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quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Dos dias em que o vento nos afasta do mar - 3º sopro: Itamonte e a pauta dos corredores ambientais vista sob o prisma da Sociologia

Olá!


No meu último texto, relatei o rolê que dei pelas paragens de Passa Quatro, mas, dados os preços desumanos dos hotéis para mochileiros cox... motorizados, fiquei hospedado lá perto, um pouco mais alto na serra da Mantiqueira, no hotel da Nilce (Thomaz). É a cidade de Itamonte.


O nome Itamonte é uma daquelas misturas que revelam a imbricação de culturas, tão comuns nos neologismos, quando aglutinamos radicais de origens diversas. No caso, temos a justaposição dos termos ita, de origem tupi, e que significa pedra, com o termo monte, que significa monte mesmo. Ou, sendo mais rigoroso, vem do latim mons, que significa uma massa mais elevada em relação ao nível médio do terreno. No final, Itamonte quer dizer “monte de pedra”, e é isso mesmo, porque estamos em uma coleção infinita de sobe-e-desce. Apesar disso, a área urbana da cidade se estende ao lado da rodovia, onde corre em região plana, repleta de bicicletas e pastelarias, com algumas casas de artesanato de palha.


Dentre os cestos, tapetes, baús e descansos de panela, encontram-se artigos feitos de outros materiais, como as poltronas de bambu, os enfeites de madeira, as bonecas de bucha e as cuias de cabaça. Ou mesmo expressões menos utilitárias e mais livres do artesão, que tem uma ideia na cabeça e uma cabaça na mão, e vê um dinossauro à sua frente. Este é o Nuno, que poucas modificações sofreu para ser personificado.


Na elevação onde se situa a cidade antiga, fica localizada a tradicional igrejona, que, na verdade, não é a original, como se pode perceber pela sua incomum forma ogival. É a paróquia de São José de Itamonte, antiga São José do Picu, que, aliás, era o nome da cidade. A igreja original tinha aquele visual barroco típico, mas que hoje é só uma placa memorial na porta da atual. Pena.


Falei do Picu. É o ponto mais identificado com Itamonte, algo como um Cristo Redentor para o Rio de Janeiro. Trata-se de uma pedra enorme, que servia de referência para os tropeiros que se encaminhavam do porto de Paraty para o interior de Minas Gerais, e que se assemelhava a uma barbatana de tubarão no dorso da serra.


A pedra do Picu fica próxima à entrada da Serra do Itatiaia, que fica na tríplice divisa dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e que engloba um dos pontos culminantes do Sudeste, o pico das Agulhas Negras. O próprio Picu é bastante alto, ficando a mais de 2100 metros de altitude. Uma névoa seca em dias muito quentes dá a ele uma visão nublada, mesmo sem uma única nuvem no céu.


Há duas maneiras para se chegar ao Picu. Uma delas, a vertente sul, é para alpinistas. Já a estrada da Capelinha permite se chegar bem mais perto de carro, mas estávamos em dias secos, e o poeirão da estrada pôs as rodas do pobre e valente Bedelho a patinar, de modo que, em uma ladeira mais íngreme, ficou impossível de prosseguir.


O jeito foi encostar o carro e continuar a pé. Observando nossa desventura, o seo Orlando, agricultor da região, sugeriu que avançássemos por dentro das fazendas. Se a subida era mais pesada, por outro lado era mais curta e bonita. Além disso, havia um riacho no meio do caminho para refrescar a nuca, e ainda ofereceu leite tirado na hora...


... o que, educadamente, mas sem perda de um segundo, recusei de bate-pronto. Não mamei nem na minha mãe, que fará na vaca! Mas a patroa gosta de leite, e fez as vezes da casa com prazer, lançando mão de uma garrafinha d’água arrolada em nosso patrimônio.


A trilha para o Picu não é das mais complexas, só é difícil de achar, pelo menos pela rota do seo Orlando. Perdida em meio a pastos e “calipais”, a picada por vezes não se forma, fazendo a caminhada virar um jogo de adivinhação. Entretanto, estou de férias, e tentativa e erro fazem parte da brincadeira.


O caminho é composto pela transposição de um morro que se encerra em um riacho, para depois começar a subida pela vertente que dá na Pedra do Picu. À medida que se aproxima do riacho, a mata ciliar vai se adensando, de modo que, no interior do mesmo, quase não se vê o céu. É a melhor oportunidade para se ensopar inteiro, bem como engolir alguns litros de água, o que fizemos. Isso porque o morro do Picu é pelado, tem ângulo desafiador e não é pertinho, não.


É um trajeto curioso. Passado o riacho, aquela pequena protuberância que se via ao longe surge imponente e onipresente. E dá-lhe andar. A caminhada morro acima parece fazer tudo ficar mais longe...


... mas que oferece uma bela vista panorâmica. Burramente, tirei poucas fotos do lugar.


Itamonte possui um circuito denominado “Volta dos 80”, que consiste em 80 Km de estradas rurais que ladeiam parques e reservas ambientais. Além da Serra do Picu e do Itatiaia, já citados, também faz parte do município a Serra do Papagaio, outro remanescente de Mata Atlântica protegido pelos órgãos de meio ambiente.


Nas suas fraldas, encontramos a Cachoeira do Escorrega, que tem a presumível forma de um tobogã. Encostamos na porteira de propriedade do seo José Lino, bom de papo, e de lá descemos para o acidente geográfico.


Ela fica em um dos braços do rio Capivari, que tem suas nascentes nas partes altas serranas, e vem serpenteando por vales e gargantas até chegar neste recanto.


Trata-se da água mais gelada que eu já tateei na minha vida. Cinco minutos de banho são suficientes para o corpo ficar todo adormecido, dando uma pálida ideia do que acontece com aqueles russos loucos que gostam de nadar nas lagoas geladas com a cara cheia de vodka. Os pezinhos da patroa, inclusive, ficaram bem vermelhos após a clássica selfie bípede.


Água gelada, porém cristalina. Passado o escorregador e o pequeno bolsão, a água retoma seu curso morro abaixo, formando novas quedas d’água.


Há ainda no mesmo pedaço a Usina dos Bragas, pequena hidrelétrica desativada, que até a década de 70 forneceu energia elétrica para Itamonte e cidades circunvizinhas. Seu lago artificial permanece lá, sendo que as comportas são abertas eventualmente, por ocasião das cheias de verão.


Cerca de 80% da área de Itamonte é composta por reservas ambientais. Estamos em um local de alto interesse ecológico, e que luta para manter suas características intactas, ainda que a custo de um desenvolvimento econômico mais lento. Mas é o que resta a fazer após séculos de exploração impensada, e de devastação das florestas nativas para fins de expansão da agropecuária e da instalação das cidades. Pode parecer incrível, mas cidades como São Paulo e toda a região metropolitana eram muito semelhantes ao que podemos enxergar nestas paisagens. Afinal de contas, faziam parte de um mesmo sistema geográfico, hoje quase inteiramente degradado: a Mata Atlântica, que recobria todo o litoral brasileiro e penetrava pelo interior do país. É um bioma do tipo Floresta tropical, com alto índice de espécies endêmicas, dada a variação física e climática da área que abrange, incluindo regiões costeiras que se estendem do Nordeste brasileiro até o litoral argentino. Por mais ambíguo que possa parecer, é no Sudeste que a Mata Atlântica se encontra mais bem conservada, especialmente no estado de São Paulo. Mas não se iludam. Não se trata de consciência biológica, mas dificuldade na utilização de terrenos extremamente íngremes, como são os paredões serranos.

O resultado é que os remanescentes de Mata Atlântica são bastante fragmentados e há grandes faixas de isolamento entre si. Desta forma, a área de ocorrência de determinadas espécies fica terrivelmente reduzida, e os acasalamentos passam a se tornar cada vez mais endogâmicos, o que é perigosíssimo para elas. O que explica isso é que a falta de variabilidade genética faz com que as espécies se exponham a circunstâncias que podem até mesmo dizimá-las. É o que se chama de homozigose. Vou explicar melhor isso.

Não é preciso nem falar que os filhos se parecem com os pais, não é verdade? Os olhos de um, o queixo de outro, e assim vai, numa mistura que reproduz o acervo genotípico de cada um dos ascendentes, em maior ou menor proporção. Mas não é só nos caracteres externos que os filhos “puxam” os pais. O funcionamento todo do organismo pode ser influenciado hereditariamente. Minha família, por exemplo, tem um longo histórico de doenças cardíacas. Minha bisavó tinha, minha avó tinha, minha mãe tinha. E eu, batata, fiquei sabendo no mês passado que algo não vai bem. Claro que não há como isentar a dieta tipicamente mediterrânea de suas culpas, mas o fato é que há algo geneticamente transmitido que nos estraga a maquininha. Já o lado da patroa é composto por atletas, que mantém o coração batendo mesmo após a morte. Exageros à parte, os registros de problemas do coração do lado dela são raros. Desta forma, o produto de nossas brincadeiras tem a chance de herdar um coração melhorzinho pelo lado da mãe. Se eu tivesse filhos com uma prima, a chance de transmitir o defeito de fabricação seria dramaticamente maior. Uma das explicações do tabu relacionado ao incesto parece, inclusive, ser uma reação atávica à homozigose, um arquétipo inscrito no inconsciente coletivo, como imagina Jung. Essas são as peripécias da genética.

O mesmo se aplica na natureza como um todo. Quando uma espécie qualquer fica restrita a uma área muito pequena, os cruzamentos endogâmicos são os mais frequentes, e a variabilidade genética é muito baixa. Se a espécie for atacada por alguma bactéria que se mutacionou de forma a lhe causar grande prejuízo, e sendo todos os indivíduos muito semelhantes, é possível que naquele microambiente toda ela seja extinta. Caso haja mais variedade, uma boa parte dos indivíduos será resistente ao patógeno, e a espécie sai fortalecida.

É por isso, e não por um capricho sentimentalóide, que é importante fazer com que esses diferentes fragmentos se comuniquem. Poder-se-ia dizer que bastaria transferir indivíduos de um polo para o outro que o problema estaria resolvido. Claro que a coisa não se resolve com um passe de mágica assim. A adaptação de diferentes espécies nem sempre é fácil de entender. Pode ser que uma espécie esteja mais adaptada à alta umidade e salinidade do ambiente costeiro, e afastá-la desse habitat, sob a mera alegação de que a cobertura vegetal de um local mais interiorizado é idêntica, pode ser fatal. O melhor é que a própria espécie se transfira de um local para outro por conta própria, através de várias gerações, se necessário.

Os reducionistas de plantão dirão que o melhor é derrubar as cidades e todo mundo meter uma tanga de índio, esperando que a vegetação retome seu local original. Em termos de natureza, seria o ideal. Mas não queremos abrir mão de nossas cidades, como se fossem um fantasma que assombra nossa sobrevivência. Como manejar a floresta, então?

A solução mais razoável são os corredores biológicos, porque as criações de parques e reservas, apesar de serem boas ideias, não resolvem o problema da homozigose. Estes corredores são caminhos que interligam os polos isolados de um determinado ecossistema, de modo a permitir a passagem dos animais entre eles sem a necessidade de transpor obstáculos construídos, como estradas e povoações. Essa ideia não é nova, e é possível observar no mapa que alguns deles já estão naturalmente projetados:


Um desses corredores ligaria a região de Campos do Jordão ao Parque Nacional do Itatiaia, seguindo aproximadamente a rota da via Dutra, ladeando a divisa entre São Paulo e Minas Gerais. É uma região da Serra da Mantiqueira onde há incontáveis fragmentos de floresta original, e que estão relativamente próximos um do outro.


Em tese, seria uma ligação razoavelmente simples, sem grandes obras humanas a serem superadas. A mão do homem está mais visível nas plantações e nos pastos, o que, por força de lei, de indenizações ou da conscientização dos proprietários rurais, possibilitaria a reserva de uma faixa de terreno adequada ao trânsito animal. O problema maior é quando há uma rodovia de grande circulação no meio do caminho, como a mesma Dutra retro mencionada. Ela é o principal óbice para a ligação entre dois ecossistemas gigantescos, a Serra da Mantiqueira e a Serra do Mar, que poderia ser feita entre o Itatiaia e a Serra da Bocaina, mais ou menos no ponto abaixo:


Como essa ligação seria possível, eu não sei. Só consigo pensar em um aprofundamento na via, de modo que, sobre esse túnel, deixasse-se florescer novamente a vegetação nativa. Não sei a viabilidade técnica, o custo de tal obra, a dimensão necessária para que a passagem seja eficaz e nem se seria necessário fazer outros pontos de ligação, o que, olhando para os mapas acima, não parece muito fácil. É preciso ainda atenuar os pontos de pressão antrópica, como o excesso de ruídos e luminosidade, além dos riscos de atropelamento e caça. Tudo isso é complexo demais, reconheço.

Mais importante do que tudo isso, no entanto, é pensar em como se chegou a esse ponto, em que qualquer solução se volta à atenuação do problema, e não à solução. E, ainda mais levando em conta que está na moda resistir às evidências de que enfrentamos um processo de aquecimento global, muitas vezes percebemos que há uma deficiência na percepção de que teremos problemas no futuro. As teses do sociólogo britânico Anthony Giddens podem trazer um pouco de luz ao assunto.

Giddens lê a modernidade como um processo de desconexão entre tempo e espaço percebidos e reais. Isso significa que, antes dos dias atuais, a humanidade traduzia seus tempos através de seus espaços, e é muito simples de entender isso se pensarmos no dia-a-dia de um camponês e compará-lo com o de um trabalhador urbano. Pensando no trabalho da terra, vemos o agricultor que acorda com o raiar do dia, pelo cantar das cigarras ou pelas estridências de um galo. Seu trabalho é executado até o momento em que sente o sol a pino sobre sua cabeça, e ele já sabe que é hora da pausa para o almoço. Retoma suas tarefas até o entardecer, quando se recolher à casa novamente. Lá, já escuro, senta-se à beira de seu alpendre e lá fica, jogando conversa fora, até que sente sono, e este é o indicativo de que chegou o instante de ir dormir, para retomar seu ciclo novamente no dia seguinte. Ele reconhece a altura e a tonalidade das nuvens para saber se haverá chuva ou não, ou observa o voejar baixo das aves para a mesma coisa. Sabe quando é tempo de plantar e de colher observando a maturação das culturas; aliás, sabe o que plantar e o que vai colher. Todo o seu tempo se baseia no fluxo das mudanças espaciais que ocorrem ao seu redor, seja no imediatismo do quotidiano, seja no tempo estendido das estações do ano. Enfim, há um forte vínculo entre o tempo real e o tempo percebido, porque há toda uma espacialidade a lhe guiar.

Já o trabalhador urbano tem muito menos elementos espaciais a lhe orientar. Sim, ele tem um espaço que o cerca: a fábrica ou o escritório, que o isola do contato com o mundo e que não tem grande significado em sua atividade. Para ele, o importante é o relógio e o calendário. Há um despertador que o acorda no momento exato, para chegar antes do apito em seu posto de trabalho. Suas interrupções no expediente tem a precisão de sua vaga no refeitório, já não importando se há chuva, se há sol, neve, granizo, eclipse ou apocalipse. O mesmo apito lhe indica o fim da jornada. Sua sazonalidade se baseia nas previsões de férias, feriados e dias santos. Nada que lhe pauta as divisões do tempo tem um casamento sólido com a natureza, ou mesmo com o espaço artificial que lhe rodeia. É o só o tic-tac do relógio, sempre igual, que diz os momentos em que as coisas podem ou devem ser feitas.

Isso tudo nos dá a noção de que a modernidade tardia exige uma precisão que a natureza não tem. Pensando em um fruto deixado à própria sorte, e deixando de lado a hipótese do bicho em seu interior, não há como garantir peso, tamanho e padrão de sabor. Isso é obtido à custa de uma desnaturação no processo de produção que, embora seja muito eficiente, afasta as características individuais do produto final.

Essa é uma indicação simplificada de um desencaixe entre o tempo e o espaço, mas a teoria de Giddens é mais profunda. Há dois mecanismos em que se dá essa espécie de assincronismo: os sistemas peritos e as fichas simbólicas. Esmiucemo-los.

Imagine uma criançada jogando bola na rua. Com exceção de algumas poucas regras fundamentais, tudo ali é feito na base do improviso. A rua pode ser de terra, asfalto ou paralelepípedo. As balizas, demarcadas com pedras, garrafas ou chinelos. Pode ou não haver carros estacionados, aumentando a necessidade de drible. Os limites do campo são os muros das casas, e não há um cronômetro para quantificar o tamanho das partidas, que são delineadas pela quantidade de gols: 5 vira, 10 acaba, em sua configuração mais usual. Acabando o jogo, começa outro, até anoitecer, começar a chover ou a mãe chamar. Tudo é regido pelas contingências.

Agora pense em um jogo formal, valendo por um campeonato qualquer. A partida é realizada em um campo com medidas oficiais, em dois tempos de 45 minutos cada um mais acréscimos. São onze jogadores para cada lado, com um árbitro e dois bandeirinhas a aplicar as 17 regras que regem os movimentos, estabelecidas por um órgão legislativo e adotadas por uma federação internacional. O espaço é cercado por arquibancadas e tribunas onde os torcedores se acomodam. Chegam lá após adquirir um ingresso na bilheteria e passar por uma catraca vigiada pela polícia, e por entre eles circulam os vendedores de guloseimas e quinquilharias. Outros elementos podem estar presentes, como os repórteres de campo e os locutores devidamente alocados em suas cabines, uma ambulância para emergências, um placar, lanchonetes. Ao fim, os pontos obtidos vão para a tabela engendrada pela federação que organiza o campeonato. Tudo tem sua hora e seu lugar certo, de maneira devidamente projetada e adequada para a prática desportiva.

Vejam o aumento de complexidade e diminuição de espontaneidade que há entre os dois casos. No estádio onde se realiza a partida formal há uma quantidade enorme de funções especializadas que são simplesmente desnecessárias na pelada, e que existem porque confiamos a alguém a tarefa de organizar um campeonato, de treinar um escrete, de controlar uma multidão, de transmitir o jogo para todo o território nacional, coisas que não conseguiríamos fazer no prélio entre a rua de cima e a rua de baixo. Isso é um sistema perito, que existem aos montes: bancos, jornais, fazendas, sistema viário. Eles existem por conta da confiança que temos em especialistas de construírem espaços adequados ao convívio. O desencaixe que ele proporciona diz respeito à impessoalidade destes especialistas. Simplesmente não sabemos quem são, mas acreditamos que são capazes de produzir o que produzem.

O outro mecanismo é o das fichas simbólicas. Vamos pegar o exemplo do estádio e nos limitar a um único elemento: o ingresso. A partir do momento em que você adquire a papeleta, importa apenas que você garantiu o direito de entrar no estádio e assistir à contenda. Não importa se você é grego ou troiano, homem ou mulher, comunista ou monarquista, judeu ou budista, gordo ou faminto, José ou João, garantista ou legalista, Beatles ou Rolling Stones, alfa ou ômega, trans ou cis, Jambo ou Ruivão, feijão ou arroz. O máximo que poderá fazer diferença é a camisa do seu time. De resto, você não será nada mais que o portador de um ingresso, sem levar em conta nenhuma individualidade sua, ou seja, uma ficha simbólica, um objeto de representação desligado do indivíduo, e que é simbólica porque representa algo concreto, como a sua vaga na arquibancada, mas sem representar a você mesmo, o ocupante da vaga. A mais bem definida ficha simbólica é o dinheiro, mas há outras, como o voto ou os endereços postais.

Esses mecanismos de desencaixe dão toda a base para as teses de Giddens, inclusive a explicação que ele dá para as crises ambientais. Ele as coloca na forma de paradoxo – apesar de saber que, a longo prazo, o modo de vida moderno causará danos irreparáveis ao planeta, que invariavelmente recairão sobre a sociedade como um tudo e a cada indivíduo como reflexo, os homens continuam a predar o meio ambiente. Por que?

O exemplo maior vem do aquecimento global. A principal hipótese da interferência humana diz respeito à soma entre desmatamento e emissão de poluentes do efeito estufa. Tanto um quanto outro estão amarrados à produção, que supre de elementos materiais a estrutura de vida da população: a verdura vem de área desmatada, o carro vem de fábrica poluidora, e ele mesmo também polui. Como há o desencaixe, o homem moderno não tem mais noção exata do que se perde ao agredir sistematicamente a natureza. É como um jovem que se droga hoje, mesmo sabendo que isso pode encurtar sua vida. Em um processo psicológico semelhante à descontinuidade da mente (ou até mesmo por ele), o tal moço não se projeta na velhice, e faz sua besteira assim mesmo. Ainda que não se acredite que o aquecimento global seja antrópico, a agressão ao meio ambiente continua a ser prejudicial. E o paradoxo se resolve pelo fato de que a humanidade reluta em abandonar seu conforto ou diminuir seus ganhos – o pensamento se torna imediatista, como o do operário que vê sair da sua máquina uma peça pronta, e não como o lavrador, para quem o legume na mesa é um processo longo, dependente de uma pilha de acontecimentos naturais.

Se os corredores saírem do papel e forem bem sucedidos, existe alguma esperança de que as pessoas se convençam da importância da preservação ambiental. Há uma desconfiança muito grande com políticas públicas no Brasil, por motivos mais que justificáveis. Mas há trabalhos que merecem ser vistos, como o que recomendo abaixo. Eu mesmo me animei bastante ao lê-lo. E talvez as pessoas se comovam pela imagem simples que vi em Itamonte, do tucano que vem com uma fruta no enorme bico, que lhe aparenta tirar toda a aerodinâmica, desafiando a Física, mas que ainda assim o faz, talvez para alimentar seus filhotes. E ter a dimensão de que a natureza não está nos sistemas peritos da TV ou do zoológico, mas no seu próprio dia-a-dia, ainda que a quilômetros de distância. Quem de nós, sem nenhuma conotação política, já viu um tucano da janela lateral do quarto de dormir? Mas eles existem e importam.

Recomendações de leitura:

Anthony Giddens é um sociólogo ainda vivo, por isso é bom ficar atento com sua produção intelectual, porque ainda podem surgir novidades. Seus conceitos de modernidade tardia estão bem expostos no seguinte livro:

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

Para se sentir tocado por uma causa, é preciso saber o que vem sendo proposto pelos órgãos públicos para a questão ambiental. Muito embora o atual detentor do poder não seja dado a preocupações com plantinhas, bichinhos e indiozinhos, há trabalhos de fôlego realizados alguns anos atrás. No endereço abaixo, temos o resultado de uma pesquisa que me enche de orgulho pela sua qualidade, até mesmo como peça de leitura, e que comprova que o trabalho do funcionário público é estigmatizado. Leiam porque é essencial:


A versão em livro é:

AYRES, José Márcio et al. Os corredores ecológicos das florestas tropicais do Brasil. Belém: SCM, 2005.

Os mapas utilizados neste post foram extraídos do Google Maps.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Dos dias em que o vento nos afasta do mar - 2º sopro: Passa Quatro e os ecos da Revolução de 32 perdidos na paisagem

"... o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão. Ao vencedor, as batatas".
Machado de Assis - Quincas Borba

Olá!


A passagem por Pouso Alto foi bastante rápida, meio que na base do aproveitamento daquilo que restava da viagem de ida. Para lá chegar, passamos pela cidade de Passa Quatro, primeira cidade de Minas Gerais para quem acessa o estado pela região de Cruzeiro, no Vale do Paraíba. Não deixamos de considerar uma primeira estadia por lá, mas os preços dos hotéis eram desanimadores. Preços de pousada para fazer pernoite, não dá. Com isso, resolvemos procurar outro canto e voltar depois, o que fizemos. E descobrimos uma cidade cujo eixo histórico gira em dois planos: a Revolução de 32 e a ferrovia, que não deixam de se relacionar, além da típica água mineral.


O curioso nome da cidade, segundo se conta, diz respeito às primeiras incursões feitas pelos bandeirantes. Vindos do litoral paulista, ao tomar o rumo norte para avançar pelo interior, encontraram um rio sinuoso, que, para ser vencido, precisou ser atravessado quatro vezes em pontos diferentes. Esse é o rio a quem deram o nome de Passa Quatro, e que acabou por emprestar o topônimo à região. Também a bem preservada gare carrega este nome.


Passa Quatro é entremeada por região montanhosa, com bastante área preservada. Como a galera gosta de aprontar suas artes para expandir sua disponibilidade de terra, uma parte do município foi transformada em reserva ambiental, com um acesso muito próximo do seu centro urbano. Trata-se da Floresta Nacional de Passa Quatro, administrada pelo Instituto Chico Mendes.


É um local muito bem preservado, que contém áreas para descanso com lagoa e postos de atendimento ao público, onde se conta um pouco da história e da geografia do local. Há uma trilha ascendente que leva à cachoeira do Iporã, relativamente curta, que tem um poço para refresco de corpos e mentes.


Visitando a parte urbana, chama a atenção o calçamento feito quase inteiramente de pedras e a companhia dos trilhos da linha férrea. De qualquer lugar do horizonte, desponta a igreja matriz de São Sebastião...



... no alto de uma escadaria com adro enfeitado por um curioso coreto feito de troncos retorcidos.


Em seu interior, duas imagens incomuns para paulistas como eu e a patroa, acompanhados por suas respectivas relíquias: o Beato Padre Victor...


... e a Nhá Chica, muito queridos na região inteira. Guardem bem estes nomes para os outros textos desta epopeia, vou detalhar melhor suas presenças.


Passa Quatro, além de fazer parte da região das Terras Altas da Mantiqueira, também é estância hidromineral, sendo sua água engarrafada bem famosa. Há alguns lugares onde se pode obter o líquido, como a fonte Padre Manoel, pegada à ferrovia.


Por falar nisso, não há dúvidas que a sua maria-fumaça é um dos principais atrativos da casa. Mesmo a um preço salgado, a antiga locomotiva tem um valor histórico intrínseco muito relevante, não só pelo equipamento em si, mas por quesitos que veremos logo adiante.


Não são disponibilizadas viagens todos os dias, mas é possível visitar a máquina e os vagões na garagem que fica ao lado da antiga estação ferroviária. Aproveitei, inclusive, para acompanhar toda a manobra necessária para realizar o estacionamento das composições, já que eu estava por ali mesmo.


Para além da natureza e da história da cidade, um pequeno museu guarda consigo não só um interessante acervo de maquetes e quinquilharias de época, mas que contém um belíssimo trabalho associado a si. Trata-se do Brasil Nota 10, um espaço onde são reproduzidos os ambientes e as paisagens de diversos eventos da história nacional, com a utilização de menores carentes que são aprendizes dos trabalhos manuais e da apresentação dos trabalhos. Fica na antiga casa de engenheiros da estação de Passa Quatro, e é capitaneada pelo Professor Carlos, que nos contou dos apuros e aperreios da instituição.


O mais legal é o nível de detalhe conseguido nas maquetes, que são utilizadas não só para retratar os fatos históricos a que se referem, mas também para dar ofício a adolescentes com poucas oportunidades de aprendizado, com a utilização de elementos criativos, como gelatinas, ramagens, papel-machê, tingimentos e outros mais. Mais ainda: as crianças que lá operam acabam por ficar craques nos acontecimentos que descrevem.


Uma das maquetes principais, que vem acompanhada de grande número de material de época e de painéis explicativos, é a que retrata a batalha do Túnel da Mantiqueira, um dos eventos mais nervosos da chamada Revolução Constitucionalista de 1932, que opôs o estado de São Paulo ao restante do país. Os passaquatrenses são muito orgulhosos desta passagem, que ocorreu nas franjas de sua cidade. O trem turístico tem como destino exatamente esta localidade.


Já vão 85 anos da Revolução de 32, polêmico motivo de orgulho para os paulistas. Dizem que estes comemoram uma guerra que perderam, ao que respondem que a vitória foi política, e não militar. Bom, para entender isso, é preciso recorrer, no mínimo dos mínimos, aos compêndios de História, ainda que este não seja o escopo deste espaço. Vou tentar fazê-lo.

Não vou regressar ab ovo na História do Brasil, bastando deslocar os ponteiros até a Proclamação da República, inicialmente atribuindo o comando do país aos militares, para logo em seguida dar início ao que se chamou de “política do café com leite”, epíteto bem-humorado para designar a alternância no poder das oligarquias cafeeiras de São Paulo e pecuárias de Minas Gerais. Nesta tabelinha, ora tínhamos um presidente paulista, ora um presidente mineiro, ou algum “estrangeiro” indicado por eles. A coisa muda de figura quando, gulosamente, o presidente Washington Luiz, politicamente paulista, rompe a vez mineira e indica o paulista Júlio Prestes para sucedê-lo, o que deveria ter efetivamente acontecido, já que este último acabou sendo eleito (lá do jeito que acontecia antigamente: voto aberto de homens de posses, sem acesso a mulheres e analfabetos e demais que-tais). A insatisfação mineira, ao perder a vez, quebrou a couraça da República Velha. Os políticos de lá foram buscar um nome do movimento tenentista, membros da baixa oficialidade das Forças Armadas que tinham propostas ousadamente socializantes. Pode até parecer contrassensual que oligarcas se dispusessem a ceder o poder a um movimento que defendia voto universal e secreto, reformas trabalhistas e educacionais, além da distribuição agrária, e que se opunham ao sistema de detenção do poder que eles, membros da elite agropecuária, tanto amavam; mas os tenentes dispunham de algo imprescindível: armas. A ideia básica era velha e repetida tantas vezes, inclusive mais tarde, em 1964 – utiliza-se o poderio militar para a derrubada do atual comandatário, para depois obtê-lo eles próprios, com o regresso das forças armadas à caserna. Só que a História ensina que as coisas não funcionam assim, como exemplifica bem o nome originado do Tenentismo, Getúlio Vargas, político e militar gaúcho, e indicado para concorrer à presidente com Júlio Prestes.

O quadro era o seguinte: Getúlio era apoiado pelos conterrâneos gaúchos, pelos chateados mineiros e pelos paraibanos liderados por João Pessoa*, que seria o vice na chapa oposicionista. O restante do país se alinhou à candidatura chapa branca, com o Rio de Janeiro (então Distrito Federal) mantendo a neutralidade. Em 01 de março de 1930, a eleição proclama o que já era esperado. Júlio Prestes é eleito presidente, devendo tomar posse no novembro vindouro. O resultado não é aceito pacificamente, com acusações de fraudes de lado a lado. Um fato insufla ainda mais os ânimos: o assassinato de João Pessoa, em uma querela pessoal, mas fartamente usada pela oposição para causar um vínculo com o recém realizado pleito, para dar algum fundamento popular à causa, na base do apelo à emoção. Nos bastidores, fervilhava a conspiração, no sigilo que era possível. Os militares mobilizados começam a agir em 03 de outubro de 1930, com a tomada sucessiva de quarteis generais, até a formação de tropas que se puseram a marchar à sede do governo. Em 24 de outubro, antes de transmitir o governo ao presidente eleito, Washington Luiz foi deposto e exilado.

Essa é a origem de Getúlio Vargas como chefe do governo revolucionário. Uma de suas ações imediatas foi a imposição de interventores federais nos estados, com exceção dos aliados mineiros. A São Paulo, coube o tenente João Alberto, militar e pernambucano. Não é preciso dizer que isso desagradou em cheio as elites cafeeiras, que perdem o poder não só a nível nacional, mas no próprio quintal de casa. Como Vargas aboliu a constituição de 1891, passando a governar por decretos, os políticos paulistas exigem cada vez mais duramente a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, que, por fim, era uma das bases de apoio para o golpe varguista, bem como a convocação de novas eleições presidenciais, para suprimir a malograda campanha de Júlio Prestes.

A insatisfação paulista tinha motivos óbvios, mas mesmo os estados que apoiaram o golpe de 30, sequiosos, começaram a se sentir traídos pela permanência cada vez mais prorrogada de Getúlio Vargas, num daqueles costumeiros episódios de “provisórios definitivos” tão típicos destas paragens del sudamerica. Os protestos vão se avolumando, com campanhas aciduladas da imprensa paulista, que passa a incitar cada vez mais a população, reavivando a simbologia do bandeirante para construir uma metáfora do combate e da conquista. É preciso frisar que os movimentos revoltosos não tinham base popular, sendo que algumas das medidas do interventor João Alberto tinham alcance aos interesses do operariado, como o aumento dos salários e limitação das jornadas de trabalho (o que, por outro lado, causou um desconforto ainda maior aos industriais). Faltava um elemento catalisador, que consolidasse a propaganda do orgulho ferido e trouxesse uma adesão mais significativa à causa, indo além da classe média. Esse elemento, mais uma vez, veio em forma de martírio.

Eram tempos duros, em que muita coisa era resolvida na base da bala, e não havia crime em se carregar armas para cima e para baixo. A classe estudantil, com ventos liberais, havia se alinhado à causa constitucionalista e, impetuosos, eram a camada mais efervescente de todos os protestos, muitas vezes debelados com violência. Como a grita se tornava cada vez maior, Getúlio Vargas cede e nomeia um interventor civil e paulista, Pedro de Toledo. No entanto, seu campo de ação é limitadíssimo, o que torna a medida inócua. A aliança entre os partidos paulistas dá uma vitaminada extra no movimento, a ponto de se iniciarem agressões cada vez mais frequentes e violentas contra apoiadores do governo. Em um comício realizado na Praça da República, no dia 23 de maio de 1932, chega-se ao paroxismo das hostilidades pré-guerra. Um grupo de estudantes ameaça invadir a sede da Legião Revolucionária, associação originada na Revolução de 30, varguista, e que respondeu à bala. Quatro estudantes morrem na hora: Mario MARTINS de Almeida, Euclides MIRAGAIA, DRÁUSIO Marcondes de Souza e Antonio CAMARGO de Andrade, cujas iniciais formaram o acrônimo MMDC, que nomeou uma organização civil revolucionária atuante na guerra vindoura. Um quinto estudante, Orlando de Oliveira Alvarenga, viria a morrer três meses depois, vítima dos ferimentos sofridos no mesmo ato, após, portanto, a formação do grupo, e este é o motivo pelo qual sua inicial não foi adotada pelo movimento.

Era o sangue que faltava para amalgamar o apoio necessário ao combate armado. Outras unidades da federação gradualmente vão oferecendo adesão à causa revolucionária, especialmente Mato Grosso, Rio Grande do Sul e Minas Gerais – ambos, ironicamente, apoiadores do golpe de 30. Em 09 de julho, a batalha eclode. As tropas paulistas, formadas pelos batalhões do exército local e pela Força Pública (a PM de então), se encaminham para o teatro de operações, tomando, a princípio, o Túnel da Mantiqueira, um escoadouro ferroviário na divisa entre São Paulo e Minas, exatamente na cidade de Passa Quatro, reproduzido na maquete abaixo:


O objetivo era bloquear o acesso de tropas governistas do Rio de Janeiro e aguardar as tropas mineiras para se encaminharem juntas contra a sede do governo. O mesmo foi feito no Vale do Ribeira, na cidade de Itararé, desta vez esperando recepcionar as tropas gaúchas.

Ledo engano, triste ilusão. Os paulistas foram ingênuos? Os mineiros e gaúchos foram traidores? Difícil dizer, sem cair no nível da conversa de boteco. O fato é que São Paulo perdeu a guerra já aí, nem bem havia começado. Sem apoio militar de outros estados e com o bloqueio marítimo imposto na região de Santos, os paulistas se defenderam o tempo todo. Cunha, São José do Barreiro, Silveiras, Chavantes, Buri, Conchal, Itararé, Campina do Monte Alegre, Cruzeiro, Aparecida e tantas outras contam as histórias de seus muros crivados de balas. O Túnel da Mantiqueira, aquele da primeira ação de guerra, foi palco de combates sangrentos, onde foi pontuada uma presença que viria a se tornar ilustre: o então jovem Juscelino Kubitscheck, médico que viria a se tornar um dos mais conhecidos presidentes da terra brasilis.


Como em toda guerra, sua atuação se deu em condições precárias para atender muita gente ferida gravemente. Há em Passa Quatro uma reverência muito grande à sua figura, porque trabalhou empenhadamente com os poucos recursos disponíveis na Casa de Caridade, onde fazia cirurgias de emergência acompanhado pelas poucas freiras que se dispunham a auxiliá-lo. O lugar existe até hoje, e é parte do patrimônio histórico municipal.


Para resumir a história, em 03 de outubro do mesmo ano tudo já havia acabado. São Paulo até hoje canta vitória nessa guerra, pelo fato de que a Constituição que lhe deu causa (pelo menos como motivação primaz) tenha sido efetivamente realizada dois anos depois. Perdeu, mas levou; essa é a tese. Mas é estranho. Vargas já havia convocado a Constituinte antes da revolução eclodir, e, apesar do controle rigoroso das funções do interventor, o fato é que as cordas vinham sendo afrouxadas. Por que a guerra foi necessária? Ou, melhor ainda, a guerra era realmente necessária?

Esse é um pensamento complexo, como todo fato histórico. A guerra, no final das contas, é uma das derivações políticas possíveis, como são as negociações, os embargos, os acordos, as decisões multilaterais e muitas outras. A guerra é, como dizia Carl von Clausewitz, a continuação da política por outros meios.

Clausewitz foi um militar prussiano da época das guerras napoleônicas, e fez um estudo inédito sobre o desenvolvimento das belicosidades, uma autêntica Filosofia da Guerra. Para ele, há dois elementos a serem considerados na formação de um embate, sendo um que se pode verificar em todas as guerras e outro que guarda as especificidades de cada uma. No que diz respeito às semelhanças, todas as guerras são como um duelo com mania de grandeza, e tem uma estrutura irritantemente simples: um meio – o combate – e uma finalidade, que é tornar o inimigo incapaz de reação. Em termos teóricos, essa simplicidade pode levar a crer que uma guerra absoluta faria com que as duas partes dispendessem todos os seus esforços unicamente com o objetivo de aniquilar o lado oposto, mas esta situação é impossível, principalmente pelo fato de que a guerra nunca deixa de ser um ato político. Há uma guerra real, em que as contingências impedem a guerra absoluta, e que lhe consigna a parte variável, que torna cada uma delas única. É o caso das clássicas tempestades de neve que assolaram as tropas francesas (e mais tarde as alemãs) nas invasões em terreno russo. Diante de um inimigo aparentemente invencível, o famoso General Inverno entrou em ação protegendo uma defesa bem mais frágil. Se pudesse prever, Napoleão certamente não cairia na esparrela de invadir a Rússia durante os rigores invernais. Dessa forma, aquém da guerra absoluta, temos a guerra real, que não perde seu caráter de duelo, mas que encontra limites em seu desenrolar. A guerra absoluta é apenas um referencial, como os tipos ideais de Max Weber, que não existem, mas que servem para balizar seus estudos.

Eis que a guerra, portanto, não tem uma lógica unificada, porque se depara com o imprevisível, inclusive com fenômenos não geográficos, como no exemplo das invasões à Rússia, mas a componentes humanos, como a Política. Clauzewitz, no entanto, entende que a guerra possui uma gramática, ou seja, regras que prescrevem o que ela é, mas que esta mesma gramática não circunscreve seu significado, que varia de conflito a conflito. Desta forma, toda a guerra possui certas características comuns. Uma espécie de guerra pura, existente unicamente para proposições analíticas, possui três elementos:

  1. A violência, a hostilidade e a animosidade. Termos como “Guerra Fria” são meramente metafóricos, já que não há uma guerra, na acepção do termo, sem a utilização de violência. Uma guerra tem como caráter a ação que buscar causar prejuízo físico, um ódio e uma vontade de combater;
  2. Um jogo de probabilidades. Como já dito, não há guerra sem elementos imprevisíveis e sem contingências que mudem o seu curso. Diante disso, há espaço para a introdução das táticas bélicas. Aqui, há uma variabilidade, mas as táticas adotadas em decorrência das probabilidades estão sempre presentes na guerra;
  3.  A subordinação à Política, já que uma guerra não nasce do nada e é dada ao prosseguimento ou ao encerramento de acordo com interesses interestatais.
Tudo o mais que costura esses três itens estruturais é o que torna cada guerra um evento único. E é no sentido do terceiro item que temos uma resposta (ou nova questão) à Revolução de 32. A guerra é uma decisão política. A política poderia direcionar os eventos de 32 para um sentido de espera, para verificar se as promessas varguistas seriam cumpridas; poderia ter a consolidação dos apoios dos outros estados, caso houvesse renitência do governo provisório; poderia até mesmo tirar da gaveta um suposto caráter separatista, como chegou a ser aventado pelo governo federal, com o fim de insuflar a revolta do restante do país. Mas a opção política foi a guerra. Há mais três considerações de Clausewitz para emoldurar melhor o painel:

- A guerra nunca é um ato isolado: ninguém começa a lutar do nada. É sempre possível vislumbrar um horizonte de onde surgirão hostilidades. No caso em questão, havia uma série de ocorrências das quais se podiam extrair previsões de desacertos – a perda de poder por parte dos paulistas, a tomada violenta da presidência na Revolução de 30, a crescente onda de protestos e outros acontecimentos;

- A guerra não consiste de um único golpe brusco: não existe guerra em que fogo divino cai do céu e extermina de uma só vez um adversário. A guerra, mesmo desconsiderando seus antecedentes, se faz em etapas, que podem ser mais ou menos violentas. No começo da Revolução de 1932, temos um mero deslocamento e a tomada de um ponto estratégico; depois, há a mudança de lado dos supostos aliados de São Paulo, que, em seguida, passa a se concentrar em sua própria defesa, e assim sucessivamente. Nenhuma guerra é tomada em sua totalidade de uma só vez;

- Na guerra, o resultado nunca é definitivo: se há o pré, há o pós. Prova disso é que a própria Revolução de 32 pode ser considerada um desdobramento da Revolução de 30, e, como ela, tantas outras guerras. O vencido raramente encontra condições favoráveis para admitir uma derrota em definitivo. Neste caso, um novo conflito armado pode ser deflagrado (a Segunda Guerra, pensa-se, foi a continuação de uma Primeira Guerra mal resolvida), ou caminhar por outros meios da Política, como eu já disse logo atrás.

Dessa forma, não há como não chamar a Revolução de 32 de guerra civil, já que ela atende todos os requisitos necessários para tanto. Os motivos que levaram à Revolução de 32 são difíceis de se concluir, mas tenho a impressão geral de que foi uma tentativa de contragolpe, em que os verdadeiros interessados estavam a milhas e milhas da frente de batalha, como sói acontecer nesses casos, mobilizando vontades em ambas as frentes, que, estas sim, puseram a cabeça a prêmio. A pauta constitucionalista era mais um motivador do que propriamente uma intenção – caso se regressasse à condição anterior, tudo bem, às favas com a constituição. E, em algum momento, a galera que oferecia apoio a São Paulo vislumbrou maior vantagem em se mobilizar rumo ao poder eles mesmos, virando de lado e ensacando os valorosos bandeirantes em um beco sem saída. Mas eu não sou historiador, essa é só uma impressão geral que eu tenho.

É muito interessante, observando o orgulho do pessoal de Passa Quatro, como os mineiros são ufanos de sua participação no conflito, assim como os paulistas, mas com sinal trocado. Os mineiros são orgulhosos de sua vitória no campo de batalha, física, conservadora. Já os paulistas são orgulhosos dos seus efeitos mediatos, políticos, revolucionários. Vejam nestes dois vídeos, um mineiro e outro paulista, a diferença de visão que há entre ambos. Observem especialmente a sutileza da matraca, como um lado despreza seu uso e o outro o valoriza.

Só para lembrar: nada disso adiantou, no final das contas. Getúlio Vargas, é verdade, admitiu uma Constituição que foi promulgada em 1934, mas tornou a aplicar um golpe em 1937, onde endureceu muito o regime autoritário, no chamado Estado Novo, mas isso é história para outro momento, porque eu já estou me alongando demais.

Recomendação de leitura:

Clausewitz não é tão popstar quanto Sun Tzu, cuja Arte da Guerra virou, infelizmente, um clássico da autoajuda e do empreendedorismo (ainda falarei sobre essa obra), mas sistematizou uma filosofia da guerra com mais robustez que qualquer outro autor. Segue sua referência.

CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 1979.


* A bandeira da Paraíba tem escrita em si a palavra “nego”, referente à recusa de João Pessoa, então mandante de lá, em aceitar a candidatura de Júlio Prestes à presidência do Brasil. Daí há uma amostra do orgulho paraibano com o fato. Eu, quando menino, achava extremamente curiosa essa bandeira, achando que a escrita não se referia ao verbo negar. Achava que o que estava lá escrito era nêgo, corruptela tão comum da palavra “negro”, ao que meu avô, pérfido, zombava dizendo que se tratava da alta concentração de afrodescendentes o que motivava a homenagem. “Não vê que a bandeira tem um lado preto? Pois então!”, argumentava o sacana. Tem seu cheirinho racista, admito. Mas o velho é de outros tempos, e já está comendo capim pela grama há tempos, não se preocupem.