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segunda-feira, 28 de abril de 2014

Diário de bordo de uma nau sem rumo – 4º porto: Arapeí, dependência ou morte

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Em prosseguimento à narrativa da minha turnê turístico-histórico-filosófica, onde, nesse ponto do andar da carruagem, já havíamos passado por Queluz, Silveiras e Areias, continuamos rumando para o sul, desta vez procurando as cidades de São José do Barreiro e Bananal (não necessariamente nessa ordem, como se verá em momento oportuno). Mas, no meio do caminho havia não uma pedra, mas a cidade mais jovem da região, a pequena Arapeí.

Pequena, no caso, é eufemismo. A cidade é realmente minúscula, a menor de todas as que visitamos. Sua população não passa de 2500 habitantes. É bastante nova como município, já que se desmembrou de Bananal apenas em 1991. O motivo de sua emancipação provavelmente foi porque se trata de um lugarejo distante da sede do município.


Bom. Aqui, em contraste com as cidades visitadas anteriormente, permanece o mesmo respiro histórico, mas ele é proporcional ao tamanho da cidade. Um dos exemplos mais marcantes é um casarão na beira da estrada, um tanto abandonado, e que provavelmente se tratava da sede de alguma fazenda.

Pela pequena região urbana, as casas são tremendamente simples, de poucos cômodos e todas emendadas e incrustradas nas ladeiras, mas, em geral, razoavelmente bem preservadas em sua singeleza, o que não deixa de ter sua beleza peculiar.

Todo o equipamento público também é bastante acanhado (e bonito). Na foto abaixo, temos uma imagem da sede da Prefeitura Municipal...

... e do Conselho Tutelar, um imóvel com a estranha ausência de calçada em sua lateral.

Bom, a rigor, o tráfego não é mesmo o pior dos problemas da cidade, onde pudemos observar algumas pessoas andando a cavalo, de carroça ou de bicicleta. O coreto da cidade foge um pouco do padrão do que costumeiramente observamos. Tem o formato mais semelhante ao de uma tribuna, em seção quadrada, e provavelmente deva ser utilizada não só para música, mas também para as manifestações políticas locais.

No caso específico de Arapeí, a igrejona matriz é o que há de mais interessante. E, neste caso, interessante mesmo. Postada no alto de um morro, é visível em quase toda a cidade.

É um edifício de bela feitura, com passagens para o coro bastante largas, o que torna possível uma ocupação bastante significativa nas solenidades mais relevantes.

A igreja é dedicada a Santo Antônio de Pádua, meu santo padroeiro, e seu nome completo é Santo Antônio do Barreiro de Baixo. Como já disse anteriormente, fica no alto de um morro íngreme, bem daqueles que eu já mencionei nos textos anteriores, e de seu adro é possível observar uma boa parte da paisagem da cidade, como o campo de futebol abaixo, a corroborar a sua altitude.
A igreja contém uma relíquia curiosa e um tanto macabra. Um pedaço de pele de seu padroeiro, Santo Antônio! Ela fica depositada em um relicário em forma de ostensório, que, por sua vez, está colocado em um nicho amparado por uma vidraça. Ela não foi consumida pelo tempo porque se encontra completamente desidratada.

Pela fotografia, não dá para perceber muito bem do que se trata, já que é uma relíquia bastante diminuta. Fiquei sabendo da existência de outra igual na cidade de São Pedro, estância hidromineral situada próxima à região de Piracicaba.

Lá, encontramos a Márcia, que é a sacristã da igreja e que nos deu informações bastante valiosas. Além de nos contar sobre as questões da reforma da igreja e da chegada da relíquia, explicou-nos que a cidade padece bastante com o êxodo dos jovens, que procuram outros municípios em busca de boas oportunidades de emprego. O artesanato em Arapeí é muito mais humilde do que nas restantes cidades do Vale Histórico, a indústria inexiste e o comércio é restrito à venda de poucos bens de consumo. As principais atividades econômicas são a agricultura e a pecuária, sendo que, pelo que pude observar nas estatísticas do IBGE, apenas a produção de leite tem alguma relevância. Muito pouco para representar uma perspectiva de futuro. O ecoturismo poderia ser mais bem explorado, isso é fato, e creio que os dirigentes dessa cidade deveriam pensar mais seriamente sobre isso.
Pensei logo de cara: “Bom, é mais uma daquelas cidadezinhas sustentadas pelo governo federal, e que não justificam sua existência”. Ledo engano. Fiquei surpreso ao descobrir que o município consegue se sustentar adequadamente, conforme pode ser visto no estudo realizado pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro – FIRJAN. Achei muito legal isso. A maioria dos municípios vive em situação de penúria, e os mandantes de Arapeí podem ser considerados exemplares, pelo menos até prova em contrário. Mas, a princípio, meus parabéns.

Que legal! Boa gestão pública, segundo os grandes especialistas, é a chave do sucesso para a construção de uma sociedade funcional. Parece suficiente. Só que não.
Vamos olhar para outros aspectos. Colhi a informação do IDH da cidade. O Índice de Desenvolvimento Humano é um parâmetro que combina renda, escolaridade e expectativa de vida para balizar o grau de eficiência social de um determinado grupo, geralmente unidos em comum por um mesmo conjunto de políticas públicas. Desta forma, é razoavelmente comum medir o IDH de países, estados e municípios. Quanto mais próximo de 1 for o índice, melhor é o indicador. No caso específico de Arapeí, este índice é de 0,716, composto por 0,628 na renda, 0,676 na saúde e 0,845 na educação, o que, convenhamos, não é grande coisa, já que é visível que o fator educação puxa o índice para cima.
Falta alguma coisa. Se as contas estão equilibradas (o que é altamente louvável, eu repito), isso pode significar que não são suficientes para fazer a cidade crescer. O resultado é a estagnação e o consequente êxodo. Afirmei ainda há pouco que o turismo ecológico pode ser uma saída. Não sei qual seria a disponibilidade para investir nisto de forma responsável. Toda informação turística que encontrei foi a placa abaixo:

O que travará o desempenho da cidade? Pesquisei algumas teorias econômicas a respeito e encontrei uma interessante, do sociólogo e economista franco-italiano Vilfredo Pareto.
Nosso caro amigo pertence à escola neoclássica da economia. A diferença básica entre os neoclássicos e seus antecessores é a que diz que a riqueza de um país provém, para os clássicos, do que a terra produz e do trabalho exercido para transformar o que dela é possível extrair, enquanto para os neoclássicos esta fonte é mais subjetiva, devendo ser levados em consideração fatores de utilidade de cada forma de riqueza. Um exemplo bastante clássico é a água.  Em um país desértico, ela é um bem valiosíssimo, dada a sua escassez. Para sua obtenção, é necessário que se lance mão de processos caríssimos, como a perfuração de poços profundos, dessalinização de água marítima ou extensos aquedutos. Já em um lugar como o Brasil, a água é tratada quase que com banalidade, em vista de sua abundância. Somente quando o sapato aperta – como acontece com a atual fase de estiagem – damos conta da ineficiência do transporte, da insuficiência das represas, das consequências da falta de tratamento, do desperdício, da falta de manutenção dos dutos... Tudo isso porque temos água demais e nosso descaso (NOSSO, não somente das autoridades) é quase natural.

Pareto é bem famosinho por duas coisas: o apoio que deu ao fascismo de Mussolini (abramos os parênteses para fazer justiça. Este apoio se devia ao fato de que os fascistas apresentavam um projeto republicano – a Itália de então era uma monarquia. Como era um economista neoclássico, não via como alternativa as propostas dos socialistas. Mas, ao se dar conta da violência fascista, muda completamente de ideia) e pela regra 20/80, ainda hoje muito utilizada pelos picaretas consultores para justificar a necessidade de seus mui caros milagres diagnósticos. Para fins didáticos, explico que essa regra supõe que um pequeno número de causas (20%) é responsável por um grande número de consequências (80%). Assim, podemos exemplificar: 20% das pessoas provoca 80% da sujeira; 20% dos cidadãos detém 80% da riqueza; 20% das falhas causam 80% dos prejuízos e via discorrendo.
Mas o que nos interessará para este texto é um princípio conhecido como “ótimo de Pareto”, uma lei de eficiência econômica baseada em condições ideais de equilíbrio. Vamos a ela.

Uma sociedade pode ser reconhecida como Pareto-eficiente se cumpre três requisitos básicos:
a) Há eficiências nas trocas: tudo o que produzido pela economia é distribuído pelos agentes econômicos (aí entendidos os consumidores, o comércio, etc.), sem necessidade de suplementação externa nem de exportação de excedentes – exemplo: todos os sabonetes que são produzidos pela indústria ou adquiridos pelo comércio de um local são vendidos, sem que haja sobras significativas de estoques ou falta nos banheiros das asseadas residências, não por falta de poder de compra, mas por ausência do tal sabonete nas prateleiras;

b) Há eficiência na produção: ocorre quando é possível produzir mais de uma espécie de bem sem que, para isso, seja necessário reduzir a produção de um para ampliar a produção de outro – neste caso, suponhamos que uma fábrica de sabonetes decida produzir velas. É necessário que haja área e maquinário suficiente para tanto. Do contrário, as velas e os sabonetes compartilharão os recursos disponíveis, e será necessário reduzir as horas de fabricação de um produto e, por tabela, reduzir a quantidade de sabonetes para que tenhamos as tais velas;
c) Há eficiência no mix de produtos: acontece quando há produção adequada de tudo o que os agentes econômicos necessitam, sem falta ou excesso de algum destes produtos. Assemelha-se ao primeiro item, com a diferença de que o ponto discutido aqui se refere à diversidade de produtos disponíveis, e não às quantidades. Não basta que exista sabonetes. É preciso toalhas, xampus, cremes e outras perfumarias para tomar um banho completo.

Trocando em miúdos, a economia de uma localidade é eficiente se há equilíbrio entre tudo o que é ofertado e tudo o que é demandado. O ótimo de Pareto denota que nada sobra nem falta em um determinado aspecto econômico. Se sobra dinheiro, falta produto. Se sobra produto, é porque falta dinheiro. Se há excesso de um produto, há falta de outro. E assim por diante. O ponto de equilíbrio é tal que, havendo qualquer modificação para mais, necessariamente haverá uma modificação para menos em outro aspecto.
Há algo muito importante para se compreender essa parafernália toda e fazer com que ela produza sentido. Um ótimo de Pareto é um ponto de equilíbrio econômico, e não um indicador de excelência social. Uma economia equilibrada não é sinônimo de situação social avantajada. Tudo tem a ver com a quantidade de recursos disponíveis e da capacidade dos agentes econômicos fazerem girar a economia.

E aí nós podemos encaixar o caso de Arapeí. Se é verdade que sua economia é equilibrada, seu limite de investimento é muito baixo. Imagine instalar uma grande concessionária na cidade. Quantos automóveis venderia por ano? Seria suficiente para manter uma estrutura robusta? Neste aspecto, é preciso tomar cuidado para não tropeçar, condenando o lugar a ser eternamente mal equipado, por conta da manutenção do equilíbrio das contas. Não quero dizer que Arapeí deva se endividar, destruir seus recursos naturais ou sua história, mas deve estruturar projetos eficientes que aumentem sua possibilidade de atingir índices sociais mais atrativos, e que diminuam o êxodo de sua juventude.
No final das contas, acho que Arapeí faz muito bem em se manter como é, mas precisaria olhar com cuidado para sua própria população. É um lugarejo muito tranquilo, como nos contou a Márcia, mas que pode se tornar melhor nos demais aspectos, utilizando bem seus recursos naturais e acolhendo investimentos que a permitam se tornar ainda melhor. O bom índice educacional já aponta para isso.

Finalmente, apenas por curiosidade. Eu tinha tanta certeza que Arapeí era uma cidade com sérios desequilíbrios financeiros que bolei o título deste texto antes mesmo de escrevê-lo. Resolvi mantê-lo unicamente por conta da baixa renda de seus habitantes, mas é sempre bom tomar uns tombos para perceber como funciona o mecanismo do preconceito.
Recomendação de leitura:
Eu não sou um especialista na área, mas a Economia é sobrinha da Filosofia, e, como tal, acaba por despertar algum interesse em quem curte pensar. Pareto é bacana de ler, porque suas teses econômicas foram construídas para dar base a um contexto maior, que é o viés sociológico. Sugiro o que segue:

PARETO, Vilfredo. Manual de Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1984
Este é o site de onde extraí as informações da produção de Arapeí:
http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=350315&idtema=3&search=sao-paulo%7Carapei%7Ccenso-agropecuario-2006

E este é onde encontrei a pesquisa da Firjan:
http://oglobo.globo.com/infograficos/gestao-fiscal-firjan/

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Diário de bordo de uma nau sem rumo – 3º porto: Areias e a sensação estética diante da imensidão

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No terceiro passo de nossa via Sacra, já tínhamos finalmente um escopo bem definido, só não estabelecemos uma ordem exata para fazê-lo. Tão logo saímos de Silveiras (meu relato), a próxima cidade era Areias, e resolvemos parar por ali, para alimentação e estadia. Pequena como as demais, montanhosa como as demais, com muitos registros interessantes por fazer.
Percebi que Areias conversa mais tranquilamente com sua história do que as duas cidades que visitei anteriormente. E, para não soar paradoxal, esclareço que, quando afirmei que Queluz é mais impregnada de história do que todas as outras (eis o texto), quis dizer que esta fica registrada em suas cicatrizes, com tudo de bom e de ruim que elas carregam, enquanto o passado de Areais está exposto nas joias da família. Areias manteve o que há de melhor, em seu álbum estão as fotos bonitas, enquanto em Queluz estão expostas todas as fotografias, para rir e para chorar.

O que eu quis dizer, no final das contas, com esse lero-lero todo? Que Areias tem um equipamento histórico muitíssimo bem conservado, e seus moradores tiveram a sabedoria de mantê-los em evidência. Vou dar alguns exemplos. Esta cidade estava na rota de Dom Pedro I quando ele e sua comitiva se encaminhavam do Rio de Janeiro para São Paulo, viagem essa que culminaria no grito da independência. Às margens de um ribeirão no centro da cidade, havia uma grande figueira, onde Dom Pedro e intrépida trupe deram uma parada e arriaram carga, para comer, descansar e despejar alívios outros. A árvore ainda está lá, devidamente identificada por uma placa contendo uma série de panegíricos, esta aí embaixo:


Também está em ótimo estado a casa de pouso em que nosso peralta primeiro imperador passou pernoite, hoje transformada em honestíssimo e confortável hotel, o Solar Imperial, onde pude, também eu, me hospedar.


A casa é muito típica da época, com a cozinha integrada ao refeitório e até mesmo uma capela dedicada a Santa Ana, padroeira do local, cômodo este deixado para lá, em nossos cada vez mais laicos dias.


Outro local interessante é a antiga sede da Procuradoria, belo prédio em que o escritor Monteiro Lobato foi designado para exercer suas funções de promotor pela primeira vez na carreira. Foi sabiamente transformada em memorial da cidade e em espaço cultural dedicado ao precitado literato.


O resultado da ação do poder público trouxe um efeito colateral excelente. Os investidores privados passaram a valorizar, também eles, a história da cidade, e, como tal, a restauração das casas em sua arquitetura original passou a ser atividade corriqueira. Mais do que nas outras cidades, o conjunto arquitetônico comum está bastante bem preservado.


Foi o que nos contou o Pérsio Moreno, proprietário de algumas das casas de Areias, e que pegou o espírito de conservação da memória original da localidade. Ele convidou-nos a conhecer a casa abaixo:


Ele nos contou que a casa estava em estado de miséria. O custo da reforma foi maior do que a própria aquisição do imóvel. Precisou refazer todo o madeiramento, incluindo o telhado, e boa parte do reboque, além da consequente pintura e substituição das sancas e guarnições.


O resultado ficou excelente, ainda mais levando em conta que a casa é de 1868.


Como não podia deixar de ser, a municipalidade cuida bem também de suas igrejas, sendo que visitei duas capelas (Boa Morte e Senhor Morto) e a matriz, a grandona, que estava em reforma – em uma de suas torres. Abaixo, o contexto geral da praça central:


Sim, também aqui o artesanato é vital para a economia da cidade. Do mesmo modo que em Silveiras, o principal suporte é a madeira, mas é possível perceber uma sutileza: aqui, como temos um pouco mais de pecuária, temos retratados muitos bois e vacas, além de inúmeras espécies de passarinhos, enquanto em Silveiras a utilização do artesanato é mais utilitária. Percebemos isso na Casa do Artesão...


... e no Atelier Maria Lua.


Mas há algo ainda mais admirável de contar, e está relacionado não à intervenção humana no município, mas à condição natural em que está inserido.
Quando se toma o rumo da rodovia dos Tropeiros partindo de Queluz, se o motorista entrar à direita, seguirá para Silveiras; se optar pela esquerda, seu rumo é Areias. Ao adotar esse caminho, uma das primeiras constatações é que, ao penetrar na Serra da Bocaina propriamente dita, a região é assustadoramente alta. Claro que, para alguém que já tenha perambulado pelos Andes ou pelos Alpes, os 2.000 metros dos picos mais altos da Bocaina são ínfima fichinha, mas para quem tranca esfíncteres para a Serra do Mar, a brincadeira é de gente grande.


Também no miolo da cidade é possível perceber essa característica. Na foto abaixo, temos uma visão quase aérea da área urbana, a partir do morro onde está situado o Cristo Redentor...


... que vem a ser, a título de curiosidade, este aqui:
Que sensação é esta, em que nos vemos tão pequeninos diante da natureza? Para Immanuel Kant, chama-se de sublime e é uma das possíveis experiências estéticas.
Kant dispensa apresentações. Elaborou um sistema filosófico completo, trazendo conclusões definitivas para a teoria do conhecimento, fazendo importantes incursões na Ética e até mesmo na Política. Como não poderia deixar de ser, também palpitou na área da Estética. Suas observações mais significativas dizem respeito à diferença entre as sensações produzidas pela obra de arte e pela natureza.

Quando analisamos uma manifestação artística, temos diante de nós um escopo bem definido: uma tela que dá suporte a uma pintura, ou a pedra que foi transformada em escultura, ou o espaço cênico em que se desenvolve uma peça, por exemplo. Nossa atenção tem um limite bem delineado, e com isso conseguimos apreciar o belo. A apreciação da obra de arte está ligada à sua qualidade. Ela é estética porque consegue disparar em nós sensações de prazer ou desprazer, mas como temos um controle sobre a obra de arte, o desprazer pode ser descartado facilmente, com um simples virar de costas ou fechar de olhos.
Agora, quando somos colocados diante da natureza, já não temos essa noção clara de limite. Somos colocados diante de uma infinidade de estrelas, de mar por todos os lados, diante da altura das montanhas, de onde observamos, diminutos, os seres que estão na profundeza dos vales. E mais: do que falei anteriormente, podemos depreender uma realidade estática. E se essa natureza se puser em movimento?

Que tal um cometa que rasga o céu da noite? Ou uma tempestade em alto mar? Ou uma avalanche que arraste tudo à sua frente até o fundo do vale? Que tipo de controle podemos ter sobre todos esses eventos? A sensação também é estética – manifesta-se aos nossos sentidos e afeta-nos os sentimentos. Mas aqui, diferentemente do que acontece com a obra de arte, não há limites, e sentimos toda a nossa pequenez, a nossa insignificância. A natureza já não é mais bela, porque não produz apenas o prazer ou sua antítese; a natureza é sublime.
A obra de arte é qualitativa, ou seja, ela é boa ou ruim. E, para ser boa ou ruim, é preciso interpretar a sua forma, é nela que se expressa a beleza ou sua ausência. Já a natureza é quantitativa: é desmesuradamente grande, ou desmesuradamente pequena. O sublime não é só belo. Ele pode ser terrível, principalmente por ser incontrolável. A natureza é angustiante, dá uma sensação de desorientação, de medo e de espanto. Ele está ligado especialmente à ausência de forma e de limite, e, neste sentido, é o exato oposto ao belo; não como qualidade, mas da possibilidade de percepção. A magia do sublime está justamente na impossibilidade de percebê-lo como um todo. E com isso foge do entendimento. Para tentar atingi-lo, recorremos à imaginação, mas mesmo esta é suplantada, porque não há uma forma correspondente para que possamos fazer uma analogia em nossa racionalidade. 

A única maneira de estabelecer um comparativo é através da violência: a razão e a imaginação são violentadas pela sensação do sublime, da mesma forma que a natureza violenta nossa segurança ao se pôr em movimento. Mesmo quando imóvel, a natureza é violenta em potencial: a rocha prestes a cair, a nuvem carregada para a tempestade, o leve tremor que antecede o terremoto, o gafanhoto que precede a praga. Kant dá, desta forma, duas dimensões da apreciação estética e permite que seja ampliado seu alcance, atribuindo ao prazer da análise um valor positivo (da apreciação desinteressada) e um valor negativo (do temor diante da ausência de controle).

Muito legal Areias por causa disso: a síntese entre o belo de sua arquitetura e o sublime de seu relevo.

Recomendação de leitura:
O sistema filosófico de Kant é vasto, intrincado e todo amarrado entre si. Para compreender algo sobre sua visão estética, recomendo o livro abaixo.


KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Diário de bordo de uma nau sem rumo – 2º porto: Silveiras entre a arte e o artesanato

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Pois muito bem. Na manhã seguinte à minha estadia em Queluz (relato aqui), decidimos, meio de repelão, tomar rumo pela rodovia dos Tropeiros (SP-68). Esta estrada, carregada de história e que já serviu um dia para ligar os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, contém em seu trajeto uma série de pequenas cidades que fazem parte do assim chamado “Vale Histórico”, e foi construída no caminho natural que os tropeiros encontraram pela sua frente para conduzir suas cargas. Estas cidades experimentaram seu apogeu entre os fins do século XIX e começo do século XX. Uma série de fatores históricos e geográficos levaram todas à decadência, e não foi diferente com nosso segundo destino.
Quando comparada a Queluz, a primeira impressão que se tem é a de que Silveiras conseguiu permanecer mais bem conservada. Algumas coisas motivam isso: Silveiras é mais isolada, já que seu centro urbano não margeia a via Dutra; este também foi levantado em uma pequena planície em meio ao vale, o que facilita a construção e a consequente manutenção das construções. Por fim, o tráfego maluco de caminhões levando toras de madeira é infinitamente menor. Desta forma, a cidade é bastante agradável em sua arquitetura simples, com um casario bastante significativo de tempos passados.


Dentre todas as cidades que visitei na turnê, Silveiras é a que mais se dedica a preservar a identidade de rota de tropeiros. Em inúmeros pontos, é possível encontrar referências a esta característica, como, por exemplo, podemos ver na parede abaixo...

... na praça histórica da cidade...

... ou no seu principal centro de cultura, o Espaço Nenê Emboava...

... um belíssimo casarão em excelente estado de preservação. No seu piso superior está situada a Fundação Nacional de Tropeirismo, e é onde acontecem as reuniões de interesse geral da municipalidade (no dia em que eu estava lá, acontecia uma reunião contendo pauta de reivindicação dos moradores da área rural)...

... e no piso térreo, de onde é possível observar toda a estrutura de sustentação do prédio, são mantidos os objetos históricos da cidade...

... inclusive algumas fotos e pertences dos revoltosos da constituinte. Pouco é divulgado, mas como Silveiras ficava no meio do caminho entre São Paulo e Rio de Janeiro, além de ficar muito próxima ao sul de Minas Gerais, foi palco dos combates de duas importantes revoltas: a Revolução Liberal de 1842 (que chegou a destruir quase completamente as construções da cidade) e a Revolta da Constituinte de 1932, onde foram formadas algumas das mais encarniçadas trincheiras, como podemos ver na foto do cartaz abaixo:

Como não poderia deixar de ser, Silveiras tem a sua igrejona na praça principal da cidade, com o seu coreto e suas flores:

Mas há uma peculiaridade que eu não conhecia. Quase no início da rodovia dos Tropeiros, há um santuário bem mais visitado do que todo o restante da cidade, dedicado à Santa Cabeça de Nossa Senhora. A tal parte foi localizada por um pescador no rio Tietê, e foi parar em Silveiras nas mãos de um gaúcho que se encontrava a caminho do Rio de Janeiro. Foi dada a uma senhora que a depositou em um lugar decente de sua casa. Aos poucos, a cabeça foi pegando a fama de milagrosa, e foi transferida para essa igreja, construída especialmente para ela. Está inserida em um altar, acima de dois anjos que a sustentam. Acho que vale a pena conhecer.

Bom, mas o forte mesmo é o artesanato, como ocorre com outras cidades da região. Porém, aqui, temos como especialidade principal: as peças de madeira. Um exemplo bastante significativo são estes pilões e suas respectivas mãos, escavadas diretamente dos troncos:

Também são produzidos vários animais da região, como araras, corujinhas, galinhas e outros. As lojas de artesanato existem em profusão.

Não só a venda, mas a própria produção de artesanato é ensinada no lugar. Um dos mais interessantes é a artesã que dá suas aulas no coreto da praça da igreja, ao ar livre e a preços módicos.

Silveiras respira destas duas atmosferas: os tropeiros do passado e o artesanato do presente. Adquiri estas duas simpáticas pecinhas, que bem representam essa fusão: um burrinho de tropeiro com sua carga e um carro de boi, ambos feitos de madeira escavada a faca, com a utilização de palha para os adornos.

A loja onde comprei estes dois simpáticos artigos pertence ao Josadir. Trata-se de um carioca simpaticíssimo, descendente de alemães, que trabalhou na CSN, em Volta Redonda. Convidou-nos para um café, e pudemos conhecer seu depósito e sua oficina, cômodos de sua casa. Perguntei o porquê da opção pela mudança de ramo. A resposta foi interessante. Além da óbvia paz de espírito proporcionada por uma cidade menor e um trabalho menos extenuante (o trabalho nas siderúrgicas é um dos mais insalubres quem existem – altas temperaturas e excesso de partículas são uma constante), Josadir nos contou que o envolvimento com o artesanato aumentou sua sensibilidade.
Ora, isso parece uma prerrogativa estética. Mas o artesanato pressupõe repetição e produção seriada. Artesanato pode ser considerado arte? Vamos ver.

Em primeiro lugar, vamos utilizar uma perspectiva dialética. Vamos defender a tese de que o artesanato NÃO pode ser considerado obra de arte. Para tanto, vamos imaginar a seguinte dicotomia: prazer-utilidade. Não há dúvida de que uma peça de artesanato tem a possibilidade de nos causar uma sensação estética, positiva ou negativa. Mas olhamos para as oficinas e vemos centenas de peças semelhantes, fabricadas a partir de moldes e até mesmo com algum grau de especialização. Não temos aqui a liberdade do artista colocada em prática. É uma fábrica, como são as montadoras, as olarias, as cordoarias, as siderúrgicas, cada uma com sua escala. A peça já não interessa pelo que ela tem de belo, mas pelo que ela tem de útil, já que produz riqueza e faz circular dinheiro. Essa visão, tão cara ao capitalismo, é o que chamamos na Filosofia de pragmatismo.
Os principais expoentes desta doutrina epistemológica são William James e John Dewey, mas vamos deixá-los para instante mais propício. Neste momento, é melhor se ocupar de Charles Sanders Peirce, estadunidense que é considerado o criador do termo. O pragmatismo é contrário aos devaneios metafísicos que ficam circundando o debate filosófico praticado até seu surgimento, em meados do século XIX. Para esta escola, importa o que o mundo tem de prático, as coisas em sua utilidade. Um belo exemplo é dado pelo próprio Peirce aos seus alunos: uma tese sobre a dureza dos diamantes. A afirmação “todo diamante é macio até ser tocado” tem conformidade com a lógica. Mas é possível prová-la? A resposta é não. E que diferença ela faria? Um diamante é utilizado basicamente como adorno ou como ferramenta de corte. No pescoço de uma mulher, sua finalidade é estética, não tem a necessidade de ser tocado, mas de ser visto; portanto, não faz diferença se ele é duro ou macio. Em seu uso como ferramenta, o toque no objeto a ser cortado é premissa necessária. Se a tese do diamante macio estiver correta, o que interessa é que, no momento do uso, o diamante estará duro. Portanto, se em algum momento de sua existência um diamante é macio, pouco nos importa. Todas as suas teses sobre a sua maciez não tem significado, já que nunca são apresentadas concretamente a nós.

Falando pragmaticamente, portanto, temos o artesanato visto em sua utilidade como um meio de vida. Isso é comprovado ao observar a repetitividade na reprodução das peças e na escolha dos produtos que mais atraem a clientela. O artesanato não é livre como deve ser a obra de arte.
Ok. Mas será que tudo isso exclui a criatividade? Será impossível reconhecer valor artístico na obra de artesanato? É bem verdade que a vida de um artesão se baseia na repetição de sua produção, mas não se resume a isso. De uma junção da escolha dos materiais que dão suporte ao seu trabalho, da opção e até mesmo da criação de uma ferramenta para a confecção das peças, da observação da realidade e da história que o circunda e principalmente da originalidade da ideia e da abstração expressa na obra criada, podemos enxergar um disparar de sensações que atingem seu objetivo estético: produzir conhecimento sensível. Pensem em quanta informação há em uma peça de artesanato: No burrinho e no carro de boi temos um dado histórico, a prática do tropeirismo. Temos uma informação geográfica, já que a utilização de burros é uma prática típica de regiões com relevo acidentado. Temos uma informação botânica, já que são usados como suporte madeira e palha disponíveis na região. Temos informações da região e do próprio artesão – o seu mundo, visto como ele mesmo vê. E disso tudo brota uma sensação estética, a expressão de uma ideia, que é a base da conceituação da obra de arte. O artesão primeiramente cria, para depois reproduzir. E o que importa no caso é se a peça de artesanato é capaz de causar a sensação estética.

Harold Osborne, crítico de arte e filósofo da estética britânico, afirma que a verdadeira apreensão estética se dá com o maravilhamento, que progressivamente afasta o observador de todo o mundo que o rodeia. A experiência estética é, dessa forma, um movimento em que o isolamento é total. O observador já não se ocupa de nada além de sua própria sensação, nem mesmo o próprio objeto de arte é percebido, mas apenas a sensação que perpassa dele para quem o capta, que é a ideia que ele transmite, de forma pura. A seguinte frase resume otimamente essa sua tese:
A atitude estética caracteriza-se pela concentração da atenção (que separa o objeto percebido de seu entorno), pela suspensão das atividades analíticas e discursivas (ignora o contexto social e histórico), pelo desinteresse e desprendimento (afasta preocupações passadas e futuras) e, enfim, pela indiferença à existência do objeto.”

Disso tudo, chego a uma síntese que me permite concluir que o artesão, ao expressar suas ideias, na criação do protótipo de seu artesanato (que, no final das contas, é seu ganha-pão), é um autêntico artista, a despeito do objetivo pragmático de sua produção. Afinal de contas, assim como a neutralidade científica é um mito, também o desinteresse artístico o é. Mas isso, isoladamente, não tira a criatividade e a capacidade de produzir o espanto e a admiração que as mãos humanas têm ao moldar o objeto estético.
Recomendações de leitura:
Osborne apregoava que a grande experiência estética era uma total absorção do sujeito pelo objeto de arte. Interessante. É possível ler muito mais no livro abaixo:
OSBORNE, Harold. Estética e teoria da arte. São Paulo: Cultrix, 1978.

As doutrinas de Peirce até hoje são adotadas no modo de aplicar o capitalismo e o pensamento geral nos Estados Unidos. Para compreendê-lo melhor, indico a obra abaixo:
PEIRCE, Charles S. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix, 1975.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Diário de bordo de uma nau sem rumo – 1º porto: Queluz, as ladeiras da memória

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Pode parecer mentira, mas o fato é que tirei alguns dias de folga do serviço, o que é algo incrível, para quem conhece um pouco do meu quotidiano. E aproveitei para pegar a patroa e rodar mundo afora. Falando assim, dá a impressão que velejamos por verdes mares, planamos por céus de brigadeiro (a patente, não o doce) ou refizemos as trilhas dos primeiros missionários neste indômito país tupiniquim. Bem, não é verdade. Orçamento malvadamente estreito, limitamo-nos a trafegar por algumas pequenas cidades do próprio estado de São Paulo, indo de uma a outra a esmo, decidindo na hora onde passaríamos as noites e onde nossos vorazes apetites seriam saciados. Em suma, uma versão pós-moderna e motorizada dos mochileiros de ontem e hoje.
O objetivo do rolê era realmente dar uma descansada nos mal articulados ossos, mas a Filosofia é danadinha. Em cada objeto, em cada costume, em cada tradição, em cada história e em cada pessoa há um pequeno vento que quer fazer com que as asas da coruja de Minerva se abram, e seus olhos se agucem para a caça. Por conta disso, essa turnê não foi meramente turística, mas caiu também no escopo histórico-filosófico, e tive a ideia de narrar as minhas passagens juntamente às impressões e pensamentos que cada uma delas disparou em mim. Vamos nessa, é justo e necessário.
Havia já algum tempo que a cara-metade queria conhecer a cidade de Queluz, um tanto próxima da capital (220 Km, mais ou menos) e com pouco mais de 10.000 habitantes. Pequena, ora pois. Decidimos começar por lá nosso périplo, e depois veríamos o que fazer.
Queluz é a última cidade do estado de São Paulo antes de entrar no Rio de Janeiro pela via Dutra (BR-116), e fica encravada entre a serra da Mantiqueira e a serra da Bocaina, sendo a primeira cidade do chamado Vale Histórico, que, na verdade, é composto por uma pequena série de cidades que ficaram perdidas e com o progresso detido após a estrada que as enfileiram (Rodovia dos Tropeiros, antigo caminho de São Paulo para o Rio de Janeiro) deixar de ser um rumo entre as duas principais metrópoles do país. A sensação de que o tempo parou é real.
Queluz tem muito daquilo que é o padrão do que sabemos que vamos encontrar em uma cidade do interior, a começar pela igrejona de estilo barroco na praça central, muito embora, no caso, a igreja de São João Batista não esteja propriamente na região mais movimentada da cidade, mas em um dos seus incontáveis morros.

A cidade faz parte da riquíssima (mas não aqui) região do Vale do Paraíba, que tem esse nome por conta do rio que a atravessa de fora a fora, o Paraíba do Sul. Em Queluz, ele é presença constante e representa uma linha divisória. Toda a área urbana está construída em suas margens. Não chega a cheirar mal, mas infelizmente está já bem poluído neste pedaço.

Duas são as atividades básicas, pelo que pude perceber. O artesanato, baseado na confecção de peças em palha, taboa e couro, e a extração de madeira. A primeira é feita nas casas e galpões, de modo totalmente manual.

É bastante interessante verificar como o ser humano é dotado de paciência para ficar horas e mais horas manipulando as fibras para tecer uma intrincada trama que, no fim, vai lhe render meia dúzia de trocados.

 

A outra atividade, a extração de eucaliptos, tem uma história mais triste, que ficamos conhecendo com o depoimento que a coleguinha professora Heloísa Helena (nada a ver com a ex-candidata à Presidência) deu a nós. A área rural do município era, no passado, fartamente aproveitada por fazendas de café. Com o aumento da produtividade e a migração da produção para outros lugares, como o Oeste Paulista ou o sul de Minas Gerais, as terras passaram a ser ocupadas por plantações de eucalipto, utilizados pela indústria madeireira. Isso, por si só, não seria o grande problema. Mas o centro histórico da cidade passou a ser cada vez mais trafegado por enormes caminhões e treminhões. Evidentemente, as casinhas de taipa de pilão e pau-a-pique começaram a ser grandemente danificadas, e a sua manutenção tornou-se praticamente impossível. A cidade vive hoje em uma guerra judicial para que os caminhões acessem a via Dutra através da Rodovia dos Tropeiros, mas as empresas não querem aumentar o trajeto, o que tal medida obrigaria. Enquanto isso, um importante legado dos áureos tempos em que a cidade era parte da Estrada Real que levava das Minas Gerais à sede do império vai se tornando cada vez mais depreciado.

Uma boa parte do casario continua em bom estado, e tenho notícias de que este setor da cidade é eventualmente utilizado para gravações de filmes e novelas em que se quer retratar a época áurea das cidades cafeeiras do princípio do século passado...

 

... mas o fato é que os sinais de decadência são mais claros. Um deles é a sede da ainda existente banda Lira Queluzense, que vem lutando arduamente para manter sua sobrevivência. As marcas de degradação estão muito acentuadas no belo, porém simples prédio que abriga a corporação. É localizada em uma rua estreita e bastante tranquila, mas digna de meter medo em nós, assustadiços paulistanos. Imagine-se andando em uma travessinha dessas à meia-noite:


Mais grave é a situação do já desativado prédio da fábrica de laticínios Vigor, da qual restam poucas identificações. Aliás, para saber do que se tratava o prédio, precisei me socorrer da memória de seus moradores mais antigos, que contaram o quanto o encerramento das atividades desta fábrica levou de empregos embora.




Exemplo de um final um pouco mais feliz se deu com a antiga estação ferroviária, com o aproveitamento do espaço para a instalação de um centro de referência para idosos e de uma escola técnica. Obviamente, por se tratar de um equipamento público, a migração de funções se deu com mais facilidade, mas eu pude constatar o quanto a intensidade do tráfego de caminhões é nociva para estas construções antigas: o reboco é repleto de rachaduras e há fuligem para todos os cantos onde a mão alcança. Apesar da foto um tanto infeliz, é possível perceber a quantidade de remendos feitos nas paredes.

 
Mas o que minha mente mais vinculou à cidade é a quantidade de ladeiras. As casas estão distribuídas em região montanhosa, e, como é fácil supor, dão-nos conta da engenhosidade humana no quesito adaptação ao ambiente disponível. A ladeira da foto abaixo é a que leva da margem do rio ao largo da Matriz. Percebam que minha pouca coordenação motora fez com que o enquadramento esteja levemente inclinado. A ladeira é ainda mais íngreme!

Já as fotos abaixo mostram o aclive que leva a uma vila de artesãos. A primeira tem uma escada auxiliar para os transeuntes mais claudicantes evitarem quedas e rolagens diversas...

 
... enquanto a segunda exibe a pirambeira que leva à região central. Perceba-se que o calçamento mais ao alto (da ladeira, não da foto) utiliza pedras irregulares, mais antigas que os macadames visíveis apenas em um pequeno trecho do leito carroçável.

 

E entre essas ladeiras encontramos a grande riqueza da cidade: sua memória. De todas as que visitei nessa viagem, é a que mais está impregnada de história, e talvez é a que mais tenha sentido o impacto da desconstrução de seu passado.
A memória é uma coisa danada. Ela é o grande componente da identidade, e sua perda faz com que nunca mais saibamos explicar o que somos hoje. Cada fator que vivenciamos é um tijolinho na imensa construção de nossa história. Veja o que acontece com as pessoas que sofrem do mal de Alzheimer: são seres que, apesar da presença física e da manutenção das funções fisiológicas, não existem mais. Deixaram de ser a si mesmas, porque o passado e seus vínculos lhe fugiram. Os parentes, os lugares, as experiências... tudo se vai. Por isso mesmo, é uma das doenças mais tristes que existem.

O mesmo se aplica a uma cidade. Cada pequena lembrança ajuda a compreender o que ela é. Nossas cidades, sejam grandes ou pequenas, parecem viver em amnésia. Isso se aplica a Queluz, a São Paulo, ao Rio, até mesmo a cidades mais novas, como Brasília. Quando se decidiu construir a capital no Planalto, será que houve a devida preocupação em manter um registro digno de tudo o que se desenvolveu naquela região antes da guinada radical que foi dada em seu destino? Se a história de cada um é dinâmica, como poderemos revisitar o que nos tornou o que somos, se nem ao menos temos o quê olhar para trás?
E nisso entramos em Gadamer.

Hans-Georg Gadamer foi um filósofo alemão que se dedicou à interpretação e reinterpretação da história. Para tanto, lançou-se profundamente na hermenêutica, atividade que pretende compreender a realidade contida nos textos, expressos eles de modo escrito, verbal ou visual.
A hermenêutica já não era novidade no começo do século XX, época em que Gadamer deu seus sábios pitacos. Ela era (e ainda é) largamente usada pelos teólogos para buscar entender e traduzir os textos sagrados de suas religiões, bem como pelos doutores de Direito e causídicos em geral, para procurar absorver o sentido que os legisladores desejavam que fosse dado às suas sistematizações. A grande novidade de Gadamer é entendê-la como uma técnica de constante renovação, e a conclusão de que nenhuma interpretação é definitiva. A hermenêutica é cíclica. Cada interpretação comporta uma reinterpretação, e esta comporta outra, e mais outra, e outra ainda.
Esse processo se dá porque ninguém interpreta o mundo de forma totalmente isenta. Estamos imbuídos de todas as recordações e memórias que constroem nossos julgamentos, conceitos, juízos. Esses componentes moldam nossa forma de interpretar.
Dessa forma, a interpretação se dá em forma de “choques”. Na primeira vez que deparamos com um texto, por exemplo, este nos demanda a busca de um sentido que vamos montar com base no nosso conhecimento presente. Quando retomamos o texto, sentimos que a interpretação já não é a mesma, somos impelidos a rever a interpretação porque nosso equipamento cultural já está modificado. A cada novo conceito, novo juízo, novo entendimento, vem-nos a necessidade de mudar nosso relacionamento com ele. Passamos a dialogar com o texto e com a interpretação que demos a ele.
Isso acontece porque a cada nova apreensão que recebemos do mundo, modificamos conceitos e a nós mesmos, o que comporta uma auto-reinterpretação. O homem cresce sobre si mesmo cada vez que se reinterpreta. E reinterpretar-se significa reinterpretar o mundo.
Vou dar um exemplinho pessoal. Nos tempos em que eu trabalhava na indústria farmacêutica, conheci um homem que era muito malquisto por praticamente todos os colegas, eu inclusive. Não vou citar seu nome, não é relevante. Era um cara arredio, resmungão, chato de lidar. Uma pessoa de quem todos desconfiavam muito, porque tinha atitudes estranhas para quem convivia com um grupo. Um cara pernóstico, arrogante, cheio de bazófia e má vontade. Se nesse momento eu me lançasse a escrever uma crônica sobre nosso pobre-diabo, fatalmente eu o desancaria. Provavelmente diria que era uma má companhia, que era ensimesmado porque queria deter para si informações importantes e outras balelas.
Acontece que o tempo passou e eu, quase que por acaso, acabei tendo informações mais significativas sobre sua vida pessoal. Fiquei sabendo que ele adotou uma criança com seriíssimos problemas cerebrais, que a faziam viver como um legume, e que essa criança cresceu e se tornou um homem na faixa dos 30 anos. Fiquei sabendo que ele adotou essa criança livremente, e que já sabia de todos os percalços pelos quais passaria. Fiquei sabendo que ele cuidava pessoalmente de toda a higiene pessoal do filho adotivo, porque era o único da casa que tinha força suficiente para carregá-lo de um lado para o outro. Fiquei sabendo que não havia nenhum tipo de esperança de que o menino se tornaria uma pessoa normal (de acordo com as convenções), que para sempre seria incomunicável, não andaria, não reconheceria os pais e os familiares. E fiquei sabendo, principalmente, que ele ensinou seus filhos legítimos, mais novos que este adotivo, a amá-lo como um legítimo irmão. Conheci ambos os filhos de sangue, e, de fato, falavam do irmão mais velho com carinho.
Meu choque: a vergonha que senti no meu pré-julgamento. A consequência: uma completa reinterpretação do que eu pensava sobre o meu colega. Agora ele já não era um cara fechado, mas sim um homem amargurado. Ele não era mais um reclamão: era um homem que se sentia fisicamente cansado pelo peso literal que tinha a carregar. Nunca mais pude vê-lo com a repugnância inicial.
Era mais ou menos isso o que Gadamer queria dizer com a reinterpretação contínua que a hermenêutica deve cuidar. Um entendimento está sempre eivado de nossas convicções, e, na medida em que estas mudam, também são modificadas as balizas que dão base às nossas interpretações. E aí nós temos a pedra de toque gadameriana: a hermenêutica deve ser histórica, deve mudar com a nossa história.
É assim que vi Queluz, e espero rever. Ela contém em si sua interpretação e sua reinterpretação, porque tem a história escrita em seu espaço físico. Quem olha para seu casario baixo e antigo, entende-a de uma forma. Quem percebe os amplos espaços vazios e economia pobre, modifica seu entendimento e já a vê diferentemente. Olha para o alto de suas colinas, sente uma indefinição em seu futuro e traz um novo elemento para compreendê-la. Faz-nos sentir como uma parte da aventura humana inserido em outra parte da aventura universal. A história não nos pertence; nós pertencemos a ela. Assim ensina o mestre.

Recomendações de leitura:

Gadamer dá à hermenêutica um aspecto inédito, ao estabelecer a coerência entre os juízos e os momentos históricos do sujeito interpretador e do objeto interpretado. Sua obra mais interessante é a seguinte:

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1997.