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segunda-feira, 15 de julho de 2019

Sobre um tipo de bicho que nada tem de inocente e o Pequeno guia das grandes falácias - 47º tomo: o argumentum ad nauseam

Olá!

Como eu já disse aqui e ali neste blog, moro em um prédio velho do centro de São Paulo. Isso já nos produz uma inferência direta – não há garagem. Sim, é fato. Todas estas construções erguidas antes da década de 70 desconsideravam a necessidade de um lugar para estacionar. Carro era um troço muito caro antes da produção dos Fuscas em terras tupiniquins, coisa para poucos. E o pessoal vinha povoar a “cidade” a pé mesmo. Também é fato que nós, poucos moradores da região, temos bastante facilidade com transporte. Metrô, trem, terminais de ônibus e táxi em qualquer esquina podem nos levar a qualquer lugar que for necessário, a todo momento. Além disso, em geral, temos estrutura suficiente para não precisar ir longe. Transporte individual não é, para o central, uma necessidade premente. Entretanto, picado pela mosca branca da burguesia, tenho um carro, a quem dei o carinhoso epônimo de Bedelho, e já é preciso ter um local onde guardá-lo. Sai bem mais em conta que tomar multas na impiedosa zona azul que fica fernandopessoamente defronte às janelas do meu quarto, de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (e se soubessem quem é, o que saberiam?).

Aproximadamente cem metros é a distância entre o prédio em que habito e a garagem que aluguei para o veículo. Neste percurso, um pequeno lapso espaço-temporal em minha vida, qualquer coisa factível em três minutos é possível. Posso ver alguém conhecido, tropeçar em um cachorro, achar uma nota de cem (falsa), sofrer um atentado, ter um ataque cardíaco, lembrar que não paguei a luz, cair um piano sobre minha cabeça. Tudo imprevisível, com uma única exceção – a de que passarei ao lado de um pequeno quiosque embutido na parede, onde mal cabe uma pessoa, e direi: Bom dia, Sônia!

O mocó da Sônia tem um propósito bem específico. Por detrás dos frascos de perfume e das capinhas de celulares, objetos sociais aparentes, desenrola-se outro tipo de atividade, mais lucrativa e menos lisonjeira, em voga há muito mais tempo nestas terras do seo Cabral: o jogo do bicho.



Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa. Eu sei que se trata de uma contravenção*, cominada com pena de multa para aquele que aposta, mas o fato é que se trata de um hábito enraizado, que já se encalacrou no inconsciente coletivo do brasileiro. Prova maior é a quantidade de expressões idiomáticas que lançam mão do seu exercício, como a não utilização do número 24 em times de futebol. Sendo um verdadeiro poço de homofobia, seria inadmissível a um jogador carregar às costas o grupo do veado neste meio. Em outros países, essa aversão ao numeral não faz o menor sentido. Outro exemplo vem da famosa motocicleta Honda CBX 750, unanimemente conhecida por “sete galo”. O vínculo se formou obscuramente, mas o motivo é simples: o número 50 pertence ao grupo do galo no jogo do bicho. Mais um. Quando um time mais fraco vence partida contra equipe mais bem fornida, dizemos que houve uma “zebra”. Isso vem do fato de que não há grupo da zebra no jogo do bicho e, portanto, o resultado imponderável é aquele em quem ninguém apostaria. Só mais unzinho, para finalizar. Em algumas regiões do país, utiliza-se a expressão “deu no poste” para dizer que um determinado resultado que se esperava foi divulgado. Geralmente associada ao viés de juízo retrospectivo, esta expressão serve para cantar vitória em um prognóstico: “ lá, deu no poste! A Aninha grávida de menina! Bem que eu vi que a barriga dela tava redonda!”. O termo nasceu porque, sendo ilegal desde o princípio, o jogo tinha a divulgação de seus resultados de maneira discreta, porém em praça pública. Os apontadores dissimuladamente grudavam os números sorteados em um poste, onde poderiam ser conferidos pelo povão.

Há algumas razões para o jogo do bicho continuar existindo, mesmo com a disponibilidade de tantas loterias oficiais. Apesar de prêmios mais modestos, é um jogo mais simples de entender, que não requer filas em lotéricas, e que envolve uma certa cumplicidade com o cambista; não sendo prática endossada pela lei, é preciso um mínimo de confiança para entabular a freguesia. Mas há outros fatores, não há dúvida. Um deles é místico, esotérico, metafísico. Trata-se da tradução de sonhos em prognósticos. Alguns deles são clássicos: sonhou com roubo, dá gato; com morte, elefante e, com bebedeira, peru na cabeça. Outros dependem de interpretação, cuja capacidade só se adquire com a experiência, dizem os entendidos. A vetusta tia Antonia tinha qualquer coisa com a borboleta 13. Ela amanhecia atiçada em procurar o cambista da padaria do seo Gaspar toda vez que ela sonhava de determinada forma, não sei bem com o quê. Já nonagenária, causava a aflição na minha madrinha, já que não havia avisos. De vez em quando, emplacava um trocado, o que significava sorvete no almoço. Eu gostava quando a tia Antonia jogava.

Em algumas destas passagens rumo à garagem, pego-me tentando lembrar alguma coisa relevante que eu tenha sonhado. Passo no mocó e lanço: “Sônia, sonhei que minha casa se encheu d’água, mas não chovia”. O diagnóstico vem seco: “Jacaré, que é bicho de banhado; cachorro, que toma conta da casa, e águia, porque o céu estava limpo”, coisas dessas. Eu cravo de volta – “59, 19 e 08, cinco no terno, cinco valendo grupo, cinco valendo duque”. Quinze reais para a algibeira do bicheiro da região. A Sônia leva 25% disso, e o resto vai para a banca. O prêmio eu já sei. Para cada real apostado, entra 3000 no terno de dezena. Se der, portanto, levo 15000 para casa. Nada mal, mas sou ruim de palpite. É mais realista pensar nos 1500 do duque ou nos 650 dos grupos.

Notem como todo o jogo tem suas regras bem conhecidas. Sabe-se o quanto vai para a banca, o percentual do cambista e o valor dos prêmios, que são pagos em dinheiro vivo. Essa clareza na estrutura faz com que a voz do povo soe em uníssono: o jogo do bicho é o mais honesto que existe. Pergunte a quem joga, e ele dirá: é honesto. Pergunte a quem vende: é honesto. Pergunte aos milhares de donos de boteco e padaria: é honesto. Pergunte ao comércio da redondeza: é honesto. Pergunte até mesmo às lotéricas, que deveriam vê-lo como o vampiro vê a cruz (mas que também o comercializa): é honesto. Pergunte aos autores de livros de interpretação de sonhos: é honesto. E também às editoras e livrarias que os vendem: é honesto. Pergunte também por que há tanta gente contrária à sua legalização: deixará de ser honesto, passará aos meandros governamentais, onde se perderá na triste lógica da corrupção. E, por fim, surge a pergunta que não quer calar: é mesmo honesto?

Para tentar a resposta, é preciso lançar mão de um pouco de experiência pessoal. Na minha família, tínhamos um parente afim cuja alcunha era Colorau, em razão de sua cabeleira ruiva. Quando era ainda um molecão, subiu no telhado de uma fábrica atrás de uma pipa. Ocorre que uma das telhas cedeu, fazendo o pobre se espatifar lá embaixo. A queda lhe rendeu uma lesão na coluna que nunca mais permitiu a ele andar sem o apoio de uma bengala. Nos momentos de maior crise, tinha de usar muletas. Essa condição, em época de pouca visibilidade a pessoas com deficiência, tornou-lhe impossível conseguir emprego formal. Foi se virar sendo cambista, circulando entre os botequins da estrada da Vila Ema, e essa foi sua ocupação até sua precoce morte, ocorrida há uns dez anos. Devia ter uns cinquenta, não sei bem.

No entanto, apesar da titularidade de sua ocupação, volta e meia o Colorau sumia. Esses desaparecimentos repentinos tinham a ver com sua atividade. A vida normal de um cambista consiste em anotar as apostas da plebe rude e repassar as verbas ao bicheiro local, antes do horário do sorteio. Esse ato chama-se "amarrar" a aposta. Qualquer valor que não estiver nesse pacote, não fará parte do certame. Até aí, ok.

Acontece que alguns cambistas fazem um truque antes de amarrar a aposta. Ao invés de repassar o dinheiro das pequenas apostas à banca, preferem retê-lo para si, assumindo o risco de que o palpite seja premiado. Neste caso, tiram o valor do próprio bolso, e vida que segue. Normalmente não se atrevem a fazer isso com apostas mais polpudas, que pagam prêmios maiores. As bancas detestam esse tipo de conduta de seus colaboradores, e a desencoraja com meios pouco republicanos. Só que a combinação de dinheiro na mão e aperto no bolso faz com que tenhamos uma tendência pouco saudável a fazer uso do que não é nosso, e era exatamente isso que o Colorau fazia. Pegava não somente as quirelinhas, mas também os valores mais parrudos dos palpites e não repassava ao bicheiro. Só que de vez em quando o bicho saía, e a casa caía, por conseguinte. O dono da banca, nestes casos, costuma pagar o prêmio para manter a honra, mas vai recuperar o prejuízo com o indigitado. Ah, se vai.

O Colorau, nestes períodos, ia se foragir em lugar incerto e não sabido, até conseguir, diabo sabe como, o dinheiro para repor a perda. Não quero nem pensar quais eram os meios usados para angariar os fundos (para manter o respeito). Isso já mostra que há elos desta corrente que não são exatamente honestos. Mas esse ainda é o lado miúdo da teia. As aranhas maiores tem histórias muito cabeludas para contar, incluindo máfias altamente organizadas e violentas, bem como braços políticos e envolvimento com milícias, além da associação com outras organizações criminosas, como o tráfico de drogas. O modus operandi é muito semelhante, portanto, a qualquer outra gangue, maquiados pela inocência aparente de um joguinho inofensivo, que todo mundo reputa por "honesto".

Alguns nomes se tornaram célebres no meio, como Castor de Andrade e Emil Pinheiro no Rio de Janeiro, ou Ivo Noal em São Paulo. Eram envolvidos com o carnaval, times de futebol e várias empresas, onde lavavam a renda injustificada, e, principalmente, com o meio político e policial, de onde compravam e vendiam facilidades para a continuidade de suas lucrativas atividades. Muitas candidaturas eram bancadas por bicheiros, e milicianos eram frequentemente utilizados na contenção de avanços de adversários, igual-que-nem faz o pessoal do tráfico de drogas. Não há vida fácil nos meandros pouco visíveis – há luta pelas bancas, adversários são mortos e verdadeiras corporações são montadas para manter o sistema. Não, honesto o jogo do bicho não é. Nunca é legalizado, o que seria a solução mais simples, também não sei o porquê.

Mas a aura de “honestidade” se mantém. Quem lê o que eu escrevo aqui, pode ficar invocado. Se ler a minha recomendação logo abaixo, poderá até ficar chocado. Mas as pessoas continuam pugnando por sua honestidade, principalmente quando testemunham uma malversação de dinheiro público. E o discurso se repete... e se repete... e se repete... até dar um nó no estômago. Ele vence pelo cansaço, e se estabelece como se fosse legítimo.

Uma mentira falada mil vezes vira uma verdade, parafraseando o ditado atribuído a Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha nazista. Quando alguém afirma algo novo, o nosso cérebro passa por um momentâneo descompasso, mas, à medida em que a afirmação é reiterada, passamos a assimilá-la ao ponto de torná-la cômoda à lógica de nossos pensamentos. Essa “verdade”, então, fica registrada em nós como algo familiar.

Há um termo que, reconhecidamente como uma hipérbole, retrata a narrativa repetitiva como meio de conhecimento. É o argumentum ad nauseam, ou seja, uma repetição que causa enjoo. Sabe quando você é criança e come tanto um doce que chega a vomitar? Com o ad nauseam é a mesma coisa. O argumento repetido, principalmente quando vem de várias bocas, vai sendo absorvido e vencendo pelo cansaço, sendo consolidado no acervo inconsciente de uma sociedade.

É óbvio que esse tipo de argumento do papagaio parece tolo, mas não é, como bem pudemos observar no exemplo do jogo do bicho. Coisas como o nazismo de esquerda vão se arraigando com uma narrativa simplificada, fácil de entender. E, principalmente, ditas com insistência, ainda que não se disponham com verdadeiro sentido, mas com uma pequena familiaridade. Diga-se hoje, diga-se amanhã e depois, diga-se sempre, e o doce passará da fase da náusea para a da absorção. Aí, já estamos acostumados, já não nos aflige a inverdade que já não a é. Não me incluo fora dessa, ainda tenho muito a aprender. Principalmente a tornar o limite do meu “bom dia” a linha ética sobre a qual não devo saltar.

Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Leiam a recomendação abaixo para saber mais sobre que tipo de malha há por baixo do novelo aparentemente romântico do jogo do bicho.

JUPIARA, Aloy; OTÁVIO, Chico. Os porões da contravenção. Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado. Rio de Janeiro: Record, 2015

* Contravenção, na legislação penal, é uma espécie de crime menor, com penas proporcionalmente menores e cumpridas de maneira mais branda. Um contraventor, por exemplo, nunca vai parar numa penitenciária, junto com condenados por crimes mais graves, nem por um tempo muito longo.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Somos adivinhos ou só sabemos prever o passado? O viés retrospectivo, a (im)parcialidade de juízes famosos e o Pequeno Guia das Grandes Falácias – 46º tomo: o red herring

Olá!


A chapa anda quente do lado de baixo do Equador, de modo especial em Terra Brasilis. Ao contrário do que diz a canção de Buarque e Guerra, existe pecado e são muitos, apesar do contragosto de quem achava que certas figuras trariam a vingança ao povo sofrido. É que não me parece muito coerente que um determinado modelo de política seja renovado justamente por alguém que nasceu e cresceu cevado por este mesmo modelo. E, com isso, vamos percebendo aos poucos o tipo de encrenca em que nos metemos – mais barulhenta, é verdade, mas com os métodos de sempre.

O ainda novo governo já se especializou na bazófia e na bravata para lançar muita fumaça nos laranjais de propriedade do presidente e filhos, mas as últimas notícias têm reportado que o grande lastro moral da equipe, o ministro Sérgio Moro, nem sempre agiu com a lisura que deveria se esperar de um magistrado. Não se trata de corrupção, como adorariam opositores depostos, mas de uma conduta que vai muito mais na raiz do exercício da magistratura. Ele, em suma, fazia “tabelinhas” com o Ministério Público para melhor orientar os caminhos que as investigações da operação Lava Jato deveriam seguir. Todos nós sabemos o quanto seus resultados influenciaram na eleição que trouxe os atuais ocupantes aos seus respectivos cargos.

A pergunta que povoa as discussões é se os fins justificam os meios, em um remoçamento das tradicionais teses maquiavélicas. Vou colocar meu ponto de vista pela melhor alegoria que houve até agora. Imagine que, na véspera da final do campeonato, o árbitro escolhido visite o clube adversário do seu. Ele não falará sobre propinas, arranjo de resultados ou apostas milionárias, mas sobre a imprudência do lateral-direito do seu time, que pode tomar muitos cartões, ou sobre a mania de resmungar do centroavante, que é bom alvo de catimba. Imagine ainda que, após a vitória da agremiação tão solícita, o mesmo árbitro receba (e aceite) um convite para integrar a diretoria do ora campeão. Isso está tudo bem para você? É correto o procedimento? A vitória do time rival é legítima?

Por mais que se diga que a comparação não caiba, é impossível negar que certos vazamentos em momentos-chave e algumas celeridades inconsuetas nos trâmites processuais não denunciam ao menos suspeição sobre a necessária isenção do então juiz Moro. Eu lamento muito e, se não morro de amores por Lula e seus asseclas, que se lambuzaram de m... ao operar o velho toma-lá-dá-cá com gente que vive deste produto desde as caravelas, o fato é que as conversas obtidas, se corroboradas, comprovam a imoralidade dos meios, mesmo que fossem utilizados contra o próprio Satanás. Toda boa conduta e firmeza na busca das punições, que parecia uma novidade atípica, que dava uma aura de bastião dos bons costumes, que propiciava a sensação de existir uma honestidade real, carregava consigo mesma uma espécie de ressabiamento: há quanto tempo não víamos tal pureza? Lá no meu íntimo eu já pensava que as coisas iam muito além da aparência, uma mistura do surpreendente com o óbvio, e hoje eu posso ver que este último venceu de novo, e, bem antes do que poderia supor, soltar meu grito:


Dei essa volta toda não para comprovar meus vaticínios, mas para introduzir o tema do presente texto. De fato, eu muito mais erro do que acerto nos meus prognósticos, de modo a comprovar minha mediocridade na análise política. Antes da eleição, por exemplo, eu preconizava que o PSDB nadaria de braçada, que Alckmin já poderia andar com a faixa verde-amarela para cima e para baixo, que a curva de crescimento do atual presidente chegaria no máximo a 20% do eleitorado e que qualquer candidato que o enfrentasse no 2º turno levaria o troféu sem fazer força. Mas estou admitindo isso tudo em um rasgo de franqueza, e não como uma atitude habitual. Não é fácil admitir um pé tão torto.

Nós temos uma tendência muito forte a lembrar bem de acertos em previsões, e deixar os muitos erros para lá. Podem notar como que as tentativas de adivinhar o futuro vem acompanhadas de palavras que assegurem o prospecto, como “provavelmente” ou “é possível”. Se o presságio se cumpre, basta sacar o termo maroto e eu poso de requintado analista; se não, basta acenar com a palavrinha mágica: era uma hipótese, e não uma assertiva.

Mas a coisa passa para muito além da malícia consciente. O tempo é uma ferramenta indispensável ao enviesamento, que age tanto no esquecimento quanto na produção de memórias irregulares, que acabam se concatenando da maneira que dá, até se tornarem distintas da verdade. E esse é o gabarito onde se molda a previsão de fatos já ocorridos. São inúmeras as vezes em que dizemos “sabia que isso iria acontecer”. Não sabia, não. Isso é o que se chama, em Psicologia Cognitiva, de viés de juízo retrospectivo, ou, mais simplesmente, viés retrospectivo.

Como qualquer outro viés cognitivo, o viés retrospectivo é um desvio inconsciente da lógica canônica de um raciocínio. Ele não ocorre somente como uma seleção de erros ou acertos, mas como a assunção de um fato diferente do que ocorreu na realidade. Neste sentido, é primo-irmão da dissonância cognitiva, porque também resulta de um confronto entre crença e verdade, com a diferença de que o amoldamento resultante não se dá no nível da correlação esperado/obtido, mas na capacidade de antecipação dos fenômenos. É uma maneira de distorcer a compreensão que temos do passado. Como eu já disse, isso acontece quando substituímos uma hipótese que fizemos em tempo pretérito por uma certeza de seu acontecimento, justamente após o fato ocorrer. Isso acontece sem querer, muito em razão do fato de que nossa consciência tende a uma espécie de acomodação. Quando nos colocamos diante de uma mesa de palpites para um campeonato de futebol, por exemplo, trabalhamos com uma série de ferramentas mentais para cravar favoritos, além da reunião de conhecimentos, como elencos, momentos, tradição, condições de estádios e etc. Há um grande esforço para investigar racionalmente todos estes fatores, além, é evidente, de uma espécie de viés do torcedor e de predisposições heurísticas: o quanto a imprensa tem falado de determinado time, quanto seus jogadores tem tido destaque em redes sociais e outras coisas que não guardem relação direta com o desempenho da equipe, mas que fazem parte do arcabouço de informações disponíveis para conjectura. Quando já conhecemos o campeão, todo este esforço é desnecessário; já não há hipóteses, mas certezas. Não é preciso nenhuma espécie de elucubração, o conhecimento do campeão já nos é disponível, e a hipótese some. Sabíamos desde o início que tal agremiação coligiria mais um troféu para sua galeria. Em 2017, com o Corinthians como campeão brasileiro improvável, eu mesmo cantei minhas glórias preditivas aos quatro ventos: eu sabia que os principais candidatos se ocupariam de outras aventuras mais importantes, e o Timão se concentraria unicamente no torneio de pontos corridos. Acertei? Acertei, esquecendo-me de que eu ACHAVA que isso era possível, não que era uma certeza inexpugnável. A memória, apesar de ter uma capacidade admirável, possui limites, e joga muita coisa fora. Ela opera com simplificações, que corta tudo aquilo que é penduricalho para que um determinado caso faça sentido completo. Portanto, se algo tem começo, meio e fim, é o suficiente para que um registro se mantenha absorvido. Tudo o que é circunstância e contingência, incluindo-se aí as hipóteses e alternativas, ganha a chance de ser esquecido.

Dito dessa forma, parece que o viés retrospectivo é muito óbvio, e que é perfeitamente possível distinguir quando ele está ocorrendo. Só que não. Por muitas vezes ele ocorre de maneira mais sutil. Talvez a melhor maneira que eu tenha de exemplificar o viés retrospectivo é através da profecia autorrealizável, um termo criado pelo sociólogo Robert Merton para designar a alteração de um comportamento baseado na expressão de uma qualidade que originalmente não existe. Confuso? Vamos para o exemplo mais clássico de todos: o convertido.

Quantas vezes você já ouviu a cantilena de alguém que era um bêbado, pobre, fodido, rasgado, e depois de aceitar a palavra de Deus sua vida se tornou próspera? Claro. Quando um pastor diz ao réprobo que agora ele é um ungido e que as portas da bem-aventurança lhe estão abertas, o que faz o contribuinte? Para de beber, de fumar, de se drogar, de ir a pardieiros e lupanares, de emprestar dinheiro que nunca mais verá, de gastar com jogo, de se endividar, com rodadas aos companheiros de farra e tantas coisas mais. Tudo fica sob a espada damoclítica do pecado, e o castigo está em cada uma das antigas esquinas. Sua vida se torna regrada, dedicada a um trabalho que não se perde mais, e que, ao lado da frequência ao culto, vira sua grande diversão. Torna-se caseiro e dedicado à família. É ÓBVIO que a situação financeira do camarada melhorará. O dízimo obrigatório torna-se em conta com relação à sua vida pregressa, sendo firme a âncora que lhe impede de cometer novas estripulias: o medo do inferno. Ele se tornou aquilo que o pastor preconizou, e a profecia se cumpre. Não por um passe de mágica ou raio divino, mas por uma mudança de atitude. Neste sentido, qualquer religião (ou mesmo nenhuma) faria o mesmo efeito. Não é a benção, mas a nova regra de vida que realizou o “milagre”. Mas ele só aconteceu porque alguém disse que o cidadão já era o que ele não é, e acabou se tornando exatamente isso.

E como podemos alimentar o Pequeno Guia da Grandes Falácias com essa conversa toda? É simples. No caso em questão, quando há uma contestação em cima dos fatos, ao se afirmar que os mesmos foram obtidos de maneira ilícita, temos aquilo que conhecemos por red herring. Este curioso nome significa “arenque vermelho” em inglês, e seu uso tem base no seguinte: o arenque é uma espécie de sardinha grande, muito comum no hemisfério norte, cuja característica é um odor muito forte. Um recurso muito comum para enganar cães de caça era espalhar pedaços do peixe já deteriorado pelo trajeto, já que o mesmo encobria qualquer outro cheiro que emanasse pelas imediações, como, por exemplo, de um fugitivo. Dessa forma, enquanto os cães se ocupavam da nauseabunda fedentina, o escapadiço tratava de pôr o pé na estrada, protegido pela falsa pista. Mesmíssima coisa se dá nas argumentações. A introdução de elementos irrelevantes tem exatamente a função de produzir desvios de foco daquilo que está em debate. Por isso mesmo, esta falácia recebe outros nomes, como cortina de fumaça ou “olha o avião”. Vejam: enquanto estamos discutindo por quais caminhos foram obtidas as informações que enquadram Moro, se é legítimo ou não seu uso, se foi cometido crime e outras minudências, deixamos de lado o que está descrito nas conversas – a prática de atos que impedem a imparcialidade nos processos da Lava-jato.

O red herring é a mais clássica de todas as falácias de desvio. Costuma funcionar muito bem, porque não se trata apenas de “mudar de assunto”, mas de trazer à baila temas que sejam correlatos ao que se discute, sem, porém, manter a linha argumentativa original. Ela dispersa bem principalmente quando são introduzidos assuntos que são irrelevantes para a discussão em si, mas que não podem receber este nome quando temos uma visão mais geral. Por exemplo, o tema corrupção não pode ser chamado de irrelevante, já que afeta a vida de todo um povo, mas ele não pode ser utilizado em toda e qualquer circunstância. Ele é uma espécie de guarda-chuva, que se encaixa facilmente em qualquer argumento. Como é o caso de quem alega que as denúncias contra Moro partem de quem se locupleta com a corrupção. Isso não conserta a parcialidade do juiz, mas puxa a conversa para os motivos que levaram o mesmo senhor a ganhar tanto prestígio: o combate à corrupção nos meios públicos.

E que não se diga que as cortinas de fumaça são de direito autoral de quem ora chega, apesar de serem usadas à exaustão. O mote “Lula livre” obscurece, através de um suposto golpe, tudo o que a Lava Jato descobriu de podre neste mundo da nossa política, e isto foi muito bom. Desde o mensalão, demonstra-se como o PT e aliados usaram de meios ilícitos em negociações com parlamentares, como empresas privadas compravam conveniências, escavando-se mais e mais lama dos meandros da atividade política. Desta forma, colocar Lula como um preso político e retirar o que a Lava-jato tem de bom é, sim, uma maneira de lançar red herrings. Pode ser verdade que uma engrenagem se moveu para impedir sua chegada à presidência, mas isso não pode esconder tudo o que se fez de errado para propiciar sua manutenção no poder. Bolsonaro só existe por causa do PT, lembrem-se disso.

Não tem virgem neste puteiro.

Recomendação de leitura:

O tema é todo psicológico, mas quem disse que Psicologia e Sociologia não vivem se imbricando? Neste sentido, Robert Merton fez importantes observações de como as disposições mentais influenciam as sociedades. Bons ventos a todos.

MERTON, Robert. Teoria e Struttura Sociale. Bolonha: Il Mulino, 1972.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Pequeno guia das grandes falácias – 45º tomo: dois erros fazem um acerto (e meus pitacos automobilísticos)

Olá!


Para quebrar um pouco do hábito desta casa, este texto será mais curto, sem as consuetas cinco ou seis laudas. Isso não significa que não terá suas historinhas, já que contexto é tudo na vida de quem argumenta. Vamos lá?

Domingo passado pela manhã, fui dar asas mais uma vez à minha verve automobilística. Como já discorri recentemente, neste texto, desde bem jovem peguei o gosto pela coisa, e a ausência de um piloto brasileiro não me incomoda em nada. Afinal, não ligo a TV propriamente para torcer por alguém específico, mas para apreciar a sutil beleza do esporte. E esta última corrida, o GP da Áustria de Fórmula 1, foi um evento de gala, daqueles de presenciar de fraque e cartola. Uma atuação soberba do jovem piloto Max Verstappen, arrojado ao extremo, que, a bordo de sua improvável Red Bull, veio galgando posições e engolindo seus melhores munidos adversários, até chegar a uma apoteótica ultrapassagem sobre o novel Charles Leclerc, com direito a toque de rodas e saídas de pista. Uma saga de tirar o fôlego.

Literalmente. Sabe quando você tem a aplicação prática de uma expressão idiomática qualquer? No final da aventura, quando voltei a tomar consciência de mim mesmo, dei-me conta do pulso acelerado. Certa feita, fiz uma experiência pretensamente científica. No final do campeonato paulista de 2018, tivemos um Corinthians X Palmeiras decidido nos pênaltis (estou com uma camisa do Corinthians neste momento, coincidentemente aquele modelo Senna). O que a patroa fez? Meteu um esfigmomanômetro de pulso que tenho em casa e foi medindo minha pressão a cada par cobrado. O pico das medidas chegou a 20 por 12!!! Isso explica a frase “não é jogo para cardíaco”, tão em voga nas bocas de locutores e afins. É claro que não era o caso do último fim de semana... ou era, sei lá.

Mas sabe aqueles dias em que você está fazendo com a patroa aquilo que você mais gosta de fazer com a patroa, e o cachorro entra álacre e saltitante em sua alcova? Pois é. Surge na telinha o nauseabundo termo em inglês incident involving cars 16 and 33 under investigation, coisa assim. O resultado estava sub judice, e os comissários avaliariam se houve algum tipo de excesso do voluntarioso Max sobre o macambúzio Charles, e a decisão saiu somente três horas depois, quando eu já estava refestelado em decúbito dorsal sobre o sofá da sala, tentando digerir o baião-de-dois do almoço. É o broxante VAR aplicado às quatro rodas. Menos mal que a épica vitória foi confirmada.

Lá pelo fim da tarde, sem muita coisa para fazer na espera pela segunda-feira, que já se aproximava ameaçadoramente, fui “participar” das resenhas deste nosso mundão virtual (domingo sem futebol é uma merda), e percebi algo que realmente me chamou a atenção. Muita gente opinava que seria correto aplicar a punição pretendida, e que não o fazer seria um duplo prejuízo à equipe Ferrari, a squadra do ultrapassado monegasco.

Explico. Há duas corridas atrás, no GP do Canadá, tivemos uma disputa acirrada entre Sebastian Vettel, da equipe italiana, e o líder do campeonato, Lewis Hamilton. Bem perto do final da prova, Vettel escapou da pista em uma chicane, conseguindo retornar ainda na liderança. Abriu-se uma investigação igual à que citei, porque se achou que o alemão espremeu Hamilton contra o muro em seu retorno à pista, já que o pentacampeão aproveitou a brecha para emparelhar seu carro, e teve que recuar, ante a iminência do choque. Os homens de preto julgaram que a manobra foi imprudente, e acrescentaram cinco segundos ao tempo do nosso casmurro tedesco, que ficou puto da vida com o fato de ter ganhado, mas não levado: cruzou a linha em primeiro, mas o tempo adicionado o fez terminar a prova em segundo, fazendo com que Hamilton garantisse a mais sem graça de suas inúmeras vitórias.

Aqui cabe a discussão. É justo corrigir um erro com outro? Há uma tentação em se dizer que sim, mas é uma tendência falaz. No caso, humildemente eu penso que a punição a Vettel foi injusta, e a não-punição a Verstappen foi correta. Basta que se observe a dinâmica da ambos os incidentes. Vettel escapou para a grama, e precisava decidir em um átimo o que fazer. Corrigiu como pode o traçado de seu carro, e isso incluiu uma fechada de porta em Hamilton. No entanto, parece-me claro que não houve uma intenção em impedir a ultrapassagem com meios antidesportivos. Era o que havia a fazer, e nada mais. Há risco inerente na prática deste esporte, assim como em tantos outros. Esperar que o alemão se mantivesse aguardando o inglês sumir de sua lateral vai contra o que se espera de uma disputa por posições. Por estes mesmos motivos, achei adequada a homologação do resultado da corrida na Áustria, sem tirar nem por. Pelo curso natural da curva, Verstappen espalharia um pouco sua trajetória. Não se percebe uma intenção em jogar Leclerc para fora da pista. Se há algum tipo de forçação de barra, é deste último, que tentou enfiar o carro onde não cabia. Portanto, temos um erro no primeiro painel e um acerto no segundo.

O ponto em que poderíamos concordar com a indignação dos tifosi é a questão do critério. Seria desejável que ele sempre fosse o mesmo, que os regulamentos fossem absolutamente claros para não gerar ambiguidades, como, de resto, deveria ser tudo na vida, especialmente na construção das leis. Mas, malícia dos legisladores à parte, é muito difícil de se prever toda e qualquer nuance que o curso dos acontecimentos venha a desenhar à nossa frente. Entendo que houve erro dos comissários no primeiro caso, o que não implica na necessidade de erro no segundo. A montanha de tempo que se levou para decidir a querela só prova que a questão foi colocada à baila, de modo que poderia ter contaminado a decisão.


E o principal: não se conserta um erro com outro. Um erro é um erro, e pronto. Não se torna acerto, por “consertar” outro. Geralmente, uma situação destas provoca cadeias longas de erros sucessivos, ao invés de se pôr um ponto final na questão. Lembro de uma vez, quando eu passava pelos perrengues de manter as barrigas das crianças minimamente preenchidas (e matriculados em uma escola que ficasse na linha mais próxima do limite da dignidade – isso era um ponto de honra para mim), que um problema permanente na minha casa ganhou contornos aflitivos. Eram as goteiras resultantes de uma laje mal enchida, que já estavam fazendo o reboco da cozinha ficar “barrigudo”. Por vezes, tentei corrigir o problema do modo que era possível. Passei piche, apliquei manta líquida, cimento bem aquoso, malha com vedapren, tudo em vão. Antes de ver as placas de massa cair na cabeça de alguém, juntei os mais mirrados cobres e peguei férias: iria eu mesmo fazer um telhado, com a ajuda do bem-disposto e sempre disponível sogrão. Telhas compradas, madeiramento todo medido, vamos começar la faena. Pensava em terminar, no máximo, em uma semana. Acabou com as férias inteiras, mais dois finais de semana. Uma trabalheira dos infernos... Mede, corta, fura, prega, apoia, nivela, faz, refaz, quebra, xinga... Para dois amadores, a coisa ficou até aceitável, mas havia o problema da caixa d’água a resolver. Desgraçadamente, eu havia optado por uma das redondas, e não dava para fazer o encaixe das telhas de maneira decente. Achei que arrematar com plástico resolveria a parada. A primeira chuva mais parruda provou que não. Fui remendar com cacos de telha; não funcionou. Tentei aplicar uma grossa camada de massa na região logo abaixo da laje; também não resolveu. Recobri de manta esse mesmo monturo – não. Tentei fazer uma “saia” com rufos ao redor da caixa, para fazer a água escorrer para as telhas. Só consegui uma longa cadeia de cortes nos braços, alguns deles merecedores de pontos (resolvi na base da atadura mesmo). Parti para a ignorância e entrei por baixo do telhado em um dia de chuva, para ver por onde diabos a água entrava. Não adiantava, escorria por todo o perímetro da caixa d’água. Eu tentava desesperadamente corrigir um erro com outro, e nada resolvia. Um torto para corrigir um curvado. O certo era fazer o que o pedreiro pago com sangue e lágrimas fez: suspender a caixa d’água com duas patéticas muretas, e fazer o telhado sob ela como manda o figurino. Pronto, sanado.

Dois erros não fazem um acerto. Dizer o contrário disso é uma falácia. Quando alguém aprova uma ação errônea, por exemplo, para “corrigir” outra, não está fazendo uso da lógica, mas de seu sentimento de vingança. Não dá para aplicar o raciocínio matemático de que menos vezes menos dá mais. Se não for razoável a questão do critério, então nada mais temos do que uma perpetuação da conduta que arrasta o erro pelo infinito. Vejam como a humanidade busca se afastar da premissa do “olho por olho, dente por dente”, ainda que por muitas vezes tenhamos vontade de torcer o pescoço de quem nos molesta. Não é um bom modo de se conviver no meio social. Nem de resolver resultados de corridas. Bons ventos a todos.

Recomendação de site:

O pessoal do Projeto Motor já foi recomendado neste espaço, mas apenas seu canal no YouTube. Quem gosta da área de automobilismo não deve se limitar aos seus vídeos e às suas lives. Há excelente material no site também, contendo artigos sobre história e análise de F1, com material adicional sendo disponibilizado por quantia módica. Estão de parabéns os jovens jornalistas Lucas Santochi e Bruno Ferreira, bem como seus convidados, por mostrar sangue novo e boas ideias neste ramo que, infelizmente, tende ao encolhimento nestes tempos de ausência de ídolos em terras tupiniquins.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (27 – Cosmologia)

Olá!


Poucos dias na vida de uma criança costumam ser de contemplação, mas, por outro lado, a abertura inocente para a contação de histórias e as reservas bem disponíveis para a aquisição de conhecimento dão uma compensação à atenção pouco focada. Estou falando tudo isso porque não faz nada de tempo que eu me encontrava balançando na rede em uma pousadinha no interior de São Paulo. Era tarde da noite, e toda a redondeza estava escura, incluindo o quarto e a varanda onde eu me encontrava hospedado, enquanto a cara consorte tomava seu banho pré-nupcial. A costumeiramente longa incursão da patroa em suas aventuras hídricas já me proporcionou extensos momentos de devaneio, e este foi mais um. Não a culpo. Cada um tem seu modo de lavar a alma. O dela é este, o meu é aproveitar o vai-e-vem da rede para olhar ao céu, e ver aquela estranha faixa leitosa que o corta de fora a fora. Era comum de vê-la na infância, quase como se fosse um bibelô que mal notamos na estante, e impossível hoje em dia. Da capital da garoa, vê-se meia dúzia de estrelas, que às vezes nem mesmo as são, mas algum planeta vagando pela sua posição zodiacal, ou um maroto satélite orbitando por sobre minha desprotegida cabeçorra. Aqui, não. Sem a poluição luminosa a que tanto me habituei, faço uma rápida viagem ao passado, quando esta paisagem passava praticamente desapercebida, mas agora com o pensamento mais concentrado no que vejo.

Sem medo de criar verrugas na ponta do dedo, talvez para distingui-lo das hordas de vagalumes, indico para mim mesmo aquele traçado sinuoso, que os antigos gregos diziam ser o esguicho de leite da deusa Hera, ao descobrir, horrorizada, que o bebê a quem amamentava era fruto de uma pulada de cerca de seu marido Zeus. O rebento é muito conhecido: Hércules, o protótipo do homem divinizado. Com o dedo idiotamente em pé, fico pensando até onde seguiria minha criatividade se eu dispusesse dos mesmíssimos recursos daquela gente helênica – nenhum. Como seriam as histórias que eu contaria a meus filhos, quando me perguntassem, em uma noite especialmente aberta, que diabos era aquele rastro? Eu não sei, na verdade... Sempre procurei me apoiar em conhecimento prévio, mas hoje ele está à minha disposição, então perdi todo o meu senso lírico. Creio que eu não seria um dos grandes contadores de causos da antiguidade.

É que o ceticismo é uma praga. Começa com uma desconfiança quase inocente, que vai se enevoando cada vez mais. Quando você vê, aquele relato em que você confiava tanto vai se tornando cada dia mais e mais contraditório, principalmente quando posto diante de uma realidade que se autoexplica muito melhor, até você se convencer que a verdade não reside em um livro. A Mitologia, como eu já falei alhures, diz muito mais sobre a cultura e o modo de pensar do povo que a cria do que sobre uma verdade revelada a um vate especialmente escolhido. Este é provavelmente o processo que ocorreu na alvorada da Filosofia, quando a verdade pronta da Mitologia incomodava pela sua imprecisão poética.

Esses primeiros filósofos olhavam para as próprias coisas, e tentavam tirar delas suas causas e efeitos, suas razões de ser, suas origens e seus destinos. Com poucas réguas para medir, era da lógica que vinham suas tentativas de explicação, as famosas especulações. E o que eles viam e buscavam compreender era, primordialmente, aquele imenso universo que os cercavam, seja na proximidade que podiam tocar, perguntando a si mesmo qual era o elemento basilar de tudo, seja na incalculável distância dos mais diáfanos pontos de luz perdidos na escuridão. Estas últimas, sem dúvida, eram o maior desafio que existia para o pensamento. Para além da interpretação religiosa, os primeiros filósofos enxergavam uma ordem e uma estrutura na tela do firmamento, e tentavam explicações sem que fosse necessária a introdução de justificativas ad hoc, como faziam as diferentes mitologias. A Filosofia nasceu como Física, e, especialmente, como Cosmologia.


Tá, mas afinal de contas o que é essa tal de Cosmologia? A palavra grega kósmos significa alguma coisa como organização ou ordenamento, e isso já faz entrever que o conceito de universo passa já no seu nascedouro uma noção de que as coisas não estão onde estão por acaso ou pela vontade aleatória de uma divindade. De certa forma, é a parte mais ontológica da Astronomia, parte da Física que a abarca. Isto porque a principal pergunta da Cosmologia é: o que é o universo?

Basicamente, isso significa responder qual sua linha de vida, do que é feito e como ele se arranja no espaço. Só que o nosso espectro visível é terrivelmente diminuto quando precisamos enxergar além do alcance, porque tudo é muito grande, tudo é muito pequeno, tudo é muito longínquo, tudo é muito antigo para os padrões da nossa pobre mente descontínua. E resta-nos as obscuras sendas da elucubração para tatear algumas hipóteses.

Para que se tenha ideia de como a gênese de ideias é profícua no campo da Cosmologia, basta que se tente responder qual é a origem do universo. Melhor ainda: há uma origem ou tudo sempre existiu? Aqui temos o célebre argumento cosmológico, uma elegante aplicação da Lógica para tentar encontrar alguma solução. A tese geral é o princípio da causalidade, que diz que sempre um fenômeno é decorrência de outro. Não há gol sem chute, não há pênalti sem infração. Dessa forma, podemos regredir no tempo buscando a causa de um determinado efeito. O X da questão é se essa regressão tem fim. Se sim, podemos dizer que chegamos à origem do universo. O Primeiro Motor Imóvel de Aristóteles e a Teoria do Big Bang são dois exemplos de aplicação do argumento cosmológico com um início para o cosmos. Há quem veja, como São Tomás de Aquino, uma prova da existência de Deus neste argumento, mas não fiquem bravos se eu disser que esta assertiva é falaciosa, mais especificamente um argumentum ad ignorantiam, já que a causa primeira não precisa ser uma divindade. Aqui, entra a fé do argumentador, e não uma sequência lógica necessariamente válida. Além disso, mesmo as hipóteses de universo com início esbarram na regressão: o que havia antes do Big Bang? O que dá origem ao Primeiro Motor? Que divindade criou Deus? Notem como as perguntas referentes à Cosmologia sempre estão impregnadas de Filosofia, para muito antes de chegar ao campo observacional, e por isso mesmo toda Ciência traz consigo uma carga metafilosófica, como já discorri neste texto.

Outro questionamento que parte da Cosmologia é estrutural. O universo possui um limite ou não? Se pensarmos em um Big Bang, é possível pensar que sim, já que a expansão acelerada, que impropriamente chamamos de explosão, faz com que tenhamos a tendência em supor um avanço contínuo, da mesma forma que a marola produzida pela pedra jogada no lago vai se expandindo até chegar à borda. O que ainda fica no campo especulativo é se a “beirada do lago” universal existe: há uma margem para até onde os limites do universo poderão avançar? E o que haveria para além do “paredão”? Os físicos tem teorizado que não há um espaço para onde o universo se expande – o próprio espaço se expande com o universo. Mas, de qualquer forma, parece que há um ponto tal em que tudo possa chegar.

Ou a solução é ainda outra? A resposta pode estar na gravidade. Quando observamos o modo com o qual o universo é estruturado, podemos perceber que há uma diferença substancial entre as nossas vizinhanças e as distâncias maiores. Quando vemos os céus a olho nu, como eu fazia naquela noite balouçante, não temos a dimensão exata do que temos acima de nós. São pontos brilhantes e ça tout. No entanto, a utilização de aparelhagem cada vez mais avançada permite experimentar sutilezas imperceptíveis a partir da prosaica rede de renda de bilro. Um dos exemplos é que seu tamanho e brilho tem menos a ver com sua distância do que é possível supor. Muitas vezes, um ponto específico no céu não é uma estrela solitária, mas uma galáxia inteira. Mais do que isso: é possível observar que, a uma distância relativamente curta*, as diferentes galáxias tendem a se aproximar, formando grupos locais que possuem grandes vazios entre eles. À medida que obtemos dados de objetos situados a distâncias maiores, somente detectáveis por instrumentos muito sofisticados, percebemos que os mesmos estão distribuídos de modo muito mais homogêneo, sem os grandes claros notados anteriormente. Isso pode fazer entrever que a ação gravitacional do momento em que estas informações chegaram a nós ainda não havia operado da mesma maneira que ao nosso redor. E aqui temos a bifurcação. Pode ser que a gravidade, a distâncias verdadeiramente grandes, não consiga mais exercer sua ação, e o universo continuará a se expandir, sabe-se lá até onde. No entanto, se a gravidade possuir força suficiente, em algum momento a contínua expansão cessará, e a atração fará com que os conglomerados de corpos celestes comecem um caminho de retorno, aproximando-se sempre e sempre mais, de forma a multiplicar sua interação gravitacional e sua atratividade, até que tudo o que exista se colida em um único ponto, produzindo o que temos chamado de Big Crunch, o retorno ao átomo primordial de tudo.

Ultimamente, o novo santo graal da Cosmologia é a energia escura, ainda no campo da hipótese, e que serviria para se contrapor ao encolhimento previsto na teoria do Big Crunch. Como eu disse há pouco, caso esta estiver correta, tudo voltará a se condensar em um único ponto, em um movimento que se tornará cada vez mais acelerado, dado o aumento de energia gravitacional ao redor de um núcleo cada vez mais denso. Se isso não ocorrer e o universo continuar se expandindo, haverá um momento tal que não haverá mais energia para o prosseguimento da movimentação, e então o universo se tornará estático. A tese da energia escura lida com a hipótese de que o universo não esteja se expandido inercialmente, pela força gerada pela expansão do Big Bang, mas que esta expansão seja acelerada. É uma alternativa puramente no âmbito hipotético, porque não há elementos suficientes que possam determinar qual modelo expansivo/retrativo está correto, mas o que poderia estar por trás da sua confirmação? Seria necessária a existência de uma energia para justificar a repulsão dos objetos em oposição à força da gravidade, uma energia cuja natureza é desconhecida, e chamada de “escura” pelo motivo de não ser detectável por nada além da capacidade racional dos cientistas. Um dia, será possível determinar com exatidão um método para detectá-la, e, neste momento, ela sairá do âmbito filosófico para se tornar Cosmologia com “C” maiúsculo.

Uma outra grande pergunta da Cosmologia nos faz pensar em qual fornalha foram geradas todas as coisas que existem. Sabemos que os objetos são feitos de átomos, que são compostos por ínfimas partículas. Tudo é tão pequenino que nos faz intuir que, se agruparmos os átomos dispersos por aqui e por ali teremos volumes significativamente menores. Entretanto, a teoria do Modelo Cosmológico Padrão (nada mais do que Big Bang falado em tucanês) nos diz que o universo original anterior à expansão se concentrava em área exígua, menor que a cabeça de um alfinete. Isso dá nó na cabeça. De onde veio tudo o que existe?

Uma hipótese boa é que compactar tudo em um minúsculo ponto só é possível porque a própria matéria é uma forma de energia, como descrito na Teoria das Cordas. Ainda assim, essa é uma circunstância muito difícil de intuir. É certo que nossa dificuldade com este tipo de dúvida resida nas limitações dos nossos sentidos. De fato, dependemos deles para trazer informações para serem processadas em nossas admiráveis, porém restritas cabeças. Dessa forma, primeiramente lidamos com aquilo que vemos, e necessitamos de observações indiretas para sacarmos aquilo que não vemos. Notem como falamos em estrelas, planetas, cometas, asteroides... coisas visíveis. Sempre procuramos por elas para justificar nossas crenças, e tudo o que lhes escapa é candidato a cair nas armadilhas das lacunas. Todavia, o que você diria se eu lhe contasse que, descontados todos os órgãos e ossos do seu corpo, ainda restaria peso em uma balança, muito peso, aliás? Que há uma alma e que ela tem peso? Ou que há alguma outra coisa em sua composição que não conseguimos ver, mas que os instrumentos detectam? É exatamente isso que os astrônomos têm obtido desde meados do século XX, especialmente com os trabalhos do astrônomo Fritz Zwicky. Tomando o peso total de uma galáxia e descontando o peso individual de cada um dos seus componentes ainda resta muito peso que, aparentemente, está ligado a nada, o que é absurdo. Por não ser detectável diretamente, essa estranha diferença ganhou o nome de matéria escura, um dos principais objetos de busca cosmológica desde sua descoberta, e que vem ganhando mais métodos de aferição, ainda indiretos, mas cada vez mais precisos. Isso tudo nos faz supor que há muito mais no cosmos do que conseguimos detectar.

Em suma, a Cosmologia é hoje a parte da Ciência provavelmente mais prenhe de Filosofia que podemos imaginar, como já a é desde o seu próprio nascimento, como se um mega tatatatatataravô meu estivesse deitado em algo semelhante a uma rede, riscando o céu com o dedo, enquanto aguardava vovó se banhar no rio mais próximo. Bons ventos a todos.

Recomendação de série:

É um clássico da divulgação científica que foi renovado em época razoavelmente recente. Trata-se da série Cosmos, a obra-prima de Carl Sagan, que me maravilhava na virada da infância para a juventude, e que foi remoçada brilhantemente através da voz de seu sucessor, Neil deGrasse Tyson. Tem na Netflix. Para curtir a beça.

BRAGA, Bannon; DRUYAN, Ann; POPE, Bill. Cosmos: Uma Odisséia do Espaço-tempo. Filme. Série em 13 episódios. Cor. 44 min por episódio. EUA: Cosmos Studios, 2014. Disponível em: https://www.netflix.com/title/80004448

* É preciso lembrar que “distância curta” em termos siderais sempre é algo relativo. A unidade básica para mensurações espaciais é o ano-luz, ou seja, a distância que a luz percorre em um ano. Pensemos que o Sol, que aquece o planetinha, está a oito minutos-luz daqui, para ter uma parca noção de que medidas tentamos exprimir.