social se forma? Os homens se relacionam entre si e com o mundo com diferentes níveis de interesse. Fazem-no para obter conforto, proteção, afeto, segurança e outros. Neste ciclo, alguns indivíduos revelam-se mais aptos ao exercício do poder e passam a formar um comportamento em que as atitudes prejudiciais a eles passem a ser reprimidas. Essa repressão se expande e se torna tão habitual que passa a ser interiorizada e recalcada, de modo que as pessoas adotam hábitos que nem sabem mais por que o fazem. Qualquer semelhança com a teoria da alienação de Marx não é mera coincidência. Fromm a estendeu ao mecanismo psíquico, nada mais que isso.
Só que esse inconsciente não está em um nível tão profundo quanto o inconsciente individual ou o coletivo. Isso porque há transformação de interesses e um impulso a se formar novos inconscientes sociais, o que faz com que os indivíduos consigam reagir. É aí em que enquadramos a revolta tipicamente juvenil, que, via de regra, se volta contra os pais, porque são estes a porta de comunicação com a sociedade como um todo. Os mecanismos que preenchem o superego não são constituídos meramente por influência dos pais. Estes são apenas os vetores de uma construção social. São os agentes autorizados pela sociedade a impor as rédeas comportamentais.

Desta forma, toda atitude de confronto com os pais não está conscientemente voltada contra eles. A reação é contra a sociedade, e é possível investigar e mensurar o quanto a própria sociedade é adoecida. Um jovem tem os pais como parâmetro, mas estes são também um produto social. Quando a menina quer colocar um piercing ou o rapaz quer fazer uma tatuagem (bom, isso já nem é mais uma contestação – já é uma moda) para contrariar os pais, querem na verdade contrariar a sociedade inteira. Quando o Sabbath ou outra banda qualquer grita nomes de demônios e profere sacrilégios, na verdade contestam os estados de coisas vigentes e buscam uma quebra da aceitação cega dos ditames de uma sociedade que, na sua concepção, é injusta. E quanto mais neuróticos existem em uma sociedade, mais ela é doente, porque deixa de atender uma determinada camada populacional em seus anseios e expectativas a ponto de causar um desequilíbrio emocional a um número significativo de componentes. Não é a toa que a reação da crítica na época foi a de considerar sua obra como música feita por e para macacos.
Por fim, devo dizer que, no começo de outubro, fui ao show do Black Sabbath realizado no Campo de Marte. Olha que gracinha o ingresso:



No geral, alguns problemas sérios: o local não tá legal prá receber shows dessa monta. Milhares de morrinhos impediam que as pessoas se espalhassem uniformemente, o que dificultou a vida de pessoas de estatura mediana, como eu. A abertura foi feita pelo ótimo Megadeth, digno de uma turnê como atração principal – lembrando que não é vergonha nenhuma para qualquer banda, mesmo medalhões como o Metallica e o Anthrax, abrir uma apresentação do Sabbath. O som, nesta parte do show, estava vergonhoso. Parecia uma mistura de Olodum com aqueles festivais de taikô tão comuns nos eventos japoneses, tal era a altura do som dos bumbos. O baixista poderia sair confortavelmente para tomar uma boa quota de cervejas que ninguém iria perceber. Mas na hora do “vamuvê” estava tudo em seu devido lugar (os caras da mesa devem ter sido trocados, graças a Deus). Não é a toa que os caras chegaram onde chegaram.
É bem verdade que faltaram vários clássicos no repertório. Músicas como a precitada Wicked World, Supernaut, The Warning, The Wizard, After Forever, Sabbra Cadabra, alguma coisa do Sabotage, como Sympton of the Universe e Hole in the Sky, além de muitas outras, poderiam ter sido encaixadas, mas creio que já seria muito para a garganta bastante dilapidada do malvadinho Ozzy. Mas não deixou de ser uma catarse aquela reunião de vovôs despirocados com a rapaziada sedenta pela busca dos ídolos que lhes faltam hoje em dia (Fui no show com meu filho e minha nora). Vão ser bons assim lá no inferno!

God bless you!


Recomendações:
A primeira e mais essencial: Não morram sem ver um show do Sabbath. Quer dizer, isso se os caras não morrerem primeiro e vierem novamente para o Brasil.

 
Quanto a Erich Fromm, sua obra é vasta. Mas como tocamos no tema do inconsciente social, deixo como dica uma obra póstuma, composta de uma série de textos coligidos em torno do tema.
FROMM, Erich. A descoberta do inconsciente social. São Paulo: Manole, 2011.