Olá!
Meu sogrão é um cara gente boa prá cacete. Sério, não estou
puxando o saco nem o tapete dele, como se verá mais à frente. Quando eu e a
patroa nos casamos, o teto que tínhamos disponível era o porão da casa dele,
que ficou disponível de bate-pronto. Era isso ou encarar aluguel, bem distante
que me encontrava da casa própria. Além disso, ajudou-me muito com os apertos
dos meios-empregos que mal me remuneravam (quando remuneravam) quando as
crianças eram ainda pequenas. Por isso, é um contribuinte a quem tenho lá
minhas dívidas de gratidão.
Mas o meu sogro tem uma característica marcante: é o típico
representante do homem ingênuo, que prefere acreditar em uma pessoa da rua do
que em alguém de casa. Conto uma passagem curiosa: em seus tempos de trabalho
noturno, era comum dar uma baixada no ânimo, como acontece com tanta gente.
Trabalhar à noite é foda – parece que a noite foi feita só para beber trepar
dormir, e quando é feita a troca, o corpo acusa. Ele trabalhava em uma empresa
verdadeiramente grande, com um quadro de funcionários igualmente grande, e que,
por conseguinte, atraía expressivo número de comerciantes informais à sua
porta, vendendo os badulaques mais vários possíveis, com ênfase na alimentação
miúda. Certa feita, o sogrão aparece com um recipiente contendo um líquido
marrom-esverdeado, de consistência espessa, paramentado com um rótulo de
esparadrapo, onde mal se liam as ervas que o compunham: uma garrafada. Meio
copo americano ao levantar, meio copo americano ao deitar era a posologia
revigorante. Ainda estava cheia, o que provava que meu sogro não havia
iniciado o “tratamento”.
Quando vi o malfazejo recipiente sobre a pia, meio que
oculto ao lado da talha de porcelana, perguntei à minha mulher que porra era
aquela. Como não soubesse, perguntei como que o pai dela tinha coragem de
encarar uma beberagem daquele naipe. No final das contas, dei de ombros, porque
já conhecia a figura, mas a patroinha juntou sua indignação com a da mãe dela
e, em efusivo consórcio, foram tirar satisfação com o pobre e enfraquecido
operário, senhor meu sogro: que tranqueira era aquela, você é louco, isso vai
te fazer mal e blá, e blá, e blá, além da pergunta sensata: “Se você não está
se sentindo bem, por que não procura um médico?”. A resposta desanimadora
versava sobre o relato positivo de um colega que fizera uso da mezinha em
momento análogo e que se sentira prontamente restabelecido.
O resultado foi aquele que todos estão supondo neste
momento: o uso inadvertido e a consequente diarreia clássica, sonora e
espasmódica, daquelas de produzir algo semelhante a brócolis em local tão
delicado.
Lição aprendida? Por certo que não. Meu sogro é feito desse
material, assim como tanta gente. Vou contar outra historinha, bem rapidinha,
juro! O sogrão, em certa viagem que fizemos, vê um determinado carro parado e
diz: “Nunca vou comprar uma tranqueira dessas. Vive quebrando”. Eu, com uma
ponta de malícia, pergunto, fingindo certo assombro: “Ah, é? Então o senhor já
teve um desses?”. Ele respondeu que não, mas que todo mundo que ele conhecia e
que teve tal veículo se arrependeu. Não via eu aquele pobre coitado à beira da
estrada? Mudamos de assunto, e, após algum tempo, observou-se ao longe o vulto
de outro carro parado no acostamento, com o capô erguido e horizonte fumegante.
Era um sósia do carro do sogrão, igual-que-nem. Mesmo ano, mesma cor, mesma
série. Mais maldoso do que nunca, lanço o sarcasmo: “Ih, rapaz... Um carro
igualzinho ao do senhor... Será que essa marca presta?”. Casmurro, responde que
o problema não era o carro, mas o motorista que não sabia cuidar como devia do
infeliz. Bem, isso é uma falácia do escocês de verdade, mas não vou
cuidar de novo deste tema.
No final das contas, somos todos um pouco assim. Alguns ditos
populares expressam bem esse sentimento de que o contato inicial e episódico
vai guiar nossa realidade frente a um objeto ou acontecimento qualquer. “A
primeira impressão é a que fica”, “o primeiro pensamento é o que vale”, coisas
desse tipo. Só que isso é infinitamente perigoso, porque podemos construir todo
um juízo em cima de uma evidência esporádica, e, assim, colar na testa de uma
pessoa uma pecha injusta. Quando transferimos esse tipo de procedimento para
atestar fatos que merecem cuidados mais sérios (como o caso da garrafada), aí a
coisa penetra em terreno verdadeiramente movediço.
Uma pesquisa séria não se pauta em evidências pouco
confiáveis, e o relato isolado é a mais frágil delas. Um depoimento pessoal,
geralmente narrando uma experiência única, que faz correlação pouco lógica. É o
que chamamos de evidência anedótica.
Em primeiro lugar, é preciso saber que, ao contrário do que
o senso comum faz pensar, uma anedota não é uma piada. Na verdade, é um breve
relato de um evento histórico sem comprovação. O termo vem do grego anekdótos, que significa não publicado,
inédito, não editado. Trata-se de uma ocorrência marginal sobre uma
personalidade, um local, um momento ou coisa semelhante, que é contado mais
como curiosidade do que como alguma afirmativa relevante. Como muitas vezes
este relato é engraçado (porque a história tende a desprezar registros
eventualmente infames), as pessoas começaram a tender a tratá-lo como sinônimo
de fato jocoso. É só pensar, por exemplo, naqueles nossos amigos piadistas.
Sempre perguntamos se eles têm uma piada nova. Se for inédita de fato, rimos às
escâncaras. Se não, fazemos cara de tédio interiormente e damos uma risadinha
calculada para não perder o amigo. Afinal, não se pode acertar sempre.
Portanto, uma evidência anedótica não é originada de fontes
fiáveis, o que não representa, de per si, uma mentira, mas algo difícil de ser
comprovado.
Uma das grandes causas para o uso generalizado deste tipo de
falácia é a confusão sobre o que é evidência e quais delas são aceitáveis em
cada uma das áreas do conhecimento humano. Mais especificamente, o que pode dar
base à verdade em cada uma delas.
Eu escrevera, um tempo atrás, um texto onde falei sobre as concepções da verdade. Interessa-nos, para o tema em atual abordagem, a aletheia e a veritas, as verdades de raiz grega e latina, respectivamente.
A aletheia é a
verdade do real tangível, daquilo que posso ver, tocar, caracterizar, mensurar,
obter contato empírico. É o objeto posto em minha frente, disponível para minha
análise, livre de ocultações e dissimulações. Essa concepção de verdade é
aquela advinda da evidência factual, que é muito proveitosa para a Ciência.
Já a veritas é a
verdade do relato, daquilo que foi narrado, que teve um tráfego pelo tempo, que
descreve o fato sem tê-lo à sua frente. Não há um objeto disponível a quem
analisa, mas uma linguagem a serviço do registro. O que eu falo é o que
reputamos como verdade; não tenho nada a mostrar, a não ser minha linguagem
reconstruindo o passado. Essa concepção é aquela onde a verdade provém da
confiabilidade da narrativa, e serve muito bem para a História. É possível
perceber como essa segunda concepção é pobre para a Ciência?
Em resumo, a Ciência se serve da aletheia, a concepção de verdade ligada à correspondência do real
palpável. E a História utiliza a veritas,
a verdade que se estabelece pela coerência do que se conta sobre um fato. O
problema ocorre quando uma busca se imiscuir na área de atuação da outra.
A Ciência não pode se basear no “ouvir falar”. Para atestar
que um remédio funciona, por exemplo, precisa realizar testes em cobaias, fazer
exames em meios de cultura, combinar com outras drogas e verificar seus efeitos
e, quando necessita de depoimentos, procura diminuir ao mínimo as variáveis
humanas, ampliando o mais possível a quantidade de amostras e produzindo testes
sofisticados, como o duplo-cego (do qual já dei uma palhinha neste texto),
que procuram enfatizar ao extremo os resultados da pesquisa, e não as eventuais
opiniões das partes envolvidas, buscando um padrão de resposta que permita
descartar desvios. Os remédios não podem sair da mão de benzedeiras que
manipulam suas ervas junto de suas rezas e objetos mágicos, mesmo que
circundado da aura de seriedade. Isso não dá garantia de que uma mezinha irá
funcionar.
A erva de uma maga pode até funcionar. Mas, enquanto não for submetida a provas, não é Ciência. |
Mas pode funcionar? Claro que pode. O uso de ervas é consagrado na medicina, e a fitoterapia é uma espécie de ponte válida entre os medicamentos modernos e a sabedoria tradicional. A partir do momento em que uma poção qualquer passa pelo crivo do método científico e comprova sua eficácia, transforma-se em medicação. E, neste processo, provavelmente se abandonará a necessidade de rituais mágicos, de ambientes místicos, de executores específicos, de momentos exatos do dia ou da noite. Se for percebida alguma mudança na efetividade da ex-poção ao se introduzir algum desses fatores, mais uma vez a metodologia científica entrará em ação e buscará entender os motivos da diferença.
Com a História, o buraco é mais embaixo. Seria o sonho de
todo historiador aplicar única e exclusivamente uma metodologia semelhante à
científica, trabalhando através de provas e evidências. Mas o fato é que a
História lida com o tempo, e o passado já não temos mais à nossa frente. Por
isso, a História tem que se servir dos relatos para existir. Quanto maior a quantidade
de relatos e quanto mais coerentes forem entre si, mais sólida se torna a
evidência. E os relatos não vêm só das bocas, mas de tudo o que for vestígio cultural. Um bom exemplo vem da arqueologia: em suas escavações, os arqueólogos
acham pistas literalmente aos cacos. Se em um pedaço de cerâmica qualquer vemos
a cena de uma dança, temos o indício de um hábito da população que habitava
aquele local. Ao encontrar outros objetos que retratam cenas semelhantes, a
tese vai se consolidando. Ao se encontrar rudimentos de instrumentos musicais,
mais e mais vai se construindo uma característica daquele povo e vai se
escrevendo, de maneira consistente, pontos importantes de sua história. Mas
nunca veremos novamente aquele povo cantando e dançando. A Ciência tem
condições de fazer predições: se fizermos A sob as condições B e C, obteremos
D; se obtivermos E, a teoria estará refutada. Isso é muito mais frágil para a
História. Às vezes o que temos é um fragmento de escrita, que contém as
palavras de alguém que dificilmente conseguiremos deduzir as intenções. Já
falei muito da importância do relato no epílogo do meu diário de bordo, e
percebam que a vivacidade do depoimento é importante para saborizar uma
experiência histórica, e não científica.
Mas o exemplo mais bem acabado para compreendermos as
dificuldades da validade da evidência pessoal vem do Direito. Assim como na
Ciência, o Direito precisa buscar seu funcionamento em provas, mas, assim como
na História, muitas vezes tudo o que ele tem são os depoimentos. E, nestas
sendas, tudo é possível. Um testemunho de uma cena de crime, por exemplo, pode
ser influenciado por inúmeros fatores: alguns são técnicos, como o ângulo de
visão e a acuidade visual; a existência de barreiras que dificultam a captação
auditiva, assim como a existência de ruídos; a passagem do tempo, que vai
tornando as memórias menos claras, ou até mesmo falsas, como discriminamos neste texto. Outro fator é a proximidade com a vítima: familiares, parentes,
amigos íntimos e inimigos capitais costumam ter seus depoimentos pouco
considerados, porque estão atravessados por sentimentos. Menores de idade,
idosos com abalos neurológicos e insanos também tem seus testemunhos
relativizados, pela possibilidade de não haver nexo em seus depoimentos. O
ideal, quando possível, é recorrer a desconhecidos capazes, mas estes não nascem
em árvores, e mesmo estes podem impor suas idiossincrasias ao relato, seja
porque o crime os chocou demais, ou por ter sido cometido contra um membro de
sua etnia, gênero, religião, time ou seja lá o que for. Os depoimentos são tão
frágeis que estão na base da pirâmide hierárquica das provas (muito embora não
haja a sistematização da validade destas no Direito brasileiro), colocados em
detrimento de provas documentais ou periciais. Fotos, vídeos, escritos e laudos
de especialistas contam muito mais do que relatos.
Mas a evidência anedótica não é só isso. Li um excelente
livro que retrata muito bem onde são utilizados relatos pessoais que ajudam a
moldar pseudociências, O mundo
assombrado pelos demônios. Uma de suas passagens é especialmente famosa: a
alegoria do dragão na garagem. Vamos ceder a voz ao autor:
“Um dragão que cospe
fogo pelas ventas vive na minha garagem. Suponhamos (estou sugerindo uma
abordagem de terapia de grupo proposta pelo psicólogo Richard Franklin) que eu
lhe faça seriamente essa afirmação. Com certeza você irá querer verificá-la,
ver por si mesmo. São inumeráveis as histórias de dragões no decorrer dos
séculos, mas não há evidências reais. Que oportunidade!
Mostre-me – você diz.
Eu o levo até a minha
garagem. Você olha para dentro e vê uma escada de mão, latas de tinta vazias,
um velho triciclo, mas nada de dragão.
- Onde está o dragão? – você pergunta.
- Oh, está ali – respondo, acenando vagamente. Esqueci de lhe dizer
que é um dragão invisível.
Você propõe espalhar
farinha no chão da garagem para tornar visíveis as pegadas do dragão.
- Boa ideia – digo eu,
mas esse dragão flutua no ar.
Então você quer usar
um sensor infravermelho para detectar o fogo invisível.
- Boa ideia, mas o
fogo invisível é também desprovido de calor.
Você quer borrifar o
dragão com tinta para torná-lo visível.
- Boa idéia, só que é
um dragão incorpóreo e a tinta não vai aderir.
E assim por diante. Eu
me oponho a todo teste físico que você propõe com uma explicação especial de
por que não vai funcionar.
Ora, qual é a
diferença entre um dragão invisível, incorpóreo, flutuante, que cospe fogo
atérmico, e um dragão inexistente? Se não há como refutar a minha afirmação, se
nenhum experimento concebível vale contra ela, o que significa dizer que o meu
dragão existe? A sua incapacidade de invalidar a minha hipótese não é
absolutamente a mesma coisa que provar a veracidade dela. Alegações que não
podem ser testadas, afirmações imunes a refutações não possuem caráter
verídico, seja qual for o valor que possam ter por nos inspirar ou estimular
nosso sentimento de admiração. O que estou pedindo a você é tão-somente que, em
face da ausência de evidências, acredite na minha palavra”.
É exatamente aí que a evidência anedótica vira uma falácia.
Uma simples alegação não serve para que algo seja verdadeiro. Um dragão na
garagem não é nada sem evidência, além de um conto, uma estorinha contada para
assustar os incautos. Dizer que uma garrafada fez bem não pode ser levado em
conta como prova de sua efetividade, assim como a informação de que uma
determinada previsão do horóscopo bateu com um fato ocorrido. Se houve a
coincidência, das duas uma: ou ela nada mais é do que isso (uma coincidência)
ou há algum tipo de mecanismo que o explique cientificamente, e que não ocorreu
por uma mera posição dos astros. Ou ainda as alegações de visualização de
OVNI’s. Já foram tantas fraudes na tentativa de provar sua existência que se
generaliza o descrédito, e somente os depoimentos dão sustentação às
experiências vividas.
Inúmeras vezes eu já disse neste espaço que é do escopo da
Ciência a existência de provas. Se fizermos uma alegação qualquer, somente um
conjunto robusto de evidências que podem ser falseadas tornam-na científica.
Algo que não pode ser provado ficará sempre no âmbito de qualquer outra coisa,
que não pode ser chamada de Ciência.
Este é um assunto que eu tenho tocado reiteradas vezes. Não
quero parecer chato (já sendo), porque é parte da Filosofia dar o nome e as
funções aos bois. E é muito comum existirem confusões quando tentamos dar algum
tipo de base àquilo que acreditamos. E as coisas em que acreditamos nos são
caras. É muito irritante quando alguém vem de dedo apontado para argumentos nos
quais nada mais temos do que a intuição para calçar. Como eu disse, a evidência
anedótica não é uma mentira, ao menos necessariamente. É um relato que,
isoladamente, não pode receber um valor de verdade em caráter amplo. Mas não
precisamos duvidar de nossos avós quando eles contam algo do passado da família,
ou quando nos narram alguma aventura pretérita onde precisamos de algum tipo de
molho para engolir. Já pensou que puta coisa chata?
Recomendação de leitura:
Carl Sagan foi o primeiro divulgador científico que atingiu
massivamente grandes audiências através da mídia, através de sua série Cosmos. Mas quero aqui recomendar o
livro que já mencionei acima, um grande libelo contra as pseudociências.
SAGAN, Carl. O mundo
assombrado pelos demônios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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