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terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Navegações de cabotagem - O Jardim Botânico Plantarum de Nova Odessa: entendendo visualmente a Evolução

Olá!


Com certeza já aconteceu com você. Algum tipo de explosão atômica é detonado no teu trabalho e lá vai você, junto com os desanimados e solidários colegas, ser admoestado a colaborar, suprimindo do calendário um ou mais finais de semana, feriados e/ou dias santos. Pois essa foi a aventura de um desses meus feriados prolongados do ano passado, no insucesso de alguma manobra planejada por meses, mas que um detalhe aparentemente inócuo fez provar sua solidez de castelo de cartas. Tudo bem, tudo bem, sei que essas coisas computacionais acontecem, e que o banco de horas formado certamente compensará.

Com essa ideia em mente, vou dar uma vasculhada nos meus cronogramas. Puxa, quanta coisa... Tudo tão apertado que o único momento mais folgado é justamente a quarta-feira pós-hecatombe, seguinte ao feriado, por conta dos adiamentos demandados pelo imprevisto na migração de plataformas. Encaixo a vindicação no chefe de maneira irrecusável, até mesmo porque eu trabalhei muito no fim de semana desviado, e fui pegar a patroa para ir a local longínquo o suficiente para evitar a fumaça do rescaldo e arrependimentos superiores. Já havia algum tempo que eu queria conhecer um jardim botânico particular chamado Plantarum, situado na próxima-mas-nem-tanto cidade de Nova Odessa, na região de Campinas, e é para lá que eu me mandei. Sigam-me!


Nova Odessa é uma cidade eminentemente industrial, e o parque fica exatamente no distrito reservado às fábricas, o que parece um contrassenso, mas esse fato chega a dar um certo encanto adicional: uma ilha verde no meio da fumaça.


O Plantarum é um daqueles raros empreendimentos privados de cunho científico, criado e mantido pelo biólogo catarinense Harri Lorenzi em uma área onde anteriormente ficava situado um imóvel fabril.


Em uma área de nove hectares, que correspondem a qualquer coisa como nove campos de futebol, um amplo projeto paisagístico mudou radicalmente a cara de mais uma das tantas plantas industriais de uma região dedicada à produção de tecnologia de ponta.


O projeto é bastante recente. O terreno foi adquirido em 1998, mas o jardim somente foi concluído em 2007, e aberto ao público em 2011. Vive basicamente da venda de ingressos, da contribuição dos associados e da realização de eventos, como exposições, feiras e até casamentos. Esta é a vista que se tem do seu centro de exposições, mostrando se tratar de um ambiente de cinema para agradar noivos e convidados, que podem contrair seus laços em um quiosque logo ali, ao lado.


Algumas das exposições internas são permanentes, e costumam ter tudo a ver com o escopo do empreendimento. Quando eu e a patroa fomos ao lugar, havia uma série de obras de arte feitas a partir da utilização de flora local, como este vaso de suculentas feito com o aproveitamento de um “barquinho” de folha de palmeira.


Em termos de construção, há também a bela casa que serve de recepção, onde existe uma loja de livros e artigos diversos, além de um café/restaurante que utiliza plantas alimentícias não convencionais (PANC’s) produzidas no próprio jardim.


O instituto ainda apresenta alguns conceitos que virão a auxiliar em uma renovação na maneira como vemos nossas edificações, mais simbiótica com o meio natural. Esta pequena cabana dá uma nova ideia de aproveitamento das paredes e do telhado como espaço útil para o cultivo e coleta de água.


Evidentemente, é nos espaços abertos ao ar livre que o Plantarum ganha o jogo, fundindo natureza e mão humana na constituição de conjuntos harmônicos, como a lagoa de vitórias-régias situada logo atrás da mansão de entrada, que é guarnecida por um contrastante jardim rústico.


Há muitos jardins temáticos, que concentram alguma característica comum, como o toque oriental da lagoa de carpas, que é cercada por um imenso bambuzal. O convite é para fazer um momento de meditação ao som das taquaras se movendo ao vento, o que causa uma certa apreensão. O rangido se assemelha a uma porteira se desmontando.


Outro tema explorado é o folclore brasileiro de origem tupi, neste tanque onde é reproduzida a lenda do Ipupiara. Apesar do bom humor da montagem, acreditava-se que este ser se alimentava do corpo dos incautos que se aproximavam dos rios e lagos.


Outros espaços espalhados pelo parque são erigidos especialmente para um momento de descanso, já que são mais de cinco quilômetros de via pavimentadas embaralhadas pelo parque, além dos gramados onde é permitido caminhar e esticar o cadáver.


Se pararmos de pensar no aspecto paisagístico, teremos ainda as coleções botânicas, de maior interesse científico e ainda assim com muito valor estético. Um dos melhores exemplos é o longo corredor que constitui o jardim das trepadeiras, bem no limite traseiro do imóvel.


Alguns ambientes são montados para obter a compreensão do visitante sobre como as espécies interagem, como ocorre no meliponário, um stand onde há colmeias que abrigam melíponas, abelhas sem ferrão típicas da América, algumas delas melíferas. A mais conhecida das cidades grandes é a arapuá, célebre por se enroscar nos cabelos das desesperadas meninas cacheadas.


Há espécies que impressionam não só pela beleza, mas pelo tamanho. É o caso desta palmeira talipote, extrema na largura e rigidez de seus ramos, diferentemente do que costuma ocorrer com seus parentes mais comuns...


... e deste agave, que faz as pequenas suculentas, como as rosas de pedra, parecerem chaveirinhos.


Outro aspecto interessante é a possibilidade de se conhecer itens da flora que você sabe que existem, mas nem desconfia como são. Eu, por exemplo, tenho um anel de tucum, serrado a partir do coquinho de um arbusto como esse da foto. Percebam que as informações das plaquetas são poucas, mas decisivas.


Já falei das PANC’s que são consumidas no restaurante, não é? Há um canteiro orgânico cheio dessas plantas, comuns outrora, como a araruta, a taioba e a ora-pro-nobis*, ou quase desconhecidas, como a maria-gorda, a beldroega e o mangarito, parente do inhame mais comum no Vale do Paraíba.


Outra característica é a diversidade das origens do acervo, que, na medida do possível, agrega espécies de várias partes do mundo. Este singelo “mato”, assemelhado a uma plumagem, vem da América do Norte e se chama capim-do-Texas-roxo.


E há aquelas que, em uma espécie ou outra, espalha-se pelo mundo inteiro. Por toda parte, há algum tipo de helicônia, como o caeté** abaixo. Seu parente mais conhecido? A banana.


Essa história de diversidade nas espécies já começa a me cutucar. De grau em grau, de mudança em mudança, de detalhe em detalhe, cada grupo vai progressivamente obtendo particularidades, guardando, no entanto, alguma característica que lhes permite serem consideradas aparentadas. Vejam estes filodendros...


... semelhantes, mas diferentes, certamente com algo em comum, um ancestral que originou a todos eles. Não existe melhor lugar no mundo para entender a Teoria da Evolução do que em um jardim botânico.


É preciso lembrar que, antes de mais nada, um jardim botânico é um lugar de estudos, um templo da Ciência. Se ele também é um bom lugar de lazer, melhor ainda, mas seu cerne é dispor um espaço de pesquisa e experiência. Eu não sou um cientista, apenas me interesso nas coisas que ela tem a dizer. E ela diz: eu desafio e sou desafiada. Aqui estão minhas armas – milhares e milhares de espécimes que demonstram a progressiva adaptação ao meio ambiente, realizada pelas mais diversas e ambiciosas estratégias de sobrevivência. Não, não há necessidade de que um desses matinhos tenha cérebro, basta deixar agir o delicado equilíbrio de seu habitat, e a “magia” da seleção natural fará com que os mais aptos se mantenham e se espalhem. Se há um deus por trás deste mecanismo, a girar todas as engrenagens, eu não sei. A evolução não descarta a divindade, e é mesmo tentador ver uma inteligência por trás de sistemas tão complexos, limitados que somos pela descontinuidade de nossas mentes. Mas a evolução prescinde dela e tem sua beleza própria. A epistemologia também pode ser estética.

Como eu já discuti neste post, Darwin e Wallace descreveram de maneira muito apropriada como os organismos evoluem através da seleção natural dos mais aptos. No entanto, não souberam discorrer sobre alguns detalhes importantes, o que deixou toda sua base meio capenga. Isso era natural que acontecesse. Em primeiro lugar, explicar a variabilidade das espécies é tarefa maior que os doze trabalhos de Hércules. E depois, a Ciência não carrega consigo uma verdade pronta e acabada, revelada a alguns eleitos. Por isso, toda teoria*** nasce para receber complementações e refutações, de modo a se aperfeiçoar o conhecimento disponível.

A grande pedra de tropeço da Teoria da Evolução era a maneira como um indivíduo poderia transmitir à sua descendência os caracteres mais vantajosos desenvolvidos nele. Darwin pensou em gêmulas, uma antiquíssima ideia existente ainda na Grécia antiga, e que atribuía a hereditariedade a estruturas diminutas, que estariam contidas nas células reprodutoras como microscópicas cópias dos órgãos dos pais. No processo de fecundação, as gêmulas misturar-se-iam entre si, ressaltando alguns caracteres maternos, outros paternos. Essa era uma explicação tentadoramente aceitável, mas ruim. Isso porque caracteres que há muito não ocorriam em uma determinada família poderiam ressurgir na descendência. Quantas gêmulas uma nova vida carregaria? Mais ainda: a mistura de gêmulas certamente traria uma tendência à uniformização, e não à diversidade.

A resposta estava se desenvolvendo lado a lado às teses de Darwin, sem que ele tivesse contato. Em um monastério de Brno, na atual República Tcheca, o padre Gregor Mendel realizava suas famosas experiências com ervilhas, que viriam a modificar o entendimento puramente empírico de como os caracteres se transmitiam de geração a geração.

O trabalho de Mendel consistia no seguinte: de posse de espécies puras de vegetais, em especial de ervilhas, o monge começou a realizar polinizações cruzadas, retirando o pólen de uma variedade para depositar nos estigmas de outra, de modo a obter descendentes híbridos. Ele investigou uma série de sete características de cada nova planta gerada – as cores da vagem, da semente e da flor, a altura da planta, a superfície da semente, a forma da vagem e a posição de implantação da flor em seu ramo. Ele percebeu que os cruzamentos resultavam em uma preponderância de determinada característica, porém, sem o completo desaparecimento da característica de segundo plano, que reaparecia constantemente nas descendências posteriores. Empiricamente, seria de se esperar um resultado intermediário entre as duas características, mas não – uma das duas sempre preponderava. Ao primeiro, foi dado o nome de traço dominante; ao outro, de traço recessivo. Aplicados a um modelo matemático, foi possível notar uma proporção de 3:1, ou seja, a cada quatro descendentes, três apresentavam característica de traço dominante, enquanto um expunha o traço recessivo. Vamos pegar, por exemplo, a característica “textura da vagem”.


Do cruzamento das espécies puras, somente teremos exemplares das vagens de traço dominante, que, no caso, são as rugosas. Sempre que um caracter é dominante, indica-se graficamente com uma letra maiúscula; recessivo, minúscula. Sendo que as rugosas são dominantes, vamos ver como ficará a hibridação:


Notem que os descendentes deste cruzamento entre espécies puras sempre resultarão em uma descendência igual ao dominante, mas que carrega consigo alguma coisa do traço recessivo. É por isso que representamos estes híbridos com uma letra maiúscula e outra minúscula. No próximo passo serão cruzados os híbridos, e eles terão quatro possibilidades: ter conteúdo puramente dominante e ser rugosa, ter duas hipóteses de conteúdo híbrido (o que lhe dará aparência do caracter dominante) e ser rugosa e ter conteúdo puramente recessivo, o que lhe trará a característica recessiva, de ser lisa.


Desta forma, Mendel percebeu que o cruzamento de híbridos sempre lhe dará uma proporção de 3:1, ou seja, a cada quatro descendentes, três terão a caraterística dominante e um terá a recessiva. Do cruzamento de duas ervilhas de vagem rugosa, poderemos obter exemplares de vagem lisa.

A conclusão de Mendel é que cada um dos pais contribui para as características dos filhos com partículas, unidades de heranças autônomas. Para encurtar a história, essas partículas tiveram suas descrições cada vez mais melhoradas, e hoje nós as conhecemos como cromossomos, fitas em forma de hélice que ficam no interior do núcleo das células, e presos a eles temos sequências de ácidos nucleicos carregados de informações hereditárias, os genes. Sim, Mendel criou a Genética, ainda que não lhe tenha dado esse nome.

Ok, mas de que forma a Genética pode ajudar a Teoria da Evolução a explicar como surgem espécies novas? Na natureza, as coisas possuem uma certa estabilidade e um certo dinamismo. Isso não é uma contradição, pelo contrário. É o bom sucesso de uma espécie que permite a ela se manter, e é a capacidade de ter modificações que faz com que as mudanças de condições do planeta não sejam uma pá de cal sobre a vida.

O que ocorre é que, pouco a pouco, os organismos sofrem mutações e recombinações em seu patrimônio genético. Somos frutos de processos mutagênicos, mas isso não significa que ser mutante nos dá raios nas mãos, capacidade de voar, visão infravermelha, garras de adamantium ou poderes de movimentar os efeitos climáticos. Isso é coisa da Marvel, e deixemos esse estilo de mutante para as suspensões da descrença. Na maioria das vezes, as mutações são um evento teratogênico, capaz de produzir aberrações que são contrárias à sobrevivência. Mas há pequenos rearranjos genéticos que produzem pequenas alterações em nosso genótipo, que, se forem vantajosos, podem ajudar na perpetuação da espécie. Como eu já disse, as mudanças não são coisas de heróis de quadrinhos; antes disso, é uma alteração discreta que pode fazer toda a diferença. O melhor exemplo que posso pensar agora é em uma tal alteração muscular nas pernas que lhe permita dar um passo meio centímetro mais longo do que a média de sua espécie. Meio centímetro, apenas isso. Ao cabo de um sprint de 100 metros, isso lhe dará, ora pois, meio metro de vantagem em relação aos demais membros da tribo. Isso não é quase nada, mas em uma savana, meu caro, você não precisa ser mais rápido que o leão; você precisa ser mais rápido que o seu companheiro. Essa sutil mutação terá a tendência a se espraiar mais e mais pelos vastos campos, percebe?

Portanto, Genética e Teoria da Evolução se entrecruzam e se complementam na tarefa de fazer as espécies se modificarem ao longo dos inúmeros anos. Nem uma, nem outra são suficientes para, isoladamente, dar cabo dessa tarefa, e é com isso que nasce a Teoria Sintética da Evolução, às vezes chamada de Neodarwinismo. É um nome estranho, porque o Darwinismo, desde que surgiu, nunca chegou a ser descartado como teoria, mas tinha suas falhas, que vêm sendo paulatinamente suprimidas por novas descobertas e evidências. Em resumo, a Teoria Sintética da Evolução agrega a seleção natural da evolução com as mutações e recombinações hereditárias da Genética. Tudo isso para demonstrar como a própria vida é o motor da diversidade que enxergamos por todo o nosso planetinha. Bons ventos a todos.

Recomendações:

A primeira é visitar o próprio Plantarum, evidentemente. Fica a 128 Km de São Paulo, pelo complexo Anhanguera-Bandeirantes. O endereço é Avenida Brasil, nº 2000 – Parque Industrial Harmonia – Nova Odessa/SP.

Depois, temos um livro que foi publicado em recordação aos 150 das leis de Mendel, que contém, inclusive, uma tradução do primeiro artigo deste cientista, além de dados biográficos e observações sobre suas experiências.

ARAGÃO, Francisco José Lima; MOREIRA, José Roberto. Mendel – das Leis da Hereditariedade à Engenharia Genética. Brasília: Embrapa, 2017.

 * Tenho uma em casa e sua flor é rara e belíssima:


** Também tenho um caeté na varandinha do apê:


*** Lembrem-se que quando falamos em teoria nas Ciências, não estamos pensando na mesma coisa que se diz no coloquial. Para saber mais, leiam este texto.

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Navegações de cabotagem – O Templo Kadampa de Cabreúva: por que o Budismo é mais próximo da Filosofia do que outras religiões?

Olá!

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Meus bons amigos (onde estão?), com este texto estou dando início a uma nova série. Ao contrário do que acontece com meus relatos de viagem*, que têm escopos fechados, este conjunto será permanentemente aberto, com acréscimos ocorrendo de acordo com seus fatos geradores. E o que lhes comporão?

Sabem aquelas viagens de um dia, os famosos bate-e-volta, em que nós só temos tempo de ir a um lugar específico? Tipo assim: vou até Santos, mas Santos tem muita coisa para se ver – o mar, os museus, o orquidário, o bonde, o porto, as igrejas, os prédios tortos, a catraia, os quiosques. Mas digamos que eu tenha ido apenas à Vila Belmiro, para assistir Santos X Alguém, contentando, dessa forma, a peixeira patroa. Lá estando, tenho a recorrente epifania filosófica, e, neste caso, o que devo fazer? Segurar o ímpeto e o tema, a espera de fazer um itinerário completo pela cidade? Não, nada disso. É para tanto que servirá esta série – Navegações de Cabotagem. Já explico o nome.

Minhas impressões de viagem sempre foram seriadas com alegorias marítimas, com uma única honrosa exceção. Geralmente, quando pensamos em navegações, temos em mente os longos dias que se passam em alto-mar, onde há momentos em que tudo o que se vê é água para todo lado, a ponto de ser indistinguível o que é céu e o que é oceano na linha do horizonte. Mas existe outra modalidade de tráfego náutico, onde não é necessário se afastar tanto da costa. É a cabotagem, em que a embarcação se mantém a uma distância em que é possível ter o litoral visível. Ao contrário do que li por aí, o termo “cabotagem” não diz respeito à navegação entre dois cabos (projeções de terra mar adentro), mas ao modo como o navegador e cosmógrafo veneziano Sebastiano Caboto fazia suas explorações ao longo da costa da América. Sem pressa, Caboto palmilhava légua a légua a linha litorânea das terras ainda incertas, de modo a conseguir informações muito mais precisas e menos arriscadas. Desta forma, cada etapa de suas expedições era substancialmente mais curta do que as navegações de longo curso realizadas entre pontos distantes.

As minhas navegações de cabotagem, portanto, são aquelas em que eu não vou muito longe. Resumidamente, no fim destes dias, eu durmo em casa mesmo. Satisfeitas as burocracias introdutórias, vamos entrar de cabeça em um rápido périplo que realizei ainda no ano passado, quando fui até a cidade de Cabreúva para conhecer o magnífico templo Kadampa.


Fui para lá unindo o útil ao agradável. Meu filho mais velho foi prestar um concurso público na cidade, e enquanto ele desfiava seu conhecimento em meio à geral dos causídicos, fui esticar os músculos na região central da cidade. Apesar de se tratar de local quase pertencente à metrópole, Cabreúva é rigorosamente típica estada interiorana, onde pouca coisa abre aos domingos, e a igreja matriz de Nossa Senhora da Piedade...


... e o coreto da praça Comendador Martins dão o exato ar de cidadezinha tão conhecido nestas minhas rodagens: as paredes de taipa, o estilo colonial de outrora, o sol queimando a calma quase imóvel das tardes.


Em Cabreúva, cujo nome vem da árvore homônima, também se preserva um bom conteúdo histórico nas pequenas edificações espalhadas pelo centro urbano, que ladeiam praças para o repouso e o namoro, com seus bancos e chafarizes, como a praça Alberto Mesquita de Camargo, onde tirei um cochilo dopopranzo no colo da consorte, coisa de quinze minutos.


Isso se deu depois que a fome bateu e fomos atrás da caça. Achamos um restaurante de comida mineira bem próximo à matriz com qualidade bastante satisfatória e decoração agradável, como esta cozinheira que sustenta os folhetos de apresentação da casa, com respectivas promoções.


Logo mais, aproveitando a boa fama dos doces desta área, fomos atrás da sua loja mais célebre, o Empório Uai, à beira da Estrada dos Romeiros, que liga ao Santuário de Bom Jesus de Pirapora, em Pirapora do Bom Jesus (parece trava-línguas).


A propaganda é gratuita, porque os produtos são bons, apesar de caros para um dedéu. Tem queijos e outras iguarias também, e costuma estar cheia de ciclistas que se aventuram pelas serras que guarnecem a região.


Como ninguém é de ferro, as redondezas das Serras do Japi e do Taguá tem ainda uma boa quantidade de alambiques, embora menos que dantes, um dos quais de parentes já distantes deste escriba, em Santana de Parnaíba. Essa garrafa dá uma certa dimensão da dubiedade entre custos e benefícios da ardente água.


Mas vamos ao que interessa. Do meio para o final da tarde, quando ainda faltava um bom tempo para a prova do primogênito acabar, fomos conhecer o Centro de Meditação Kadampa, um templo budista que parecia uma pintura nas fotos que eu havia visto até então. Ele é intitulado de Templo pela Paz Mundial.


O templo fica no entremeio dos morros do bairro do Jacaré, já em meio rural. Um dos convites é a própria contemplação do meio natural, que favorece à meditação tão cara a esta escola religiosa, como veremos daqui a pouco. É um lugar muito silencioso (a não ser o burburinho dos transeuntes).


O espaço conta com lanchonete e alojamentos, mas é dentro do templo que está o que é de mais significativo e belo, ao mesmo tempo. Passado o pórtico principal, destaca-se o amplo salão onde há cadeiras e esteiras, para quem prefere se sentar na posição de lótus. Houve um tempo em que eu conseguia ficar horas assim. Hoje, a ferrugem dos joelhos me permite, quando muito, meia hora. Ao fundo, um altar e uma espécie de púlpito, de onde os monges proferem suas palestras. Se existe uma diferença fundamental entre as prédicas dos budistas e dos pregadores cristãos, está no tom de voz.


Sendo um santuário budista, é natural que muito da arte estatuária esteja vinculada à imagem de Buda. Algumas das obras maiores fazem remissão ao Buda “original”, Sidarta Gautama, ou Buda Shakyamuni; outras dizem respeito a monges que atingiram o mesmo nível espiritual. Escolhi a foto abaixo porque ela mostra não só um destes budas, mas, no reflexo, é possível ver também a dimensão interior do teto e o sistema de iluminação feito por janelas.


O fundo e as laterais do templo são complementados por obras de arte que são compostas por estátuas de budas masculinos e femininos (confesso minha ignorância em não saber que elas existiam), pinturas e outros adereços.


Como o Budismo preconiza uma prática de abandono de materialidade, é bastante comum que se façam oferendas às entidades. Segundo os monges, a oferenda é muito mais para quem oferece do que para quem é oferecido. Ou seja, é uma ação concreta da virtude da doação. Essas oferendas que estavam no interior do templo são um pequeno detalhe do cuidado que se tem com a representação do rito.


Outro ponto importante é a obrigatoriedade dos pés descalços no interior do espaço sagrado. Muitas religiões, inclusive o Judaísmo e o Cristianismo, consideram os pés como a parte mais suja do corpo. No Budismo, isso é ainda mais enfático. Sapatos recolhem toda a sujeira que há no chão, e isso torna desnecessário que se limpem os pés antes de adentrar à nave. Simples e fácil. É só colocar os calçados ao lado dos outros tantos que ficam na porta de entrada.


Por fim, há, em uma espécie de móvel assemelhado a uma cristaleira, algo que parece a réplica de um grande templo que, na verdade, é chamado de Mandala de Heruka, uma representação tridimensional de um objeto tântrico, que é o palácio de uma divindade meditacional. Diante dela, são recitados mantras de modo parecido ao que os católicos fazem com o rosário. Um mala é uma série de contas que ajuda a manter o controle das orações feitas diante da mandala**.


Vou contar uma rápida historinha. Quando eu era menino de uns oito ou nove anos, morava em frente da minha casa uma família de operários muito pobre, cujo filho homem era um dos meninos da rua, com quem jogávamos bola e corríamos atrás de pipas. Como sua condição econômica era a mesma de todos nós, não havia grandes protocolos em entrar e sair uns das casas dos outros. O nome do garoto era César e seu pai era o seo Arnaldo, constantemente desemprego por via da vista ruim, agravada pela bebedeira habitual. Acontece que, dos males o menor, a casa em que eles moravam era própria, o que representava um certo alívio nas agruras. Pior era a situação do tio do César, o Moacir, este sim sem um gato para puxar pelo rabo, e com a mesma inconstância empregatícia do irmão. Frequentemente a história se repetia: o sofá da sala estendido à guisa de cama para abrigar o parente despejado das moradas de onde o locador lhe punha para correr. Em uma dessas idas e vindas, ele trouxe com a limitada bagagem um móvel esquisito, semelhante a um oratório, que cheirava forte a incenso e que possuía um sininho em forma de cálice aos pés de uma imagem de um homem gordinho. Para a pergunta inevitável (o que é isso?), a resposta singela:

- Melhor você mesmo ver.

E é o que fiz. Na manhã do dia seguinte, ficamos eu e o César fingindo bobeira no quintal, bem de frente à janela da sala, e dava para ver perfeitamente o desenrolar dos acontecimentos. O fato é que o oratório estava virado para fora, o que deixava nosso investigado Moacir de costas para o vitrô, o que facilitou as coisas. Na hora do culto, ele acendeu os incensos, abriu as portas do oratório e murmurou palavras irreprodutíveis, enquanto golpeava o sininho, de quando em quando. Este foi o meu primeiríssimo contato com o Budismo, de uma forma pouco aclaradora e ainda com o inconveniente viés de ironia da infância.

Fato é que o Budismo é bastante complexo, muito mais do que as meras pancadinhas em uma sineta podem fazer supor, e significativamente mais próximo da Filosofia do que ocorre com outras Religiões. Isso por vários motivos, e vamos investigar alguns.

O primeiro fato notável é que o pensamento budista prescinde da existência de um Deus. Temos a tendência de achar que Buda é como Javé, Tupã, Allah ou outra divindade pessoal, mas não. Primeiramente, Buda não é um só – é qualquer um que atingiu a iluminação e saiu do ciclo de nascimento e morte. Segundo que Buda não tem superpoderes como os deuses, que criam e destroem de acordo com seus critérios e vontades. A formação do credo budista se dá através do mesmo mecanismo usado por Tales para lançar as bases da Filosofia ocidental – a observação do universo e a aplicação da lógica. Da mesma forma que Tales parte da premissa de que há água em todos os cantos e emanando de todos os corpos para originar sua teoria da arché, Sidarta Gautama, o Buda primordial, observa a natureza cíclica ao seu redor para concluir que todo o tempo é circular da mesma forma. Se o dia renasce, as estações do ano renascem, as fases da lua renascem, as marés renascem, a vida também renasce. Isso é o que se chama de samsara, o fluxo interminável de nascimento e morte, do qual fazem parte todos os seres sencientes. Mas esse eterno ciclo não significa que seremos sempre os mesmos. De acordo com o nosso conjunto de ações e intenções, ou o nosso karma, o renascimento se dará de diferentes formas. Atos ruins podem levar um homem a ressurgir como um inseto, um fantasma ou um demônio***. Ao contrário, boas práticas fazem o homem evoluir para espíritos elevados, que podem, por sua vez, degenerar novamente em homem, em animal e assim sucessivamente. Ou seguir evoluindo até a budeidade, ou seja, virar um Buda.

As conclusões do princípio de ciclo permanente partem da experiência de Sidarta Gautama, que viveu lá pelo século VI a. C. no norte da Índia. Era um príncipe do clã Shakya, e, como tal, gozou dos privilégios de sua condição: riquezas, banquetes, palácios, mulherada, blá-blá-blá. Mas havia uma inabandonável insatisfação a lhe perturbar o espírito. Foi conhecer o mundo para além das fronteiras de seu reino, e por toda parte, fosse exposto diretamente, fosse maquiado sob uma casca que lhe disfarçasse, encontrou o sofrimento. Encontrou respostas para suas angústias através de profunda meditação, e não de revelação divina, o que mais uma vez o aproxima da Filosofia. Esse insight ficou conhecido como Iluminação, e é por isso que Sidarta recebeu o cognome de Buda, o Iluminado em idioma Pali.

Quais foram as conclusões que Buda chegou em sua iluminação? O samsara é formado por ciclos com um substrato de sofrimento. Os mais óbvios deles são a dor física causada pelas doenças e a dor psicológica levada a efeito pelas perdas, mas há sofreres muito mais sutis, que estão presentes o tempo todo de nossas vidas. É a impaciência na fila do banco, a preguiça de ir para a rua em dia chuvoso (está chovendo enquanto escrevo), a reclamação do salário pouco, a inveja do vestido da vizinha, o ciúme do elogio ao colega, a indisposição com o mendigo que nos pede, a raiva com a derrota no clássico, a impotência quando o moleque nos xinga, e, principalmente, uma sensação de que tudo poderia ser melhor do que aquilo que temos de fato. O sofrimento existe no atacado e no varejo, em tudo o que fazemos. Essa é a primeira premissa fundamental do eixo filosófico budista: o dukkha, o sofrimento permanente.

O Budismo, como já dissemos, não possui um deus interveniente. Sua lógica está na continuidade, e não na excepcionalidade. Tudo o que ocorre é um encadeamento de causas e consequências, que são mediadas pelas condições e circunstâncias. Portanto, algo que fuja de uma linha vem de um desequilíbrio nessas condições, e não pela intervenção divina. As coisas não dão certo ou errado porque deus quer, mas porque tem coisa fora de seu lugar. Alguma coisa foi feita para que efeito “x” ou “y” tenha se desencadeado. É por isso que budistas não acreditam em milagres. Havendo essa relação de causalidade, é de se esperar que o sofrimento seja a causa das aflições humanas, mas ele mesmo é uma consequência, não brota de árvores. E tudo o que nos faz sofrer vem do desejo. Claro que não podemos vincular a dor física ao desejo; a não ser que tenhamos um desvio sadomasoquista, ninguém quer sentir dor, apenas que a dor cesse. Mas é o desejo irrealizável quem nos fustiga diariamente. Não adianta concretizar o pequeno desejo. Há um desnível entre o sonhado e o conseguido, entre o esperado e o real. Pior ainda – por mais que tenhamos a realização de um desejo, ele se soergue novamente à nossa frente no segundo seguinte. Compramos a moto, queremos o carro; compramos o carro, queremos a casa; compramos a casa, queremos a mansão. E assim sucessivamente, para sempre, inexoravelmente, com cada um arrancando mais forças de nós. O desejo é o causador do sofrimento, e esta é a segunda premissa do Budismo, o samudaya.

Até agora só falamos de constatações, mas é hora de partir para uma inferência lógica. Buda concluiu que o sofrimento é a causa das inquietações humanas, e que este, por sua vez, decorre da insaciabilidade dos desejos. Ora, sabemos que os desejos estão vinculados ao samsara, na medida em que seu giro interminável está ligado ao fato de que a realização dos desejos está vinculada à vida material. A solução para a questão do sofrimento é se libertar do samsara, atingindo o nirvana, a imperturbação diante da extinção dos desejos e superação do apego aos sentidos. Esse terceiro axioma é o nirodha, a extinção do sofrimento pela superação dos desejos.

Por fim, não basta entendermos causas, condições e consequências. É preciso saber como agir para atingir o nirvana e sair do samsara. Segundo Buda, é preciso saber trilhar o caminho do meio, nem tão apegado à carne que não seja possível se desligar dos desejos, nem tão ascético que te faça tentar sair do mundo estando ainda nele. Esse é o tapete por onde a doutrina budista pisa: a moderação e a serenidade. E a técnica para tal é o chamado Nobre Caminho Óctuplo, aplicações práticas na vida da pessoa, onde se encerra a metafísica budista e se inicia a sua ética, e que consistem em entendimento correto, pensamento correto, fala correta, ação correta, meio de vida correto, esforço correto, atenção correta e concentração correta. Esse é o magga, o caminho para o fim do sofrimento.

Reconhecer o sofrimento, entender a sua origem, compreender a maneira como deve ser extinto e saber qual o caminho a trilhar para fazê-lo são as Quatro Nobres Verdades, a raiz da medula do pensamento budista, e são autossuficientes, dentro desse sistema, para não necessitar de um deus. Seria, então, o Budismo uma doutrina ateia? Seria até mesmo uma não-religião?

Para a segunda pergunta a resposta é fácil. Sim, é uma religião porque, além dos aspectos éticos e doutrinários, o Budismo é fortemente ritualizado, e possui um sistema de regras bastante bem consolidado. Vejam que há divisões no Budismo, sendo o Kadampa uma subvertente ocidentalizada da corrente Mahayana, mas, se comparado com o Cristianismo, e mais especificamente ao Protestantismo, o Budismo tem uma unidade muito maior, inclusive com o reconhecimento mútuo do valor de suas correntes****.

Para a primeira, é preciso tentar compreender bem o que é ser ateu. Grosso modo, ateu é aquele que não acredita em uma divindade, e nesse sentido estrito o Budismo seria ateu. Mas se pensarmos em um ateu como alguém destituído de crença, nesse caso não podemos encaixar os budistas no panteão dos céticos absolutos. O primeiro problema está no fato de que os budistas não dizem que deus não existe, apenas silenciam sobre o tema. E, mais importante, os budistas creem numa transcendência. O ciclo de vidas não é algo detectável através da experiência, ao menos do ponto de vista científico. Ao dizer que tudo o que morre renasce, Buda não faz uma afirmação de cunho imanente, materialista. Isto é indetectável por nossos instrumentos.

O ateísmo no sentido clássico é plenamente materialista, algo do que o Budismo é tremendamente distante. Seria melhor pensar em um agnosticismo, porque assumir um deus absoluto implica em uma quantidade imensa de contradições no âmbito metafísico, e o seu objetivo, mais do que fazer uma rendição de culto a uma suposta divindade superior é, como vimos, indicar um caminho mais adequado de vida. Chamar um budista de ateu é simplesmente não compreender que sua doutrina aponta para outro rumo. Mas mesmo isso é delicado de fazer, já que o budista não é um descrente: ele acredita na validade dos ensinamentos de Buda, na sua própria presença no samsara, na maneira como o karma lhe direcionará os novos nascimentos, e qual é a estratégia que deve seguir para atingir seu objetivo espiritual. Um ateu na acepção da palavra, e mesmo um agnóstico, não dão valor a este tipo de prática.

Eu sugiro: conheça o Budismo, muito mais do que vocês puderam ler neste texto. Não se trata de proselitismo, por dois motivos – não sou budista e o budismo não é apostólico. Vejam como uma religião pode dar bons conselhos sem soluções ad hoc, difíceis de entender e de engolir. Conheça também os templos, são o suprassumo da arquitetura oriental. Conheça-o como Filosofia. Já estou preparado para conhecer outros templos, e retomar o tema aqui. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Minhas observações sobre o Budismo são vergonhosamente rudimentares, e trouxe-as aqui pelo bem do olhar filosófico. Recomendo alguma literatura introdutória sobre o assunto, como este livro que adquiri exatamente neste dia, de autoria de um dos principais monges ainda vivos da corrente Kadampa.

KELSANG, Gyatso (Geshe). Introdução ao Budismo. Uma explicação do estilo de vida budista. São Paulo: Tharpa Brasil, 2017.

E, o que é ainda mais essencial, recomendo a visita ao templo, belíssimo e de facílimo acesso, na cidade de Cabreúva, a 77 Km de São Paulo. Recomendo um pouco de paciência e, ao invés de ir pelo caminho mais rápido, vá pelo caminho mais belo, saindo da Rodovia Castelo Branco em Barueri e seguindo até o Templo pela Estrada dos Romeiros, passando por toda a região serrana. Em uma tarde de domingo, para os fins de meditação, o próprio caminho já é um preparo.

* Para quem quiser conhecê-los, seguem os links das páginas de índice:


** Talvez tenhamos um pouco de dificuldade de compreender corretamente o que é uma mandala em nossa cultura ocidental, pelo simples fato de que entendemos o tempo como uma sucessão de eventos em linha reta. As formas circulares de uma mandala dão a noção de um tempo cíclico, com sucessivos inícios e términos. Por isso, quando você for a uma casa de artesanato e ver uma destas, entenda que não se trata de um mero bibelô, mas um objeto ritual com um significado bem definido.

*** Lembrando que a concepção de demônio no Budismo é completamente diferente do Cristianismo. São seres que caminham para o lado exatamente oposto do caminho da iluminação, que se apegam mais e mais aos seus desejos.

**** Tradicionalmente, o Budismo tem duas grandes correntes, theravada e mahayana. Seu principal ponto de divergência diz respeito à questão dos bodhisattvas, seres que já estariam aptos a sair do samsara, mas que optam em permanecer nele para ajudar outros seres em sua busca pela iluminação. Para a corrente theravada, a iluminação é uma conquista individual, por isso os aspectos monásticos são muito evidenciados, e os bodhisattvas não são necessários. Já o mahayana entende ser desnecessária uma vida monacal, e para isto os bodhisattvas são importantes, como propugnadores dos ensinamentos de Buda a um público mais próximo da laicidade.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (24 - Mitologia)

Olá!


De certa forma, somos eternas crianças. Desde que me conheço por gente, tenho curiosidade em entender como as coisas são, de onde vieram, para que existem. É claro que os petizes, com bilhões de neurônios arfando para receberem informações, estão naturalmente mais predispostos a perguntar por que, por que e por que. Mas nunca deixamos de ser curiosos. O que muda é a sofisticação com a qual trabalhamos nossas justificativas. É fácil perceber isso. Diga a uma criança pequena que ela nasceu de um repolho e ela engolirá facilmente o engodo. À medida que crescer e receber novos dados do mundo que a cerca, já não bastarão parlapatices desse naipe, e estorinhas do tipo “papai plantou uma sementinha na mamãe” vão surgir para aperfeiçoar a explicação, ainda evitando o terrível, diabólico e pecaminoso assunto do sexo, apesar de começar a tangenciá-lo. Até que a rua ou a internet ensinem as coisas como são.

No entanto, nem sempre o mundo tem um caminho simples, e as crianças têm estratagemas para complicar ad nauseam suas infinitas indagações: se eu vim do papai, o papai veio do vovô, o vovô do bisavô e assim por diante, quem foi o primeiro homem da família? Um honesto “não sei” não é opção (como já expliquei aqui), e, à falta de um elemento histórico mais bem embasado, cria-se uma narrativa paralela à realidade desconhecida. Se tudo encaixar direitinho, fica eternizada.

Levemos em conta outro fator. Quando falamos em termos individuais, tudo bem que certas histórias pareçam piadas internas, mas nós vivemos em sociedade. Para que isso seja possível, é de rigor que existam pensamentos comuns, que se espraiem coletivamente, sob um véu de concordância mais ou menos bem assentado. Isso significa que estes mesmos questionamentos brotados por indivíduos são a expressão dos anseios coletivos, e a comunidade, como um todo, crê em um conjunto de explicações que não são circunscritos à historicidade e à cientificidade, mas a interpretações livres que se transmitem entre as gerações. Isso é a Mitologia.



A ânsia da humanidade pelo conhecimento tem seus benefícios e seus efeitos colaterais. A busca se dá via nexo causal: se meu time perde, há motivo para isso – jogou mal, tem atletas piores, o técnico tomou um nó tático, o adversário subornou o juiz, sei lá. Há uma causa para o fato, e ela é perceptível. Mas o futebol é danado para causar surpresas, e muitas vezes nada disso acontece. Mesmo assim, nosso eterno rival nos prega peças, e aí, defronte de uma falha na causalidade, buscamos culpados que não fazem sentido. Sapos enterrados, caveiras de burro e outras macumbas são estratagemas comuns para trazer azar a um escrete, e mencionamos muito as vontades temperamentais de supostos deuses da bola. Essa atribuição de uma causa duvidosa a um objeto estranho na relação é o que chamamos de superstição. Junte-se à curiosidade já citada e temos as grandes usinas de força na Mitologia.

Por que é útil existir uma causa para tudo? De certa forma, para se conseguir medir consequências, ora bolas. Não deixa de ser uma forma de se preservar a espécie e a própria vida. Se a cada vez que eu perceber nuvens negras se formando, eu me recolher em local longínquo do alcance dos raios, estarei garantindo mais tempo de vida. E já que eu, homem primitivo, não compreendo coisas como condensação do vapor e carga elétrica das nuvens, mas sei muito bem do que é capaz uma pessoa furiosa, transfiro a ferocidade dos fenômenos meteorológicos para uma escala maior, que possa ser disparada por entidades sobre-humanas. Já falei bastante sobre isso.

Hoje, em um primeiro olhar, podemos encarar a Mitologia como uma coletânea de contos risíveis, mas essa é uma armadilha fácil de cair, principalmente porque desconsideramos duas questões básicas: a Mitologia não revela meras crendices, e a Religião tem a mesma base no seu nascedouro. Aliás, muitas das histórias que hodiernamente colocamos na prateleira da Mitologia, um belo dia foram fragmentos de uma Religião.

Com relação à primeira questão, é fato que a grande massa das diferentes mitologias tem o objetivo de explicar origens, acontecimentos que se perderam no tempo e que não possuem nenhuma forma de registro concreto. É por isso que os mitos mais conhecidos são aqueles de criação – do universo, do mundo, do homem, dos povos, do bem e do mal. Mas eles não ficam circunscritos a isso, e são reveladores de como os homens formulam problemáticas universais e como uma determinada sociedade dá resposta a elas. Essa é matéria da maior relevância para a Filosofia e Ciências Humanas, que usam e abusam de narrativas míticas para ilustrar seus estudos. A psicanálise, por exemplo, busca o mito de Narciso para falar do amor-próprio, o de Édipo e de Electra para recompor a difícil relação entre pais e filhos e o de Eros para balizar o tema da sexualidade. Camus lança mão do mito de Sísifo para falar sobre queda e reerguimento eternos sem busca de sentidos. Nietzsche refere-se a Apolo e Dionísio para configurar o homem em seus aspectos racionais e caóticos, e, como estas, há inúmeras outras referências à Mitologia em conhecimento científico e filosófico, pelo simples fato de que estes pensamentos não são novidade, e já foram tratados em algum tempo pelo seu véu poético. O que Ciência e Filosofia fazem nada mais é do que racionalizar um pensamento que já surgiu pelo viés lírico.

Falado isso, podemos entender que a Mitologia de cada povo também coloca diante de nós todo um sistema de pensamentos, adaptado para cada terra e circunstância, de acordo com a familiaridade com o mundo que o cerca. De fato, mitos inuits falam de corvos e baleias, narrativas tupis mencionam serpentes, histórias nórdicas falam em freixos, que constituem os elementos que fazem parte do seu quotidiano, dos seus quintais e das suas realidades. Não mencionam, pela ordem, sabiás e botos, camelos ou ipês porque estes são elementos estranhos à sua cultura. Raramente se abandona a lógica de usar componentes familiares para dar síntese ao desconhecido. No entanto, os tais sistemas de pensamento também demonstram como os povos encaravam a vida, e como suas culturas tratavam as mais diferentes questões.  Eu mesmo já tratei um monte de vezes do tema neste espaço, como a sacralidade do corpo humano em Antígona, a intuição das ideias e o seu reflexo do divino em Hermes Trismegisto, das agruras do destino e da inatingibilidade comum a todo universo na lenda indígena da Mantiqueira, e há ainda muitas e muitas outras traduções de traços culturais em narrativas que fazem abundantes remissões ao cosmos como justificativa das ações humanas, como é o caso da Cabeleira de Berenice, uma das inúmeras constelações que adotam aspectos da mitologia grega.

Diz-se que a rainha Berenice do Egito era conhecida por sua beleza, representada sobretudo pelos seus longos cabelos. Seu marido, o Rei Ptolomeu III saiu em batalha contra a dinastia dos Selêucidas, um império poderoso e conhecido por sua violência. Em tempos de comunicação muito difícil, Berenice ofereceu sua vasta cabeleira à deusa Afrodite, para que seu amado voltasse são e salvo da empreitada, o que de fato se deu. Promessa feita, promessa paga: Berenice cortou seus cabelos e os levou ao templo, dados em sacrifício. Algum tempo depois, após o sumiço das madeixas reais, o astrônomo Cónon de Samos ligou esse fato à constelação que fica na beirada da abóbada celeste no hemisfério norte, dizendo que Afrodite aceitou de bom grado a oblação e a colocou no firmamento, por isso o seu desaparecimento do templo. Desta forma, chegamos à conclusão de como era importante para os gregos e sua esfera de influência (Egito incluso) o sacrifício de orgulhos pessoais em prol de significados mais importantes, como a permanência do rei em seu lugar. Percebem como o mito diz muito mais do que a mera história que ele conta?

Outro exemplo que podemos dar vem da epopeia de Gilgamesh, mito mesopotâmico muito antigo, que narra a procura do protagonista pela imortalidade, através de aventuras incríveis, inclusive sua guerra com Enkidu, inimigo que posteriormente veio a se tornar seu maior companheiro, até este ser abatido pela deusa Ishtar, através de uma doença. Desolado, Gilgamesh passa a errar pelas terras, até encontrar a taberneira Siduri, a quem conta sua demanda. Esta lhe esvazia a esperança: os deuses destinaram o homem à morte, e retiveram a eternidade apenas para si. Como a busca pela imortalidade é uma causa perdida, o que resta é se desvencilhar de algo tão vão, e a verdadeira captura é por uma vida venturosa e prazenteira – a comida, a bebida, a dança, o agrado com as mulheres e com as crianças, tornar-se feliz com a vida como ela é, na própria vida e enquanto ela durar. É uma antecipação de milênios ao amor fati de Nietzsche.

Mais um, para fechar. O hidromel é uma bebida modinha entre os hipsters* do Brasil, mas que tem o estatuto de alcoolatura nacional dos povos nórdicos. Segundo eles, os deuses vikings, depois de muito tempo em guerra de duas facções, selam a paz misturando suas salivas, de onde emergiu um novo deus, Kvasir. Dois anões, Fjalar e Galar, maliciosamente desejosos de sua sabedoria, matam-no e recolhem seu sangue, que, no final das contas, contém a alma de todos os deuses de Asgard. Cozinham-no com mel e dão origem ao hidromel, que fica recolhido em barricas. Depois de se verem em apuros por outros assassinatos, os anões se veem obrigados a entregar o hidromel a Suttung, um filho de gigantes, que o exigiu para lhes poupar a vida. Odin, o famoso pai de Thor, por sua vez, queria para si a bebida mágica, capaz de soltar a poesia da língua de quem a consumisse. Transformado em serpente, o eterno símbolo da astúcia, ludibriou Suttung e tomou para si os toneis sagrados. Esta história toda dá dimensão do quanto os povos nórdicos davam importância para as artes poéticas. A capacidade lírica sai do mais íntimo de um deus que representa a fusão de toda Asgard, a terra dos deuses, e que passa por um processo de morte e traição, tão significativo é considerado esse dom. No fundo, é outra metáfora para a busca incessante pela realização dos desejos, além da assunção da poesia como tradutora da alma.

Já com relação à Religião, o buraco é bem mais embaixo. Talvez seja desagradável para muita gente fazer a comparação, especialmente porque o termo Mitologia já parece fazer remissão direta a mentiras, ou, mais tucanamente falando, a narrativas ilusórias que se fazem só para dar explicação a algo inexplanável, mas isso não é verdade. O grego mythos significa aproximadamente conversa, história contada, anúncio. Isso dá a ideia de acontecimentos transmitidos oralmente, de maneira mais pessoal e menos rigorosa, que é exatamente o mecanismo com o qual as religiões se constituem. Uma religião não brota da racionalidade colocada no papel, do cálculo, da comprovação, mas da intuição, do modo pessoal, como se a maneira de se perceber as coisas tivesse alguma coisa de revelação. Portanto, não deveria ser considerado ofensivo dizer que toda Religião possui seus mitos de criação, para dar um exemplo. Aliás, se pensarmos neste aspecto, veremos que toda Religião vê as demais como Mitologia, e é vista assim por elas. É por isso que, didaticamente, colocamos no âmbito da Mitologia as religiões que não tem mais praticantes. Assim, não se ofende ninguém.

E há mais uma coisa ainda. Nem toda narrativa mitológica desagua na esfera religiosa. Histórias que se contam de homens que de fato existiram podem engrandecer seus feitos ao ponto do lendário, de modo a se fazer assemelhá-los a entidades sobre-humanas, sem que, no entanto, coloquemo-las em um mundo fora do nosso. Um mito, portanto, não é automaticamente um elemento religioso. Para migrar para a Religião, é preciso que o mito ganhe aspecto ritual. Dessa maneira, o mito passa a carregar uma forma de concretização de seu aspecto simbólico, uma espécie de reavivamento de seu acontecimento, um memorial que o torna novamente presente, como acontece quando se nomeiam sacerdotes, pessoas apartadas do meio comum, para oferecer algum sacrifício a uma divindade, e aqui já não temos mais uma simples referência, mas uma reverência. O mito se concretiza pelo reconhecimento que se dá ao seu valor e pela necessidade de canalizar através de uma ação essa confiança que se atribui a ele, especialmente por intermédio de uma classe de doutos. Esse é o mito que se sacraliza e se transforma em Religião. O mito transformado já não é mais só uma história contada por um povo, mas uma maneira dessa história se presentificar a cada vez em que é ritualizada.

Mas, se a Mitologia não obrigatoriamente redunda em Religião, o contrário também é assim?

Não.

Recomendação de leitura:

É um livro simples, de um mitologista antigo e consagrado, que conta muitos episódios mitológicos, não só da Grécia, mas de toda a Europa. Não se trata de uma obra que sistematiza a Mitologia, mas de um elenco de vários mitos, o que lhe tira um caráter mais acadêmico, mas suaviza a leitura para quem só quer conhecer os mitos em si, e não a história de sua formação. Tem seu valor.

BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia. Histórias de Deuses e Heróis. São Paulo: HarperCollins, 2015.

* Hipster é um termo que eu conheço a uns dois ou três anos, e que se refere a aqueles caras que gostam de ser diferentões. Aquelas barbas imensas são o exemplo mais flagrante deste tipo de moda. Justifica-se que hipster é uma atitude, e não uma moda. No fim das contas, é como o Ouroboros do punk, que lutou contra o mainstream até ele mesmo se tornar mainstream.