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quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

A neutralidade como impossibilidade e como objetivo

“Os cientistas agora tem as mãos ensanguentadas; eles agora conhecem o pecado”
Robert Oppenheimer

Olá!

Nesses tempos atrás, acompanhei uma aula de estágio em que o professor Marcos, de História, teve uma conduta esperta e inteligente. O currículo mandava que fossem abordados, naquela altura do campeonato, os regimes totalitários do século XX. O que fez o professor? Ao invés de seguir o rito ordinário dos livros, selecionou três filmes: um com depoimentos dos judeus que viveram o holocausto, outro com a visão alemã e um terceiro com a ótica dos vencedores, em especial os estadunidenses. Após a exibição de cada um deles, um debate sobre questões correlatas. A estratégia foi sábia, porque colocou na mesa três ângulos sobre o problema, e obrigou os alunos a se alinhar a um deles. Mas o toque de Midas foi a instrução de que os alunos deveriam, finda as três projeções, buscar a neutralidade para analisar o fato histórico. Houve um certo colapso inicial, o que é natural. É possível conseguir neutralidade, seja em qual campo do conhecimento for?

Resposta curta e seca: não. É impossível ser neutro como o conhecimento requer. Não há como evitar que nosso aporte cultural e convicções em geral atravessem nossa capacidade de julgar. Podemos usar nossos mecanismos mentais para minimizar este efeito o quanto possível, mas sempre vai ficar um rabicho. Senão vejamos.

Existem muitas coisas que nos causam desconfiança, repulsa, estranheza e até mesmo asco. Basta ver, por exemplo, que na cultura mexicana, há o consumo de gusanos. Gusanos são larvas. Na Sardenha, o queijo mais tradicional é povoado de larvas de moscas, que precisam ser comidas vivas para não produzir toxinas que podem ser fatais. Não me é muito atraente aquela fatia polvilhada de bichos (vejam como eu não sou neutro). Na China, há os já famosos espetinhos de insetos. Tudo isso é nojento para mim, como pode ser considerada nojenta a nossa tão saborosa feijoada, um punhado de grãos acompanhados de uma carne perigosa de um animal que vive em local imundo, boiando na gordura pretejada do mesmo bicho. É nojento, é repulsivo, é esquisito aquilo que EU, EU, EU considero como tal, não o outro. Por isso, ser neutro é colocar de lado nossas próprias convicções. E isso é muito difícil, quando não impossível.

Pois bem. Analisar as origens desses alimentos, porque um determinado povo o consome, porque ainda o faz, tudo isso pode ser resolvido antropologicamente com neutralidade, até o momento em que me vejo diante do minhocão mexicano e não consigo superar o desafio de prová-lo. Esse é o meu limite. Meu asco seria tão grande que não conseguiria suplantar a etapa. Ainda que eu forçasse a barra ao máximo e engolisse o bicho na marra, não teria senso crítico para “apreciar” seu sabor; apenas me concentraria em não vomitar. Se essa etapa é imprescindível para minha análise, é mais honesto que eu me declare incompetente para tanto e deixe a tarefa para pesquisador mais receptivo a pratos pouco ortodoxos (juntar forças é uma hipótese).

Também já pude falar sobre o recente caso da fosfoetanolamina, uma substância que subiu do terreno firme da hipótese promissora que precisa ser testada aos trêmulos altares do elixir milagroso, da panaceia universal, da cura de todos os males. Se você, meu caro leitor, já tem conhecimento do caso ou leu meu texto, há de convir: por mais que um cientista seja desprendido, por mais que pense na humanidade, por mais que seja abnegado, ele sabe que a descoberta de um remédio que cure o câncer é Nobel direto por aclamação, com tudo de fama e dinheiro que meritoriamente traria. Com justiça, no meu entender.

Como dizia Hilton Japiassu, filósofo e antropólogo brasileiro, a ciência tem uma lógica que lhe é imanente, que é produzir uma finalidade prática partindo de um nascedouro teórico. Este último pode ganhar um estatuto de “imaculada conceição da ciência”, mas a partir do momento em que se vislumbra sua interferência no mundo, já se vai essa pureza por água abaixo.

Ora, direis: como pode afirmar que as causas da Ciência não podem ser humanitárias? Não pode um cientista trabalhar despido de interesses? Não pode ser o mesmo movido pela comoção causada por tantos doentes que tem sua vida ceifada por uma tão terrível doença como o câncer?

Responderei: sim, é perfeita e exatamente possível. Mas não é neutro. Defender uma causa sem interesse pessoal é algo louvável, mas isso não torna ninguém isento, apenas generoso – porque nem só de grana o homem viverá, mas de toda motivação que o movimenta. Vamos para o caso da guerra e dos avanços na tecnologia bélica.

Muito rapidamente: a Segunda Guerra Mundial tinha um risco sério de se prolongar indefinidamente se não surgisse um fator de desequilíbrio, e esse fator veio na forma da bomba atômica. Para criá-la, o governo estadunidense juntou as mais proeminentes cabeças ao seu alcance, sob o comando do autor da frase em epígrafe. Em menos de seis anos, nascia o artefato que transformou aproximados 130.000 japoneses em cinzas, que somados aos que restaram envenenados, chegaram perto dos 250.000 sofredores. Sofredores mesmo. Tudo se perdeu: a vida, os amigos, os parentes, as casas, os templos. A destruição das bombas não redundou apenas em morte, portanto.

A fabricação de armas ainda pode ser justificada pela necessidade de caçar ou se defender. Mas é muito difícil admitir neutralidade na fabricação de bombas atômicas. Os cientistas que trabalharam no projeto Manhattan SABIAM o que estavam fazendo, e também sabiam do potencial destrutivo de tal artefato bélico. De uma forma ou de outra, concordavam com seu uso. As justificativas poder ser as mais diversas: ódio ao inimigo, demarcar os EUA como potência mundial predominante, necessidade de incluir um ingrediente que definisse a guerra, e assim contraditoriamente diminuir o número de mortes – nada disso indica neutralidade. Não se discute aqui se os armamentos nucleares eram necessários ou imprescindíveis, mas que se tinha perfeito conhecimento do que se buscava alcançar.

Percebam. Nem sempre a ausência de neutralidade representa vantagem pessoal. É claro que um cientista que tenha trabalhado no projeto Manhattan recebia ótimos proventos, mas o principal motor de suas motivações era ideológico. Basta ver que, encerrada com sucesso sua participação na Segunda Guerra Mundial, o projeto se manteve, desta vez na busca de armas termonucleares, ainda mais poderosas. O inimigo agora era a União Soviética. Nessa altura do campeonato, os russos também já possuíam armamentos nucleares, fazendo nascer a Guerra Fria, nome adotado por conta de uma crescente corrida armamentista acompanhada de discursos ameaçadores de lado a lado. A coisa chegou a tal ponto que deflagrar a guerra representaria a destruição do planeta. Como ser neutro diante disso?

Os interesses, no entanto, nem sempre podem ser identificados facilmente com fatores políticos, financeiros ou renome. Cada pessoa possui em si um complexo conjunto de elementos culturais que influenciam seu pensamento, sem que haja percepção direta. É como se a cabeça da gente fosse um terreno em que nossa vivência, nossas experiências e o mundo que nos rodeia produzissem sulcos, e que a cada vez em que esses modelos históricos se confirmassem pela concordância com nossos pares, mais e mais profundos se tornariam. Nesse contexto, quando falo de pares, não estou pensando em colegas de academia, mas em vizinhos, parentes, a comunidade em que vivemos, os locais que frequentamos, coisas que tornam nossos hábitos muito mais arraigados do que os livros que lemos.

Isso posto, imaginemos em qual historiador confiaríamos no seguinte suposto tema: as Cruzadas. Se ele for cristão, poderá ter sua capacidade de julgamento influenciada por sua fé, relevando motivos torpes e amplificando motivos justos, tornando o evento justificável em qualquer sentido. Se for muçulmano, terá em si a lógica da nação invadida, e sabemos que ninguém gosta de ver sua casa devassada. A relação justiça-torpeza se inverterá. Se o historiador for de outra religião, sempre poder-se-á afirmar que não possui vivência suficiente nos credos envolvidos, diminuindo sua capacidade de contextualização. Se for ateu, pode-se pensar que a sua adversidade não é contra esta ou aquela, mas contra qualquer religião. Se já não compreende a necessidade da existência do fenômeno religioso, como poderá apreciar causas e consequências de uma guerra cujo motor envolve a religião?

Notem, meus caros amigos, que nada disso envolve necessária desonestidade da parte do pesquisador. Trata-se, muitas vezes, de não se conseguir excluir a própria cultura do tema a ser analisado, e isso acaba por contaminar a opinião. É possível ao historiador cristão reconhecer as atrocidades das Cruzadas? Ao muçulmano reconhecer que eles também as cometeram? Ao não-cristão e não-muçulmano que elas não ocorreram porque as religiões envolvidas não são a sua? Ao ateu porque as religiões não são intrinsecamente prejudiciais, e sim o uso que os homens fazem delas? Sim, é possível, mas é sempre mais difícil respirar fundo e dizer contra suas convicções pessoais.

Cultura, Ciências, História... Dei alguns exemplos simples para facilitar a compreensão, mas o fato é que, dependendo de nossa área de atuação, esse limite pode ser transposto da maneira errada, misturando conhecimento técnico com posição pessoal, o que pode ser perigoso.

Juízes se veem diante de crimes escabrosos. Psicólogos escutam histórias de arrepiar cabelos de carecas. Médicos atendem vítimas e agressores, crianças de 5 anos e seus estupradores, idosos feridos e seus torturadores. Qual é o ponto em que o muro de nossas convicções é saltado e já não temos condições de ser neutros? Como podemos encarar com a devida neutralidade costumes hediondos para a nossa cultura, como os enterros de crianças vivas que nascem com algum “defeito”, como o albinismo, encarados com naturalidade em outros lugares? Nas questões que envolvem a vida e a sua integridade, é difícil demais não tomar uma posição, ainda que seu trabalho assim o exija. Por isso, entendo que é sinal de maturidade e honestidade quando alguém simplesmente admite ser incapaz de ir além, e deixar o serviço para quem consiga fazê-lo, mesma que seja doloroso assumir a própria fraqueza.

Só que não é fraqueza; é humano ter limites. O difícil é reconhecer o exato momento em que damos de frente com ele. Nossos limites ficam como que guardados em uma caixinha, que só abrimos e conhecemos seu conteúdo quando defrontados com a situação que os exigem. Podem ser balizados pela riqueza, pela cultura e mesmo pela indisposição, mas o certo é que podemos teorizar por dias e dias – será só hipótese. Conheceremos nosso verdadeiro percentual de neutralidade apenas quando colocados em frente ao desafio da isenção.


Portanto, pessoal, a principal sugestão que eu posso dar é detectar a barreira que divide nossa capacidade de fazer julgamentos isentos, sempre procurando arcabouço teórico o mais vasto que conseguirmos. Entendo que devemos atuar no limite do possível, mas tentando o impossível: se não conseguimos ser neutros, precisamos tentar sê-lo, ainda que saibamos que não chegaremos a tal objetivo.

Recomendações várias:

Vamos aos conteúdos sugeridos para uma boa aula como fez o prof. Marcos. O primeiro filme é um documentário contendo vários depoimentos sobre o holocausto. Está no acervo do Centro de Cultura Judaica. Impossível não se emocionar.

BAROUCH, Paulo; PINKUSS, Anita. Shoá - Mensagens para um futuro mais tolerante. Filme. Colorido. Brasil, 2005. 40 min.

Não consegui encontrar o segundo filme exibido pelo professor. Mas, como é o caso de exercitar a capacidade de ser neutro, recomendo um dos maiores exemplares de propaganda nazista, um filme que até hoje é banido na Alemanha.

RIEFENSTAHL, Leni. O triunfo da vontade. Filme. P&B. Alemanha: Univesum, 1935. 110 min.

Por fim, uma visão dos vencedores, desta vez sob prisma artístico. É um belo filme, baseado no livro homônimo, e que eu acho um pouquinho subestimado. Vale a pena dar uma verificada.

PERCIVAL, Brian. A menina que roubava livros. Filme. Colorido. EUA: 20th Century Fox, 2013. 131 min.

Por fim, o livro do professor Hilton Japiassu, falecido há pouco tempo, que nos adverte sobre os riscos de uma veneração da ciência em níveis acima do que ela pode ter como escopo.


JAPIAUSSU, Hilton. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

Agradeço à Renata por deixar usar a foto da caixinha de sua isenção diante do sedutor tesouro emprestado do site <http://tx.english-ch.com/teacher/len/level-a/the-hidden-treasure/>.

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