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terça-feira, 15 de julho de 2014

Sobre goleadas e a dialética que explica os vexames no futebol

Olá!

“Que traulitada!”, diria meu avô. “Que sacolada!”, diria meu pai. “Que chocolate!”, diria eu. “Que sacode!”, diria meu filho. “Que porra foi essa?”, dirão meus netos. “Que vexame!”, diremos todos nós.
Vergonha: a tristeza diante da incapacidade, o luto que tende à permanência diante do erro, da afronta. Vergonha é a palavra que mais li e ouvi nos últimos dias, reflexo dos indiscutíveis 7 x 1 aplicados pela Alemanha no Brasil nas semifinais da Copa do Mundo. Indiscutíveis em tese, aliás. Podia ter sido muito mais.

Gosto muito de futebol. Quando eu era criança, existiam dois campos de futebol na minha rua: no começo, na parte baixa, existia o campo do Disparada, time de várzea sustentado por uma casa de materiais de construção de igual nome; no final, no topo da ladeira, existia (existe ainda) a tubulação que leva água do Rio Claro até não sei qual parte da metrópole. Andando por sobre os canos, rapidamente chegava-se ao campo da Rua Deiz (assim mesmo, conforme estava escrito pelo indigitado que redigiu ambas as placas que a identificava). Era um local menos recomendável, porque pertencia à malandragem local (Vila Diva, no caso), mas como era plano, tinha suas partidas menos influenciadas por fatores “geográficos” e mais por fatores “sociológicos”, como brigas nos fins dos jogos, às vezes com alguns objetos perfuro-cortantes. O campo do Disparada tinha um leve, porém perceptível declive, mas o pessoal que jogava lá era composto de operários que moravam na Vila Ema e arredores, e que iam trocar a graxa pela lama no final de semana (rapidíssimos parênteses: o clima de São Paulo mudou demais nas últimas décadas. O inverno era gelado de verdade, e durava três meses. Hoje em dia, cai em um final de semana. No verão, sempre tinha chuva no final de tarde. E os níveis de umidade do ar nunca eram tão baixos – o epíteto “Terra da Garoa” não se justifica mais). Esse pessoal se reunia nos botecos e combinavam seus jogos, em meio a muitas cervejas e talagadas da “marvada”. Conhecia quase todos. Sentava na beira do campo e ficava assistindo o proletariado judiar da bola, enquanto comia os indigestos torresmos do seu Geraldo, fundidor de ofício que nas horas vagas fazia as vezes de barman. Cara curioso, esse seu Geraldo. Vivia coberto de fuligem, em qualquer hora que fosse visto, e transferia seus vestígios em todo lugar onde encostasse, inclusive nas garrafas de Caçulinha que nos eram servidas. Bom, nunca tivemos problemas com anemia.
Também costumava frequentar, com certa frequência, o Desafio ao Galo. Quem tem mais de 40, sabe do que estou falando. Tratava-se de um torneio de várzea, mais “requintado”, no CMTC Clube (onde hoje há o recomendável Museu do Transporte, na Ponte Pequena), e que era disputado no seguinte esquema: o time detentor da última vitória era chamado de “galo”, o dono do terreiro. A cada domingo, um time desafiante vinha enfrentá-lo. Se vencesse, era o novo “galo”, e voltava a jogar na semana seguinte, contra um novo desafiante. Se perdesse, abaixava a crista e ia esperar sua vez de novo. Em caso de empate, pênaltis. Quem fosse o galo por mais tempo no ano, ganhava um troféu adicional, se não me engano.

Conheci muitos times que participaram do torneio, quase todos extintos: Atlas, SDR, Botafogo do Imirim, Corinthinha do Sapopemba, Estrela do Sul, Parque da Mooca, Aliança de São Bernardo, A. A. da Penha, Portuguesinha da Água Rasa... Essa era a ponta mais visível do futebol de várzea, porque era transmitido pela TV. Passava na Record, que na época não tinha absolutamente nada a ver com a IURD. Na pequena arquibancada, era possível observar duas coisas: vários olheiros tentando caçar talentos (era fácil reconhecê-los, já que sempre tinham na mão algum bloquinho ou caderneta, e também costumavam ir a campo para abordar algum rapaz mais habilidoso) e meu avô berrando impropérios para pernetas que ele nem conhecia.
Também peguei gosto em ir a estádios, principalmente na década de 80. Apesar de ser corinthiano, o time profissional que eu mais assisti foi o Juventus. Explica-se: o campo da Rua Javari era perto de casa – meia hora de ônibus, o ingresso era muito barato, havia frequentes promoções para sócios do clube, eu pagava meia-entrada por ser estudante e havia ainda a ligação afetiva: mooquense que sou eu, mooquense que é o Juventus, bairrista que é o mooquense (sou-o de nascimento, não de residência).

O resultado é que hoje volta e meia me pego assistindo jogos como Batatais vs. Lemense na rede Vida. Se me interessa o futebol mais miúdo, quanto mais não me atrairá seu evento maior, a Copa do Mundo. É bem verdade que os brasileiros não têm mais a mesma ligação com a seleção que tinham antigamente. Na Copa de 70, todos os jogadores atuavam no Brasil. Na de 82, acho que só o Falcão jogava na Itália, mas tinha uma forte ligação com o Internacional de Porto Alegre. Dos jogadores da atual, não me lembro de ver jogar com camisas brasileiras os seguintes: Daniel Alves, David Luiz, Dante, Marcelo, Maxwell, Luiz Gustavo, Fernandinho, Hulk. Vi muito pouco do Maicon no Cruzeiro, do Tiago Silva no Fluminense e do próprio Willian no Corinthians. Nenhum dos jogadores atua no estado de São Paulo. A desvinculação se torna inevitável. Mas, mesmo assim, a vontade de enfiar a cabeça na areia é inexorável.
Por que o futebol nos afeta tanto assim? O que há nele, que a princípio é apenas um jogo, para fazer com que percamos o sono, choremos, soframos, até morramos? Lembro os inúmeros casos de enfarte e do torcedor vascaíno que precisou ser seguro para não se atirar quando seu time foi rebaixado pela primeira vez.

Vejo e ouço em muitos lugares a explicação de que o futebol é metáfora da vida, por isso nos perturba tanto. Não me convenci.
Uma metáfora é uma figura de linguagem em que uma característica concreta é substituída por outra, por um processo de semelhança e comparação. Vai aqui o exemplo do “mala sem alça”. Qual é o seu uso na linguagem coloquial? É o cara chato, difícil de suportar. Uma formação de frase para estabelecer a correlação entre o cara chato e a mala sem alça é a seguinte:

Ok, temos uma comparação clara, que não é uma metáfora, porque não há sentido figurado. Na metáfora, pegamos uma característica comum e a imiscuímos na relação. É possível representar graficamente.


Na metáfora, temos a fusão daquilo que é explícito na comparação:

Presto! O termo que medeia ambos some e enriquecemos nossa linguagem, trazendo um novo significado para uma expressão anteriormente unívoca, tomada apenas em seu sentido estrito:

Posto tudo isso, acho que não é possível traçar um paralelo tão próximo entre vida e futebol para considerar um metáfora do outro. Muitos são os motivos: o futebol tem tempo e espaço definidos, regras razoavelmente claras, acesso restrito, e outros que-tais. Para mim, o futebol é muito mais semelhante a uma metáfora da guerra. Eu acho isso até óbvio demais. Mas cabe explicação, e farei isso com as teses de um alemão, vejam vocês! Ninguém menos que Georg Wilhelm Friedrich Hegel, o pai do Idealismo moderno.

Nosso caro tedesco é bem conhecido. Formulou um sistema completo de Filosofia, que abarcou teoria do conhecimento, metafísica, lógica, ética e estética, entre outros, e influenciou gente à beça. Com tão vasto sistema, só posso brincar aos poucos, e me concentrarei em sua visão peculiar sobre a dialética neste texto.
A dialética sempre foi utilizada em Filosofia, lançando mão da linguagem como ferramenta para partir do particular ao universal, o que dá cientificidade ao método. Zenon, Sócrates e principalmente Platão, na sua alegoria da caverna, dão mostras de como é possível galgar uma escada em que se abandonam as imperfeições da sensibilidade para adquirir conhecimento seguro. Para Hegel, no entanto, o movimento dialético é um reflexo da própria motricidade da natureza e da história, no sentido de que um estado ou situação sempre caminha no sentido de algo que lhe opõe, e desse confronto é obtido um terceiro estado, que agrega algo de uma proposição e algo de sua negação. Este terceiro estado também é passível de uma nova negação, que gerará mais uma vez uma junção de opostos que se interpenetram, e assim por diante, ao infinito. O primeiro estado ou situação é a tese, sua negação é a antítese e o resultado de ambos é a síntese. Quando o intelecto aplica esse método na obtenção do conhecimento, nada mais faz do que plasmar um ciclo já existente em tudo ao seu redor.

Vamos dar um exemplinho rápido de procedimento dialético simples, que vi em algum livro. Interiorizei o exemplo, mas não encontro onde. Perdoe-me o autor. Em um estado absoluto, tudo é guiado pela vontade de um rei. Suas determinações podem ser justas ou não, podem se basear em seus caprichos ou na lógica, podem voltar-se para a população que rege ou exclusivamente em seu interesse. Essa é a tese. As pessoas desejam liberdade, porque não querem se submeter unicamente ao desejo régio, querem decidir suas causas coletivamente, querem escolher o que fazer da vida, sem depender de um poder central. Essa é a antítese. Pois bem. Se por um lado a tirania cria grilhões para as pessoas, a liberdade ilimitada é anárquica em seu pior sentido, porque ninguém tem garantias de que o desejo do outro não conflitará com o próprio. Para solucionar este problema, temos sua síntese: a lei. A lei impede que a tirania se estabeleça, porque dá balizas e limites ao exercício do poder. Faz o mesmo com o interesse individual, demarcando onde cada um pode chegar e o que cada um pode ou não fazer. Percebam que na lei há um elemento do absolutismo, que é sua propriedade de nada estar acima dela, mas também tem um elemento de liberdade, porque tira a coletividade do domínio da vontade de um só. E assim caminha a humanidade...
Vamos agora, e finalmente, aplicar toda essa parafernália à nossa inglória derrota. O ser humano tem algumas características básicas. Quer sobreviver instintivamente a todo o custo, quer preservar a própria espécie, vive em grupo, procura espalhar seus genes pelo mundo todo. Isso faz com que cada agrupamento procure expandir seu alcance ao maior território possível. Isso era bem simples quando o mundo era povoado por meia dúzia de tribos, mas na medida em que foram se reproduzindo mais e mais, os encontros começaram a ser inevitáveis. No dia em que o homem resolveu que queria entrar à força em um domínio alheio, nasceu a guerra. Ela esteve presente em todos os tempos, por conta dessa necessidade atávica de ampliar seus domínios. Criou armas e diversas táticas para isso, e, portanto, usou de violência e da morte em quantidades inimagináveis, por mais que a razão tentasse dissuadi-lo disso.

Acontece que as mortes geradas em uma guerra, que em última instância é uma ferramenta da preservação das espécies, vai também contrária a ela, porque se enfiar em uma aventura guerreira traz baixas para si; há sempre o risco de se perder uma batalha ou mesmo a guerra toda. Há o medo ancestral da morte, e a guerra é uma usina de morte e destruição, não só no combate direto, mas também na fome, na doença, no empobrecimento.
Temos então dois fatores que se imiscuem mutuamente. O instinto de sobrevivência traz a combatividade, mas também traz o medo da morte. Como podemos solucionar estas duas potências que tentam se anular? Como satisfazer o espírito de luta e o desejo de paz ao mesmo tempo? Qual é a síntese possível para estas duas necessidades contraditórias? Como podemos combater sem que haja perdas?

Sim, através do esporte.
Desse confronto dialético entre guerra e paz, temos o simulacro que satisfaz os desejos de combatividade e as garantias de que essa agressividade não terá como objetivo o extermínio do outro lado. E, de acordo com o meu entendimento, é no futebol que temos o exemplo mais bem acabado desta metáfora.

Não vou esgotar o assunto, mas vou exemplificar: no vôlei, no beisebol, não há contato físico; no basquete, o contato é mínimo e é repudiado quando existente; no tênis, nas lutas, na esgrima, o esporte é individual; no automobilismo, depende de máquinas; no remo, na canoagem, nas corridas atléticas, afere-se somente a velocidade ou a resistência. Já no futebol, temos um grupo grande, com funções bastante específicas (goleiro, zagueiro, atacante, armador, técnico, massagista, roupeiro, etc.). As cores do exército estão em evidência, há uma insígnia no peito e a torcida que rodeia é a população que a esquadra defende. O campo é amplo, as táticas são variadíssimas. As intempéries se fazem presentes: há jogos na chuva, no sol intenso, na noite, em dias sem umidade, até sob a neve. Joga-se na grama, na areia, no asfalto, no tablado, na terra, no cimento, no carpete. Não há riquezas – uma bola basta, com dois marcos fazendo as vezes de trave, se necessário. Não precisamos de cavalos ou iates. Há o general – o cartola; há o sargento – o técnico; há o cabo – o capitão do time; há os soldados – os jogadores. Há a retaguarda, que são o goleiro e a zaga; há a artilharia (termo militar), que é o ataque; há a reserva, que é o banco.
Aqui, temos espaço para os baixinhos e para os galalaus, para os delgados e para os espadaúdos, para os lentos e para os lépidos, até para os inábeis com força de vontade há utilidade. Vejam como é difícil uma “zebra” em qualquer esporte; só no futebol ela é frequente. É o inesperado, a força vence a inteligência e vice-versa. E, nestes caracteres todos, vemos reflexos da guerra. Só o futebol tem tantas características comuns com a guerra. Por isso, tanto somos afetados por uma derrota no futebol: é uma derrota na guerra, ainda que levada no plano do simbólico. Tanto pior na goleada acachapante. É a derrota fragorosa, algo como se todos nós fôssemos dizimados. É como se estivéssemos ameaçados de existir como nação, ou como sermos objetos de chacota para qualquer lugar que formos, de mãos amarradas, de cabeça baixa, com o chicote estalando em nossas costas, cidadãos de segunda linha – se é que mereceríamos essa denominação. Estaríamos mais próximos da escravidão e do cárcere, a nossa vergonha.

Quanto drama! Melhor que seja no esporte do que em uma guerra real. Mas dói. Principalmente quando nos consideramos melhores do que os outros.
Recomendação de leitura:
Abordei aqui apenas milimetricamente uma tese de Hegel. Para conhecer mais a fundo seu pensamento, recomendo a leitura de sua obra maior.

HEGEL, Friedrich. Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Vozes, 2002.

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