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segunda-feira, 20 de julho de 2015

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - 3º relato: Estiva Gerbi e os caminhos religiosos frente à evolução científica

Olá!


Continuemos. Saímos de Águas da Prata no dia seguinte à nossa visita a Poços de Caldas. De lá, tomamos rumo à segunda parte de nossa jornada, procurando o caminho que levaria ao Circuito das Águas, região paulista plena de cidades onde o principal atrativo é a exuberância na disponibilidade de água mineral. Como tem sido costume em nossos périplos, não tínhamos certeza ainda se começaríamos pelo começo ou pelo final, mas nossa tendência era sair em Águas de Lindoia e descer o mapa na direção de Socorro. Antes disso, achamos por bem comer algo pelo caminho. Juntamos a literal fome com a vontade de comer e passamos pela pequena cidade de Estiva Gerbi, cuja principal fama é a existência de um santuário dedicado à Nossa Senhora da Rosa Mística, dos quais existem vários espalhados pelo Brasil, e cuja devoção se popularizou entre as décadas de 80 e 90.

Quando se pega a estrada vicinal que sai da Rodovia Adhemar de Barros e ruma-se para o centro urbano da cidade, uma das primeiras coisas que se veem digna de nota é o pórtico de entrada do santuário, com uma aparência algo curiosa.



Algumas referências são evidentes, como o formato triangular que remete a um manto e às rosas de três cores: uma branca, uma vermelha e outra amarela, como é facilmente visível no alto do portal:


Logo sob esta construção, existe algo semelhante a uma portaria, mas que, na verdade, se trata de um pequeno oratório, onde há torneiras para água benta (secas no dia) e lugares para sentar e fazer as preces que o caboclo julgar necessárias. Não havia ninguém por lá.


Também lá dentro, havia uma reprodução da famosa imagem, logo defronte aos dois ou três banquinhos, meio que protegida por uma redoma de plástico, com várias plantas e a expressa proibição de acender velas. Imagino que tal imagem se presta aos viajantes que por lá vão de passagem.


A mesma formatação do pórtico se repete para quem está no interior do terreno do santuário, olhando da parte baixa para frente.


É uma estrutura interessante, formada por cinco seções triangulares que se emendam uma na outra através de traves laterais em forma de escada, e que estão solidamente fixadas no chão com um esquema de aparafusamento. A mim, pareceram ser feitas de algum metal sólido, mas como não apresentava sinais de corrosão, não consegui fazer a mínima determinação de que material a compunha. Nos vãos entre cada uma das seções, há um banco de concreto para tomar um solzinho (maroto naquele dia específico, apesar de janeiro).


Na frente deste pórtico, existe uma pequena praça verde, com a colocação de alguns anjos e uma imagem do Cristo Redentor, infalível nessas cidades do interior. O jardim era, sem dúvida, o que havia de mais belo naquele local, ao menos naquele dia.


Mas o mais curioso era o quanto o local estava deserto. Não havia viv’alma no pedaço!!! Na parte abaixo do terreno, há uma espécie de cobertura de quadra, em formato de concha, que abriga uma boa centena de cadeiras e um palco, onde se arma o altar. Claramente as missas do lugar são rezadas lá.


Com tal ausência de gente, a curiosidade ficou atiçada. Onde estaria todo mundo? Por que uma imagem tão famosa não se encontrava em seu santuário? Etc, etc e etc?

O negócio era procurar a área urbana da cidade para caçar algumas informações. E o que encontramos foi uma cidade muuuuuuuuito pacata, bem quieta mesmo. Pelas ruas e pelas praças, bem pouca gente.


Paramos aqui e ali pelo comércio local, em busca de algumas notícias, que, finalmente foram obviamente encontradas na Igreja de São José, onde, aliás, foi possível comprar uma bem boa paçoca caseira.


Lá dentro, encontrei a Leonice. E através dela fiquei sabendo que a imagem é peregrina, voltando poucas vezes durante o ano para as festividades principais, daí a total ausência de movimento no santuário, privado de sua principal atração. Também fiquei sabendo outras coisas, como os porquês que levaram a esta devoção em especial. No caso, uma série de aparições ocorridas do meio para o fim do século XX, nas cidades italianas de Montichiari e Fontanelle. Diz-se que a santa apareceu a uma fiel pela primeira vez com três espadas cravadas no peito. Santa Maria chorava e dizia, suave e enigmaticamente, três palavras: oração, penitência e reparação. Algum tempo depois, no mesmo lugar onde as espadas estavam penetrando no peito da santa, surgem três rosas, nas mesmas cores e sequência que mencionei acima: branca (cor-símbolo da oração), vermelha (sacrifício) e dourada (penitência), como que informando aos fiéis as bases para a salvação do mundo. A partir daí, uma série de novas aparições foram relatadas por toda a extensão do mundo católico, inclusive no Brasil. Não é ainda uma devoção oficialmente reconhecida pela Igreja, mas bastante disseminada pelo corpo dos devotos.

E assim, diante dos meus olhos, vejo surgir uma nova tradição para quem os homens vão se dirigir em seus momentos de desespero. E começo a pensar nos motivos que levam a essas contínuas gêneses: novos santos, novas devoções, novas religiões. Por que surgem ainda, e por que proliferam, em um mundo que já não benze as feridas, preferindo passar-lhes um unguento?

Bom, para ajudar a entender como a história se movimenta dos vodus pré-históricos para a cristalização em ausência de gravidade, vou buscar em minha estante um livro sobre Auguste Comte, pai da Sociologia e do Positivismo. Depois disso, já mais interessado, busco a obra do próprio.

Comte vive em um tempo no qual a Idade Média já ia longínqua, em que o Iluminismo já havia trazido uma explosão de ideias e ideais e que a Revolução Francesa já havia tratado de derrubar reis e convicções. Para o bem e para o mal, o mundo se apresentava como algo totalmente novo – um novo pensamento que, desamarrado das estruturas religiosas que guiaram seus passos até então, fazia vislumbrar o futuro pelas lentes da Ciência.

É neste clima que Comte desenvolve suas teses. Ele vislumbrou uma Filosofia da História que, por final, desembocou em novos paradigmas epistemológicos, como poderemos observar. Vamos lá.

No princípio da humanidade, o homem, dono da faculdade da razão, mas ainda com aporte de conhecimentos reduzido, começou a observar vários fenômenos para os quais não conseguia explicação – o surgimento dos brotos na terra, dos fungos na umidade, das doenças e das curas, além de eventos fantásticos, como as avalanches, os grandes temporais, os cometas e eclipses. Começa a perceber que a vida não se limita a si mesmo, aos animais e às plantas que o cercam, e passa a atribuir uma anima a tudo o que está ao alcance do seu olhar. Para que se sele um pacto entre ele e esse mundo, que tanto pode lhe auxiliar como lhe matar, o homem passa a lhe render culto, a agradar essas entidades de alguma forma, aos objetos e astros dos quais acredita restar dignidade desse seu esforço. E, nesse comportamento associativo, nasce o fetichismo.

Com o passar do tempo, o ser humano percebe que nem sempre seus ritos são eficientes para atrair ou afastar a atenção de seus fetiches. Não é toda dança que traz chuva, não é todo amuleto que afasta azar. O homem passa a entender que, por trás dos fenômenos e irregularidades da natureza, há uma vontade superior que os conduz. A sapiência não está no objeto, mas em alguma coisa externa a ele. E, desta forma, nascem as divindades. Há um deus que cuida dos ciclos das colheitas, outro que orienta as marés e correntes oceânicas, outro ainda que indica a força e a direção dos ventos, e mesmo há aqueles que regem as relações humanas: deuses do sexo, do medo, do comércio. É o politeísmo.

Esse politeísmo persiste até que surja a percepção de que, mesmo que a princípio não pareça, o universo tem regularidade e equilíbrio: os ciclos de verão e inverno se repetem, as auroras surgem sempre na mesma época, as estrelas sempre se repetem no mesmo lugar, e mesmo aquelas que se movem (os demais planetas) seguem sempre a mesma rota. O universo existe em um totus, e a existência de vários deuses, em permanente conflito, passa a não ser mais uma explicação satisfatória, e, com isso, chegamos ao monoteísmo. Uma vontade universal unificada explicaria a mecânica dos ciclos, e sua ira era a causa de suas quebras.

Essas três fases – o fetichismo, o politeísmo e o monoteísmo – compõem o que Comte chamou de estágio teológico da história humana.

Na continuação do estudo desta evolução da História, Comte entende que o eixo da busca do conhecimento sai das causas que regem o universo e vai para o sentido da existência. Se o homem perguntava o que dava causa às coisas, agora questiona por que as coisas são como são. Desloca-se do estudo da causa para a consequência, e, nesse movimento, já não são mais os deuses que importam, mas entidades abstratas que representam os valores humanos. Dessa forma, se uma pedra cai na cabeça de alguém e o mata, já não é mais uma vontade divina e ponto final. Aqui, questionamos o que é a morte, seu valor como distintivo do final do ciclo da vida; questionamos o próprio valor da vida que se perde. Os valores são personificados: a Vida, a Morte, o Amor, a Justiça. O conhecimento perde em crença, ganha em ética.

Esta é a etapa metafísica da História, aquela que observa além do cosmos, já não recorrendo a deuses, mas ainda sem olhar para o próprio mundo na caça do saber. E, para Comte, portanto, essa é ainda uma fase da qual é preciso evoluir. É preciso alcançar o Positivismo, o estágio da História onde a análise é voltada para o real concreto.

Para explicar o termo, vou lançar mão de um recurso que não estava disponível ao filósofo em questão, mas que é didático o suficiente. Imagine uma fotografia qualquer, mas não das atuais, feitas com câmeras digitais. Imagine uma fotografia daquelas tiradas em rolos de filme (se você não tem idade suficiente, peça uma para pais ou avós, que com certeza têm). A foto que consta do rolo não possui correspondência direta com a realidade. Suas cores são diferentes dos objetos, que são mui dificilmente identificáveis. Destas fotos, que chamamos de negativos, podemos ter uma ideia de como são os objetos retratados, mas não os temos nítidos. Segundo Comte, os estágios teológico e metafísico são negativos, pelo mesmo motivo.

Já a fotografia revelada, em oposição ao negativo, é clara, evidente, nítida. Sabemos com precisão o que há à nossa frente e podemos analisá-lo pela sua própria imagem. É o positivo da foto, o afirmativo.

O estágio positivo, portanto, não mais se ocupa do “o que” teológico ou do “por que” metafísico. A sua preposição símbolo é o como. Como se cura uma doença? Como se formou o universo? Como produzir mais e melhor? A base da sociedade positivista não é mais a Religião nem a Filosofia; é a Ciência e a sua derivação prática, a Tecnologia.

O que assegura um destino mais auspicioso para a humanidade é o pensamento científico, o que fez Comte deduzir que conhecimentos outrora especulativos deveriam fazer uso da mesma metodologia utilizada pelas Ciências em geral, e, assim, tornarem-se eles mesmos novas Ciências. E é desta forma que surge a Sociologia.

Comte tinha para si que os fatos e as relações sociais obedeciam a algum tipo de mecânica que poderiam ser redutíveis a observações e experimentos, de forma que deles pudessem ser extraídos leis e postulados. Aliás, Comte supunha que a Sociologia era uma Ciência de altíssima complexidade, que dependia de todas as demais para produzir suas conclusões. Aliás, Comte hierarquizava as Ciências, e colocava a Sociologia no topo de uma escada alegórica. Na base, a Matemática, seguida pela Astronomia, a Física, a Química, a Biologia e a Sociologia, sendo que mais adiante foi acrescida a Moral.

Pois muitíssimo bem. Comte propõe um mundo em que as Ciências devem ter a primazia no desenvolvimento da intelectualidade humana, e que o estágio positivista é a resposta adequada para seu futuro. Mas qual é a posição que a Religião pode ou deve se colocar diante do papel terciário em que foi colocada?

Em primeiríssimo lugar, é preciso ter em mente que o pensamento comteano é plenamente contestável, como qualquer outro. O que não há como negar é que ele tinha razão quando preconizou a predominância científica em relação à Religião. Quem tem dor de cabeça prefere tomar uma Aspirina no lugar de água benta, basta ver. Portanto, o papel da Religião como pensamento para a physis do mundo está superado. E o seu olhar deve se voltar para aquilo que é sua essência, a fé. Todas as vezes em que a Religião tentar competir com a Ciência na esfera da dedução experimental, vai tomar de goleada.

Quando lida com questões de fé, a Religião ganha “direitos” em relação à Ciência que, tendo necessidade de provas e evidências empíricas, não consegue se valer. A Religião recebe um poder especulativo que, para a Ciência, está limitado à sua capacidade de se movimentar dentro de seus próprios métodos. Nesse sentido, a Religião, assim como a Filosofia e a Arte, goza de maior liberdade. Enfiar a Religião no método científico mata-a por sufocamento. Se colocarmos a Ciência em uma metodologia de pesquisa religiosa, o acidente também se consuma: teríamos a volta da astrologia e da alquimia, a consolidação do criacionismo como alternativa científica à teoria do evolucionismo, e também da ressurreição de outras áreas “científicas” que já foram definitivamente descartadas.

Só que, evidentemente, há uma presença maciça da Ciência e da Tecnologia em nosso quotidiano, progressivamente cada vez maior. Essa predominância leva a Religião a fazer uma busca permanente de novos objetos que reforcem a fé das pessoas, sua matéria-prima. E assim surgem testemunhos pessoais de milagres, o que é muito forte em religiões de origem protestante, mais especificamente aos evangélicos neopentecostais, tão em voga no Brasil; surgem novas derivações, vertentes e seitas em toda e qualquer religião existente no mundo; surgem novos líderes, com uma nova retórica, mais próxima do linguajar científico, como é o caso do Espiritismo e da Cientologia. E, finalmente, surgem dentro do Catolicismo essas novas manifestações de fé – imagens que choram, santos que mandam mensagens, milagres eucarísticos. São vários, como é o caso deste santuário que motiva a existência desta pequena e pobre cidade. Não é pouca coisa. Basta lembrar que a imensa maioria das pessoas no mundo inteiro ainda possui algum tipo de relação com a transcendência, e estas manifestações são tremendamente significativas para elas.

Recomendação de leitura:

Comte faz uma síntese completa de suas ideias em um livro na forma de um curso, que indico logo abaixo. Voltarei a este filósofo logo em breve, para tratar de sua concepção de sociedade, que é bastante polêmica e atual.

COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Col. Os Pensadores.

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