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sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O eterno retorno como alegoria e como ferramenta do auto-questionamento

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!’ Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: ‘Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!’ Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: ‘Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?’ pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” (aforismo 56 – Gaia Ciência – Nietzsche).

Olá!
Em geral, as redes sociais são permeadas de besteiras, mas tem seus lados agradáveis também, dispondo ao pretenso filósofo várias oportunidades de ostentar (tal qual uma passista na escola de samba) seus bandeirosos conhecimentos. Dia desses, estava pululando prá lá e prá cá em uma delas e deparei com um comentário de uma amiga chamada Eliana, que dizia o seguinte: “Quem nunca se imaginou voltando ao passado e fazendo sua vida de outra maneira?”. Não titubeei nem por um segundo e tasquei o famoso aforismo nietzschiano reproduzido acima, na íntegra, que é o axioma de sua doutrina do eterno retorno, uma das mais conhecidas.


Já tratei de Nietzsche por aqui, quando tratei do tema dos feriados sem significado, e também já falei do eterno retorno, que não é uma criação do bigodudo, mas dos estóicos. No entanto, como tenho percebido que o tema é tratado por alguns de forma quase mística e esotérica, colocando o nosso caríssimo filósofo e filólogo alemão em uma espécie de altar (o que, creio eu, desagradá-lo-ia bastante), achei por bem dar uma pincelada um pouco mais apurada nessa doutrina, para que meus leitores possam discutir comigo qual é a extensão de sua validade.
Quando começou a escrever, Nietzsche já era um leitor de Schopenhauer, o filósofo do pessimismo (de quem já falei aqui). O núcleo de sua filosofia voluntarista era a centralização da vontade como entidade única e inobservável, e da representação que cada um tinha dela. Se relembrarmos de Kant, veremos que o mundo é dual: temos a coisa-em-si, identificada com a essência, chamada de noumeno, e as coisas em suas contingências e acidentes, chamadas de fenômenos. O que está disponível para nossa percepção são apenas os fenômenos, as coisas tais como são apresentadas a nós, porque apenas podemos apreender através dos sentidos. Explicação ultra-rápida: não temos como visualizar a essência do céu, por exemplo; o que enxergamos são aspectos circunstanciais dele – límpido ou nublado, claro ou escuro, estrelado ou vazio. Schopenhauer identificou o noumeno kantiano com a vontade, e os fenômenos com as representações.

A vontade (que mais tarde Freud identificou com as pulsões e os desejos) era o motor do mundo, incessante, inesgotável, eterna. Schopenhauer tirou da razão o estatuto de identificador humano prioritário e a arrancou dos pedestais. O verdadeiro comando, o verdadeiro guia era a vontade.

Tudo era movido por essa estranha entidade, mas como cada homem possui um conjunto orgânico próprio, um aporte intelectual exclusivo e uma história particular, a vontade era diferentemente manifestada para cada um deles. Então, esse mundo constituído em seu substrato pela vontade una, tomava diferentes aspectos e diferentes representações. Resumindo: a vontade é uma só, o que mudam são suas representações, já que estas são tomadas a partir de uma determinada e irrepetível perspectiva.
Só que a vontade não se exaure nunca. A cada vez que um homem a persegue e não realiza, se angustia. Por outro lado, se a vontade é realizada, imediatamente toma corpo outra representação, com um outro desejo, e também aqui surge a angústia. A vontade plena nunca se realizará, e o homem continuará eternamente a ser presa dela. Desta forma, a vida se torna vazia de sentido: é um eterno movimento entre as representações da vontade, que nunca é atingida, mas está sempre presente. A única alternativa é uma atitude ascética – um autêntico “não ligo”. E isso pode ser obtido através da contemplação artística, do isolamento, etc.

Nietzsche concorda com quase tudo o que teoriza Schopenhauer com relação à vontade, mas discorda em um ponto tão central que acaba por tornar sua tese totalmente oposta, que é sua perspectiva moral. Para ele, a vontade não tem esse aspecto negativo que fez pousar um urubu sobre a efígie do mencionado filósofo. Muito pelo contrário.
Para Nietzsche, a vontade é vontade de poder (ou vontade de potência, de acordo com alguns tradutores). E o que esse termo implica? Se para Schopenhauer a vontade é baseada em um instinto de auto-preservação, este só pode ser baseado no medo, e, consequentemente, na covardia e na apatia. Já se a vontade se baseia em um desejo ardente de se tornar sempre o maior, o melhor, o mais potente, o mais poderoso, ela naturalmente impulsionará o homem para além de si mesmo. Essa vontade de poder é ativa quando domina e quando resiste. Não só aquele que ataca a tem, mas também aquele que se defende renhidamente é movido por esse princípio. Dessa forma, a vontade de potência é chave da combatividade, da intensidade e do desejo de viver no mundo, e deveria fazer com que a vida dos homens fosse um paralelo com a vida dos animais: uma espécie de seleção natural com um adicional, onde haveria o domínio dos melhores, dos mais fortes, dos mais bem preparados, daqueles que fossem além de sua própria humanidade. A vontade de poder é uma busca pela superação dos limites.

Mas por que eu disse “deveria” no parágrafo anterior? Porque, segundo Nietzsche, há uma força em sentido contrário à vontade de poder que ele denominou “moral de rebanho” ou “moral de escravos”, cujo principal inoculador era a religião, em especial o Cristianismo. É um tipo de moral que subverte a ordem natural e inverte a plenitude obtida pelo forte. As chaves do sucesso para que os mais fracos consigam inverter os valores e colocar o forte na defensiva são exatamente aquilo que lhes restam de armas diante do inimigo melhor preparado: seu instinto gregário – o rebanho; e o seu discurso, a linguagem. Através dela, o rebanho fustiga aquelas qualidades que fazem com que o homem se sobressaia individualmente – que se destaque do rebanho. Tudo aquilo que não é encontrado no seio comum ganha um atributo de mau, perverso, demoníaco. Assim, a coletividade se sobrepõe ao indivíduo e o oprime, de modo a imputar o valor de mentira a tudo aquilo que lhe escapa. Por exemplo: dificilmente vemos alguma pessoa assumir que é ótima em uma determinada área. É raro alguém dizer: “Sou bom músico”, “não conheço ninguém que faça poemas como os meus”, “sou fera no meu trabalho”. As pessoas se trancam em uma humildade irreal, e dizem: “Eu me esforço”, “meu trabalho não seria nada sem ajuda”, “dou o melhor de mim”, “é um dom que me foi dado”. Reconhecer-se a si mesmo como bom é ruim, é tido como arrogância, como imodéstia. Essa construção do rebanho impede que o indivíduo colocado em relevo seja tido como coisa boa, e este se sente culpado por aquilo que ele tem de melhor, e tende a se igualar ao rebanho como um todo. Torna-se um ser humano comum, como qualquer outro; não se diferencia de um animal como outro qualquer, como a ovelha no rebanho.
Nietzsche propõe o eterno retorno como metáfora para que o indivíduo avalie se sua vida vale a pena. A pergunta é simples, e tive a oportunidade de fazê-la em classe, quando estava substituindo o professor Arnaldo Zaki na ETE Carlos de Campos: você está satisfeito com a sua vida? Você certamente gostaria de renascer após sua morte, mas você gostaria que ela fosse absolutamente idêntica ao que ela foi até hoje? A resposta foi uma surpreendente unanimidade: não, ninguém gostaria que suas vidas fossem idênticas ao que já tinham vivido. Uma menina inclusive disse que, se fosse para assim ser, preferiria que a vida não se repetisse.

Pois é exatamente esse ponto que Nietzsche quer tocar. Os homens SUPORTAM suas vidas, quando deveriam, na verdade, amá-las. Deveriam pautar sua existência em realizações nela própria, ao invés de esperar pelos prêmios de uma suposta vida futura. Nietzsche aceita com regozijo e sobrevaloriza exatamente aquilo que Schopenhauer amaldiçoa e que as religiões ensinam a aceitar compassivamente: amor fati, o gosto pelo destino, seja da maneira que vier, como consequência de nossos atos, como casualidade inevitável, como o destino trágico que o herói grego sofre. Portanto, o eterno retorno não é um dogma de equilíbrio do universo como imaginavam os estoicos. Em Nietzsche, ele está mais para uma alegoria, como é o mito da caverna platônico, e que serve para indicar um caminho para a constatação do que estamos fazendo de nossas vidas, um exame de consciência que permite estabelecer se nossa existência vale a pena ser vivida.
Não vou, neste momento, fazer juízos de valores sobre estas ideias de Nietzsche, bastante controversas, por sinal. Muito já se reclamou da sua doutrina da vontade de poder, principalmente por causa da expansão do nazismo, mas é precisa advertir, antes de mais nada, que seu uso é indevido. Vontade de poder é uma guerra de equilíbrios universais que transcendem motivações meramente políticas, que está presente em qualquer situação de confronto, vinda de ambos os lados, desde uma onda que colide na rocha e esta resiste, até a mais elaborada criação humana e seus paradoxos intelectivos.

Recomendação de leitura:
A maior parte do que me concentrei em explanar neste texto encontra-se n’ A Gaia Ciência, livro que já recomendei anteriormente. Por esse motivo, vou recomendar outro livro, que trata com mais afinco da doutrina da moral de rebanho.

NIETZCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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