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quarta-feira, 29 de setembro de 2021

O livro de Jó e a Filosofia da teodiceia que há por trás dele

(Por que existe o mal no mundo? Essa é uma pergunta tão antiga e tão sem resposta que nunca perdeu sua atualidade)

“Se tão somente ficassem calados, mostrariam sabedoria” – Jó

Olá!

Tudo bem com vocês? Conforme pude avaliar nos meus posts comemorativos (100º texto e 5 anos de blog), meu escrito mais lido versa sobre o Eclesiastes, livro bíblico que mais se aproxima de um tratado filosófico, a ponto de tratar de alguns dos temas mais caros aos pensadores pré-socráticos, como a dialética entre a permanência e a variabilidade do Ser. Dado este fato, resolvi abordar mais alguns temas bíblicos, não pelo prisma teológico, já que não tenho conhecimento para tanto, mas para extrair um pouco de Filosofia a partir de suas narrativas. Comecei fazendo novas reflexões sobre o mesmíssimo Eclesiastes, desta vez mirando mais a questão do tempo e sua estrutura dialética. Desta vez, vamos tentar descortinar um pouco do livro de Jó, mais conhecido como símbolo da paciência (estaria mais para resiliência nos dias de hoje).

Essa história da paciência é o que tornou este livro bíblico célebre para o senso comum, mas, bem medida e bem pesada, trata-se de uma questão para lá de lateral. O que é de mais significativo na narrativa sobre Jó é o sofrimento humano (cuja paciência proverbial é necessária para suportá-lo), e, principalmente, a grande pergunta: por que o mal existe?


A história de Jó é bastante conhecida, portanto façamos apenas um breve resumo. Jó era um pecuarista próspero de algum lugar meio incerto da atual Palestina, que é denominada Terra de Uz. Vivia sobriamente e se apartando o máximo possível do pecado, e era um motivo de orgulho para Javé, o deus judaico. Em um certo momento, Satã, aquele mesmo, propõe um desafio a Javé: retire tudo de Jó para averiguar se sua dedicação permanecerá. Todo o gado foi saqueado ou morto, enquanto os seus filhos foram atacados e passados pelo fio da espada. Mesmo com todos esses dissabores, Jó permaneceu louvando a Deus. Satã lança uma segunda proposta, também aceita por Javé: macular o próprio Jó, cobrindo-o de feridas. Jó se assentou em meio à cinza, e lá ficou se coçando com um caco de louça. Três de seus amigos* vieram para lhe prestar solidariedade, e este é o trecho mais longo do livro. Jó proclama grandes lamentações sem, no entanto, maldizer a Javé em momento algum, apenas clama por sua retidão e por uma explicação, que é a tônica de todo o texto: por que o justo sofre? Seus amigos tendem a imputar-lhe alguma culpa não declarada, indicando haver um pecado oculto para tamanho castigo, o que Jó nega veementemente. No desfecho do livro, o próprio Javé se apresenta a Jó, e passa-lhe bela carraspana, que sobrou também para os seus amigos Elifaz, Bildade e Zofar. Expõe as maravilhas da criação e demonstra que é impossível de Jó querer se comparar em conhecimento ao que ele mesmo, Javé, tem. E, por fim, diante da contrição apresentada, restitui todos os bens e lhe dá novos filhos, além de vida longa e farta.

A crítica histórica em geral é favorável à tese de que Jó não tenha sido efetivamente existente, posição que é corroborada pela igreja católica e por protestantes menos literalistas, como é o caso das divisões mais tradicionais. Isso ocorre porque faltam outras fontes que se refiram a um personagem muito rico e que teve uma marcante queda e um novo florescer, coisa que não deveria passar despercebida em uma região relativamente pequena. É mais provável que se trate de uma história de fundo moral, transmitida oralmente através das gerações para ensinar nos templos que é um erro comparar o conhecimento humano com os mistérios emanados de deus. Sob o prisma filosófico, a existência ou não de Jó é irrelevante, vez que o que importa é a ideia que a narrativa desenvolve.

Apesar de ser um texto especialmente da Teologia, existem questões que transcendem à mera doutrina e aspectos laudatórios, que vão interessar diretamente à Filosofia. O primeiro aspecto é a posição do homem diante da sensação de injustiça. Todos nós já passamos alguma situação em que nos sentimos extremamente injustiçados, mesmo que o sentimento seja desproporcional ou irreal. É uma situação em que dificilmente deixamos de reagir, mesmo que sejamos muito pacíficos. Eu já descrevi um acontecimento em que me senti injustiçado neste post, mas vou contar a vocês uma ocorrência muito mais séria.

Eu trabalhava em uma metalúrgica e fui nomeado secretário da CIPA**. Apesar da pompa do cargo, era um trabalho simples: transcrever os debates em um livro, extraindo uma cópia fiel para colher assinaturas e enviar ao sindicato e à delegacia regional do trabalho. Só isso, sem um centavo a mais de remuneração.

Fiquei nessa função por três anos, sempre cumprindo rigorosamente os prazos e desfiando minha redação acima da média e com a modéstia guardada na gaveta, até ocorrer um fato insólito. Um dos membros foi demitido, o que só poderia ser feito por justa causa, já que a lei protege os cipeiros de demissão a critério. No processo que se seguiu, apareceram nos autos cópias diretas do livro de registros de atas, o que me colocou no olho do furacão. A pergunta veio seca: por que você deu as cópias para o D*** colocar no processo? A resposta também: Que cópias? Eu não dei cópia alguma, embora não teria feito nada de errado se o fizesse. Mas a aura que se deu é que esse era um ato de traição, e o olho da rua se afigurava como a serventia da casa naquele momento.

Não era uma época especialmente ruim para emprego, mas ser demitido carregando a pecha de traíra não estava dentro do meu horizonte, e comecei a fazer de tudo para comprovar minha inocência. Peguei um dos caras do DP e fui fazer minha peregrinação. Na justiça do trabalho, fui conferir o processo e, de fato, estavam lá os manuscritos xerocados. Fui ver se eles saíram do DRT, mas de lá só havia a transcrição datilografada. Fui ao sindicato e idem, mesmo documento. Conversei com o colega demitido, que me enrolou sem confessar a origem e disse para eu contatar o advogado dele. Liguei para este, que tentou me por na roda, dizendo que tanto podia ter obtido no DRT ou no sindicato, o que eu já havia conferido, tudo isso com o cara do DP. No final do dia, já em flagrante desânimo, ainda tentei mais uma ligação para o demissionário, dizendo que ia me custar o emprego. Não o comovi, o que me gerou até certa desconfiança de mim mesmo. Será que eu havia distribuído a cópia e nem me lembrava mais?

Meu chefe à época me chamou e disse: “cara, se você deu a cópia, é melhor você confessar. Pode ser que o gerente deixe passar”. Eu respondi com o máximo de sinceridade: "Toninho, não fui eu. Não consigo dizer se alguém veio aqui e tirou as cópias, o livro fica em cima da minha mesa, ele não é secreto. Mas eu não fui".

O chefe e o cara do DP foram ao gerente levar seus pareceres. Minha indignação e vontade em provar minha inocência, testemunhadas por ambos, era tanta que acabou servindo como prova. Poderia ser uma atuação perfeita de um ator em grande forma? Sim, mas é difícil manter uma mentira com tanta perfeição.

É que a sensação de injustiça mexe com os brios da pessoa, e engoli-la não é para qualquer um. Não foi para mim, não foi para Jó. Diante do homem que se coloca como um perfeito cumpridor de suas obrigações, obter o efeito exatamente inverso é, antes de mais nada, um erro lógico. Se há uma ordem natural no funcionamento do universo, a injustiça vem no seu sentido contrário, vem confrontar tudo aquilo que podemos esperar entre causas e efeitos, e isso é como um zumbido no ouvido durante a noite mais silenciosa. Mais ainda quando vem em contraste com as promessas de sua divindade. Para quem crê nela, bem entendido.

Mas há uma segunda questão mais universal ainda, e que até hoje é de resposta indefinida, embora tenha havido boas tentativas, como mostrarei aqui. O homem sofre porque o mal existe, mas os fundamentos das religiões abraâmicas dizem que Deus é bom e criou tudo, e tudo o que ele criou é igualmente bom. Por que Deus criou o mal? Este é o problema que ficou conhecido como Teodiceia, e já o abordei nesta casa, mas há outras teses igualmente interessantes.

Uma das mais conhecidas tentativas de resposta veio de Santo Agostinho. Para ele, o mal não é um estado concreto, que tenha necessidade de uma criação. O mal surge quando o bem não está presente. O mal é a ausência do bem, em síntese.

Vamos deixar isso mais claro. Quando voltamos ao velho Parmênides, encontramos a noção do não-ser. Relembrando sua máxima, ele dizia que "o ser é, e o não-ser não é, nem poderia ser". Essa frase, entre outras interpretações, diz a nós que há duas opções bastante claras sobre a essência de qualquer coisa que exista no universo. Uma é a presença da coisa, que preenche uma existência, e outra é o vazio causado pela sua ausência. Quando Agostinho fala da essência do bem, refere-se a uma criação de Deus como todas as demais. O bem é aquele estado onde tudo funciona segundo uma lógica da perfeição. Entretanto, qual seria o não-ser do bem? É a sua própria ausência e é aí que acontece o mal. O mal é exatamente o vazio do bem, o não-ser do bem. O homem é racional e possui livre-arbítrio, por esse motivo acaba muitas vezes escolhendo o caminho da ausência do bem. O homem pérfido está na ausência da benevolência, o homem iníquo está na ausência da complacência, o homem corrupto está na ausência da retidão, o homem mau está na ausência da bondade. Desta forma, o mal não pode ser imputado a Deus, mas às escolhas do ser humano.

As justificativas de Santo Agostinho são boas para explicar o mal produzido pelo homem, mas não para explicar o mal que se volta contra o homem. Fica meio difícil de encaixá-la nas ocorrências que não dependem das atitudes humanas, como as catástrofes naturais ou as doenças congênitas. Não havia, por exemplo, nenhuma ação humana possível no terremoto de Shensi, que matou estimados 800 mil chineses no ano de 1556. Neste caso, como dizer que a morte dessas pessoas não é um mal? E como atribuí-lo a uma ausência de bem? Não há valores morais na mecânica do cosmos, mas há consequências devastadoras.

Quem vai tentar uma resposta mais abrangente é Leibniz, o pai da monadologia. Segundo ele, a partir do momento em que Deus cria o universo, há uma infinidade de possibilidades de conformação de todas as coisas. Existem infinitos mundos possíveis, mas apenas um existente, real, palpável, visível e sensível. E por que este, e não outro qualquer, principalmente onde o mal não existisse e comprovasse a infinita bondade de Deus? Leibniz se baseia no entendimento de que as conclusões a que chegamos através da razão nada mais são do que a redescoberta do que já nos é dado através da fé. Veja-se, por exemplo, o caso dos milagres. Eles são uma contingência que ferem uma lei geral. Entretanto, muitas das vezes consideramos como milagres fenômenos que na verdade nada mais são do que ocorrências naturais, ocorridas em determinadas condições, e que simplesmente não possuem explicação bem formada naquele momento específico. Isso dá uma ideia de como a visão dos seres humanos sofrem mudanças com o tempo, na medida em que sua compreensão sobre o cosmos se torna mais sofisticada.

O mundo atual é o melhor dos mundos possíveis e o mal existente não é sem razão. Mesmo este melhor mundo possível pressupõe uma certa dose de males porque eles são uma necessidade ao seu próprio equilíbrio. Imaginamos quando crianças uma gazelinha correndo nos campos e nos parece um mal que um leão a abocanhe. É somente mais tarde, com o desenvolvimento da razão e com o amadurecimento, que percebemos que este fato não é um mal, sendo apenas um meio de se manter a harmonia do mundo. Somos uma humanidade que se encontra permanentemente no estado de infância, e nossa perspectiva é de natureza finita, que não percebe a harmonia preestabelecida por Deus.

A resposta que obtemos a partir da narrativa de Jó vai no mesmo sentido da teodiceia de Leibniz, embora de maneira mais simplificada e conformista. Os debates entre ele e seus amigos fica resumido a um confronto de acusação e defesa, mas a verdade é que ambos os polos são incertos: se Jó não compreende a desgraça que se abate sobre ele, os seus interlocutores tampouco sabem ao certo qual seria tal motivo, apenas se atém à hipótese do pecado não sabido. A resposta que Jó obtém de Javé é uma espécie de "recolha-se à sua insignificância". O Deus desfia um longo rosário de comparações entre si e um simples homem, que vão desde explicitações de força até questões epistemológicas (sempre gostei da figura do behemot, acho curiosa a estupefação diante de um hipopótamo). O homem não tem condições de construir a natureza, assim como não possui clarividência para deter o conhecimento de tudo o que acontece no universo, e as enumerações de Javé colocam Jó, e por extensão todo ser humano, em sua posição de subalterno. No final das contas, não há uma resposta para a questão do mal sofrido pelo justo, mas uma conformação ao mistério incognoscível pela limitada compreensão humana. Jó nem fica sabendo do desafio de Satã, nem que o próprio Javé permitiu seu sofrimento, e isso vai na conta de Leibniz: o entendimento não se faz senão aos poucos, na medida em que nos é dado transformar a fé em razão.

E quanto a mim, o que eu penso? Uma parte importante da Filosofia não está em encontrar as respostas, mas também em fazer as perguntas, e nisso o livro de Jó é muito bom. Algumas delas são permanentes e dificilmente encontrarão respostas definitivas, e a questão do sofrimento é uma delas, especialmente quando se quer dar um sentido subjacente à existência. O drama humano de Jó ganha dimensões universais não porque haja consenso com o pano de fundo abraâmico. Para o niilista, que não vê sentido na vida, o sofrimento não é um problema, apenas uma inerência. Para ateus, não há sentido em se pensar em mistérios divinos, e para religiões onde a existência do mal faz parte da natureza humana, o problema já está resolvido. O mal existe, faz parte de nossas vidas e devemos aprender a lidar com ele, como dizem Umbanda, Taoísmo, Budismo, entre outras. Mas o certo é que o sofrimento faz parte do universo e que nos sentimos menores diante dele, porque demonstra nossos próprios limites e nosso controle ineficaz diante das contingências. O silêncio de Javé diante do clamor do sofredor é uma metáfora bem encaixada diante da incerteza que é posta quando estamos na situação dolorosa. É muito raro os momentos destes em que não nos perguntemos "por que comigo?". Neste sentido, Jó se desvincula da Teologia e nos coloca com toda a nossa fraqueza diante da imensidão universal, incapazes de compreender como as confluências dos fenômenos nos empurram para o abismo.

Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

Além da natural recomendação do livro de Jó, que pode ser encontrado em qualquer Bíblia, farei remissão aos outros dois pensadores que tratei neste texto. O primeiro é santo Agostinho, habitué deste espaço…

SANTO AGOSTINHO. A Natureza do Bem. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2006.

… e o outro é Leibniz, um pensador que vai além da filosofia, abrangendo ainda em.sua obra ciências e matemática:

LEIBNIZ, Gottlieb. Ensaios de Teodiceia. São Paulo: Estação Liberdade, 2013.

 

* Meio que do nada, no meio do debate, surge um quarto debatedor (Eliú), que depois some do jeito que apareceu.

**Para quem não sabe, este é um órgão interno das empresas que possuem uma determinada quantidade de funcionários. É composta por empregados e membros nomeados pelo corpo diretivo, e seu propósito é levar reivindicações sob o prisma da segurança de trabalho aos gerentes da empresa. CIPA quer dizer Comissão Interna de Prevenção de Acidentes.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Navegações de cabotagem – a barraca da Fátima de Redenção da Serra e as causas ocasionais como elo entre corpo e alma

(A ideia de divisão entre corpo e alma é velhíssima, mas como ambos podem se articular, se possuem naturezas tão distintas?)

Olá!

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Sempre temos um lugar onde nós gostamos de ir mais que em outros. Eu gosto muito do Vale do Paraíba, seja na parte da Mantiqueira, seja na banda da Serra do Mar. A coisa aumentou depois que a filha mais nova se mudou para Taubaté, no coração do Vale. Passo muitos dias fazendo pequenos reparos em sua casa, bem velhinha, e do jeito que eu gosto – bom mooquense. Mas a área do Vale é muito extensa e com muita coisa a se fazer, de modo que fica mais difícil estabelecer qual de todos é o local mais frequentado. Mas eu tenho esse lugar. Concluí que todas as vezes que pego a Oswaldo Cruz, não é numa cachoeira, num rio, numa represa, numa montanha, num mirante, numa igreja, numa trilha ou numa casa antiga que eu passo obrigatoriamente, mas em uma mercearia, uma vendinha de beira de estrada, que tem o nome oficial de Santa Terezinha, mas que já está consagrada em meu meio como Barraca da Fátima, que mencionei inclusive em uma das listas de 10 do meu post de comemoração de 10 anos. É sobre este lugar que eu quero falar e filosofar hoje.


Como se pode ver acima, é um dos típicos empórios de beira de estrada do interior deste país que o seo Cabral diz ter encontrado. Um pequeno cômodo com uma cozinha ao fundo, tudo isso à frente da casa da comerciante, que transforma seu lar em ganha-pão. Por lá, uma série de produtos vendidos a miúdo garantem o sustento para a família que se desdobra lá dentro.


Há algumas coisas compradas prontas de fora, para dar incremento às demandas, mas o principal está na manufatura e nos produtos típicos. Afinal, estamos em uma das regiões mais distintas em termos de folclore e cultura popular de todo o estado. Aqui, há requeijão de prato, taiada, cangalhinha, pão com linguiça caseira e tudo o que se pensar de milho e amendoim, muitas das quais feitas aqui mesmo, pelas mãos habilidosas da agora já amiga.


Como eu disse, muita coisa é existente na própria casa da Fátima, como é o caso dos pezinhos de Cambuci, provavelmente a fruta mais simbólica de toda a região. Ela vende as mudas que florescem em seu quintal e o fruto in natura, que pode ser extraído sem prejuízo nas matas e é azedo a vida inteira.

Por sua característica endêmica, é um dos produtos mais consumidos pelos turistas, que dificilmente conseguem encontrar o produto fresco para consumo imediato em outros lugares, principalmente na forma de refresco ou de batida.


Pessoalmente, seu produto mais imperdível, daqueles que a gente fia a palavra sem nenhum medo é a sua pamonha embrulhada na folha de caeté, uma planta da mesma família da bananeira, e que serve também para assar peixes, por exemplo. Dá um tempero único à massa de milho, e é de se desfiar um rosário completo enquanto se a come.


Eu tive um pequeno entrevero com a senhora minha sogra por causa dessa pamonha. Ela deu uma esnobada de leve no produto, dizendo que tinha muito bagaço. Eu retruquei elegantemente, dizendo que essa é a diferença fundamental entre pamonha e curau: pamonha tem bagaço, curau é que é coado. A pamonha que a senhora faz é curau na palha; um excelente curau, diga-se de passagem, mas curau, não pamonha. Ela ficou puta possessa possuída um pouco irritada e disse que eu, moleque da cidade, não sabia nada, nem de curau, nem de pamonha, mas eu não quis tergiversar, de auréola na cabeça; apenas fazer uma observação. Alheia a essas escaramuças, a patroa se diverte no consumo do acepipe.


Na Fátima também tem alguns gatilhos para reminiscências infantis. Doces que costumeiramente dividiam espaço com as baratas naqueles inseguríssimos armários de vidro, como a Maria Caxuxa, eram coisas que eu consumia a rebo enquanto meu pai molhava o bico. Abaixo, uma dessas com um potinho de geleia de Cambuci. Coisas que representam furos na minha dieta restritiva de sacarose.


A venda da Fátima fica não só na beira da estrada, mas também no pé do morro, e a natureza que lhe rodeia é exuberante, como a mata ciliar que guarnece o riachinho que ladeia a terra, todo fechado pela flora exuberante...

... e como as culturas plantadas, que lhe servem de fornecedoras das matérias primas para o comércio, como este pé de amendoim que fica quase que como um monumento.


De resto, algumas curiosidades sazonais, como essa planta chamada pelo insólito e sacana nome de “saco de velho”, que as crianças adoram estourar...


... ou esta planta que não sei o nome (descobri – chama-se “aranto”), mas que é repleta de brotos que parecem enxertos.


A Fátima é uma pessoa muito religiosa. Começando pelo nome de sua vendinha, dedicado à santa padroeira dos jardineiros e precursora do “Pequeno Caminho”, um meio de vida que privilegia a simplicidade para se chegar à santidade, em detrimento das histórias heroicas dos grandes santos e mártires. Tem seus nichos com seus santos de devoção, como Santo Expedito e São Miguel Arcanjo, além da própria Santa Terezinha, e é de participar das festas do Divino, hábito típico desta região. Está sempre dando graças e agradecendo por tudo, inclusive coisas extremamente prosaicas, como as nossas visitas. Pôs a difícil gravidez de sua filha sob a proteção de Nossa Senhora, e fica emocionada todas as vezes que fala disso.

Pode parecer um pouco estranho que alguém atribua a uma divindade tudo aquilo que lhe acontece de bom, porque dá um ar de subvalorização dos próprios méritos, mas essa é uma correlação que nem sempre é verdadeira. Talvez seja possível entender que a pessoa não se põe, ela mesma, em um pedestal, e reconhece suas próprias falhas e limitações. Por esse motivo, compreendo sua posição. A questão Deus é muito importante na vida das pessoas e já conduziu o pensamento da humanidade por muito tempo, e o faz ainda, em certa medida. Entretanto, existiu um momento na história da Filosofia em que houve uma transição da divindade como explicação de tudo para uma causação mais voltada à razão como fenômeno mental independente. Como todo bom e velho período transitivo, havia quem aderisse aos novos ventos e quem resistisse a eles, e havia ainda quem buscasse conciliar tradição e novidade. O francês Nicolas Malebranche é um desses, e vamos falar rapidamente sobre ele.

Na verdade, Malebranche foi o primeiro autor de quem fiz um trabalho mais sério na faculdade. O mestre de História da Filosofia Moderna pediu que escolhêssemos um filósofo do Racionalismo e o situássemos dentro do movimento. Eu, querendo parecer diferentão, fugi dos óbvios Descartes, Espinoza e Leibniz e fui me socorrer do padre que buscava uma alternativa às coisas que, em sua concepção, estavam mal explicadas nas teses gerais do movimento.

Malebranche era um grande admirador de Descartes. O sistema dualista cartesiano, em rápida sinopse, consistia no seguinte: a principal característica de um ser humano é sua substância mental. É por ela que nasce a prova mais substancial de existência, seu famoso cogito: eu penso, eu existo, porque mesmo que puser minha própria existência em dúvida, haverá aquele que duvida – ao menos o pensamento existe. É uma das mais célebres intuições filosóficas, e mesmo que o erro dos sentidos já preconizados desde os filósofos pré-socráticos fosse um fato, poderia haver uma escapatória consistente para a prevalência da razão. Só que é inegável que, por mais que a atividade racional seja possível e conduza ao conhecimento quando banhada pela evidência, as contingências do corpo efetivamente levam às incertezas. Vistas embaçam, ouvidos ensurdecem, narinas entopem. Por esta razão, Descartes separava de maneira bastante distinta estas duas instâncias do sujeito: a res cogitans, composta por todo o equipamento psíquico-cognitivo, e a res extensa, a coisa concreta que gira em torno do sujeito pensante, formada pelo seu próprio corpo, que é a sede dos sentidos. Dessa forma, a res cogitans interage com o cosmos ao seu redor através de sua própria porção de res extensa.

Mas havia uma dúvida que surgia já no nascedouro da noção de dualismo cartesiano. Se a res cogitans (mente) e a res extensa (corpo) são completamente distintos entre si, como se dava a interação entre ambos? Afinal de contas, a mente necessita da via de entrada dos sentidos para absorver informações do mundo, e o corpo precisa receber de alguma forma orientações sobre para onde dirigir sua intencionalidade, ou seja, para saber para onde olhar. Descartes dá uma solução surpreendentemente pobrezinha (nada é perfeito). Para ele, essa articulação se dava por ação da glândula pineal. Este pequeno órgão fica na porção central do cérebro, em uma posição que, simbolicamente, parece estratégica: exatamente entre os dois olhos, mas em posição mais profunda em relação ao rosto. Isso passava a impressão meio mediúnica de uma terceira visão. Essa glândula era conhecida pelas cada vez mais frequentes dissecações de cadáveres, mas ninguém sabia exatamente para que ela servia*. Pela posição privilegiada e incerteza quanto a sua função, Descartes a elegeu como esse ponto de convergência entre res cogitans e res extensa. É o que se chama de asylum ignorantiae, um confortável repouso para questões não resolvidas.

Malebranche se tornou um fãzaço de Descartes, especialmente porque o dualismo res extensa e res cogitans se acomodava perfeitamente à dicotomia cristã do corpo e alma. Mas a historinha da glândula pineal era um espinho na sua garganta, e ele sentiu a necessidade de desenvolver uma tese melhor. O roteiro não é tão curto, mas tentarei ser sintético.

Embora a igreja católica já vivesse os tempos da escolástica de São Tomás de Aquino, Malebranche volta a Santo Agostinho e sua interpretação do platonismo para constituir suas ideias. Já falei muito disso por aqui, mas vamos dar concisão: Platão entendia que existiam duas instâncias da realidade, sendo que uma continha todas as formas perfeitas, e que era acessível unicamente pelo intelecto, e outra que se tratava de reproduções imperfeitas, colocadas no nosso mundo igualmente imperfeito. Tudo o que existe na nossa percepção sensorial é uma cópia de algo que possui sua forma perfeita no universo intelectual. Dessa forma, todos os homens são cópias do homem perfeito existente no mundo das ideias, assim como o coelho perfeito, o cachorro perfeito, o vinho perfeito, e qualquer outra coisa que se colha da realidade. Vamos dar um exemplo. É possível que se pense no círculo perfeito, que é aquele em que não há nenhuma quina, que o grau de giro é sempre idêntico e que todos os seus diâmetros possam ser medidos de maneira exatamente igual, além daqueles coeficientes relacionados a pi (3,1416...) que não trataremos aqui. Vamos pensar em colocá-lo em prática, para ser transposto ao mundo dos sentidos, e começamos com um lápis e papel. À mão livre, o resultado é risível, todo torto e mais parecendo uma ameba qualquer. Lançamos mão de um pires, como fazem as crianças, e resultado melhora, mas não a ponto de plasmar a perfeição, já que as superfícies do artefato possuem rugosidades e defeitos. Passamos a pensar em um compasso… agora vai! Mas há outros problemas. O giro do instrumento tem diferenças de pressão e do balanço aplicado que fazem com que o risco contenha ainda problemas, ainda que mais próximos de um círculo sem defeitos. Partimos para a ignorância e vamos a um laboratório para traçar um círculo como jamais se viu, com o mais fino dos equipamentos. Ainda assim, quando chegarmos ao nível molecular, vamos notar que há imperfeições para brunir. Portanto, ainda que matematicamente seja possível chegar ao círculo perfeito, e a matemática é pura abstração mental, na prática não se consegue fazê-lo, e ele permanece habitando unicamente o mundo das ideias.

O que faz Santo Agostinho? Retoma essa dualidade, retirando de um mundo metafísico as ideias perfeitas e colocando-as na mente de Deus. Deste jeito, as formas perfeitas estão nos intelectos porque os mesmos partilham das ideias divinas. Portanto, tudo o que se pode ver e refletir tem como fiel depositário o intelecto divino, e, como o homem é imperfeito, o mesmo degenera, embora seja uma obrigação do homem de boa vontade buscar ao máximo se aproximar do conhecimento divino.

Sendo assim como falamos acima, o intelecto humano participa do intelecto divino, e é exatamente desta forma que Malebranche responde à aporia cartesiana da imbricação alma-corpo. Descartes imagina a glândula pineal como o eixo de articulação entre corpo e alma porque sente a necessidade de estabelecer um nexo causal entre um que comanda e o outro que age, mas Malebranche diz que essa relação de causa e efeito não faz sentido na absorção do conhecimento. Como as almas tem conexão direta e imediata com Deus, é daí que se dá o processo cognitivo. Quando uma pessoa faz a intuição de qualquer coisa, que nem sempre representa um contato (é possível pensar em uma estrela mesmo em pleno dia, ou em uma temperatura muito quente mesmo no mais denso inverno), a fonte da ideia que brota em sua alma vem do mundo das ideias divinas. Esse relacionamento de corpo e mente, tão caro a Descartes, é desnecessário em Malebranche. A alma é plenamente independente do corpo.

Ora, e como os corpos se movem? Por qual motivo obedecem aos impulsos dos pensamentos? Bem, embora Malebranche não fosse um adepto do aristotelismo, concordava que a realidade tinha causas eficientes. Para quem não lembra o que é isso, é uma das quatro causas, que nada mais são do que o fundamento da realidade. A causa eficiente é aquela que faz um fenômeno acontecer. Dessa forma, quando estou digitando estas mal escritas linhas, sou sua causa eficiente. A causa eficiente do gol é o centroavante, a causa eficiente da casa é o pedreiro, a causa eficiente da cinza é o fogo. Se todo acontecimento tem uma causa eficiente, também os movimentos e ações têm a sua. Se o que conhecemos vem da consciência de Deus, do mundo das ideias divinas, naturalmente a causa eficiente de cada coisa que sabemos é o próprio Deus. Como a interação entre corpo e alma é não eficiente, e como a ação humana é contingencial e finita, plasma a vontade necessária e infinita de Deus, e o que vemos transformado em ato é uma ocasião da manifestação dessa vontade. Cada ação humana vem de uma causa ocasional, ou seja, um momento em que há uma manifestação de Deus. Essa é a grande tese de Malebranche, à qual foi dado o nome de Ocasionalismo. Pensamentos vêm de Deus porque as mentes humanas são partícipes menores da mente divina, e ações também vêm de Deus porque são ocasiões para sua manifestação.

O que eu penso de tudo isso? Bem... Malebranche sem dúvida vai na contracorrente do seu momento histórico, em termos de Filosofia, e, embora não haja dúvidas que seu pensamento guarde interesse, ele tende a se tornar anacrônico mesmo em sua época. Embora ele rejeite a ideia da glândula pineal e ela seja mesmo mais um subterfúgio do que uma explicação com bons fundamentos, o fato é que a causa ocasional é igualmente pobre, e funciona mais na base do deus das lacunas ou do apelo à ignorância do que propriamente como um argumento mais consistente. É o famoso tipo de argumento que subentende uma fé para guarnecer seus fundamentos. De toda forma, é muito bem construído e vale a pena ser conhecido.

É isso. Quando vocês estiverem a caminho de Ubatuba, não deixem de dar uma passada no comecinho da vicinal de Redenção da Serra, para dar uma boa agasalhada no estômago e respirar um pouco de ar puro misturado com perfume de comida. É uma boa ocasião para notar que a vida pode ser boa. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Em primeiro, a obra mais célebre de Malebranche, que sintetizou seu pensamento:

MALEBRANCHE, Nicolas. A Busca da Verdade. São Paulo: Discurso Editorial, 2019.

E depois, a costumeira indicação do lugar a quem me refiro nas navegações:

Mercearia Santa Terezinha (Barraca da Fátima)
Rodovia Major Gabriel Ortiz Monteiro (SP-121), Km 2
(Bem no encontro entre as cidades de Redenção da Serra e Taubaté)
Aproximadamente 150 Km a partir do centro de São Paulo.

*Mais tarde, descobriu se que a pineal é responsável pela liberação de melatonina, o hormônio de regulação das funções do sono.

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Direitos Humanos: o que eles são e o que eles não são

(Para além do senso comum, sempre há dúvidas quando nos deparamos com o que são os direitos humanos na essência)

Olá!

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Todo fim de semana é a mesma cantilena (quase). Os vizinhos do 22 ligam seu aparelho de som para ouvir sambas e disco music, ecléticos que são. Deste amálgama de Martinho da Vila com Abba nasce o conflito. A inconveniente vizinha que vive sob meus pés abre a janela e começa a vociferar, no que é respondida com um elevar de volume, que, se antes era tolerável, já agora começa de fato a perturbar. Mas sou mais pelos meninos dos dois patinhos na lagoa, porque tenho porre imenso com gente resmungona, que, além disso, também lasca brasa com seus “góspeis” com bastante frequência, e aí não há restrições de altura, ritmo ou timbre. Ela já tentou fazer abaixo assinado, ligar no escritório do dono e falar com os ocupantes das unidades, um por um, o que a fez chegar a mim (mais detalhes sobre meu pequeno universo condominial neste e neste textos). Minha resposta foi seca: “não me incomodam em nada”. Estranhamente, chegou uma reclamação contra mim à administradora, dizendo que fico ligando uma máquina de costura durante a noite. Fui tirar satisfação com ela, para perguntar de onde ela tirou a ideia de que tenho uma dessas, no que ela garantiu ouvir diariamente esse ruído vindo do andar de cima. Não sou bate-pau, e sei do que ela fala: a Lanofix© da unidade ao lado, que produz um som monótono, mas que nem de longe pode ser considerado perturbação. É uma jovem peruana que luta com a vida para sustentar seus dois filhos, e não me sinto confortável em repassar a denúncia. Recolho-me à minha insignificância convidando-a a reclamar com o papa, o que ela sabe fazer muito bem. Resolvo a querela para o meu lado fazendo um educado convite à administração para que vistorie meu apartamento e localize a tal máquina da discórdia. Como nada é apurado, o ciclo é retomado, interminável. E lá vai ela reclamar do seu direito de silêncio, direito de paz, direito de dormir, direito, direito, direito...

Direitos são bons, são garantias na nossa vida social. Mas são polêmicos, especialmente quando vão contra nossas convicções. Dando um rápido repasse mental, direitos humanos é um tema que eu abordei muito pouco neste meu decenário espaço. Isso não significa um desinteresse pelo assunto, até mesmo porque uma das primeiras especializações que busquei foi justamente em mediação de conflitos e direitos humanos. Talvez tenha sido justamente esse o problema. A compreensão geral que as pessoas têm sobre o conceito sempre é muito limitada a casos extremos, e já ali, nos idos da primeira década do milênio, eu sentia na pele a divisão que hoje está escancarada na nossa sociedade tupiniquim. Por isso me dou o direito humano de ter preguiça para tratar do assunto. Mas arregacemos as mangas.


É compreensível, até certo ponto, que os direitos humanos causem incômodo, mas isso só é aceitável na exata medida da ignorância, porque o senso comum tende a enxergá-los como privilégios que são dados a quem não os merece, como os mendigos a quem é atribuída indolência, aos fora-da-lei a quem é atribuída violência ou aos forasteiros a quem é atribuída a boca para sustentar. Só que a partir do momento em que se absorve o que eles são e se continua a ser contrário a eles, excluímos a variável ignorância (no sentido de não conhecer) E já aí temos um problema de personalidade mesmo. Por conta disso, acho que seria de bom tom levar esse conceito a quem por acaso chegar a este espaço e se interessar pelo assunto. O melhor, no caso, é começar pelo começo.

O que são direitos humanos?

Direitos humanos são prerrogativas básicas garantidas a qualquer membro desse imenso grupo chamado de humanidade, independentemente de qualquer fator distintivo. Isso significa que cor, credo, nacionalidade, gênero, ideário político, opinião futebolística e outras fontes de diferenças físicas e sociais não são causas para que uns tenham mais direitos do que os outros. Isso significa o quê? Que são direitos universais. Sendo assim, repitam com o tio: são para todo mundo.

Como surge a ideia de direitos humanos?

É uma ideia que tem raiz essencialmente ética. Embora muito tenha se pensado dispersamente sobre os conceitos de uma moral universal, é com Kant e seu imperativo categórico que ganhamos base filosófica para se falar de direitos humanos, especialmente no seu segundo princípio, que diz, em apertada síntese, que o ser humano é um fim em si mesmo, jamais podendo ser qualificado como um meio. Essa tese derruba, de uma só vez, qualquer forma de submissão de um ser humano a outro, como ocorre na escravidão, na concepção escalar das raças, e em qualquer forma de relação que não reconheça a dignidade da pessoa.

Como os direitos humanos se transformam em leis?

Os direitos humanos surgem no contexto do jusnaturalismo. Essa é uma posição filosófica do Direito que diz existirem certos direitos que são inerentes ao ser humano, que todos possuem, sem a necessidade de que se baixem em escrito, na forma de lei. Entretanto, em um tempo onde reis e seus nobres detinham a corda e a caçamba, essa ideia de direito natural tinha mão única: a deles, claro. Por conta disso, toda espécie de violação era cometida, muitas das quais na base do fio da espada. Uma maneira de se garantir um mínimo de segurança era fazer com que mesmo estes direitos que em tese não precisavam ser escritos fossem para a pedra.

Às vezes me ponho a pensar e lembro de como certas leis me parecem inúteis, não no sentido de não servirem para nada, mas de sistematizarem coisas que deveriam ser automáticas. Não lhes parece óbvio que devemos dar lugares de fila para grávidas, assentos de trem para idosos, preferência de atendimento para deficientes? Só que existem leis para regulamentar essas situações, porque o que vale é o que está escrito, e não o que é moral ou natural, entenderam? Essa é essencialmente a diferença entre direito natural e positivo. Portanto, melhor que se escrevam os direitos humanos, tornando-os claros e indubitáveis, e que se discutam seus acertos e erros em cima dessa escrita, que é mais sólida e consensual que o mero costume.

Mas como eles aparecem na prática?

É a partir da Revolução Francesa que os direitos humanos se transformaram em uma declaração escrita. Explicar todo o contexto deste evento que virou o mundo de cabeça para baixo quintuplicaria este texto, portanto serei sucinto. O movimento revoltoso francês propunha uma guinada na maneira como o povo interagia com seu governo. Um dos grandes problemas que havia na monarquia era a falta de reconhecimento de direitos mínimos das camadas populares. Por conta disso, tão logo se deu a Tomada da Bastilha, o evento mais marcante de tal movimento, foi preparado um documento chamado “Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão”, uma síntese de recuerdos para o governante em exercício de que os cidadãos são titulares de direitos básicos inalienáveis, que extrapolam a sua vontade e constituem seu limite de agir.

Deu certo? Não, né? As duas Grandes Guerras vieram afogar os direitos humanos em um lodaçal de onde foi difícil emergir novamente. Uma vez sacodido e espanado, o mundo tenta retomar novamente algum nível de organização, e, mesmo com os tropeços que a História nos ensina, foi criada a ONU, que pretende agremiar e regulamentar o direito internacional. Para ser signatário do órgão e gozar de suas benesses, as leis de um país devem se enquadrar minimamente à Declaração Universal dos Direitos Humanos, um documento simples, que contém apenas 30 artigos, mas que é ainda mais sofisticado que a Declaração da Revolução Francesa.

Direitos humanos são para humanos direitos?

Direitos humanos são para humanos. O joguinho de palavras é eficiente e seduz muita gente, mas falacioso, e retrata bem a questão da validade em defender quem “mija fora do penico”. Os direitos humanos não preconizam exceções para quem comete crimes e passou pelos devidos processos legais, mas buscam garantia que a lei contenha um mínimo de parâmetros e que as penas não extrapolem ao que está determinado nesta mesma lei.

Por que os ativistas de direitos humanos são tão defensores de bandidos?

Porque o preso está sob custódia do Estado, que tem responsabilidade sobre ele. Uma dessas responsabilidades é a de reinseri-lo na sociedade que, sabemos, dificilmente está disposta a recebê-los de braços abertos. Aqui a questão não é a de adotar um ex-presidiário como se fosse um filho, porque não faríamos isso com ninguém. A defesa aqui não é do crime, mas do ser humano. O discurso fácil coloca a questão no plano pessoal, do tipo: “queria ver se você com você”. Se fosse comigo, eu deveria estar automaticamente excluído do debate racional, porque minha resposta passaria a ser passional, vingativa, eivada de emoções. E respostas desse gênero não servem para que a sociedade arrime seus fundamentos. Devemos pensar com outro tipo de cabeça: como gostaríamos de ser tratados caso cometêssemos algum crime e fôssemos enviados para a penitenciária.

Por que direitos humanos fazem parte preponderantemente das pautas de esquerda?

É uma resposta difícil de dar*. Não há motivos impeditivos para alguém dito de direita não defender direitos fundamentais. Quando falamos em direitos humanos, temos em mente muito de liberdades individuais, que são abordagens típicas de direita. Lá, fala-se de liberdade de ir e vir, reconhecimento de personalidade jurídica, negativa na intromissão da vida privada, casamento e constituição familiar, liberdade de pensamento e convicção, e, pasmem, de direto à propriedade! A resposta vem de duas vias: um reacionarismo disfarçado de conservadorismo ou os velhos pacotes fechados de ideologia. No primeiro, temos uma ideia de manutenção de privilégios, e na segunda… bem, é aquela história da preguiça de pensar.

Embora já tenha discutido o que é o conservadorismo neste texto, vou dar um exemplo bem rápido para dar síntese no que estou falando. Na Fórmula 1, a fornecedora de pneus escolhe quais os compostos serão utilizados a cada grande prêmio, variando de uma borracha mais dura para uma mais mole, sendo que as primeiras oferecem maior durabilidade, e as outras vão em proporção inversa, aumentando em velocidade e diminuindo em duração. Nos circuitos novos, como o da Holanda, palco novo para os carros atuais, foi feita uma escolha conservadora, utilizando-se compostos mais duros, para se preservar na incerteza dos comportamentos dos pneus. Uma escolha mais ousada, que poderíamos em tese chamar de progressista, seria optar por compostos macios, que talvez tornasse a corrida um pouco mais disputada. E um reacionário, que gosta de se chamar de conservador? Ele provavelmente escolheria correr com os antigos pneus de bicicleta da década de 50, porque isso é que era "corrida de macho".

Com relação à esquerda, o que mais a atrai à pauta dos direitos humanos é a questão da igualdade perante a lei, mais enfática do que a liberdade em relação à mesma lei. Se considerarmos direitos que forçam a uma distribuição mais igualitária das rendas, por força das garantias que são necessárias para suprir materialmente essas necessidades mínimas, então temos um bom motivo para o apoio da esquerda aos direitos humanos.

Se a Declaração da ONU já cobre o necessário para garantir direitos mínimos, por que existem direitos específicos nos diferentes países?

Porque cada sociedade tem sua própria realidade. Em um país como o Brasil, cuja violência contra a mulher possui níveis mais altos que em outras democracias, a legislação incluiu primeiramente a Lei Maria da Penha e, posteriormente, o crime de feminicídio. Pode-se discutir o alcance, a validade e a pertinência dessas leis, mas uma coisa é inegável. Elas são indicativas de um problema particular existente, e o poder público precisa agir de alguma forma. Para isso, a pressão das entidades representativas é premissa básica e indisputável. Isso se aplica a toda e qualquer pauta e o direito a manifestação é garantido pela mesmíssima declaração.

Os direitos humanos evoluem como qualquer outro mecanismo social. Por isso, é óbvio que a declaração revolucionária não é igual à declaração do pós-guerra, e que também não traz outros direitos expressos que tendem a se universalizar. Se eles estão abarcados, é por generalização. Sabemos que isso gera uma série de dúvidas, e o ideal é que estes direitos se tornem mais específicos. Um exemplo bastante claro é a proibição de distinção por sexo. Isso abrange as contemporâneas designações de gênero, que são muito mais maleáveis que a dicotomia masculino/feminino? Parece-me que sim, mas alguém pode argumentar justificadamente do contrário, que uma matéria nova e significativa não pode ser tratada meramente na superfície.

Por que as associações de direitos humanos se preocupam menos com as vítimas do que com os agressores?

Essa é uma pergunta recorrente e que expressa uma confusão de pensamento. De fato, quando alguém denuncia maus-tratos a uma criança, ou a utilização de trabalho escravo, ou a qualquer pessoa que queira fazer uso de sua palavra, está-se cuidando da vítima de infração aos direitos humanos. Mas é que a relação de agressividade faz com que o termo “bandido” esteja fortemente vinculado a crimes violentos, que normalmente faz com que as pessoas clamem por vingança em igual proporção. É como se o principal direito humano voltado à vítima fosse a punição ao agressor. Isso é fácil de vender e esconde toda a complexidade que existe na tentativa de recuperar um ser, que, apesar de todas as cagadas que fez, continua sendo humano, por menos que queiramos. A lei diz que o Estado está incumbido de deter um indivíduo e tentar recuperá-lo. Isso tira o caráter de vendeta do código penal e tenta garantir que um criminoso seja reinserido na sociedade. O discurso fácil de que ninguém se lembra da vítima visa esconder algo mais simples: todo processo penitenciário minimamente sério é caro e exige sacrifícios sociais. Por exemplo, um ex-presidiário plenamente recuperado precisa encontrar quem esteja disposto a lhe propiciar emprego, só que essa recuperação nunca é digna de confiança por conta do péssimo sistema prisional.

Por que a policia é o principal alvo do pessoal dos direitos humanos?

Em qualquer democracia do mundo, a polícia é o braço armado do Poder Judiciário, e é um órgão tipicamente de Estado. Se a polícia é a instituição que garante a execução das ordens judiciais e da manutenção da ordem, ela deve ser a primeira a cumprir a própria lei.

Isso é simples de explicar. A polícia possui um grande poderio nas mãos, já que é armada pelo próprio poder público e possui uma série de prerrogativas que englobam o uso legítimo da violência. O significado disso é que, enquanto qualquer pessoa que empregue meios violentos de coerção extrapola os limites da lei, a polícia o faz legitimamente. Por esta razão, a polícia tem o dever de agir estritamente dentro dos limites da lei, porque senão, vejam vocês, cometerão crimes. Novamente, não se trata de proteger bandidos, mas de se lembrar que todos temos situações em que precisamos ser protegidos pela lei. O bandido está fora dela, é preciso que o Estado se mantenha nela.

Só isso por enquanto, senão vai ficar mais chato do que as discussões sobre o tema já são. Procurei falar fora do senso comum, que é o pior inimigo do assunto, assim como em todo o conhecimento racional, já diria Gaston Bachelard. O tema é inglório e não deixará de ser pelas letras deste pobre escriba, embora seu objetivo seja o de fazer com que a discussão seja mais ponderada. Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

São as mais simples possíveis: ler as próprias declarações de direitos mais famosas. A da Revolução Francesa pode ser lida no link abaixo:

DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO. Disponível em:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_dos_Direitos_do_Homem_e_do_Cidad%C3%A3o. Acesso em 14.09.2021.

E a vigente na ONU pode ser lida no site da Unicef, sua agência voltada para a infância:

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em:

 https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em 14.09.2021

O distintivo dos direitos humanos utilizado neste texto foi extraído de:

https://www.humanrightslogo.net/

 

* Embora eu ache pobre esta divisão dicotômica entre esquerda e direita, vou usar os termos aqui para o bem da compreensão e da concisão.