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terça-feira, 24 de agosto de 2021

Sobre vacinas como imperativo categórico

(Em uma fila tão paulistana, é plenamente possível ter tempo para se lançar reflexões: vacinar-se é primordialmente um ato ético?)

Olá!

No final de semana passado, fui oferecer meu braço para a segunda dose da vacina. Em tese, daqui a duas semanas estarei devidamente imunizado contra a malvada covid-19, muito embora a recomendação seja de manter ainda muitos cuidados, como a manutenção do uso de máscara e distanciamento social quando possível. Peguei uma boa fila, porque não há lá tanta disponibilidade da marca que me cabia, e lá estava quando comecei a elaborar mentalmente este texto, com algumas anotações feitas no próprio celular. Não vou mentir para ninguém e afirmar que sou feliz em levar picadas, mas o fato é que não dá nem para chamar de dor, apenas um leve incômodo. Deve ser uma reminiscência infantil, quando as recorrentes injeções de Benzetacil povoavam meus pesadelos e curavam minhas amigdalites. Apesar disso tudo, estava satisfeito em estar naquela hora, naquele lugar e com aquele propósito.

Minhas reflexões na fila eram pautadas pelos comentários desconfiados com relação à eficácia da vacina. Escuto muita gente falando que só vai se vacinar para não ter problemas legais, e isso colide com os meus tímpanos. Não tenham dúvidas que o medo da morte é individual e deveria embasar a vontade de quem está lá se propondo a ser picado, mas a vacinação, na minha humilde cabeçorra, é antes de tudo um ato social. Já andei falando sobre o tema por aqui.

Pois então. O ato social, pelo que dizem os filósofos, é essencialmente ético. Desde os gregos antigos, o ethos está vinculado à areté, a virtude. E o que é a virtude senão a propensão à prática do bem? Fico pensando nessas coisas quase que absorto, porque a espera vai longe, e eu fiquei lá, panguando, às vezes até mesmo deixando a fila avançar alguns metros a mais. Até que cheguei mentalmente em Kant, dono do grande ponto de virada do pensamento filosófico iluminista, e fiquei quase que assustado recolhendo seus ensinamentos. Agora olhando para o chão, lembro da sua ética baseada no dever, e trago a pauta a mim mesmo: tomar a vacina é um imperativo categórico? Vamos desbravar.


Kant faz sua revolução copernicana com a crítica aos juízos, uma nova maneira de ver o funcionamento racional. Explicando bem superficialmente, ele observava duas vias pelas quais o conhecimento passava. Na primeira, uma cognição era obtida através da própria definição do objeto. Por exemplo: quando eu falo de uma bola, nós já sabemos que ela é redonda, sem a necessidade de que tenhamos um contato sensível com o objeto em questão. O próprio nome "bola" já traz consigo o predicado de sua esfericidade. O mesmo pode ser aplicado a inúmeros outros objetos: um triângulo já traz a ideia de figura com três lados, um gás carrega consigo as propriedades de variabilidade de forma e de volume. Todos esses conhecimentos acontecem antes do contato sensível com o objeto, e, por isso, são a priori (palavra latina que significa ”o que vem antes de”). São os famosos pressupostos que são o esqueleto do conhecimento, porque são aqueles que residem no intelecto.

A segunda via do conhecimento é aquela que exige contato com o objeto, porque sua predicação não permite a cognição completa, demandando que o mesmo seja visto, ouvido, tocado ou sentido de alguma forma. Se sabemos que uma bola é esférica, não sabemos sua cor, o material do qual é feita, seu tamanho e demais que-tais. Precisamos vê-la e tocá-la para obter tais informações. Idem com o triângulo, que necessita ser observado para sabermos se é escaleno e com o gás, que precisamos cheirar para saber se é perfumado. Todos esses conhecimentos vêm depois da “carga mental” do objeto, a posteriori, e são eles que são enriquecedores, porque trazem informações novas para tais objetos, já que os conhecimentos a priori não carregam em si nenhuma novidade que vá além da própria definição.

Quando falamos sobre todas essas características da razão, vemos que elas têm cara, cheiro e gosto de Ciências, e é verdade mesmo. Só que a racionalidade, no entender de Kant, não se aplica única e exclusivamente aos laboratórios, mas também à ética. E por quê? Porque a razão pura salta do intelectual para o mundo, formando uma razão prática, e a ética é uma contingência das ações.

Kant vive em um tempo de transição entre as antigas monarquias e os projetos iluministas, que viam a necessidade do uso da razão na administração da coisa pública. Essa base racional, no entender de Kant, para que pudesse ser aplicada com perfeição, não poderia ser utilizada somente na casca superior das relações, representada pela política, mas na miudeza proporcionada pelas predisposições morais. Em suma, também a ética deveria se servir dos atributos da racionalidade: a universalidade e a necessidade.

O que significa isso? Toda Ciência deve estar circunscrita a esses dois critérios. Universal é qualquer coisa que tenha o mesmo valor em qualquer tempo e em qualquer lugar, e necessário é aquilo que possui um nexo causal na cadeia de causas e consequências, sem o qual algo não pode acontecer. A ética deve seguir estes mesmos critérios.

Entretanto, enquanto a natureza segue leis universais e necessárias de maneira, digamos, automática, como acontece com os corpos que caem obedecendo a lei da gravidade, com as relações humanas a coisa muda de figura. Nossa razão nos permite distinguir o certo e o errado, de modo a seguir uma lei como se fosse a norma natural. Mas é que nós temos uma tal de vontade e um tal de livre-arbítrio, que põem tudo isso por água abaixo. Sendo assim, a racionalidade pode e deve reconhecer a moralidade, ainda que não a aplique.

Isso implica em dizer que devem existir princípios morais válidos para toda a humanidade. Com isso em mente, precisamos analisar com bastante cuidado a formação do pensamento kantiano. Como eu já disse, todos nós possuímos uma capacidade de conhecer, que Kant chama de razão pura, que, em tese, seria como se nosso cérebro fosse capaz de guardar as teorias que regem as coisas. Entretanto, essa razão também possui a propriedade de colocar em prática essas teorias. Seria como pegar um projeto qualquer armazenado na mente e colocá-lo em funcionamento. Uma das aplicações dessa razão prática é determinar a vontade e as ações éticas, e elas se dão na forma de regras.

Pensando em termos de teorias científicas, vemos que estas sempre são expressas em forma de proposições, aquelas velhas frases que podem ou não ganhar valor de verdade. Por exemplo, da observação de que nenhum tipo de massa se perde pela reação de duas ou mais substâncias em um sistema fechado (lei de Lavoisier), podemos deduzir um enunciado: “Na natureza, a matéria não se cria nem se destrói, apenas se transforma”. No âmbito científico, isso é aquilo que podemos chamar de Lei (leia mais neste texto).

Kant não fala em leis voltadas para a ética, justamente porque o livre-arbítrio faz com que não sejamos como pianos que caem e obedecem a lei da gravidade. Ele as substitui por princípios práticos para que, da mesma forma que reduzimos os fenômenos naturais a teorias, reduzamos qualquer tipo de ato em sentenças, o que, pensemos aqui, facilitariam sua racionalização, e estes atos, assim transformados em princípios, poderiam ser sentenciados e, então, fazer o papel semelhante ao que uma lei natural teria. Estes princípios são divididos então em máximas e imperativos. Os primeiros são amplamente subjetivos e individuais, que valem somente no âmbito pessoal de quem os constrói.

Imagine, por exemplo, o que você faz nas arquibancadas da vida. Você fica pulando e cantando junto com a torcida ou prefere se compenetrar no jogo? "É preferível assistir atentamente a partida" é sua atitude transformada em máxima. Note que esta frase diz respeito a uma predileção sua, repleta de subjetividade, sem que se possa sentenciá-la como válida para qualquer pessoa, já que não há nada de errado em transformar a torcida em uma festa.

Ocorre que uma máxima pode, sim, ganhar em termos de objetividade, saindo do campo meramente pessoal para ganhar contornos universais e carga deontológica, ou seja, são obrigações morais devidas por todos os seres humanos. Quando uma máxima leva esse status, passa a se chamar imperativo. Sendo mais objetivos, os imperativos podem ser aplicados a qualquer circunstância. Isso porque, se a ação moral fosse completamente gerida pela razão, necessariamente ela se desenrolaria da forma como o imperativo determina. Afinal, a própria palavra denota a ideia de dever, de obediência a uma ordem, não a um imperador, mas à ética.

Há duas formas de imperativo segundo Kant: o hipotético e o categórico. No primeiro, temos uma condição - se queremos um objetivo, devemos agir de tal modo; no segundo, o encadeamento é incondicional, levando a uma regra determinada.

Vou usar mais um daqueles meus famosos exemplos futebolístico para explicar o que é o imperativo hipotético. Imagine que você é um quarto-zagueiro que está protegendo a cabeça de área de seu time. Você está pendurado com dois cartões amarelos e, se tomar o terceiro, não jogará a próxima partida. Isso lhe trará algumas desvantagens, como tirar sua visibilidade, marcá-lo como violento, desagradar seu treinador e via discorrendo. Isso fará com que sua cabeça seja preenchida por um pensamento condicional, do tipo: "para que eu não seja suspenso, é preciso que eu não seja violento", ou "se eu não quiser ser suspenso, não posso ser violento". O que temos aqui é uma regra completa, que descreve como atingir um determinado objetivo. Se eu não me importar com a bronca do técnico, nem em carregar a pecha de açougueiro, não tenho porque mover minha vontade no sentido de não tomar cartões.

Em resumo, a questão é a seguinte. O imperativo hipotético leva em conta um desejo que move determinada pessoa e lhe dá o caminho obrigatório pelo qual ela deverá seguir para chegar em sua meta, e por isso é um imperativo: não existe médico sem faculdade, não existe padre sem seminário. Agora, se você não quer ser médico nem padre, é um imperativo que não cabe a você, simples assim. O imperativo hipotético dá regras objetivas e bem definidas, mas não se aplica a qualquer pessoa indistintamente, apenas àquelas que enfrentem a condição.

Já o imperativo categórico é a grande pedra de toque da ética kantiana. Prossigamos no campo futebolístico, não esquecendo de nossa posição na quarta-zaga. O lépido atacante adversário aproveitou uma sobra e está vindo a mil na direção de sua área. Qual seria a regra ética universal aplicável à situação? Se você disser que é cercar o cidadão e tentar roubar-lhe a bola sem fazer falta, teremos um imperativo categórico. Se disser que é cometer a falta, estará indo na direção absolutamente oposta. E por que isso? Porque a regra ética aplicável é jogar e deixar jogar. Se fincar as travas da chuteira na canela do pobre não fosse uma ação antiética, não seria punida com a anotação de uma infração. Como não temos nenhuma garantia de que a regra ética será cumprida, estipula-se a falta. A ação racional continua sendo aquela que é certa, mas a vontade e o livre-arbítrio permitem que se tome uma ação que a contradiga.

A regra dos imperativos é o substituto ético às leis naturais. Repetindo: você não tem como afirmar a uma pedra que não caia se for solta no ar, nem tem como impedir que o oxigênio se consuma em uma queima, mas, por mais perfeita que seja uma lei moral, é perfeitamente sabido que ela pode não ser atendida, diante dos critérios volitivos de quem ela se aplica. E por isso elas são imperativos, que devem ser cumpridos, mas que não podem ser impostos.

Então, como podemos fazer aplicações do imperativo categórico? Kant retroalimenta a lógica de se reduzir a ação a sentenças e usa de seus próprios princípios, estabelecendo três máximas que podem ser direcionadas à construção dessas regras morais. Vamos a elas.

“Age de modo que a máxima de sua vontade possa valer sempre, ao mesmo tempo, como princípio de legislação universal”.

Aqui é bastante simples. Como já dissemos anteriormente, uma máxima é plena de conteúdo subjetivo, e somente na medida em que se torna objetiva passa a ganhar os atributos de universalidade e necessidade. O exercício para isso é o seguinte: você deve pensar no que aconteceria se todas as pessoas do mundo praticassem exatamente a mesma coisa que você pratica. Se essa ação for ética para qualquer pessoa que a aplique, poderá ser dotada como se fosse uma lei universal.

“Age de modo a considerar a humanidade, seja na tua pessoa, seja na pessoa de qualquer outro, sempre também como fim e nunca como simples meio”.

Kant coloca o ser humano como centro da questão ética, e dá uma dimensão que nos conduz ao conceito de direitos humanos. Ter as pessoas como fim remove do imperativo qualquer asserção que remeta ao uso instrumental do ser humano, ou seja, seu uso como ferramenta. Vejam-se as normas jurídicas dos países com democracia avançada. Estes Estados são constituídos e seguem legislações cujo fim sempre está voltado para a harmonização entre todos os seus tutelados, de modo a reduzir ou eliminar exclusões e privilégios.

“Age de modo que a vontade, com a sua máxima, possa ser considerada como universalmente legisladora em relação a si mesma”.

As expressões da vontade humana devem ser vistas sempre como leis que todos devem aceitar. Isso significa que é da própria humanidade que parte a capacidade de julgar e agir, ao contrário do determinismo natural das outras espécies.

O que ocorre é que Kant, com sua regra dos imperativos, quebra duas tradições muito antigas na aplicação da ética. Em primeiro lugar, o objetivo da ética reside em si mesmo, e não em nada externa a ela. Não somos éticos para sermos felizes, como queria Aristóteles, ou para evitarmos o sofrimento, como diziam os estóicos. Somos éticos porque isso é racional. Em suma, a ética não tem metas, não é teleológica. Também não pode ser encaixada em uma lógica consequencialista, do tipo "faço isso para obter aquilo". Como exemplo, podemos mencionar os utilitaristas, que entendiam ser a ética um caminho para obtenção de um melhor benefício para o maior número possível de pessoas. A ética em Kant, como pudemos ver, é uma deontologia, ou seja, existe em função do dever, e é com ele que obtemos a maior racionalidade possível na construção de uma moralidade justa.

Esses são os subsídios que giraram na minha cabeça no momento em que a tinhosa e imprescindível agulhinha entrou no meu braço. Ainda dois dias depois da picada, tive um pouco de reações, mais especificamente uma dor de cabeça, nada que me impedisse de prosseguir com meus devaneios. E concluo que é uma pena que as ideias de Kant não povoem a responsabilidade das pessoas, que acabam por priorizar seus sentimentos pessoais (muitas vezem incutidos por outrem) em detrimento da melhor oportunidade que temos de nos ver livres dessa chatíssima pandemia. Afinal de contas, como não podemos ver como um dever a atitude de conter o vírus, ainda mais com as poucas armas que temos... Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

Kant é muito solicitado em exames e vestibulares, mas não é tão simples de entender. Mesmo assim, sugiro que meus leitores façam uma tour de force e enfrentem sua obra. O livro abaixo é seu principal tratado sobre ética.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Coimbra: Edições 70, 2009. 

terça-feira, 10 de agosto de 2021

O café filosófico do quotidiano - o niilismo e o niilismo de Nietzsche

(O que é o niilismo? É justa sua associação com o ateísmo e o ceticismo? E por que ele vira de cabeça para baixo com Nietzsche?)

Olá!

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Eu nunca tive grandes problemas para pegar no sono com café, mas ele me ajuda a acordar. Como tenho procurado fazer tudo o mais cedo possível nesses tempos pandêmicos, às vezes a coisa chega às raias da maluquice. A maior delas foi quando precisei ir ao dentista. O doutor não tem muita noção de cronogramas e aceitou o desafio: “te atendo às seis da manhã, se você quiser”. Eu quis, por amor à saúde e arrepio do sono. Coloquei o despertador para as quatro e meia da madrugada, e levantei zumbizando, mas com lógica suficiente para preparar um café turco, o mais potente de todos no quesito estímulo.

O ibrik é o recipiente canônico para o preparo do café turco, um dos métodos mais antigos e que extrai um dos cafés mais fortes, e que é cheio dos rituais na preparação. Inclusive, é desse modo de usar que é feita a célebre leitura de borra, ou cafeomancia – nome mais feio do mundo. A coisa toda começa com o café sendo moído em uma espessura finíssima, o mais próximo possível de uma farinha. Ele é colocado no cadinho em água fria para ebulir junto, para obter um processo de transferência de essências. Caso se queira, é admissível a mistura de especiarias, como cravo, cardamomo e anis. Eu fiz uma vez com pimenta em grão e ficou bom prá caramba.

A parte mais cerimonial já começa aqui. Quando ocorrerem os primeiros sinais de fervura, o caldo vai subir, como se fosse leite, e é preciso tirar rapidamente da chama. Esse rito é feito por três vezes. Ao fim, já com o fogo desligado, o pó ficará boiando encharcado sobre a água. Para iniciar o processo de decantação, é preciso despejar água fria sobre a borra, em um fio bem fininho, de preferência com um pescoço de ganso.

Feito isso, o café é colocado sem filtragem para descansar na xícara. Fica forte à beça, e cheio de pó. Por isso, é um café de nicho, feito para ser enfrentado por quem gosta de níveis petrolíferos de cafeína. Se o objetivo é fazer o ritual de leitura de borra, faça sua vida ter mais graça e leve a coisa a sério. Pegue uma xícara sem alças e tome cuidado para não engolir todo pó do fundo. Mentalize o questionamento que você quer fazer aos deuses rubiáceos e ingira aos poucos. Vire-a então sobre um pires e espere escorrer.

Do pó assentado no fundo que escorreu pelas paredes da xícara é feita a leitura do futuro de quem tomou o café. Eu, por exemplo, previ que uma xícara seria lavada, sob pena das altercações com a patroa. Percebem como está escrito exatamente isso?

Nome do utensílio: Ibrik

Tipo de técnica: fervura em recipiente de cerâmica (decantação)

Dificuldade: Média

Espessura do pó: Muito fino

Dinâmica: água e pó muito fino são levados à fervura até o líquido subir. É arrefecido com água fria para o pó descer, e mantido em decantação para que o líquido possa ser extraído com o mínimo de pó possível.

Resíduos: Muitos

Temperatura de saída: Média-alta

Nível de ritual: Altíssimo

Brincadeiras a parte, a cafeomancia tem oposições perfeitas em seus valores culturais e epistemológicos. Ela carrega alto valor tradicional, em proporção inversa à sua carga de verdade, mas isso é coisa para chatos como eu reparar. Astrologia, numerologia, biorritmo, profecias e meteorologia paulistana têm valores preditivos parecidos: nenhum. Tudo isso para este escriba, não precisam brigar comigo.

Mas daí que eu fiz um café no ibrik neste dia específico e fiquei lá raciocinando antes de, pela centésima vez, virar a xícara só de brincadeira, enquanto esperava a cara consorte. O que é um ritual desses para quem não acredita em rituais? Bem, como eu acabei de dizer, os ritos têm valor antropológico e, além disso, nós vivemos, mesmo o mais arraigado dos ateus, algumas formas de celebrações e de rituais. Mas em termos práticos, não se vê onde as artes divinatórias vão dar. E com isso lembrei que esqueci de falar no meu texto sobre ateísmo de uma vinculação muito comum que se faz entre ele e o niilismo. Ora, nunca é tarde, façamos isso agora.

Niilismo é um termo meio esquisitinho, que vem da palavra latina nihil, que, ora vejam, significa nada. Seu sentido mais estrito é uma descrença absoluta em tudo, pelos mais diferentes motivos. Como a descrença em deus faz parte do conjunto de descrenças, está bem explicada a amarração que se faz entre niilismo e ateísmo. Como regra geral, todo niilista é ateísta, mas nem todo ateísta e niilista. O ateu pode ter vários propósitos que não são a total negação a que os niilistas se propõe. Na mão inversa, se o niilista não vê sentido em nada, pareceria um pouco antagônico se ele acreditasse em um deus. Portanto, o vínculo possível seria uma espécie de encapsulamento, onde o conjunto “ateus” englobaria o subconjunto “niilistas”, sem guardar uma relação necessária de sinonímia.

Essa história de niilismo já vem de muito tempo atrás, desde o sofista Górgias, que dizia que "nada existe; se existe, não pode ser conhecido; se pode ser conhecido, não pode ser expresso". Como os socráticos não viam com bons olhos os sofistas, especialmente pelo uso comercial do conhecimento que estes faziam, esse tipo de niilismo ficou um pouco obscurecido, mas não inexistente. Isso porque, ainda que nos carreguemos de profundos estudos metafísicos e existenciais, por mais que busquemos conhecer as divindades e suas teologias, e mesmo que tenhamos um desejo profundo de acreditar firmemente nessas disposições presentes e futuras, há apenas dois fatos dos quais temos experiência direta: os enganos dos sentidos e a certeza da morte. Tudo o mais vai no campo da expectativa, e não do empirismo.

Neste ponto, podemos diferenciar o niilismo do ceticismo. O cético é aquele que duvida, e não aquele que desacredita. Grosso modo, o cético aceitará provas incontestes, só não aceitará engolir argumentos puramente apoiados no ar. Já o niilista passou dessa fase da suspensão do juízo: ele pauta toda sua cognição na negação da possibilidade de saber. O ceticismo, por exemplo, duvida dos valores de uma sociedade, enquanto um niilista os nega. O cético não se importa em dar um sentido à vida, o niilista os exclui.

De uma forma ou de outra, o niilismo esteve no horizonte de muitos filósofos no transcurso da história. Teve seu auge com o voluntarismo de Schopenhauer, que deu contornos de conformismo e pessimismo à visão metafísica da existência, ao estabelecer uma total submissão à vontade e às suas representações; e com o existencialismo de Sartre e tantos outros, que deu prioridade à existência concreta, em detrimento a uma suposta essência.

Mas é com Nietzsche que ele deixa de ser uma tendência para virar objeto de estudo. Quer dizer, daquele jeitão sui generis dele, né? Tanto que precisamos recorrer à metanálise feita pelo filósofo francês Gilles Deleuze para que isso fique bastante claro.

Na interpretação de Deleuze, o nada para o qual Nietzsche volta seu foco tem correlação com a vida. Portanto, sempre que se falar em negação, é nisso que Nietzsche está pensando - negação à vida, em uma crítica contundente à civilização da modernidade. Ele constrói em diferentes textos quatro maneiras de ver o niilismo, sendo que eles seguem uma espécie de roteiro histórico, que, mais do que se seguirem linearmente, vão se acumulando.

O primeiro deles é o niilismo negativo, e aqui as bazucas nietzscheanas se voltam contra a Metafísica e a Religião, notadamente o Platonismo e o Cristianismo. Quando observada a antiguidade clássica, podemos notar que as ideias de Platão falam de um mundo além do sensível. Todas as essências e modelos estariam em uma dimensão apartada, perfeita, detectável unicamente pelo intelecto. Sendo inacessível pelo corpo e pelos sentidos que, no fundo, são a nossa forma de fluxo pela vida, temos já aqui sua primeira negação. O mundo sensível é imperfeito, uma mera cópia do que seria o mundo inteligível, cambaio, torto, inadequado. O mesmo se aplica ao modo de vida cristã. Para seus praticantes, a vida terrena é somente uma passagem para a eternidade. Pior ainda, é um condicionante para essa eternidade, que pode se tornar terrível se o destino for o inferno. Essa dor eterna se dará justamente se instintos forem liberados e se os sentidos forem colocados em um primeiro plano, gerador infinito de pecados. Vejam como os maiores impulsos são condenados pelo Cristianismo, sendo que a solução, igualmente, é negar a vida que nos é estranhamente dada pelo deus, na expectativa de que se possa obtê-las em outro lugar. Esse é o niilismo negativo, porque se baseia fundamentalmente em negar virtudes existenciais presentes para projetá-las para fora, em um outro plano.

Com a chegada do Renascimento e do Iluminismo, todo esse aspecto metafísico citado anteriormente deixa de existir. É o século da Ciência e do olhar voltado para o próprio homem, que passa a enxergar sentido para a vida novamente, através dos avanços no conhecimento e na tecnologia. É aqui que surge a morte de Deus, e os homens, livres do peso que lhes oprimia, buscam seus propósitos no próprio mundo. Mas esse avanço não é para agora, e Nietzsche passa a martelar a própria Ciência. As descobertas e invenções são boas, é fato, mas ainda custará tempo para que produza um mundo onde verdadeiramente valha a pena viver. Então a negação muda seu foco: o mundo onde o sentido existe é este mesmo, mas o que está sendo negado é o presente, o momento atual. É o futuro que reserva significação plena para o ser humano. Hoje, ele é mera expectativa. Por ser produzido a partir de uma reação à impossibilidade de se afirmar a vida do niilismo negativo, este é chamado de niilismo reativo.

Acontece que o futuro chegou e o que tivemos foram guerras e pestes. O homem não criou um paraíso através da técnica, somente obteve mais miséria para si mesmo. Aumentar a tecnologia para facilitar a vida somente fez com que seu desejo se tornasse incontrolável. Órfão de deus e desiludido com a ciência, já não se tem o lenitivo da expectativa, e o homem se vê metaforicamente pelado debaixo das pontes, sem nenhuma solução de sentido. É a hora de torpedear a própria Filosofia. A ascese sugerida por Schopenhauer não é solução, é um disfarce, e a negação de significado passa a ser total, doentia, dolorosa, imobilizante, o que dá a ela toda a carga de pessimismo que lhe é peculiar. É um deixar-se levar exaurido, de corpo solto, por isso chamado de niilismo passivo.

Por fim, temos a efetiva proposta de Nietzsche. Ele concorda com a carência de sentido da vida. Realmente, não se está aqui para buscar um lugar melhor, nem um tempo melhor, mas para transvalorar todos os valores. O homem fica preso ao próprio desespero porque não consegue ir para além de si mesmo, de reconhecer que a vida tal qual se apresenta a nós é tudo o que temos, em um pacote completo que inclui alegria e tristeza, prazer e dor, animosidade e paz, força e fraqueza. É como se saltássemos de para-quedas e este falhasse. Se é irremediável meu fim, o que melhor me cumpre fazer? Rezar desesperadamente, gritar em pleno céu ou aproveitar os últimos segundos que tenho para me regozijar com a sensação única do colchão de ar que me sustenta no nada? A dificuldade do exercício está exatamente no cerne do novo valor: apreciar ao máximo a força do agora, livre de qualquer amarra metafísica, seja ela qual for. A vida é para ser vivida em derramamento, já que não há nada para detê-la, com todos os seus percalços e recompensas. Afinal, em qual dos dois nós vamos assentar nossa oportunidade única? Esse é o niilismo ativo, o mais caro de todos para Nietszche.

A humanidade não tem clareza sobre essas distinções porque está em trâmite nas suas três metamorfoses, que Nietszche trata em seu Zaratustra. Na sua fase de camelo, carrega em suas costas todo o peso de suas convicções e preconceitos; na fase do leão, ela se verá sozinha e perdida na selva, e rugirá pela obtenção de seus novos valores, enquanto na fase da criança terá tudo para ser criado, tudo para ser inventado, deixando para trás e esquecendo tudo o que lhe amarrava. Desta forma, o significado da vida será a própria vida, o sentido de existir estará no próprio ato de existir.

É uma puta visão legal, vai... Principalmente após uma boa dose de cafeína. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

Deleuze não foi um mero analista de textos de outrem, mas um pensador importante do pós-estruturalismo. Voltarei a ele oportunamente.

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. São Paulo: N-1, 2018.

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

A síndrome de Poliana como exagero do viés de positividade e o Pequeno guia das grandes falácias – 63º tomo: a falácia do vidraceiro

(Ser feliz é uma coisa boa, mas tudo na vida tem sua justa medida. Passar do ponto pode não mostrar coisas boas, inclusive falácias).

“Destruição não é lucro” - Bastiat

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Estamos em época de Olimpíadas, que se realiza em atraso, por conta da "benção" da pandemia. Eu curto muito acompanhar os jogos, só que desta vez está difícil, porque a maior parte dos certames ocorre de madrugada. Afinal, o Japão está do outro lado de uma Terra que não é plana, e meu sagrado sono não me deixa interromper seu culto. Mesmo assim, ainda na hora do café, procuro me atualizar sobre medalhas e recordes.

Tem coisa, no entanto, que me incomoda, e muito. Eu estou longe da crítica barata e milonga repetitiva de “globolixo” dos atuais donos do poder, mas o ufanismo da vênus prateada me dá engulhos. Mesmo nos esportes onde sabemos não haver a mais remota chance de medalha, os locutores e comentaristas insuflam a audiência, como se quisessem catalisar a grandeza da nação através de um sonho impossível. Isso é uma tática, obviamente. Se você perguntar em off, um por um te admitirão que não existe chance de medalha no badminton ou no hóquei. Mas o ordenamento é não baixar a bola, em nenhuma circunstância. Para mim, é um alto astral idiota. Bom... Tenho problemas com ufanismos e otimismos.

Comecei a trabalhar aos 14 anos, o que significa que, neste ano da graça de 2021, completei 37 anos de carreira praticamente ininterrupta. Em outros tempos, já estaria regularmente aposentado, mas as mudanças de regra feitas com o jogo andando fizeram com que eu ainda tenha muito a trabalhar. Mas essa janela toda me fez cruzar com todo tipo de gente: soturnos, sossegados, ansiosos, lascivos, oligofrênicos, espertos e aqueles que mais me irritam, os otimistas exacerbados. Ô como me aborrecem aqueles que se colocam em permanente estado de alto astral.

Credo (direis)! Que péssimo humor… Você preferiria que seus colegas fossem reclamões que só jogam o clima para baixo, ou aqueles que têm manias persecutórias que acham que todo mundo quer prejudicá-los? Não é melhor ouvir palavras que no mínimo podem servir de incentivo?

Eu sei dizer que sou meio pessimista mesmo. Talvez por isso tenha Schopenhauer entre meus filósofos favoritos. Não sou um radical, que só veja o lado negro da vida. Mas, se pretendo ser realista, é óbvio que não posso contorcer minha visão ao ponto de me desprender da realidade. E há momentos em que temos motivos justos para sermos ponderadamente otimistas. Se meu time tem bons jogadores, entrosados e em forma, não tenho porque achar que ele será rebaixado, e sim que disputará o título.

 Num rasgo de humildade, admito que o pessimismo não é uma tática boa. Já cheguei a pensar que era uma ótima estratégia de defesa: se eu espero pelo pior, quando as coisas não vêm tão ruins assim acaba sendo até um lucro. Acontece que ser pessimista, por vezes, significa sofrer por antecipação e, não em poucos momentos, inutilmente. Por exemplo, espero o resultado de um exame achando que tenho um gravíssimo tumor. Quando é constatado que não passava de uma espinha, percebo que a dor de cabeça foi à toa.

Mas é o tipo da coisa que não escolhemos ser. Há uma certa medida em que a racionalidade age, mas que daí para frente não adianta nada. Eu raciocino que são ofensivos ao meu anfitrião os esgares que faço diante do coentro que aniquila a torta, mas não consigo nunca me convencer de que sabão é um bom gênero alimentício. Com a dicotomia otimismo/pessimismo é a mesmíssima coisa. Pensar ajuda, mas há um momento em que não conseguimos conter as aflições e ansiedades.

Acontece que não se trata (o meu perrengue) de ter inveja dos otimistas. É que, assim como o pessimismo exagerado é um mal em si mesmo, dialeticamente o otimismo despropositado também é. Ele nem natural do ser humano é.

Há gente que tenha esses impulsos através das bazófias que leem nos manuais de autoajuda, que ouvem nos discursos do empreendedorismo ou nas lavagens cerebrais da PNL. Esses logo levam uma na cabeça e retornam à crua realidade. O problema é quando esse estado de espírito torna-se tão arraigado que passa a fazer parte da realidade mental da pessoa que, como sabemos, é bem descolada da realidade factual que todos nós, caniços pensantes, vivemos com peso.

Tão séria é a situação das pessoas que vivem em uma positividade falsa que passou a ser considerada uma doença, que é classificada no curioso nome de síndrome de Poliana, baseado na personagem criada no começo do século XX pela escritora Eleanor Porter, que fez um sucesso lascado. Senta, que lá vem spoiler.

Poliana é uma menina que perdeu seus pais e se viu forçada a morar com a tia, uma mulher extremamente amargurada. Como foi destinada a ela uma vida tediosa, em lugar solitário, usou uma brincadeira que seu pai lhe ensinou para animar e dar sentido para seus dias: o “jogo do contente”, que consiste em achar um lado positivo em tudo e sempre encontrar um motivo para ser feliz, seja lá qual for a circunstância. Para o que queremos conversar aqui, já é mais que suficiente.

Os psicólogos Margaret Matlin e David Stang, especialistas em psicologia cognitiva e social, descreveram um conjunto de sintomas que incluía um desprendimento da realidade através da fuga de situações difíceis, mesmo quando em níveis insuportáveis. A este diagnóstico resgataram o nome da pequena guria do conto, por possuir algumas características assemelhadas ao quadro. O limite entre o otimismo simples e a positividade tóxica é bem embaçado.

Por um lado, poderíamos aproximar o jogo de contente da pequena Poliana a uma lógica epicurista. Se na atividade lúdica a menina procurava encontrar sempre um lado positivo em tudo, podemos pensar que esse alívio mental é uma busca pelo prazer, em detrimento do sofrimento que a situação normalmente faria pensar. Mas a coisa está longe de ser tão simples assim. 

Nós todos vivemos sob condições psicológicas chamada de vieses. Não são coisas excepcionais, mas apenas tendências mentais a dar um determinado caminho às coisas que pensamos e sentimos. Um dos mais clássicos é o viés de confirmação, outro são os mecanismos heurísticos. Há ainda outros, como o viés de positividade, uma tendência psicológica em lembrar mais facilmente de eventos positivos do que negativos. É um fenômeno comuníssimo, que citei neste link, mas vou dar como exemplo os tempos em que você ia comer macarrão na sua vovó. A não ser que algo muito traumático tenha acontecido nessas tardes de domingo, você não lembrará que seus tios estavam bêbados, que suas tias lhe arrancavam as bochechas, que seus primos quebravam seus carrinhos e que seu irmão mais novo fazia birra para ganhar justamente a coxa de frango que era sua. Você vai lembrar apenas do sabor da massa e do molho, do quanto a sobremesa era saborosa e do quanto era acolhido com carinho pela avó, da bola que jogava com o avô e do quanto era grande o quintal, em detrimento da sala de seu minúsculo apartamento. A mente faz esses fios de seletividade porque quer viver bem consigo mesma, e é óbvio que lembranças felizes são mais cômodas, mesmo que não formem a realidade completa.

A moderna psicologia forjou o termo síndrome de Poliana pra diferenciar uma condição natural, que é a perspectiva positiva, de uma condição patológica. O termo síndrome significa um conjunto de sintomas que dão uma dica que algo vai errado, ou seja, uma síndrome é uma condição de anormalidade, um sinal de doença. Logo de cara, portanto, é preciso diferenciar uma pessoa com pensamento predominantemente positivo de outra que se perde em devaneios de contentamento impossível.

Pensamentos positivos são bons. Todos aqueles que desenham um objetivo não o fazem sem que haja impossibilidade de atingi-lo em condições normais de temperatura e pressão. Eu, por exemplo, tenho um projeto de aposentadoria: gravar todas as músicas que eu escrevi na juventude. Eu tenho uma bateria, meu filho mais velho tem uma guitarra e meu genro tem um baixo. Com um computador e alguns microfones, é o suficiente para captar as músicas e fazer tratamentos por software. Dá um trabalho insano, mas, estando em santa paz com minha inatividade, é uma ocupação e tanto. Se eu não acreditar minimamente que vai ficar bom, nem começo a brincadeira. Mas o limite da minha positividade está aí: é uma coisa amadora, limitada à auscultação de meia dúzia de pessoas, um legado para os netos.

Percebem que esse tipo de pensamento está bem delimitado pela realidade? Dentro do campo de possibilidades, essa pretensão está realmente calibrada: haverá algum tempo, há recursos materiais e eu não tenho artrose nos dedos (ainda). Qualquer coisa que vá acima disso, vai ficando cada vez mais improvável e irreal. Pode ser que alguém do vilarejo que eu more me ouça pela janela e ache bom que eu toque no seu boteco. No mais tardar, alguma molecada poderá achar o baterista que faltava, para brincarmos nos fins de semana. Daí para frente, é otimismo demais. Não vou atrair nenhuma gravadora, não vou fazer shows, não vou sair em turnê, ser aclamado como um talento tardio. É tão possível quanto as pirâmides do Egito terem sido montadas pela força das águas do dilúvio (sim, já ouvi esse tipo de coisa).

Qual é o problema de pensar tão grande, de ter uma positividade exacerbada? É simples. Da mesma forma que o pessimista de carteirinha, o otimista excessivo se desprende da realidade. Quando isso chega a um nível de transpor a barreira do patológico, temos diante de nós uma atitude de fuga da realidade. E convenhamos: se alguém é escapadiço à verdade física e mental, é porque tem problemas.

Uma boa parte da questão está incluída naquilo que consideramos como bom e valioso. Concordam comigo que nem tudo o que tem valor está inscrito em nossos genes? Muito do que valoramos vem do nosso meio social, através dos usos e costumes. Só que tem um problema: esses valores não são absolutos nem eternos, como bem diria Nietzsche. Mas nós balizamos a felicidade através da normatividade, e o que fica fora dela é negativo, é desviado, e triste. Vou dar um exemplo: por que o desenho Frozen causou estranheza e até estrépito em certos meios? Porque ele não terminou com um casamento, como é o padrão. Idem com toda e qualquer novela que você assistir. O final feliz esperado para qualquer história de amor é o enlace definitivo. Com isso, pensamos que uma pessoa sozinha não pode ser feliz, porque o "normal" é um casal, uma família. Duas ilusões conjugadas: a que diz, como na música de Jobim, que é impossível ser feliz sozinho; e a de que o melhor refúgio de um ser humano é a família. Tem muita discussão aí. Primeiro, por mais gregário que seja o homem, sempre haverá quem prefira ficar só, sem que isso represente tristeza. Para essa pessoa, a positividade estará justamente na solidão. Se você não entende solidão como uma coisa boa, seu complexo de Poliana lhe fará bugar o cérebro. Por outro lado, há famílias absolutamente tóxicas, e o lado positivo possível é se afastar dela. Lamento, mas isso existe e acontece. Portanto, determinar o lado positivo é muuuuuuuito relativo.

Para além deste aspecto, no entanto, vai mais coisa ainda. A positividade excessiva não deixa de ser uma forma egoística de não suportar a realidade tal como ela é. Vamos combinar que lidar com o lado bom das coisas é sempre mais fácil do que lidar com pensamentos negativos. Só tem um probleminha: eles existem, e tem situações em que nada de positivo é possível extrair. Há coisas que não tem lados positivos. Uma fácil e rápida: que cena que envolva racismo pode ter lados positivos? O que faria Poliana em uma situação assim? Só se pensar: que bom que não é comigo. Isso não é tóxico? A síndrome de Poliana, portanto, aparece quando a pessoa não quer enfrentar problemas, simples assim.

O fato é que temos que saber lidar com situações difíceis, e não há nada de mau em nos sentirmos mal com elas, desde que não sejam incapacitantes. E é aí que a síndrome é um problema - quando ela nos torna incapazes. Muitas vezes a solução para a aporia de não existir lado bom é achar um tertius. Se eu sofro, é porque Deus quer, ele sabe o que é bom para mim; se eu não consigo, o destino me levará a coisas melhores, coisas do gênero. Mas nada faço para resolver a questão, especialmente quando faço essas terceirizações. Se esse modelo de pensamento me conforta, também me conduz a um conformismo - o que é o exato oposto do otimismo, no final das contas. Notaram a armadilha?

É por isso que eu gosto do desenho Divertida Mente, a quem relacionei no meu post dos dez anos. Há quem não tenha gostado, e dificilmente alguém o coloca como o melhor trabalho da Pixar, mas eu ainda achei ótimo. Seu recado é muito claro: todos os nossos sentimentos são necessários para a construção da personalidade de uma pessoa, inclusive a tristeza. A todo tempo a personagem Alegria tenta controlar o edifício da personalidade da protagonista, que se encontra em plena transição da infância para a juventude, mas há um momento tal em que sua antagonista Tristeza invade, sem controle, o palco mental da menina, e, pasmem, é ela quem resolve as coisas. Sem a tristeza, os outros sentimentos não se rendem, o ego não se encontra a si mesmo e se repõe à estabilidade. Não é preciso colocar a tristeza para fora, mas deixá-la agir como reação natural. Desenhinho genial, e que dá um tapa na cara dos poliânicos.

Desculpem pela brincadeira. Os acometidos pela positividade tóxica precisam de ajuda tanto quanto os deprimidos, porque são dois lados de uma mesma moeda, e merecem todo o meu respeito. Mas há sempre espaço para lembrar das falácias, não é mesmo? Há uma delas que está relacionada ao fato de se ver tudo pelo lado bom, e que nos mostra como nem sempre a positividade está vinculada a argumentos válidos. É conhecida pelo curiosíssimo nome de falácia do vidraceiro, e vem de uma alegoria do economista francês Frédéric Bastiat para desmentir que um processo destrutivo pode ser benéfico para a economia.

A historinha é a seguinte: um menino quebra a vidraça de uma loja com uma pedra. Diante do aborrecimento do proprietário, alguma Poliana lhe diz para não se irritar, pois para cada coisa de ruim, há alguma coisa de bom. Senão, o que seria dos vidraceiros?

Essa ideia é falaciosa porque carrega uma falsa positividade. De fato, o lado bom se justifica, mas é muito menor do que o prejuízo causado – e que não se resume à substituição do vidro. Bastiat chama essa última de efeito visível, algo que está ligado imediatamente ao que se vê. Mas a cadeia de causas e consequências levada adiante, traz consigo aquilo que não se vê. O vendeiro tem que realizar um gasto imprevisto com a vitrine, o que é bom para o vidraceiro e mais ninguém, ali se encerra o seu ciclo. Mas acontece que a quebra da janela direciona a verba disponível para um evento ruim, que pode ferir alguém, estragar o produtos expostos e que, no final das contas,  desvia o dinheiro dispendido de outros fins, mais bem amarrados na cadeia de causas e consequências.

No final das contas, a positividade exposta aqui é falsa. O argumento parece trazer bons motivos para se sair quebrando janelas por aí. Melhor seria que o vidro não se houvesse partido, que as coisas que não são vistas pudessem acontecer normalmente. Não há nenhum ganho na substituição da janela: ela é necessária no comércio do lojista e precisará ser refeita. Esse dinheiro, se investido na melhoria da venda, aperfeiçoaria o trabalho e geraria mais renda, em uma das hipóteses. Esse é o lado invisível das consequências, segundo o que diz Bastiat.

Bom, é isso. Sejam felizes, mas não o façam por fuga ou autoengano. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Vão de baciada. A versão que está na foto é de uma coletânea da Disney que eu tenho desde criança, mas a história de Poliana é menos resumida do que a que está lá. Segue uma bonita versão completa.

PORTER, Eleanor. Pollyana. São Paulo: Autêntica, 2016.

A psicóloga Margareth Matlin foi bastante atuante e tem o seguinte livro em língua portuguesa:

MATLIN, Margareth. Psicologia cognitiva. Rio de Janeiro: LTC, 2004.

O desenho Divetida Mente é um dos que eu mais recomendo para assistir. Gostei muito, de fato, principalmente levando em conta a proximidade entre Pixar e Disney, que costuma se dedicar a historinhas mais manjadas.

DOCTER, Pete. Divertida Mente. Filme. Cor. 94 min. Estados Unidos: Pixar, 2015.

Mas não sejamos radicais. Frozen também é um desenho agradável e que tem o tal final meio diferente. Gosto ainda mais porque incomoda, ainda que involuntariamente, uma bela camada de tontos (e preconceituosos).

DEL VECHO, Peter. Frozen. Filme. Cor. 102 min. Estados Unidos: Disney, 2013.

Por fim, recomendo este opúsculo de Bastiat, que tem umas coisas bem interessantes e fáceis de entender na área de Economia.

BASTIAT. Frédéric. O que se vê e o que não se vê. São Paulo: LVM, 2010.