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sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Nulla dies sine linea – sobre missões cumpridas e a dúvida de sua validade

(Um ano inteiro sem deixar um único dia sem escrita. É bom? Não sei. Parece que sim)

Olá!

Nenhum dia sem traçar ao menos uma linha. Esse é o significado aproximado do título deste texto, escrito em latim, e, antes de qualquer outra coisa, foi uma filosofia de trabalho que adotei para o ano que ora finda. Quando este insólito período começou, ainda que sob as restrições da pandemia (ou até mesmo por elas), fiz a mim mesmo uma daquelas promessas de ano novo que só se fazem ubriachi. Resolvi, ainda após da soneca da tarde, e antes de ir à casa do deprimido sogrão, que eu, por todos os dias do ano, preencheria algum tempo com a redação de textos para este blog, ainda que fosse um mero paragrafozinho.


Deu certo. Parecia um objetivo para se esquecer em três dias, mas consegui chegar aos 365. Este foi o ano em que mais publiquei postagens, e olha que a média de laudas foi bastante alta, fazendo-me descumprir outra promessa – a de ser menos prolixo. Consegui manter uma média de quatro textos por mês, o que representa, em um ano comercial, uma postagem por semana. Nada mal.

É bem verdade que eu, já quase um senhorzinho, não conjumino rapidamente as possibilidades da tecnologia, e demorou para sacar que podia digitar meus rascunhos diretamente no celular, o que me poupou muito tempo e me deu a flexibilidade de não precisar de um caderno. Tira muito do romantismo, é verdade. Quando eu sentava na cadeira do parque da Água Branca, as pessoas olhavam com um misto de estranheza e admiração, a ponto de alguns perguntarem o que eu fazia todos os sábados de manhã naquele artefato. Isso foi bom para angariar leitores, porque eu aproveitava para propagandear a existência deste humilde espaço, contando vantagens e ocultando pontos fracos, como sói se fazer. Hoje, com um celular na mão, as mesmas pessoas pensariam se tratar de um tiozão do Whatsapp espalhando fake news pelo ciberespaço, embora eu esteja fazendo a mesmíssima coisa que fazia no meu velho alfarrábio universitário. Como o prejulgamento funciona de um jeito esquisito, não?

Mas vou confessar que é uma técnica muito trabalhosa. É um compromisso simples de cumprir quando as ideias povoam a cabeça e quando há tempo disponível. Há momentos em que você se sente travado, sem nenhuma criatividade ou com carência de informações básicas para dar um mínimo de qualidade à sua escrita. Nesses dias, procurei me ater mais às introduções e à contação de histórias, apenas para não deixar os posts parados. Nos dias de escassez temporal é que a coisa realmente entornava. São aqueles dias em que alguma coisa faz engripar o fluxo dos acontecimentos, e o que você imaginava ser o momento em que desenvolveria suas escritas simplesmente é comido pelos desaventos. Eu, por exemplo, tenho um ótimo momento diário para escrever alguma coisa, que é após o final do meu expediente. Todos os dias faço backup de uns banquinhos de dados bem primitivos, mas que, como ainda são funcionais, precisam ser mantidos com alguma segurança. O processo de cópia demora ao sabor da velocidade da rede, mas, em média, leva coisa de 45 minutos a uma hora. Quando algo dava errado, entretanto, esse tempo simplesmente se perdia. Se eu tivesse que voltar de São Paulo a Taubaté, por exemplo, lá se ia meu tempinho. Nesses dias, a solução para manter a promessa era o exíguo tempo de se esquentar uma água para o sagrado café noturno ou o momento escatológico diário.

Ainda tem mais um fator: por mais que haja abundância de assuntos a serem tratados, tem sempre um momento disposicional que te aproxima de zero vontade. Por mais que você goste de bilhar, há um dia em que você simplesmente não quer jogar bilhar, pelas mais diferentes razões: uma dorzinha de estômago, a falta de um bom adversário, puro tédio pela repetição infinda, sei lá. Por que seria diferente com as palavras? Tem aqueles dias em que você quer ver sua caneta bem longe, e quem não fez um estranho comprometimento como o meu, simplesmente não faz nada. Mas aí vem a tese geral da academia (a de ginástica) - o primeiro dia que você não vai é antecedido pelo último dia que você vai. Estando as coisas nesse ponto, fiz minhas forcinhas, peguei meu taco a contragosto e fui jogar meu bilhar filosófico, mesmo que fosse uma fichinha só. Nulla dies sine linea.

Esta frase é da lavra de Plínio, o Velho, assim conhecido para diferenciá-lo de seu também célebre sobrinho: Plínio, o Moço, ou o Jovem. Foi um escritor romano do primeiro século da era comum (o popular depois de Cristo), que se dedicou a fazer anotações em todas as viagens que fazia, e que não foram poucas, dada sua condição de nobre e procurador romano em vários pontos do mundo. Somente uma obra chegou até os nossos tempos, mas trata-se da mais antiga tentativa de se escrever uma enciclopédia, que tem o nome de História Natural. Como se tratava de um escritor que falava sobre coisas do mundo, é natural que apreciasse pintores que seguissem uma linha mimética, traduzindo a realidade para o mais próximo possível do que ela é, ideal para ilustrar seus livros. Reconhecia em Apeles, pintor da cidade de Cós, um exemplo ideal de reprodução da natureza. É a ele que Plínio recomenda sua fórmula de produtividade, para que não deixe um dia sequer de produzir uma parte de sua obra, nem que fosse uma modestíssima linhazinha da espessura de um fio de cabelo. Como se pode ver, a coisa pode ser transposta para qualquer outro ofício, como a redação de um blog; este aqui, no caso.

É uma máxima para a perseverança, não há dúvida disso. É aquele misto que temos entre uma insistência prudente e uma aporrinhação para si mesmo, como se nossa desistência representasse um imenso fracasso. Nem tanto a deus, nem tanto ao diabo. Se eu furasse um ou dois dias, a diferença seria imperceptível. Aliás, eu não me lembro de ter esquecido nenhum dia, mas pode até ser que tenha acontecido, vai saber, já que não fiquei anotando no calendário. Em resumo, pouco mudaria a cotação do dólar. Mas há sempre uma predisposição psicológica em achar que a perda da batalha é a perda da guerra, e como o projeto em questão não representa ferimentos, nem prejuízos financeiros, automaticamente o botãozinho do foda-se restaria apertado. Por outro lado, foi uma prova de capacidade, sem precisar recorrer àqueles inúteis discursos motivacionais do estilo “você quer, você faz”. Nada disso, isso é papo de autoajuda que não ajuda, a não ser a tirar a dimensão da sua realidade. O fato é que você pode muito menos do que você quer, e esse tipo de fraseologia só se aplica a costados de computador, que ficarão lá colados até serem jogados fora. Há mais sabedoria em apara-barros de caminhões. Mas sim, uma certa disciplina é necessária na vida, senão simplesmente não saímos do lugar. E, embora eu devesse mapear melhor o cronograma do dia-a-dia, como o limite ficou baixo, tornou-se factível.

Talvez devêssemos levar esse tipo de lógica para toda a vida, mas se eu disser isso, estarei estabelecendo as mesmas regras que eu tanto odeio. É parecido com os setores de planejamento das empresas: temos um plano de metas que deverá ser seguido à risca. E se algo der errado? Temos um plano de contingências. E se o que der errado for a ordem de um majorengo? Pois é, lá vão suas metas por água abaixo, virando mera poesia de má qualidade. Cada empresa é como cada pessoa. As técnicas de gestão vão para o vinagre assim que damos de frente com o imponderável. Isso inclui mandachuvas e algumas cepas de vírus.

(Uma confissão que quebrará um pouco da linearidade deste texto. Sou um cara da velha guarda, que não tem facilidade em acreditar que técnicas de gestão que te tomam mais tempo do que o objeto do seu trabalho sejam de fato eficazes. Pode ser apenas uma questão de mau humor, mas sempre vejo planejadores como pessoas que vivem nas nuvens, com um linguajar muito peculiar e que tem que refazer tantas vezes seus gráficos e cronogramas que o que parecia ter uma forma de pirâmide termina com o pouco lisonjeiro aspecto de um casebre. Mas, repito, isso tudo é devido à experiência pessoal de quem assiste as maravilhas de uma palestra sobre a implantação de uma nova linha de atendimento da companhia de saneamento, com suas gestões de risco e prazos de entrega, para no fim ter que comparecer presencialmente para fazer uma mera transferência de titularidade. Desculpem os profissionais sérios da área, mas ainda não os conheci).

É por isso que é sempre bom ter uma noção de limite próxima da realidade. Eu poderia me empolgar com o resultado e aumentar a meta, transformando a frase em nulla dies sine pagina, o que certamente seria impossível de realizar. E o que aconteceria? A partir do primeiro dia em que eu não escrevesse uma página completa, ficaria frustrado, porém me libertaria da obrigação. Percebem como há dois lados na questão? Só que o resultado para o blog seria ruim. É isso que eu quero dizer.

No fim, é difícil discernir se, por trás disso tudo, temos uma questão de validade ou de vaidade. Afinal de contas, se eu resolvi incluir o presente texto, e por mais que eu carregue dúvidas sobre se valeu a pena ou não, o fato é que há uma ponta nem tão pequena de orgulho ao conseguir cumprir a meta. Tive um rudimento de planejamento que funcionou, contradizendo um monte de coisa que eu disse até agora, e que eu poderia simplesmente me calar, mas resolvi arrotá-lo aos quatro ventos, na véspera do manjar branco. Percebem como há um paradoxo, uma ambivalência, uma contradição, um antagonismo, uma ambiguidade, um contrassenso, uma dicotomia, uma incongruência, uma oposição, uma via de mão dupla, uma anfibologia? Isso tudo só faz chegar a uma síntese: sou humano, que carrega as coisas de valores e, no final das contas, gosta que esses valores sejam achados bons, valiosos e conformes por seus pares. No caso, leitores.

Por tudo isso, quero colocar a coisa toda no nível da experiência. Foi bom, funcionou como esperado e pode ser que eu a repita em 2022. Pode ser. Mas quero a deixar registrada como caso de sucesso, e não como obrigação a ser seguida peremptoriamente. É chato demais e não melhora o nível daquilo que escrevo. A não ser que eu esteja realmente inspirado. Bons ventos a todos neste ano que entra! Tá na hora deles chegarem.

Recomendação de leitura:

Já que o mencionei, vai aí a indicação da obra que chegou até nós:

PLINIO (o Velho). História Natural. E-book. São Paulo: Kindle, 2019.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

O café filosófico do quotidiano – A maiêutica socrática como método de aquisição do conhecimento

(A maiêutica é um dos sistemas mais antigos de conhecimento, que embute a admissão da ignorância e o conhecimento de si mesmo)

Ora, a minha arte de obstetra assemelha-se em tudo à das parteiras, da qual difere por ser exercida sobre os homens, e não sobre as mulheres, e por cuidar das almas parturientes, e não dos corpos. E a sua maior qualidade é que por meio dela consigo discernir se a alma de um jovem dá à luz um fantasma e uma mentira ou algo de vital e verdadeiro. E tendo isso em comum com as parteiras, também sou estéril... de sabedoria. É verdadeiro o que muitos censuram em mim, de questionar os outros, sem nunca me pronunciar sobre nada, por ser ignorante.

Sócrates, no Teeteto

Olá!

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Eu sou uma das pessoas mais fáceis do mundo de se presentear. Não ligo para roupas caras, acho que até mesmo a recorrente moda atual de calças rasgadas já tinha sido lançada por mim nos idos da década de 80. Explico: calças de brim não são exatamente um distintivo do conforto, mas da durabilidade. O momento em que vai se chegar no primeiro coincide com o término da segunda, e aí vai daquilo que você dá mais valor. A diferença fundamental é que eu não comprava a roupa já rasgada na loja, e o pessoal me olhava meio torto, um misto de mendicância com sujeira fora do lugar. Quando o arregaço estava meio grande, comprava um patch de alguma banda na Woodstock* e pediu para minha mãe pregar. Ela tinha um bom tanto de desgosto com isso. Gostaria de um filho mais elegante, que tivesse um bom tanto de vaidade. Coisas que não podemos controlar, nem eu, nem a defunta genitora.

Voltando ao assunto, qualquer paixão me diverte, e a galera vai direto nos livros quando quer me fazer um regalo. Modéstia à parte, a primeira coisa que se vê quando se abre a porta do apê é uma parede de livros, que já mencionei neste espaço com altivez. Só que os filhos querem variar um pouco, e às vezes me agradam com itens gastronômicos, como uma cerveja artesanal, um bolo diet ou algum item de coleção. De quê? Ora, de café. Desta vez, ganhei um coador Clever, que parece completamente comum, mas é cheio de mumunhas.


Embora tenha uma aparência completamente normal, é um dripper que reúne características de infusão e percolação. Em miúdos trocados, ele retém o café antes de passá-lo, usando uma válvula que é acionada através da pressão de um anel de acrílico.


Isso faz com que seja solucionado dois problemas. Métodos de infusão geralmente fazem boa extração dos óleos essenciais do grão moído, mas costumam deixar muitos resíduos. Já processos de percolação filtram bem os resíduos, mas a coagem é rápida demais, desperdiçando boa parte da extração.


Como o café fica lá quietinho, junta-se o melhor dos mundos. O abafamento é rápido, o que faz com que a temperatura não se perca muito.


Após o tempo, basta pousar o dripper em uma xícara ou copo. Isso fará com que o anel levante a válvula, liberando o café para o recipiente.



Nome do utensílio: gotejador temporizado (Clever)

Tipo de técnica: mista (infusão e percolação por gravidade)

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Médio-grosso

Dinâmica: o pó é colocado em um filtro, como normalmente ocorre com gotejadores, mas a água fica retida pelo tempo necessário à extração dos óleos essenciais, sendo liberada no momento em que o gotejador é colocado em um recipiente que pressione o anel de retenção, liberando a válvula de saída.

Resíduos: Nenhum

Temperatura de saída: Média-alta

Nível de ritual: Médio

O primeiro café que passei ficou um autêntico petróleo, daqueles em que é difícil distinguir qualidade. Apontei o nariz para o outro lado, e o segundo café tinha a alegre coloração de um chá mate. Foi no terceiro que as coisas começaram a ir para o lugar. Xinguei um pouco, mais pelo costume do que por uma real frustração com o desacerto, e fiquei me fazendo perguntas, como se eu fosse debatedor de mim mesmo, para espremer a verdade, como faria Sócrates.

Não, nada disso. Sócrates não faria isso consigo mesmo. Ele dizia saber que nada sabia, então não usaria um método tão tosco. Ele criou, isso sim, uma sistemática simples para alcançar o conhecimento através da autodescoberta, a que deu o nome de maiêutica, uma das primeiras lições sobre Teoria do Conhecimento dos cursos de Filosofia. Bom... o ano está quase acabando, vamos a ela.

Sabemos que Sócrates representa a primeira grande virada no pensamento grego clássico. É bem verdade que os sofistas, como Górgias de Leontino e Protágoras de Abdera já tinham saído das especulações cosmológicas e entrado no pantanoso mundo do antropocentrismo, mas eles constituíram uma corrente pouco uniforme, e que em certo momento se preocupavam mais com a retórica e com a vitória nos debates do que propriamente no desenvolvimento lógico dos pensamentos. Falo melhor sobre o tema neste texto. Sócrates não é só alguém que volta seu olhar para a questão ética, mas é também um defensor do desprendimento filosófico com relação a compensações monetárias.

Conta-se que o oráculo de Delphos profetizou que Sócrates era o homem mais sábio de todo o mundo. Isso o levou a uma reflexão: "Mas como? Justo eu que assumo minha ignorância com relação a tudo...". Mas vamos pensar juntos. Sabedoria e conhecimento não são sinônimos. Conhecimento é a propriedade de saber o que as coisas são, como funcionam, como surgiram e assim por diante. Disso, nós sempre podemos alegar ignorância, bastando que não as saibamos. Já a sabedoria é a sagacidade de se usar as coisas que se sabem, e tem a ver com a estrutura do conhecimento: momento de usá-lo, situação correta, conveniência e assim sucessivamente. Dessa forma, sabedoria tem mais a ver com intuição do que com cognição. Mesmo que se tenha pouco conhecimento, é possível agir com sabedoria. Inclusive, Sócrates descobriu a forma mais sábia de lidar com o conhecimento, porque é a alegada ignorância que faz com que as portas do aprendizado constante sejam abertas e retira a presunção de quem julga saber.

O primeiro passo é conhecer a si mesmo. O autoconhecimento é sempre uma forma de conquista pessoal, uma chegada a um amadurecimento interior. Mas esse autoconhecimento não vale somente para si mesmo. Olhar para os olhos da alma é ver a parte divina daquele com quem se interage, e também nele residem saberes que podem ser deslindados.

Sócrates cria, então, um método de investigação filosófica de caráter dialético. Para quem não sabe, a dialética funciona do seguinte modo: quando estamos redigindo um ensaio qualquer, nós geralmente seguimos linearmente com o desenvolvimento, partindo de um questionamento até chegar a uma conclusão. Quando o método é dialético, ele não segue por uma linha reta, mas por um ziguezague onde as ideias vão se contrapondo umas às outras. Normalmente é difícil de estabelecer esse movimento pendular no âmago da nossa pequena cabeçorra, porque tenderemos à linha reta, mas ela carrega consigo um defeito: ao não ter oposição, o pensamento segue pelo seu próprio viés. Para obter um vagar entre as ideias, é preciso que elas discutam entre si, e a maneira mais fácil para que isso aconteça é através do diálogo, onde a linha de tendência natural em linha reta é transformada na alternância de polos e o trânsito se estabelece. Assim, a estrutura dialética é de declaração e refutação, uma seguida da outra, até a chegada ao consenso, e, por tabela, ao conhecimento.

É de se supor que essa mera característica não era exatamente uma novidade, sendo que Zenon de Eleia ficou célebre pelo uso da dialética. O que Sócrates trouxe tem a ver com sua alegada ignorância e com o conhecimento preexistente no seu interlocutor.

Sócrates acreditava, como mais tarde seria reforçado pelo Racionalismo, que o conhecimento era inerente ao ser humano, necessitando apenas despertá-lo. É célebre um diálogo em que Sócrates consegue extrair de um escravo um difícil teorema geométrico, só na base das perguntas. Com isso, Sócrates não se nomeia como professor, sábio, mestre ou coisa que o valha, mas como parteiro, um parteiro de ideias. Segundo sua elegante tese, a alma de um ser humano estava prenhe de conhecimento, que somente não vinha à luz por conta das preconcepções e opiniões acríticas. Isso é muito difícil de reconhecer, porque não nos vemos de fora, e retirar essa verdade de nosso interior é tão difícil quanto uma mulher realizar o próprio parto. A função de Sócrates seria o de reconhecer a ideia existente em seu interlocutor e trazê-la para fora, dar-lhe a luz. Segundo ele, a alegada ignorância era necessária para não contaminar o processo. Na Grécia antiga, a função de parteira era realizada pelas anciãs, já despida das paixões da maternidade. Idem com o parteiro das ideias, que não pode fazer senão os questionamentos certos para exercer seu mister. Um parteiro que coloque seu próprio conhecimento no processo poderá torná-lo impuro.

Maiêutica era o nome que Sócrates deu a essa técnica. Em grego, maieuo significa parto, e maieutike é o ofício de trazer os bebês à luz, coisa na qual sua mãe Fenarete era versada. O processo consiste em formular perguntas simples ao redor de um tema e consequente construção de conhecimento a partir das próprias ideias do contribuinte. Essas perguntas são chamadas de ironia pelos manuais de filosofia, mas é preciso esclarecer que não faz sentido achar que Sócrates estava gozando da cara de seu "parturiente". A raiz das palavras eirein (perguntar) e eironea (dissimulação) foram traduzidas para o latim da mesma forma, o que causa a confusão. A ironia socrática, portanto, corresponde às perguntas do diálogo, feitas, no entanto, sob encomenda para extrair coisas que não estão aparentes na ideia inicial. O fluxo maiêutico então dá seu segundo passo, o de fazer reconhecer que a ideia que se tinha anteriormente não era precisa, mas cuja função do parteiro não foi agregar nenhum conhecimento novo, apenas aclarar o já existente. É como se a ironia fosse a contração, e a maiêutica fosse mais um tanto que o bebê do saber desse rumo ao mundo.

É importante notar que uma parte do método consiste em fazer refutações. Como visto, a refutação faz parte do mecanismo dialético e, grosso modo, faz perceber que existe um lado de lá com relação a nossas crenças. Refutar, portanto, não tem aquele sentido bobo dos enfrentamentos hodiernos da internet, onde há uma torcida que está mais preocupada com o volume da voz do que com a boa construção do argumento. Refutação, quando feita seriamente, aponta outra direção para o pensamento em fluxo, que pode ou não conter erros.

Era isto que eu queria trazer para vocês. A maiêutica tem uma estrutura simples e que engana por parecer “comer pelas beiradas”, mas que solidificou toda uma esfera de pensamento que atravessou os tempos, com aperfeiçoamentos e poucas (porém sólidas) contestações, como as de Nietzsche, que sem dúvida vou tratar em breve. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

O principal texto sobre a maiêutica está contido no Teeteto, e a história do escravo está no Mênon. Como já recomendei ambos, vou listar para vocês a obra platônica onde Sócrates menciona o autoconhecimento:

PLATÃO. Primeiro Alcibíades. São Paulo: Penguin, 2022.

* Woodstock é uma loja de discos que ainda hoje existe (com um período de fechamento), e que fica na Rua Dr. Falcão. Ficou famosa na década de 80 por trazer do exterior fitas de vídeo que eram colocadas em um aparelho cassette a pleno pino, com umas três caixas acústicas, fazendo a alegria do pessoal que curtia um metal, mas não tinha muito onde curtir.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (34 – Axiologia)

(Quando falamos de Ética ou Estética, necessariamente tocamos na atribuição de valores. Mas o que eles são? É o campo de estudo da Axiologia)

Olá!

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Bem na semana que antecede o Natal, é costume que demos uma puxadinha no freio. Não exatamente no comércio, que mesmo nestes tempos bicudos redobra seu trabalho, mas nas outras áreas mesmo, incluindo na informática, onde ganho meu pão. Sim, meus queridos. Professores precisam considerar outras opções aos seus vencimentos decepcionantes. Mas é um bom momento de largueza nas agendas, e que aproveito para deslanchar com um monte de validações que preciso fazer e revisões nos documentos em que atuo, já que as demandas caem quase a zero.

Uma dessas revisões levou a uma reunião, e em tempos de home office, os companheiros de trabalho ficam íntimos de todo mundo na casa, que passam para lá e para cá, às vezes indiscretamente. Nesta semana, as coisas estão agitadas para o meu lado, porque uma série de desacertos no eixo Curitiba-São Paulo-Taubaté fez com que tudo se atrasasse. Isso foi notado pelos colegas, a quem pedi interrupções várias vezes para atender telefones e enviar mensagens. Perguntado sobre o fenômeno, contei dos perrengues e o Carlão tacou, filosófico e lapidar: “a alegria de reunir a família é proporcional à trabalheira de reunir a família”. Foi parar no meu status do Skype.

Pois então temos aí, sintetizada nessa frase, um dilema. Ao que damos mais importância, à festa ou à tranquilidade? À união ou à economia? O que nos é mais caro? Ao que damos mais valor? Aliás, o que é um valor? Esse é o campo de estudo da Axiologia.

Em primeiro lugar, precisamos esclarecer que este é um ramo da Filosofia subsidiário à Ética, à Estética, e, de certa forma, à Epistemologia, porque o valor não é uma coisa solta, e precisa ser atribuído a algum objeto, seja do bom, do belo ou do verdadeiro. Como essas são atribuições que damos ao meio em que vivemos, é preciso tornar claro o que significa cada um desses valores e, mais ainda, qual o propósito de se existir um valor. É um termo que vem do grego axios, que significa algo que "possui valor", e que vem sendo utilizado desde os finais do século XIX para tentar compreender a natureza dos valores, entendidos como julgamento das qualidades das coisas.

Pensamos em valores e já temos mentalmente à nossa frente um maço de dinheiro. Evidentemente, para a Filosofia, valor não só não é apenas isso, como também nem mesmo está nas primeiras posições de uma ordem. Valor é algo que podemos atribuir a um objeto de acordo com a necessidade ou com a vontade que temos dele. Pense no ar que você respira, e você atribui algum valor a ele pela sua necessidade; pense que este ar está perfumado, e você dá valor a ele por conta de uma vontade sua, de sentir um cheiro agradável.

Pensemos inicialmente que a Axiologia está apontada eminentemente para a humanidade. Isso acontece porque o ser humano é o único em condições de atribuir valores. É possível pensar que animais tenham capacidade nervosa para distinguir coisas boas para si, mas aqui caímos na capacidade reflexiva. O Homem-Cueca, por exemplo, sabe muito bem que a carne é uma coisa gostosa, mas isso não está inserido em sua capacidade de julgamento. Faz parte de seu instinto definir que coisas saborosas são também de valor nutritivo, mas a prova de que isso não é conhecimento é o fato de que há coisas gostosas que também lhe fazem mal. O animal não diz que isso é bom, aquilo é belo e esse outro é precioso, mas nós sim. Por isso nós dizemos que o ser humano é o único que é valorativo, ou seja, tem a capacidade de atribuir valor.

Um dos atributos do valor é o de pautar condutas. Se alguém acha que é um valor a coragem, então deve fazer por onde para ter atitudes corajosas; se entende haver valor em ser probo, deve evitar pretender os bens alheios; se vê com bons olhos a caridade, precisa exercitar seu altruísmo, e assim por diante. Como achamos caro aquilo a que damos valor, pretendemos seguir as qualidades que esse valor nos dá, sob pena de sermos meros cínicos, como o político que arrota honestidade cheio de dinheiro público nos bolsos.

Intuitivamente, nós sabemos que uma coisa é boa ou má, bela ou feia. Contudo, sempre o fazemos baseados em um determinado parâmetro, notadamente cultural e variável através dos tempos. Mas daí brotam algumas questões: a que está vinculado esse parâmetro? Ele é contido no próprio objeto ou parte do sujeito que lhe doa o valor?

Isso está diretamente relacionado ao modo com o qual enxergamos as propriedades que um objeto tem. Quando olhamos para o que uma coisa é, fazemos juízos de realidade. Uma bola, por exemplo, é redonda, é branca e preta, está cheia e così via. No entanto, a partir do momento em que atribuo um valor ético ou estético a esta mesma coisa, eu faço um juízo de valor, como dizer que a bola é divertida. Tenho um exemplo fácil para compreender essa diferença: chame uma pessoa de gorda. Se ela não for, você estará fazendo despeito puro e simples, mas se ela tiver índice de massa corporal acima de um determinado quociente, teremos, sim, uma pessoa gorda, e isso é um dado da realidade. Entretanto, dada à condição cultural que vivemos atualmente em nossas sociedades, há um vínculo da obesidade com a feiura, e é aí que temos um juízo de valor, porque não há apenas uma condição física exposta, mas uma condição estética, passível de receber valor.

Há valores que estão intrinsecamente ligados às coisas, que pertencem a elas e delas não se podem descolar. E há valores que são extrínsecos, ou seja, que existem em função do valor intrínseco de outra coisa. Como podemos exemplificar isso? O jeito é ir para o futebol.

Que valores podemos atribuir a uma partida de futebol? Dependendo do juízo que se faça do esporte, ele pode ser bom quando as equipes são capacitadas, enfadonho quando se armam fortes retrancas, triste para quem perde, alegre para quem ganha, belo com a beleza plástica dos movimentos e dos uniformes. São todos valores intrínsecos do futebol, que pertencem a ele mesmo como prática. Entretanto, ele precisa de um espaço físico para ser praticado: uma rua, um terreno, uma praia, um campinho ou seu local de excelência, um estádio. O estádio faz parte da cadeia de valores do futebol, só que é um valor extrínseco a ele. Se o estádio não tem futebol, ele não tem esse valor em si mesmo que o futebol tem. Claro que ele tem os seus próprios valores intrínsecos, mas é preciso perceber em que cadeia de valores estamos nos situando. Quando pensamos no futebol em si, o estádio tem valor extrínseco.

Mas se há valores intrínsecos, quais seriam esses? Aqui, vamos assistir ao nascimento de duas correntes: pluralistas e monistas. Para os pluralistas, a coisa é simples. Há vários modelos diferentes de valores, que podem ser atribuídos à felicidade, ao conhecimento, à liberdade e tantos outros. Dessa forma, há inúmeras fontes de valores. Aos defensores do monismo, todo valor se dá em função de uma única fonte: o prazer. Todo e qualquer valor é atribuído a uma única característica: a capacidade de proporcionar prazer. A única noção intrínseca é o prazer, e todos os demais valores são subjacentes a ele. Dessa forma, a amizade é boa porque proporciona o prazer do relacionamento, o conhecimento é bom porque proporciona o prazer de não se ver perdido perante uma dúvida, a liberdade é boa porque proporciona o prazer de se tomar a decisão que se quiser. Assim, cada uma delas possui um valor extrínseco em função do único valor intrínseco, que é o prazer. Por isso, essa corrente é também chamada de hedonismo, do grego hedoné. Apenas aqui podemos atribuir valor: se proporciona prazer, é bom, é válido, é precioso: se temos desprazer, tudo é o exato contrário.

Há ainda uma questão relacionada à posição em que o valor se encontra na relação entre um sujeito e um objeto. Onde fica armazenado o conceito do valor? Para o subjetivismo axiológico, não existe valor que esteja fora do sujeito que doa valorização ao objeto ao qual volta sua intencionalidade. Nesta visão, as coisas não possuem valor por si mesmas, necessitando de alguém que lhes façam uma atribuição. Dessa forma, a bola é divertida porque há alguém que lhe acha assim. Estando fora do campo da consciência de um sujeito, a bola fica lá, parada em um canto, fora da cadeia de valores. Já para o objetivismo, o objeto possui em si mesmo um valor, ficando na dependência do sujeito unicamente fazer um juízo. Ou seja, uma bola tem a característica de possibilitar diversão, dependendo do sujeito gostar ou não dessa possibilidade. De qualquer forma, lhe é atribuído um juízo de valor: divertido para quem gosta, entediante para quem não gosta.

Observando com cuidado a questão anterior, percebemos que o valor, de qualquer forma, depende de um sujeito: ou ele doa o valor, ou reconhece o valor. Entretanto, ainda é possível fazer uma investigação ontológica do próprio valor: ele existe por si só? Existe o bom, o belo, o justo destacados de um objeto e que são agregados a ele no momento de fazer a valoração? Isso soa a platonismo, e é mesmo, porque este filósofo clássico possuía a tese das formas perfeitas, que incluíam não somente os objetos físicos, mas entes abstratos, como as virtudes. Modernamente, entretanto, é raro que uma teoria substantiva com tal nível de isolamento prospere. O mais aceito coloca os valores no campo dos conceitos e predicados, que tem sua existência em função de um sujeito que observa e de um objeto que recebe uma atribuição. De toda forma, um valor não é um mero acidente de um objeto ou uma elaboração de um sujeito, como quereriam detratores da teoria do valor, e sim algo real, inerente a tudo o que existe no cosmos.

Por falar nisso, há duas maneiras com as quais podemos atribuir valores a um objeto: o sentido predicativo e o sentido atributivo. Por exemplo: um objeto possui algum tipo de característica que dá sentido para sua existência, e aqui pensamos em uma guilhotina. A boa guilhotina é aquela que corta a cabeça do presunto de um golpe só, e isso faz parte dos seus predicados, é o sentido da sua existência. Entretanto, guilhotinas são instrumentos de morte, e lhe é atribuído um sentido ruim, mesmo que cumpra a sua função. A boa guilhotina é aquela que produz o resultado ruim. Portanto, é preciso fazer essa distinção para que não haja contradição entre os valores.

Por fim, a Axiologia tenta entender se existe uma hierarquia entre os valores, ou seja, se há valores mais valiosos que outros. Esta é uma inovação do filósofo alemão Max Scheler, de quem já falei neste texto muito antigo. Segundo ele, não existe indiferença quando falamos de valores. Ou eles estão em um polo, ou estão em outro. Isso porque a neutralidade com relação a um valor é a sua negação. Um valor neutro é um valor que não existe, porque não recebe carga alguma, o que é contraditório. Desta forma, nunca estamos plenamente indiferentes em relação a um valor, apenas menos ou mais próximos do que seria a linha imaginária, porém inexistente, da indiferença. Sendo assim, individualmente sempre é possível hierarquizar o que mais nos afeta em termos de valores, porque sempre traremos preferências pessoais conosco. Percebam como, desta forma, a escala de valores escapa ao racional, ficando no campo da sensibilidade. Ninguém explica porque prefere um figo a uma banana, e não o contrário. Simplesmente se gosta mais do figo e pronto.

Todavia, embora essa escala seja pessoal, devemos nos lembrar de que Scheler via o homem como um ser tridimensional, com uma de suas partes sendo a espiritual, o que lhe distingue dos demais animais. Uma das principais características desse espírito é a de reconhecer valores, reconhecendo entre eles uma hierarquia, ainda que seu sentimento o dirija para subversões entre elas.

Esta escala partiria do sensório e acabaria no religioso. Do nível mais básico, temos aquilo que nos agrada e desagrada, causa prazer ou dor, e que se guia muito fortemente pela utilidade. Subimos um degrau e temos os valores vitais, aqueles que estão mais relacionados à organicidade e à sobrevida. Mais um nível e chegamos a um patamar tríplice: os valores espirituais, que transcendem do uso corporal e chegam aos meios intelectuais. Aqui, temos os valores estéticos, como a beleza e a elegância; os valores éticos, como a bondade e a justiça e os valores intelectuais, como o conhecimento e a precisão, nesta ordem ascendente. Por fim, viriam os valores religiosos, ligados ao sagrado e que escapariam ao próprio campo sensível.

É perfeitamente discutível tal hierarquia, podendo ser ajustada de acordo com o parecer de quem a interpreta, mas parece ser indubitável que certas coisas são, de fato, mais importantes do que as outras, ainda que sejam igualadas pela característica de receber valor horizontalmente, e isso é o valor (ora vejam) da tese de Scheler.

Enfim. As teorias de valor foram uma inovação importante para que outros ramos filosóficos pudessem olhar o produto final de suas apreciações com um pouco mais de fundamentação, diante da premissa de que tudo é objeto de especulação para a Filosofia. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Scheler é um escritor profícuo, que falou sobre o tema tratado neste texto em mais de uma obra. Recomendo esta aqui, que é mais sintética:

SCHELER, Max. Da Reviravolta dos Valores. São Paulo: Vozes, 2012.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Vieses podem atrapalhar a vida de quem faz revisões sistemáticas

(Tudo bem, revisões sistemáticas são importantes. Mas o que podemos fazer quando os estudos incluídos estão enviesados?)

Olá!

Nem bem acabei de publicar meu último texto, que versa sobre revisões sistemáticas e metanálises, e já me sinto compelido a voltar ao assunto. A questão é que, como citei nele a patroinha, tão logo o publiquei fiz o repasse para que ela o lesse. Ela gostou, disse que eu sou um sonhador quando penso em um exemplo e que ficou razoável de entender. Não gostei. Como assim, razoável? Ela disse que não entendeu porque é preciso fazer análise da qualidade dos artigos depois de feito todo o trabalho pesado, e não antes. Aliás, como assim que os artigos têm vieses? Isso não é coisa de pessoas? Perguntas pertinentes, e então parto para a resposta. Não tranca que lá vem alavanca*.


Vamos começar falando sobre vieses. Desde muito jovem, como já pude falar neste texto, eu ajudava minha mãe com as costuras dela. Menos com linha e agulha, mais com logística, entregando roupas prontas, buscando modelos e comprando tudo quanto é badulaque, desde botões e zíperes até forros e entretelas, muitas vezes correndo atrás dos próprios tecidos. Um dos itens que me dava mais trabalho de achar era a fita de viés, que era uma guarnição vendida em rolos, e que servia para dar acabamento nas roupas. O entrave era a combinação deste artigo com o tecido principal. Se fosse da mesma cor da peça, precisava ser idêntico, e isso às vezes levava horas. Se fosse diferente, havia uma dependência do bom gosto, o que eu não conseguia garantir do alto da minha meninice. Veja um exemplo de uso desta fita:

Mas por que esse nome? Como bem se sabe, um tecido é composto por uma trama de fios, que se entrecruzam na horizontal e na vertical, que as costureiras chamam de fio reto e fio atravessado, respectivamente. Ocorre que, com exceção de lençóis e toalhas, peças de roupa precisam de cortes curvos, como golas, mangas e tantos outros. Quando é feito um corte arredondado, a tendência do tecido é ganhar um mendicante aspecto de farrapo, especialmente quando sair dos sentidos das coordenadas dos fios, ou seja, quando o sentido do corte fica enviesado, colocado em alguma posição diagonal dos dois sentidos dos fios. A fita de viés serve para ocultar as pontinhas dos fios e proteger a roupa do desfiamento. Resultado: viés é algo que atravessa o que seria um sentido normal, um desvio do fluxo ordinário.

Passando para o campo que nos interessa, podemos notar agora que um viés é um desvio inconsciente da melhor lógica aplicada à cognição. Esses fenômenos ocorrem com imensa frequência, porque parte de dispositivos mentais que nos levam a decisões rápidas ou favoráveis a nós mesmos, o que, sejamos francos, ajuda na sobrevida. Mas nós não podemos viver unicamente entre o instintivo e o intuitivo. Quando queremos buscar informações próximas da verdade, precisamos de raciocínio, de inteligência.

Vieses cognitivos existem aos montes. Quando tomamos como verdade uma afirmação que confirme qualquer coisa em que acreditemos, temos um viés de confirmação. Quando encaramos o mundo apenas por um lado positivo, a ponto de faltar reconhecimento de que há riscos em saber que há momentos de baixa, temos um viés de positividade. Quando guiamos nossos pensamentos pelas coisas que vemos mais frequentemente, temos um viés de disponibilidade. Existe até um viés de se achar fora do alcance dos vieses, de quem tratarei no futuro.

Quando falamos em artigos científicos, precisamos lembrar que são feitos por humanos, e que, como dissemos, tem vieses inescapáveis. Por mais que um pesquisador seja cuidadoso, ele pode começar a entortar o caminho de seu trabalho pelos mais variados motivos, e isso faz com que o mesmo perca qualidade. Como a Ciência é um ofício que não se produz sozinho, é de se esperar que outros pesquisadores acabem por revisar essas falhas e levá-las a claro, para que se cumpra o autoajuste previsto nas metodologias. Então é por isso que os artigos científicos se tornam enviesados, o que também pode acontecer com revisões, que é um artigo que reúne artigos, estando tão sujeito a vieses quanto as partes que o compõe. Vou citar os mais comuns deles.

Viés de publicação: sempre que começamos um estudo, queremos responder uma pergunta. Algumas vezes, essa pergunta é neutra, não mudando a cotação da bolsa se vai para o céu ou para o inferno. Mas há perguntas que não são imparciais. Se queremos saber se um determinado medicamento é eficiente contra uma doença, torceremos para que ele funcione, seja por altruísmo, seja para registrar a patente. Entretanto, os resultados podem ser negativos, e o remédio funcione tanto quanto a reza da benzedeira. O resultado negativo trará uma tendência a não ser publicado, porque daí para frente o pesquisador poderá considerá-lo perda de tempo. O viés de publicação faz com que haja uma quantidade maior de resultados positivos enviados à publicação, o que é um erro. Resultados negativos SÃO resultados de pesquisas, e não quer dizer que o estudo em si foi malfeito, mas que a pergunta-chave foi respondida de forma negativa. Isso é especialmente comum em pesquisas financiadas pela iniciativa privada, que provavelmente só se interessariam em resultados positivos e não gostariam de gastar ainda mais com o velório de um natimorto. Lembrem-se disso quando forem criticar os financiamentos públicos.

Viés de performance: as peripécias da mente humana fazem com que sejamos capazes de nos curar sem a utilização de fármacos, como pode ser lido neste texto. Não se trata de milagre, mas de um conhecido efeito psicológico chamado efeito placebo, que mostra nossa capacidade de interação entre corpo e mente. Só que isso é um atrapalho e tanto quando você quer medir efeitos de um tratamento, por exemplo, porque há pessoas mais suscetíveis ao efeito placebo do que outras, e você nunca saberá se o integrante do grupo sentiu efeitos por ação da aplicação ou da sua cabeça. Além disso, também o pesquisador é influenciado pelos resultados, e tenderá a dar mais atenção ao grupo experimental que ao grupo controle. Por essa razão, os estudos clínicos mais sérios fazem o cegamento de todos os participantes, e então ninguém é de ninguém: tudo é feito para que se chegue às conclusões sem que se saiba individualmente como foi o andamento da pesquisa. Ocorre que, por vezes, as informações de pesquisa vazam para um dos grupos ou para o time de pesquisa, e, uma vez conhecendo os procedimentos em si, a mecânica do duplo-cego deixa de funcionar a contento, adulterando o desempenho que se esperava daquele ponto específico. Um dos motivos é a “cosquinha” que um pesquisador pode sentir ao observar resultados parciais, e querer confirmar qual dos grupos está performando aqueles dados.

Viés de atrito: quando realizamos uma pesquisa, é necessário que calculemos o tamanho adequado de participantes dos grupos experimental e controle, e isso será descrito nos protocolos. Por mais que sejam descritas as informações possíveis aos participantes da pesquisa e a importância daquele estudo, fato é que sempre se darão defecções após o início dos trabalhos. Os motivos são os mais variados: o indivíduo pode não estar percebendo melhoras, pode ter efeitos adversos, mudar de residência, morrer ou simplesmente ficar de saco cheio. O protocolo da pesquisa deve prever essa perda de participantes e descrever o que fazer nessas ocasiões. O diabo é que por vezes os próprios procedimentos impedem de se saber que um participante deixou o estudo. Se esse êxodo supera o percentual previsto nos protocolos, os resultados podem perder muito de sua acurácia.

Viés de seleção: um estudo precisa delinear com precisão qual público precisará atingir em seu objetivo prático. Imaginemos, por exemplo, que estejamos pesquisando sobre o impacto psicológico da pandemia nos usuários de serviços geriátricos. Que tipo de público necessitamos avaliar? Ora, de idosos! Neste caso, de pouca valia terá a participação de pessoas jovens, que só servirá para “sujar” a pesquisa. Pode ser tentador aproveitar candidatos já inscritos, porque a prospecção de camadas indisponíveis é muito pedregosa, mas acontece de que o público alvo tenha baixa representatividade no grupo a ser pesquisado.

Viés de relato: é bem parecido com o viés de publicação, com a sutileza de que estudos amplos geram uma miríade de dados que ora são favoráveis, ora não. Esse viés consiste em dar mais peso na conclusão aos resultados positivos, tornando-o distorcido.

Existem muitos outros vieses que podem influenciar nos resultados das pesquisas, alguns muito simples, como dar preferência a artigos de uma língua em especial em detrimento de outras menos prestigiosas, e há também fraudes desabridas que manipulam dados intencionalmente, como extensões de pesquisa por tempo desnecessário até se chegar a um objetivo desejado, tipo o árbitro que dá acréscimos até o time da casa conseguir o gol de empate. Mas a questão é: como se pode analisar qualitativamente os artigos e as revisões para que tenhamos conclusões adequadas?

Bom, a primeira asserção não é animadora: não existem milagres. A segunda é um pouco mais alvissareira – existem procedimentos e ferramentas estatísticas que podem dar uma ajuda em qualificar os artigos com relação a vieses. Mas é necessário arregaçar as mangas.

Primeiramente, é preciso fazer uma crítica nos procedimentos de cada artigo, observando se o aspecto temporal é bastante abrangente, quais foram as bases de dados consultadas, se as palavras-chave correspondem aos verdadeiros termos que deveriam ser pesquisados e se também incluem dados da literatura cinzenta, aqueles artigos que não chegaram a ser publicados, relatórios governamentais, estudos em andamento e outras fontes que possuem valor de pesquisa, mas que estão fora dos meios convencionais de divulgação. Também é importante averiguar os motivadores e financiadores da pesquisa, porque particulares tem interesses muito diferentes do que instituições públicas.

Depois disso, em revisões que contém um número razoável de artigos, é possível usar uma ferramenta estatística conhecida como gráfico de funil (esperem um minuto que eu vou ligar um disco do Arti e Mestieri, que tem um funil na capa). Ele permite estabelecer linhas de tendência que demonstram o quanto os dados de uma revisão são homogêneos ou não. Vamos mostrar como ele é.

É um gráfico de coordenadas, onde o eixo X representa o tamanho do efeito, enquanto o eixo Y contém o inverso da variância, que representa a precisão do estudo. Por que esse palavrório todo? É porque se assume que, quanto mais preciso for um estudo, menor variação ele vai ter. Se eu pegar o tamanho dessa variação e invertê-lo, terei o ponto de precisão, entenderam?

A linha vertical pontilhada representa o tamanho do efeito real e será ela que constituirá o vértice do funil, servindo de parâmetro para o balanceamento da plotagem dos estudos.


Em seguida, são plotados pela área do gráfico os resultados de cada um dos estudos, sendo que aqueles que ficam no topo do gráfico são os resultados mais precisos, enquanto os menos precisos ficam dispersos pela parte baixa do plano.


Por fim, são traçadas as linhas de tendência, o que dá ao campo dos dados um aspecto de funil. Quer dizer... mais ou menos. E aí está o pulo do gato dessa técnica: os plots ficarão distribuídos de maneira mais ou menos dispersa dentro do gráfico. Se houver homogeneidade, isso é um indicativo de baixo índice de viés.

Porém, se a distribuição for heterogênea, com a dispersão muito concentrada em um único lado da linha de corte, há uma chance muito grande de risco de viés, principalmente por conta de defeitos na aleatoriedade.


Existem aperfeiçoamentos a este modelo gráfico, como os testes de Egger e de Begg, mas vai ficar muito pesado tratar sobre eles em um texto em que se pretende simplesmente passar uma noção geral do que é a ação de vieses em revisões. E é preciso lembrar que, apesar de tentar trazer elementos objetivos que permitam detectar inconsistências em estudos, trata-se de uma atividade que é preponderantemente analítica, que precisa de carga subjetiva. Para dar um exemplo, é plenamente possível que uma heterogeneidade seja legítima, dependendo de outros fatores diferentes dos vieses, e só detalhando os estudos é que se poderá chegar a uma conclusão.

Já aqui podemos entender porque a análise qualitativa é feita após a coleta de dados (ou da metanálise, quando aplicável), e não antes. Mas aqui tem a pergunta de um milhão de moedas: não é o caso de remover os estudos com maiores suspeitas de fraude ou de viés?

E a resposta é não. Não podemos “acusar” um estudo de fraudulento sem comprovações. Quando ela ocorrer, o artigo será retratado, e neste caso será considerado nulo. Com relação a vieses e baixa qualidade dos componentes da revisão sistemática, é preciso lembrar-se de duas regras de ouro: a revisão deve ser ampla e imparcial.

A revisão precisa ser ampla porque deve-se seguir o princípio de que ela terá a intenção de unificar o conhecimento que se possui sobre o questionamento a que faz propósito de responder, e isso inclui também os pequenos estudos, os artigos com suspeita de viés e assim por diante. E precisa ser imparcial porque não lhe cabe julgar os dados fornecidos, mas tão-somente analisá-los. Uma revisão precisa ser tão imparcial quanto deveriam ser os artigos que lhe compõem, sob pena de ela mesma incorrer em um viés de seleção. O remédio para se proteger dos estudos de baixa qualidade é avaliar o peso que devem ter no conjunto de dados, e deixar claro no capítulo de discussão qual foi o tratamento dado a eles, para que se possa ser objeto de crítica e correção, se necessário.

Sendo assim, espero ter respondido a pergunta da patroa e de mais alguém que eventualmente tenha procurado este espaço, sempre se lembrando da cruzada que tenho feito para ajudar no combate à ignorância filosófico-científica, com as poucas armas que disponho. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Canal da Amanda Sardeli, que contém vídeos rápidos sobre revisões e metanálises:

https://www.youtube.com/channel/UCsvWE5n-4dCJDhDStJMsqjA/videos

Já que mencionei o Arti e Mestieri, trata-se de uma banda italiana de primeira linha, cujo capolavoro é o álbum Tilt, que tem um grande funil na capa. Um de seus membros, Furio Chirico, é um dos melhores bateristas que já andou neste planeta. Para quem gosta de fusion, é um prato cheio muito recomendado. A capa do álbum é essa aí embaixo, extraída do excelente site www.italianprog.it.

* Esse era o nome de um programa de humor da Rádio USP lá pela década de 80.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Unidos venceremos – sobre revisões sistemáticas e metanálises como ferramentas para agregar conhecimento

(Falar de artigos científicos eu já falei, mas vocês devem estar ouvindo muito sobre revisões sistemáticas e metanálises. Chegou a hora de pincelar sobre o assunto)

Olá!

A patroa sempre gostou muito de cozinhar. Não no estilo trivial variado, mas na elaboração de novidades para finais de semana e sobremesas. Suas fontes são as mais variadas possíveis, incluindo velhas anotações feitas em papel de pão, receitas televisivas transcritas em folhas de caderno, impressões de receita catadas de sites e fotos de folhas de livros. Ora (direis), com o advento das plataformas de vídeos, tudo isso ficou obsoleto. Eu responderei dizendo que é bem verdade, mas ainda não é de todo higiênico enfiar as mãos cheias de manteiga na tela de um celular, e ter uma folha com as coisas anotadas supre bem essa carência.

Por outro lado, devo concordar que o método das folhas soltas causa vontade de chorar quando é preciso procurar algo específico. O índice é o acaso e, mesmo quando se encontra algo semelhante ao que a patroa quer, não é possível ter certeza, porque muitas delas são semelhantes. Imagine uma receita chamada “bolo de chocolate”. Quantas amostras diferentes não existem em uma caixa de mercado lotada até a boca? Eu aconselhei minha pequena patroinha a fazer anotações mais detalhadas, especialmente no que se refere aos resultados, mas ela faz ouvidos de mercador e todas as vezes que a busca se faz necessária, é das fases mais longas do preparo como um todo.

Já propus a ela fazer uma classificação, oferecendo-me a fazer a digitação, mas a coisa está gravada no meu computador somente até a página 9. Duas ideias eram o coração da coisa: criar um índice e colocar palavras-chave, o que reduziria em muito o tempo de busca, a principal pedra de tropeço do “método” adotado atualmente. Vamos ver se em algum momento a coisa vira.

Tudo isso veio à tona porque as coisas estão apertadas e ofertas razoáveis se tornam irresistíveis. Chegou uma encomenda de um bolo enorme, para cerca de 70 pessoas, e minha esposa pegou para fazer e garantir uns cobres a mais no parco orçamento. Só que um bolo de 25 kg não é um enche-dente de meio quilo, e não dá para mui simplesmente multiplicar por cinquenta uma receita qualquer, sendo necessário utilizar alguma coisa mais firme. E por isso tivemos que, mais uma vez, procurar a agulha no palheiro.

Vocês tem acompanhado ultimamente um tipo de discussão que nem em sonhos tínhamos antigamente, que é a questão de como a Ciência funciona. Isso aconteceu em boa parte por conta da pandemia sem fim, onde discussões sobre remédios válidos e vacinas elaboradas em tempo recorde trouxeram perguntas sobre o que tem valor para determinar seguranças de uso. Como muito despautério caminhou alegre por essas sendas desde que as redes sociais permitiram espalhar qualquer tipo de teoria conspiratória, eu me senti na obrigação de lançar minhas sementes de compreensão, porque é tarefa da Filosofia dizer o que uma Ciência precisa fazer para ser o que é. Então eu falei sobre revistas de divulgação científica, sobre as diferentes formas de inferir conclusões, sobre a importância da existência de grupos controle, sobre a metodologia de pesquisa científica, sobre a falseabilidade e seus aperfeiçoamentos, e achei que também era necessário tratar de outro tema muito recente, que sempre se aborda quando o assunto é área médica, mas que também se presta às demais áreas de pesquisa. É a questão da revisão sistemática, em especial a parte da metanálise.


Sabemos que a principal ferramenta da Ciência é o artigo, porque é neles que o cientista coloca a público seus experimentos, informando os métodos e protocolos que utilizou, como conduziu os procedimentos e o que foi possível concluir deles, colocando-os à prova para que outros pesquisadores possam reproduzi-los e trazer mais informações para o mesmo assunto. Ocorre que, especialmente na Medicina, há inúmeros estudos de caso que acabam por se tornar artigos, o que faz com que proliferem múltiplas peças sobre o mesmo tema, com resultados que podem variar. E mais: com n amostrais muito pequenos. Desta forma, tornou-se útil que esses artigos se tornassem agregados, o que dá duas vantagens: unifica o conhecimento que se tem sobre o tema e expande o n amostral que cada artigo primário traz para a revisão.

Uma revisão sistemática, formalmente, tem os mesmos itens de um artigo primário:


O que haverá de diferente no artigo em si são as declarações dos artigos abarcados e os itens de metodologia própria para revisões. Como essas são sistemáticas, podemos entrever o rigor que é aplicado no seu uso e desenvolvimento. Existem algumas maneiras diferentes de se prepararem revisões, mas vou listar aqui o que há de mais comum entre elas, que envolvem dez etapas.

1ª Etapa: a dúvida

Todo método científico começa com algo muito simples: uma dúvida. Não se trata de alguma coisa quotidiana, como o que fazer para a janta, mas uma dúvida metódica, à moda de Descartes. Sempre devemos lembrar que é a curiosidade, aliada à necessidade, que nos empurra no rumo da busca por soluções. Portanto, o primeiro passo para a revisão sistemática é o mesmo de qualquer outra procura científica: ter uma dúvida.

2ª etapa: a pergunta-chave

O segundo passo é formular a pergunta-chave. Pode parecer um pouco de preciosismo da parte do método, mas não é, não. A pergunta bem formulada é a pedra angular de toda a pesquisa, e serve para determinar com precisão e delinear o escopo do que se pretende, de modo a facilitar inclusive a busca futura.

3ª etapa: a busca preliminar

A terceira etapa corresponde a fazer uma busca preliminar para verificar se já existem pesquisas que versem sobre a pergunta-chave, ou seja, se esta já não possui respostas. Essa fase é exatamente aquela que vai determinar se faremos uma pesquisa do zero, se existe um artigo suficiente para prover resposta ou se unificaremos o conhecimento disponível, realizando uma revisão sistemática.

4ª etapa: o protocolo de pesquisa

A quarta fase começa a dar mais trabalho, embora a revisão comece aqui a ganhar contornos de seriedade. A descrição do protocolo de pesquisa é o momento em que o autor informará passo a passo como pretende realizar o seu trabalho, informando grupos experimentais e controle, quantidade almejada de artigos para que a pesquisa seja considerada satisfatória, quais motivos poderão levar a uma interrupção dos processos, um cronograma e orçamento, se houverem. Ou seja, será uma descrição minuciosa dos parâmetros que serão seguidos para a execução do trabalho.

5ª etapa: a busca bibliográfica

Prosseguimos para a quinta fase, a busca bibliográfica. Aqui, se dará a procura em si dos artigos primários que serão utilizados. Normalmente, são feitas pesquisas nas publicações mais confiáveis e indexadores de dados científicos, como Nature, Science, PLoS, Pubmed, Lancet, SciELO, Cochrane, Scopus e nas revistas das principais universidades, dependendo da área abordada, mas também é possível buscar resultados avulsos que não foram objeto de publicação, seja porque os resultados foram negativos, seja porque são estudos ainda em andamento, mas neste momento é preciso ser muito criterioso para não utilizar artigos rejeitados (entenda-se que artigos com resultados negativos NÃO SÃO artigos rejeitados, porque podem ser metodologicamente perfeitos, mas como não atingiram um determinado objetivo almejado, faz-se a opção de não publicá-lo, às vezes para aperfeiçoar os vetores dos estudos).

6ª etapa: os critérios de elegibilidade

A seguir teremos a hora da navalha, a descrição dos critérios de exigibilidade, que visa segregar todos os itens que serão utilizados na pesquisa daqueles que serão descartados. Vários critérios podem ser escolhidos para a melhor consistência da revisão: estudos muito antigos, por exemplo, talvez não tenham atualidade suficiente para as pretensões; certos métodos e medidas também podem não ser adequados, assim como quantidades ínfimas de amostras. É preciso lembrar que toda pesquisa que queira abraçar o mundo acabará sozinha no baile, portanto é interessante que se estabeleçam limites para formar o corpus da revisão.

7ª etapa: a coleta de dados

O próximo momento é de coletar os dados. De posse dos artigos eleitos, e especialmente nos casos em que o trabalho a ser realizado é quantitativo, será preciso tabular os dados que serão objetos das análises. As pesquisas possuem, ainda que seguindo certas normatizações, variações válidas na maneira com a qual são descritas, e isso precisará ser balanceado nesta etapa, com conversões de medidas, por exemplo. Mais ainda: há uma série de informações que são preciosas, mas que não consistem o cerne da análise que será realizada. Então é necessário que se tabulem criteriosamente os dados que serão considerados na revisão.

8ª etapa: a metanálise

Depois vem ela, a metanálise, a grande gordurinha da picanha de revisões quantitativas. Esse é o ponto central de todo o processo de revisão sistemática. Não que ela seja obrigatória, mas, quando estiver incluída no protocolo, ela cumpre o principal papel de transformar vários artigos, com vários resultados, em um só, além de tornar visualmente mais simples de compreender uma maçaroca de números. Embora seja uma ferramenta e tanto, como lança mão de técnicas estatísticas, a metanálise é nativa para estudos quantitativos, e o mais usual é a utilização de gráficos que permitam a síntese qualitativa. Como a metanálise é originária da área da saúde, o gráfico mais utilizado é o forest plot, que recebe este nome porque cada pesquisa é representada por uma árvore (que não parece nada com uma árvore). Grosso modo, os elementos de um forest plot são os seguintes:

O plano espacial é composto por um T invertido, onde a linha horizontal representa a escala de interesse do estudo, o que é bastante variável. Já a linha vertical representa o ponto de ausência de efeito, o que é fácil de pensar quando falamos de medicamentos: é o ponto em que um princípio ativo tem o mesmo efeito que o placebo. Desta forma, do lado esquerdo temos o campo para os grupos experimentais, enquanto do lado direito há o campo para o grupo controle.


Cada árvore, por sua vez, significa a representatividade de cada artigo revisado e é composta por dois elementos: uma linha que representa o intervalo de confiança do artigo e um quadrado que representa seu peso. Em rápidos miúdos, intervalo de confiança é o tamanho da variação dos resultados possível obtidos de uma pesquisa. Quanto maior for o intervalo de confiança, mais impreciso é o resultado, porque pode abranger uma gama de valores maior. Já o peso representa o quanto um estudo influencia o resultado da metanálise como um todo.

É preciso notar que uma árvore que toca ou atravessa a linha de ausência de efeito indica que os efeitos obtidos pelo estudo representado não diferem da ausência de efeitos, o que o aponta como inconclusivo. E por que considerar esses artigos? Simples. Não é porque eles não permitem uma conclusão mais assertiva que eles não trazem dados, dados esses que podem ser considerados na metanálise. No exemplo abaixo, os três primeiros estudos apresentam dados sem diferenças estatísticas significantes, enquanto o último possui força de conclusão.


O resultado é a síntese de todos os dados incluídos na metanálise, e fica representado no gráfico através de um losango, que o pessoal da área gosta de chamar de diamante. É olhando para ele que situamos o resultado da metanálise na escala e sabemos se ela é estatisticamente significativa, já que funciona da mesma forma que cada uma das árvores: ao tocar a linha de ausência de efeitos, indica-se a ausência de diferenças estatísticas.

9ª etapa: a análise de qualidade

Feita a coleta de dados e realizada ou não a metanálise, parte-se para a análise da qualidade dos artigos utilizados e para a discussão dos achados. Este ponto nos dirá se os artigos utilizados na revisão possuem boa qualidade de confecção e se carregam consigo vieses que distorcem suas conclusões.

10ª etapa: a conclusão

E o final é a conclusão, ora vejam. Sopesados e discutidos todos os resultados obtidos, é preciso especificar claramente a nova conclusão, porque, no final das contas, a revisão sistemática é como se fosse um novo estudo mais abrangente para cada um dos estudos que lhe compõem.

Então a partir de agora eu vou propor um daqueles meus célebres exercícios em que eu extrapolo um fenômeno factual para uma história com boas doses de ficção, em nome da acomodação didática, a tal da história “baseada em fatos reais”. A parte real é que a irmã Margarete, um resquício de amizade dos tempos de igreja, também pediu para a emérita patroinha fazer um bolo daqueles mega, com mais de 20 kg. Normalmente, são bolos que necessitam de escoras, para não ficarem afundando. Embora esteticamente não faça diferenças, a consorte não queria ficar enfiando pratos e tubos no meio das massas, para atrapalhar na hora do corte. Como solução, ela pensou em preparar uma massa mais firme, que dispensasse os arrimos, mas que não fosse um concreto armado desprazeroso de mastigar. Agora, começa a parte do "baseada".

A patroa achava que um meio de se tornar a massa mais consistente era a utilização de técnicas de panificação, com o uso de um fermento selvagem, como o lievito madre tão caro à nonna. De fato, pães de fermentação natural tendem a ser mais firmes que os convencionais, mas ainda assim são macios, o que parece dar uma solução para a aporia da cara-metade.

Começamos pela dúvida. Como nunca fizemos uma experiência de bolo com fermentação natural neste porte, vem aquela indecisão básica, porque pode ou não funcionar para o intento. Se funcionar, eureca, problema resolvido; se não, perde-se uma porrada de material, e nossas avós já ensinavam que é errado jogar comida fora. Portanto, nasce a dúvida. Neste caso, é saber se faz sentido o uso de fermento selvagem para dar consistência a um bolo.

Passamos para a pergunta-chave. No caso da esposa, esta servirá para especificar bem o que ela precisa para as coleguinhas que serão consultadas, ou para colecionar os artigos que deem resposta ao seu questionamento: "a adição de fermento selvagem na preparação de um bolo de grandes proporções propiciará firmeza ideal à massa?".

Vamos agora fazer a busca preliminar. No nosso exemplo, a patroa procurará receitas semelhantes em sua caixa, ligará para suas comadres lançando a pergunta-chave, pesquisará pelos sites de receitas e atestará a existência de preparados semelhantes. Como essa primeva pesquisa conterá algumas respostas positivas, já sabemos que estaremos aptos a fazer uma revisão. Apesar de ser muito aberta, esta fase já coloca alguns limites: receitas de pudim que levem fermento selvagem (não sei se isso existe) já são descartadas logo aqui. A procura é feita através de palavras-chave: bolo, fermento selvagem, densidade da massa.

Mas como a patroa pretende pesquisar as receitas? Ela precisa me contar, para que eu possa ajudá-la, e na sequência de nosso exemplo, nossa heroína determinará que o método utilizado será a comparação direta das receitas, com a reprodução de tantas quantas forem necessárias, utilizando as instalações da cozinha de casa. Deveremos priorizar receitas econômicas, sem, no entanto, deixar de apreciar as mais custosas. Separaremos também os resultados das pesquisas com e sem fermento selvagem, para a formação de um grupo controle, e obteremos os demais dados de anotações de sucesso/fracasso dadas pelas próprias autoras.

No momento da pesquisa bibliográfica, a patroa separará de fato as receitas que estão em sua caixa, as suas amigas mandarão as receitas descritas com todos os ingredientes e tempos de preparo e ela imprimirá o que achou na internet. Vai por em prática o protocolo, lendo uma por uma e fazendo o fichamento, que consiste em um resumo dos dados mais significativos que foram levantados. O resultado será o seguinte:


Os critérios de elegibilidade da patroinha serão os seguintes: somente receitas de bolos doces serão aproveitadas. Ter ou não cobertura será considerado irrelevante. Qualquer quantidade de fermento selvagem inferior ou igual à quantidade de fermento químico será critério para descarte da receita, e o peso mínimo do bolo testado será de 500 g. Notem que isso fará com que alguns itens sejam excluídos da revisão.

No próximo momento, será feita a tabulação dos dados. Madame fará uma tabela contendo os dados relevantes: quantidade de fermento utilizado, quantidade de amostras (bolos) produzidos de cada receita e o resultado estatístico geral. Ela já aproveitará para atribuir um peso para cada um dos artigos, o que será necessário para a fase seguinte.


Vamos sempre lembrar que estamos no campo do exemplo. Tendo todos os dados tabulados, o gráfico de forest plot vai ajudar a reconhecer, a partir de todas as agregações, se a receita pode dar certo e quais seriam as proporções aproximadas para executá-la.


É preciso ainda lembrar que, no caso das amigas, temos um viés que tende a tornar a guloseima ainda mais gostosa do que ela já é quando a colocamos nas palavras, e não na boca. Então será necessário que a patroa pondere, a partir das receitas dadas, quais estão propensas a refletir uma maior confiabilidade que as outras, evitando assim que esse mesmo viés seja transmitido à sua receita unificada.

Finalmente, a esforçada cônjuge poderá concluir sobre a pergunta que ela fez lá no começo, e identificar se sua dúvida originária foi sanada. Três resultados são possíveis – uma conclusão positiva (sim, a adição tornará mais firme a massa), uma conclusão negativa (não, a adição não tornará mais firme a massa) e uma resposta inconclusiva, que mantém a dúvida indefinida.

Ora (direis outra vez), olha que burros! O bolo dele vai virar pão doce. Então... eu sei fazer arroz e feijão, sei selar uma carne e dar-lhe ponto, sei fritar ovo e, principalmente, sei fazer quiches. Ou seja, fome eu não passo. Mas é tudo o que tenho de sofisticação. É claro que esta história da carochinha toda é só para tentar trazer uma metáfora com uma aplicação muito mais presente em nossos quotidianos, porque a patroa não faria uma pesquisa com esse nível de organização simplesmente para testar uma receita. O máximo que ela faria seria uma coletânea das receitas que ela quereria experimentar, ia pegar a que ela opinasse ser mais adequada e pronto. Mas o nível de detalhe nas revisões reais PRECISA ser alto. Toda revisão tem a responsabilidade de ser a substituta de vários estudos esparsos, e se ela for enviesada, há o risco de sobrevalorizar alguns e dar detrimento a outros. Lembrando ainda que as revisões são igualmente passíveis de revisão por pares e precisam ser tão reprodutíveis quanto os experimentos que leva em conta.

Isso aqui está ficando mais comprido que sermão de sexta-feira santa. Mais uma vez relembro que meu objetivo não é dar visões definitivas sobre questões metodológicas, mas dar-lhes ideia de sua existência, do que são e porque são mencionadas nestes tempos de debates acalorados. Quando alguém falar que faltam revisões ou metanálises para corroborar estudos em fases iniciais, é sobre isso que está dizendo, e foi com essa rota que a Ciência chegou ao ponto de produzir vacinas em menos de um ano. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É um livro de metodologia, e, como tal, é leitura técnica. Além disso, é bem voltado para a área de saúde, o que pode nos dar a falsa impressão de que não é aplicável às demais áreas de pesquisa, o que não é verdade. Baseei-me todo nele para redigir este texto, mas saibam que há variações metodológicas que funcionam igualmente bem.

HONORIO, Heitor M.; SANTIAGO JR., Joel F. Fundamentos das Revisões Sistemáticas em Odontologia. São Paulo: Quintessence, 2018.