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quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Entre garrafadas e dragões escondidos em nossas garagens (Pequeno guia das grandes falácias - 31º tomo: a evidência anedótica)

Olá!


Meu sogrão é um cara gente boa prá cacete. Sério, não estou puxando o saco nem o tapete dele, como se verá mais à frente. Quando eu e a patroa nos casamos, o teto que tínhamos disponível era o porão da casa dele, que ficou disponível de bate-pronto. Era isso ou encarar aluguel, bem distante que me encontrava da casa própria. Além disso, ajudou-me muito com os apertos dos meios-empregos que mal me remuneravam (quando remuneravam) quando as crianças eram ainda pequenas. Por isso, é um contribuinte a quem tenho lá minhas dívidas de gratidão.

Mas o meu sogro tem uma característica marcante: é o típico representante do homem ingênuo, que prefere acreditar em uma pessoa da rua do que em alguém de casa. Conto uma passagem curiosa: em seus tempos de trabalho noturno, era comum dar uma baixada no ânimo, como acontece com tanta gente. Trabalhar à noite é foda – parece que a noite foi feita só para beber trepar dormir, e quando é feita a troca, o corpo acusa. Ele trabalhava em uma empresa verdadeiramente grande, com um quadro de funcionários igualmente grande, e que, por conseguinte, atraía expressivo número de comerciantes informais à sua porta, vendendo os badulaques mais vários possíveis, com ênfase na alimentação miúda. Certa feita, o sogrão aparece com um recipiente contendo um líquido marrom-esverdeado, de consistência espessa, paramentado com um rótulo de esparadrapo, onde mal se liam as ervas que o compunham: uma garrafada. Meio copo americano ao levantar, meio copo americano ao deitar era a posologia revigorante. Ainda estava cheia, o que provava que meu sogro não havia iniciado o “tratamento”.

Quando vi o malfazejo recipiente sobre a pia, meio que oculto ao lado da talha de porcelana, perguntei à minha mulher que porra era aquela. Como não soubesse, perguntei como que o pai dela tinha coragem de encarar uma beberagem daquele naipe. No final das contas, dei de ombros, porque já conhecia a figura, mas a patroinha juntou sua indignação com a da mãe dela e, em efusivo consórcio, foram tirar satisfação com o pobre e enfraquecido operário, senhor meu sogro: que tranqueira era aquela, você é louco, isso vai te fazer mal e blá, e blá, e blá, além da pergunta sensata: “Se você não está se sentindo bem, por que não procura um médico?”. A resposta desanimadora versava sobre o relato positivo de um colega que fizera uso da mezinha em momento análogo e que se sentira prontamente restabelecido.

O resultado foi aquele que todos estão supondo neste momento: o uso inadvertido e a consequente diarreia clássica, sonora e espasmódica, daquelas de produzir algo semelhante a brócolis em local tão delicado.

Lição aprendida? Por certo que não. Meu sogro é feito desse material, assim como tanta gente. Vou contar outra historinha, bem rapidinha, juro! O sogrão, em certa viagem que fizemos, vê um determinado carro parado e diz: “Nunca vou comprar uma tranqueira dessas. Vive quebrando”. Eu, com uma ponta de malícia, pergunto, fingindo certo assombro: “Ah, é? Então o senhor já teve um desses?”. Ele respondeu que não, mas que todo mundo que ele conhecia e que teve tal veículo se arrependeu. Não via eu aquele pobre coitado à beira da estrada? Mudamos de assunto, e, após algum tempo, observou-se ao longe o vulto de outro carro parado no acostamento, com o capô erguido e horizonte fumegante. Era um sósia do carro do sogrão, igual-que-nem. Mesmo ano, mesma cor, mesma série. Mais maldoso do que nunca, lanço o sarcasmo: “Ih, rapaz... Um carro igualzinho ao do senhor... Será que essa marca presta?”. Casmurro, responde que o problema não era o carro, mas o motorista que não sabia cuidar como devia do infeliz. Bem, isso é uma falácia do escocês de verdade, mas não vou cuidar de novo deste tema.

No final das contas, somos todos um pouco assim. Alguns ditos populares expressam bem esse sentimento de que o contato inicial e episódico vai guiar nossa realidade frente a um objeto ou acontecimento qualquer. “A primeira impressão é a que fica”, “o primeiro pensamento é o que vale”, coisas desse tipo. Só que isso é infinitamente perigoso, porque podemos construir todo um juízo em cima de uma evidência esporádica, e, assim, colar na testa de uma pessoa uma pecha injusta. Quando transferimos esse tipo de procedimento para atestar fatos que merecem cuidados mais sérios (como o caso da garrafada), aí a coisa penetra em terreno verdadeiramente movediço.

Uma pesquisa séria não se pauta em evidências pouco confiáveis, e o relato isolado é a mais frágil delas. Um depoimento pessoal, geralmente narrando uma experiência única, que faz correlação pouco lógica. É o que chamamos de evidência anedótica.

Em primeiro lugar, é preciso saber que, ao contrário do que o senso comum faz pensar, uma anedota não é uma piada. Na verdade, é um breve relato de um evento histórico sem comprovação. O termo vem do grego anekdótos, que significa não publicado, inédito, não editado. Trata-se de uma ocorrência marginal sobre uma personalidade, um local, um momento ou coisa semelhante, que é contado mais como curiosidade do que como alguma afirmativa relevante. Como muitas vezes este relato é engraçado (porque a história tende a desprezar registros eventualmente infames), as pessoas começaram a tender a tratá-lo como sinônimo de fato jocoso. É só pensar, por exemplo, naqueles nossos amigos piadistas. Sempre perguntamos se eles têm uma piada nova. Se for inédita de fato, rimos às escâncaras. Se não, fazemos cara de tédio interiormente e damos uma risadinha calculada para não perder o amigo. Afinal, não se pode acertar sempre.

Portanto, uma evidência anedótica não é originada de fontes fiáveis, o que não representa, de per si, uma mentira, mas algo difícil de ser comprovado.

Uma das grandes causas para o uso generalizado deste tipo de falácia é a confusão sobre o que é evidência e quais delas são aceitáveis em cada uma das áreas do conhecimento humano. Mais especificamente, o que pode dar base à verdade em cada uma delas.

Eu escrevera, um tempo atrás, um texto onde falei sobre as concepções da verdade. Interessa-nos, para o tema em atual abordagem, a aletheia e a veritas, as verdades de raiz grega e latina, respectivamente.

A aletheia é a verdade do real tangível, daquilo que posso ver, tocar, caracterizar, mensurar, obter contato empírico. É o objeto posto em minha frente, disponível para minha análise, livre de ocultações e dissimulações. Essa concepção de verdade é aquela advinda da evidência factual, que é muito proveitosa para a Ciência.

Já a veritas é a verdade do relato, daquilo que foi narrado, que teve um tráfego pelo tempo, que descreve o fato sem tê-lo à sua frente. Não há um objeto disponível a quem analisa, mas uma linguagem a serviço do registro. O que eu falo é o que reputamos como verdade; não tenho nada a mostrar, a não ser minha linguagem reconstruindo o passado. Essa concepção é aquela onde a verdade provém da confiabilidade da narrativa, e serve muito bem para a História. É possível perceber como essa segunda concepção é pobre para a Ciência?

Em resumo, a Ciência se serve da aletheia, a concepção de verdade ligada à correspondência do real palpável. E a História utiliza a veritas, a verdade que se estabelece pela coerência do que se conta sobre um fato. O problema ocorre quando uma busca se imiscuir na área de atuação da outra.

A Ciência não pode se basear no “ouvir falar”. Para atestar que um remédio funciona, por exemplo, precisa realizar testes em cobaias, fazer exames em meios de cultura, combinar com outras drogas e verificar seus efeitos e, quando necessita de depoimentos, procura diminuir ao mínimo as variáveis humanas, ampliando o mais possível a quantidade de amostras e produzindo testes sofisticados, como o duplo-cego (do qual já dei uma palhinha neste texto), que procuram enfatizar ao extremo os resultados da pesquisa, e não as eventuais opiniões das partes envolvidas, buscando um padrão de resposta que permita descartar desvios. Os remédios não podem sair da mão de benzedeiras que manipulam suas ervas junto de suas rezas e objetos mágicos, mesmo que circundado da aura de seriedade. Isso não dá garantia de que uma mezinha irá funcionar.


A erva de uma maga pode até funcionar. Mas, enquanto não for submetida a provas, não é Ciência.

Mas pode funcionar? Claro que pode. O uso de ervas é consagrado na medicina, e a fitoterapia é uma espécie de ponte válida entre os medicamentos modernos e a sabedoria tradicional. A partir do momento em que uma poção qualquer passa pelo crivo do método científico e comprova sua eficácia, transforma-se em medicação. E, neste processo, provavelmente se abandonará a necessidade de rituais mágicos, de ambientes místicos, de executores específicos, de momentos exatos do dia ou da noite. Se for percebida alguma mudança na efetividade da ex-poção ao se introduzir algum desses fatores, mais uma vez a metodologia científica entrará em ação e buscará entender os motivos da diferença.

Com a História, o buraco é mais embaixo. Seria o sonho de todo historiador aplicar única e exclusivamente uma metodologia semelhante à científica, trabalhando através de provas e evidências. Mas o fato é que a História lida com o tempo, e o passado já não temos mais à nossa frente. Por isso, a História tem que se servir dos relatos para existir. Quanto maior a quantidade de relatos e quanto mais coerentes forem entre si, mais sólida se torna a evidência. E os relatos não vêm só das bocas, mas de tudo o que for vestígio cultural. Um bom exemplo vem da arqueologia: em suas escavações, os arqueólogos acham pistas literalmente aos cacos. Se em um pedaço de cerâmica qualquer vemos a cena de uma dança, temos o indício de um hábito da população que habitava aquele local. Ao encontrar outros objetos que retratam cenas semelhantes, a tese vai se consolidando. Ao se encontrar rudimentos de instrumentos musicais, mais e mais vai se construindo uma característica daquele povo e vai se escrevendo, de maneira consistente, pontos importantes de sua história. Mas nunca veremos novamente aquele povo cantando e dançando. A Ciência tem condições de fazer predições: se fizermos A sob as condições B e C, obteremos D; se obtivermos E, a teoria estará refutada. Isso é muito mais frágil para a História. Às vezes o que temos é um fragmento de escrita, que contém as palavras de alguém que dificilmente conseguiremos deduzir as intenções. Já falei muito da importância do relato no epílogo do meu diário de bordo, e percebam que a vivacidade do depoimento é importante para saborizar uma experiência histórica, e não científica.

Mas o exemplo mais bem acabado para compreendermos as dificuldades da validade da evidência pessoal vem do Direito. Assim como na Ciência, o Direito precisa buscar seu funcionamento em provas, mas, assim como na História, muitas vezes tudo o que ele tem são os depoimentos. E, nestas sendas, tudo é possível. Um testemunho de uma cena de crime, por exemplo, pode ser influenciado por inúmeros fatores: alguns são técnicos, como o ângulo de visão e a acuidade visual; a existência de barreiras que dificultam a captação auditiva, assim como a existência de ruídos; a passagem do tempo, que vai tornando as memórias menos claras, ou até mesmo falsas, como discriminamos neste texto. Outro fator é a proximidade com a vítima: familiares, parentes, amigos íntimos e inimigos capitais costumam ter seus depoimentos pouco considerados, porque estão atravessados por sentimentos. Menores de idade, idosos com abalos neurológicos e insanos também tem seus testemunhos relativizados, pela possibilidade de não haver nexo em seus depoimentos. O ideal, quando possível, é recorrer a desconhecidos capazes, mas estes não nascem em árvores, e mesmo estes podem impor suas idiossincrasias ao relato, seja porque o crime os chocou demais, ou por ter sido cometido contra um membro de sua etnia, gênero, religião, time ou seja lá o que for. Os depoimentos são tão frágeis que estão na base da pirâmide hierárquica das provas (muito embora não haja a sistematização da validade destas no Direito brasileiro), colocados em detrimento de provas documentais ou periciais. Fotos, vídeos, escritos e laudos de especialistas contam muito mais do que relatos.

Mas a evidência anedótica não é só isso. Li um excelente livro que retrata muito bem onde são utilizados relatos pessoais que ajudam a moldar pseudociências, O mundo assombrado pelos demônios. Uma de suas passagens é especialmente famosa: a alegoria do dragão na garagem. Vamos ceder a voz ao autor:

“Um dragão que cospe fogo pelas ventas vive na minha garagem. Suponhamos (estou sugerindo uma abordagem de terapia de grupo proposta pelo psicólogo Richard Franklin) que eu lhe faça seriamente essa afirmação. Com certeza você irá querer verificá-la, ver por si mesmo. São inumeráveis as histórias de dragões no decorrer dos séculos, mas não há evidências reais. Que oportunidade!

Mostre-me – você diz.

Eu o levo até a minha garagem. Você olha para dentro e vê uma escada de mão, latas de tinta vazias, um velho triciclo, mas nada de dragão.

- Onde está o dragão? – você pergunta.

- Oh, está ali – respondo, acenando vagamente. Esqueci de lhe dizer que é um dragão invisível.

Você propõe espalhar farinha no chão da garagem para tornar visíveis as pegadas do dragão.

- Boa ideia – digo eu, mas esse dragão flutua no ar.

Então você quer usar um sensor infravermelho para detectar o fogo invisível.

- Boa ideia, mas o fogo invisível é também desprovido de calor.

Você quer borrifar o dragão com tinta para torná-lo visível.

- Boa idéia, só que é um dragão incorpóreo e a tinta não vai aderir.

E assim por diante. Eu me oponho a todo teste físico que você propõe com uma explicação especial de por que não vai funcionar.

Ora, qual é a diferença entre um dragão invisível, incorpóreo, flutuante, que cospe fogo atérmico, e um dragão inexistente? Se não há como refutar a minha afirmação, se nenhum experimento concebível vale contra ela, o que significa dizer que o meu dragão existe? A sua incapacidade de invalidar a minha hipótese não é absolutamente a mesma coisa que provar a veracidade dela. Alegações que não podem ser testadas, afirmações imunes a refutações não possuem caráter verídico, seja qual for o valor que possam ter por nos inspirar ou estimular nosso sentimento de admiração. O que estou pedindo a você é tão-somente que, em face da ausência de evidências, acredite na minha palavra”.

É exatamente aí que a evidência anedótica vira uma falácia. Uma simples alegação não serve para que algo seja verdadeiro. Um dragão na garagem não é nada sem evidência, além de um conto, uma estorinha contada para assustar os incautos. Dizer que uma garrafada fez bem não pode ser levado em conta como prova de sua efetividade, assim como a informação de que uma determinada previsão do horóscopo bateu com um fato ocorrido. Se houve a coincidência, das duas uma: ou ela nada mais é do que isso (uma coincidência) ou há algum tipo de mecanismo que o explique cientificamente, e que não ocorreu por uma mera posição dos astros. Ou ainda as alegações de visualização de OVNI’s. Já foram tantas fraudes na tentativa de provar sua existência que se generaliza o descrédito, e somente os depoimentos dão sustentação às experiências vividas.

Inúmeras vezes eu já disse neste espaço que é do escopo da Ciência a existência de provas. Se fizermos uma alegação qualquer, somente um conjunto robusto de evidências que podem ser falseadas tornam-na científica. Algo que não pode ser provado ficará sempre no âmbito de qualquer outra coisa, que não pode ser chamada de Ciência.

Este é um assunto que eu tenho tocado reiteradas vezes. Não quero parecer chato (já sendo), porque é parte da Filosofia dar o nome e as funções aos bois. E é muito comum existirem confusões quando tentamos dar algum tipo de base àquilo que acreditamos. E as coisas em que acreditamos nos são caras. É muito irritante quando alguém vem de dedo apontado para argumentos nos quais nada mais temos do que a intuição para calçar. Como eu disse, a evidência anedótica não é uma mentira, ao menos necessariamente. É um relato que, isoladamente, não pode receber um valor de verdade em caráter amplo. Mas não precisamos duvidar de nossos avós quando eles contam algo do passado da família, ou quando nos narram alguma aventura pretérita onde precisamos de algum tipo de molho para engolir. Já pensou que puta coisa chata?

Recomendação de leitura:

Carl Sagan foi o primeiro divulgador científico que atingiu massivamente grandes audiências através da mídia, através de sua série Cosmos. Mas quero aqui recomendar o livro que já mencionei acima, um grande libelo contra as pseudociências.

SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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