“Que traulitada!”, diria meu avô. “Que sacolada!”, diria meu
pai. “Que chocolate!”, diria eu. “Que sacode!”, diria meu filho. “Que porra foi
essa?”, dirão meus netos. “Que vexame!”, diremos todos nós.
Vergonha: a tristeza diante da incapacidade, o luto que
tende à permanência diante do erro, da afronta. Vergonha é a palavra que mais
li e ouvi nos últimos dias, reflexo dos indiscutíveis 7 x 1 aplicados pela
Alemanha no Brasil nas semifinais da Copa do Mundo. Indiscutíveis em tese,
aliás. Podia ter sido muito mais.
Gosto muito de futebol. Quando eu era criança, existiam dois
campos de futebol na minha rua: no começo, na parte baixa, existia o campo do
Disparada, time de várzea sustentado por uma casa de materiais de construção de
igual nome; no final, no topo da ladeira, existia (existe ainda) a tubulação
que leva água do Rio Claro até não sei qual parte da metrópole. Andando por sobre
os canos, rapidamente chegava-se ao campo da Rua Deiz (assim mesmo, conforme
estava escrito pelo indigitado que redigiu ambas as placas que a identificava).
Era um local menos recomendável, porque pertencia à malandragem local (Vila
Diva, no caso), mas como era plano, tinha suas partidas menos influenciadas por
fatores “geográficos” e mais por fatores “sociológicos”, como brigas nos fins
dos jogos, às vezes com alguns objetos perfuro-cortantes. O campo do Disparada
tinha um leve, porém perceptível declive, mas o pessoal que jogava lá era
composto de operários que moravam na Vila Ema e arredores, e que iam trocar a
graxa pela lama no final de semana (rapidíssimos parênteses: o clima de São
Paulo mudou demais nas últimas décadas. O inverno era gelado de verdade, e
durava três meses. Hoje em dia, cai em um final de semana. No verão, sempre
tinha chuva no final de tarde. E os níveis de umidade do ar nunca eram tão
baixos – o epíteto “Terra da Garoa” não se justifica mais). Esse pessoal se
reunia nos botecos e combinavam seus jogos, em meio a muitas cervejas e
talagadas da “marvada”. Conhecia quase todos. Sentava na beira do campo e ficava
assistindo o proletariado judiar da bola, enquanto comia os indigestos
torresmos do seu Geraldo, fundidor de ofício que nas horas vagas fazia as vezes
de barman. Cara curioso, esse seu
Geraldo. Vivia coberto de fuligem, em qualquer hora que fosse visto, e
transferia seus vestígios em todo lugar onde encostasse, inclusive nas garrafas
de Caçulinha que nos eram servidas. Bom, nunca tivemos problemas com anemia.
Também costumava frequentar, com certa frequência, o Desafio ao
Galo. Quem tem mais de 40, sabe do que estou falando. Tratava-se de um torneio
de várzea, mais “requintado”, no CMTC Clube (onde hoje há o recomendável Museu
do Transporte, na Ponte Pequena), e que era disputado no seguinte esquema: o
time detentor da última vitória era chamado de “galo”, o dono do terreiro. A
cada domingo, um time desafiante vinha enfrentá-lo. Se vencesse, era o novo
“galo”, e voltava a jogar na semana seguinte, contra um novo desafiante. Se
perdesse, abaixava a crista e ia esperar sua vez de novo. Em caso de empate,
pênaltis. Quem fosse o galo por mais tempo no ano, ganhava um troféu adicional,
se não me engano.
Conheci muitos times que participaram do torneio, quase
todos extintos: Atlas, SDR, Botafogo do Imirim, Corinthinha do Sapopemba,
Estrela do Sul, Parque da Mooca, Aliança de São Bernardo, A. A. da Penha, Portuguesinha da Água Rasa...
Essa era a ponta mais visível do futebol de várzea, porque era transmitido pela
TV. Passava na Record, que na época não tinha absolutamente nada a ver com a
IURD. Na pequena arquibancada, era possível observar duas coisas: vários
olheiros tentando caçar talentos (era fácil reconhecê-los, já que sempre tinham
na mão algum bloquinho ou caderneta, e também costumavam ir a campo para
abordar algum rapaz mais habilidoso) e meu avô berrando impropérios para
pernetas que ele nem conhecia.
Também peguei gosto em ir a estádios, principalmente na
década de 80. Apesar de ser corinthiano, o time profissional que eu mais
assisti foi o Juventus. Explica-se: o campo da Rua Javari era perto de casa –
meia hora de ônibus, o ingresso era muito barato, havia frequentes promoções
para sócios do clube, eu pagava meia-entrada por ser estudante e havia ainda a
ligação afetiva: mooquense que sou eu, mooquense que é o Juventus, bairrista
que é o mooquense (sou-o de nascimento, não de residência).
O resultado é que hoje volta e meia me pego assistindo jogos
como Batatais vs. Lemense na rede Vida. Se me interessa o futebol mais miúdo,
quanto mais não me atrairá seu evento maior, a Copa do Mundo. É bem verdade que
os brasileiros não têm mais a mesma ligação com a seleção que tinham
antigamente. Na Copa de 70, todos os jogadores atuavam no Brasil. Na de 82,
acho que só o Falcão jogava na Itália, mas tinha uma forte ligação com o
Internacional de Porto Alegre. Dos jogadores da atual, não me lembro de ver
jogar com camisas brasileiras os seguintes: Daniel Alves, David Luiz, Dante,
Marcelo, Maxwell, Luiz Gustavo, Fernandinho, Hulk. Vi muito pouco do Maicon no
Cruzeiro, do Tiago Silva no Fluminense e do próprio Willian no Corinthians.
Nenhum dos jogadores atua no estado de São Paulo. A desvinculação se torna
inevitável. Mas, mesmo assim, a vontade de enfiar a cabeça na areia é
inexorável.
Por que o futebol nos afeta tanto assim? O que há nele, que
a princípio é apenas um jogo, para fazer com que percamos o sono, choremos,
soframos, até morramos? Lembro os inúmeros casos de enfarte e do torcedor
vascaíno que precisou ser seguro para não se atirar quando seu time foi
rebaixado pela primeira vez.
Vejo e ouço em muitos lugares a explicação de que o futebol
é metáfora da vida, por isso nos perturba tanto. Não me convenci.
Uma metáfora é uma figura de linguagem em que uma
característica concreta é substituída por outra, por um processo de semelhança
e comparação. Vai aqui o exemplo do “mala sem alça”. Qual é o seu uso na
linguagem coloquial? É o cara chato, difícil de suportar. Uma formação de frase
para estabelecer a correlação entre o cara chato e a mala sem alça é a
seguinte:Ok, temos uma comparação clara, que não é uma metáfora, porque não há sentido figurado. Na metáfora, pegamos uma característica comum e a imiscuímos na relação. É possível representar graficamente.
Na metáfora, temos a fusão daquilo que é explícito na
comparação:
Presto! O termo que medeia ambos some e enriquecemos nossa
linguagem, trazendo um novo significado para uma expressão anteriormente
unívoca, tomada apenas em seu sentido estrito:
Posto tudo isso, acho que não é possível traçar um paralelo tão próximo entre vida e futebol para considerar um metáfora do outro. Muitos são os motivos: o futebol tem tempo e espaço definidos, regras razoavelmente claras, acesso restrito, e outros que-tais. Para mim, o futebol é muito mais semelhante a uma metáfora da guerra. Eu acho isso até óbvio demais. Mas cabe explicação, e farei isso com as teses de um alemão, vejam vocês! Ninguém menos que Georg Wilhelm Friedrich Hegel, o pai do Idealismo moderno.
Nosso caro tedesco é bem conhecido. Formulou um sistema
completo de Filosofia, que abarcou teoria do conhecimento, metafísica, lógica,
ética e estética, entre outros, e influenciou gente à beça. Com tão vasto
sistema, só posso brincar aos poucos, e me concentrarei em sua visão peculiar
sobre a dialética neste texto.
A dialética sempre foi utilizada em Filosofia, lançando mão
da linguagem como ferramenta para partir do particular ao universal, o que dá
cientificidade ao método. Zenon, Sócrates e principalmente Platão, na sua alegoria
da caverna, dão mostras de como é possível galgar uma escada em que se
abandonam as imperfeições da sensibilidade para adquirir conhecimento seguro.
Para Hegel, no entanto, o movimento dialético é um reflexo da própria
motricidade da natureza e da história, no sentido de que um estado ou situação
sempre caminha no sentido de algo que lhe opõe, e desse confronto é obtido um
terceiro estado, que agrega algo de uma proposição e algo de sua negação. Este
terceiro estado também é passível de uma nova negação, que gerará mais uma vez
uma junção de opostos que se interpenetram, e assim por diante, ao infinito. O
primeiro estado ou situação é a tese,
sua negação é a antítese e o
resultado de ambos é a síntese.
Quando o intelecto aplica esse método na obtenção do conhecimento, nada mais
faz do que plasmar um ciclo já existente em tudo ao seu redor.
Vamos dar um exemplinho rápido de procedimento dialético
simples, que vi em algum livro. Interiorizei o exemplo, mas não encontro onde.
Perdoe-me o autor. Em um estado absoluto, tudo é guiado pela vontade de um rei.
Suas determinações podem ser justas ou não, podem se basear em seus caprichos
ou na lógica, podem voltar-se para a população que rege ou exclusivamente em
seu interesse. Essa é a tese. As pessoas desejam liberdade, porque não querem
se submeter unicamente ao desejo régio, querem decidir suas causas coletivamente,
querem escolher o que fazer da vida, sem depender de um poder central. Essa é a
antítese. Pois bem. Se por um lado a tirania cria grilhões para as pessoas, a
liberdade ilimitada é anárquica em seu pior sentido, porque ninguém tem
garantias de que o desejo do outro não conflitará com o próprio. Para
solucionar este problema, temos sua síntese: a lei. A lei impede que a tirania
se estabeleça, porque dá balizas e limites ao exercício do poder. Faz o mesmo
com o interesse individual, demarcando onde cada um pode chegar e o que cada um
pode ou não fazer. Percebam que na lei há um elemento do absolutismo, que é sua
propriedade de nada estar acima dela, mas também tem um elemento de liberdade,
porque tira a coletividade do domínio da vontade de um só. E assim caminha a
humanidade...
Vamos agora, e finalmente, aplicar toda essa parafernália à
nossa inglória derrota. O ser humano tem algumas características básicas. Quer
sobreviver instintivamente a todo o custo, quer preservar a própria espécie, vive
em grupo, procura espalhar seus genes pelo mundo todo. Isso faz com que cada
agrupamento procure expandir seu alcance ao maior território possível. Isso era
bem simples quando o mundo era povoado por meia dúzia de tribos, mas na medida
em que foram se reproduzindo mais e mais, os encontros começaram a ser
inevitáveis. No dia em que o homem resolveu que queria entrar à força em um
domínio alheio, nasceu a guerra. Ela esteve presente em todos os tempos, por
conta dessa necessidade atávica de ampliar seus domínios. Criou armas e
diversas táticas para isso, e, portanto, usou de violência e da morte em
quantidades inimagináveis, por mais que a razão tentasse dissuadi-lo disso.
Acontece que as mortes geradas em uma guerra, que em última
instância é uma ferramenta da preservação das espécies, vai também contrária a
ela, porque se enfiar em uma aventura guerreira traz baixas para si; há sempre
o risco de se perder uma batalha ou mesmo a guerra toda. Há o medo ancestral da
morte, e a guerra é uma usina de morte e destruição, não só no combate direto,
mas também na fome, na doença, no empobrecimento.
Temos então dois fatores que se imiscuem mutuamente. O
instinto de sobrevivência traz a combatividade, mas também traz o medo da
morte. Como podemos solucionar estas duas potências que tentam se anular? Como
satisfazer o espírito de luta e o desejo de paz ao mesmo tempo? Qual é a
síntese possível para estas duas necessidades contraditórias? Como podemos
combater sem que haja perdas?
Sim, através do esporte.
Desse confronto dialético entre guerra e paz, temos o
simulacro que satisfaz os desejos de combatividade e as garantias de que essa
agressividade não terá como objetivo o extermínio do outro lado. E, de acordo
com o meu entendimento, é no futebol que temos o exemplo mais bem acabado desta
metáfora.
Não vou esgotar o assunto, mas vou exemplificar: no vôlei,
no beisebol, não há contato físico; no basquete, o contato é mínimo e é
repudiado quando existente; no tênis, nas lutas, na esgrima, o esporte é
individual; no automobilismo, depende de máquinas; no remo, na canoagem, nas
corridas atléticas, afere-se somente a velocidade ou a resistência. Já no
futebol, temos um grupo grande, com funções bastante específicas (goleiro,
zagueiro, atacante, armador, técnico, massagista, roupeiro, etc.). As cores do
exército estão em evidência, há uma insígnia no peito e a torcida que rodeia é
a população que a esquadra defende. O campo é amplo, as táticas são
variadíssimas. As intempéries se fazem presentes: há jogos na chuva, no sol
intenso, na noite, em dias sem umidade, até sob a neve. Joga-se na grama, na
areia, no asfalto, no tablado, na terra, no cimento, no carpete. Não há
riquezas – uma bola basta, com dois marcos fazendo as vezes de trave, se
necessário. Não precisamos de cavalos ou iates. Há o general – o cartola; há o
sargento – o técnico; há o cabo – o capitão do time; há os soldados – os jogadores.
Há a retaguarda, que são o goleiro e a zaga; há a artilharia (termo militar),
que é o ataque; há a reserva, que é o banco.
Aqui, temos espaço para os baixinhos e para os galalaus,
para os delgados e para os espadaúdos, para os lentos e para os lépidos, até
para os inábeis com força de vontade há utilidade. Vejam como é difícil uma
“zebra” em qualquer esporte; só no futebol ela é frequente. É o inesperado, a
força vence a inteligência e vice-versa. E, nestes caracteres todos, vemos
reflexos da guerra. Só o futebol tem tantas características comuns com a
guerra. Por isso, tanto somos afetados por uma derrota no futebol: é uma
derrota na guerra, ainda que levada no plano do simbólico. Tanto pior na
goleada acachapante. É a derrota fragorosa, algo como se todos nós fôssemos
dizimados. É como se estivéssemos ameaçados de existir como nação, ou como
sermos objetos de chacota para qualquer lugar que formos, de mãos amarradas, de
cabeça baixa, com o chicote estalando em nossas costas, cidadãos de segunda
linha – se é que mereceríamos essa denominação. Estaríamos mais próximos da
escravidão e do cárcere, a nossa vergonha.
Quanto drama! Melhor que seja no esporte do que em uma
guerra real. Mas dói. Principalmente quando nos consideramos melhores do que os
outros.
Recomendação de leitura:
Abordei aqui apenas milimetricamente uma tese de Hegel. Para
conhecer mais a fundo seu pensamento, recomendo a leitura de sua obra maior.
HEGEL, Friedrich. Fenomenologia
do Espírito. São Paulo: Vozes, 2002.
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