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quarta-feira, 30 de maio de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (09 – Estética)

Olá!


Das áreas fundamentais da Filosofia, trataremos hoje daquela que certamente mais tardiamente apareceu, ao menos como campo de investigação próprio. Claro que existem derivações mais modernas, como a Filosofia da Mente ou a Filosofia Ambiental, mas falaremos agora sobre uma das divisões basilares. Talvez isso tenha ocorrido porque seu objeto de investigação estivesse muito intimamente ligado com a questão do conhecimento, o que é do campo da Epistemologia, ou do problema dos valores, ligado à Ética. Mas a pergunta que se volta para o embevecimento do intelecto diante da beleza é digna de ser estudada cuidadosamente. É para isso que existe a Estética.


Vamos começar dispersando a névoa para que possamos navegar em mares tranquilos. É preciso fazer uma distinção muito clara entre pontos que costumam causar confusão: a Estética e a Filosofia da Arte NÃO SÃO a mesma coisa, ainda que autores consagrados as considerem assim. É muito comum encontrar textos onde ambas são tratadas como sinônimos, sendo que, no máximo dos máximos, a última é subárea da primeira. Se assim não fosse, teríamos problemas sérios de definição: a Estética não investiga o aspecto sensório apenas da obra de arte, mas de tudo o que possa receber um valor de belo. Além disso, a Arte não se resume ao seu aspecto estético, mas também a questões sociais e culturais que escapam de um olhar puramente filosófico. Certamente, a mistura se dá por conta dos inúmeros pontos de contato entre ambas, em especial a vasta predileção artística em se produzir beleza, sua matéria-prima. Portanto, é injusto tratá-las como termos equivalentes. Tratarei hoje de uma e, logo mais, da outra. Dito tudo isso, sigamos.

Assim como falei no texto anterior, sobre Ética, encontramos novamente um uso mais banal da palavra. O uso corriqueiro do termo Estética nos remete, de imediato, às clínicas que cuidam de colocar peitões em moçoilas decepcionadas com seu volume original, aos salões de beleza que maquiam até os recônditos da alma humana, aos estúdios que perfuram cartilagens e septos para instalar piercings e desenhar tatuagens, além das academias que delineiam músculos de monstrões e paniquetes. Está errado? Não propriamente, mas muito limitado à beleza vista como elemento de modificação dos corpos. A Estética, como pensamento filosófico, vai incrivelmente mais longe disso. Vem do grego aisthésis, que pode ser traduzido como percepção ou sensibilidade. Isso nos leva a pensar que a Estética representa o quanto que uma intuição pode trazer de afetação à nossa sensibilidade. Ainda que se possa confundir com os desvios do sentido que turvam o conhecimento, o fato é que essas sensações não são privadas de valor cognitivo. Basta pensar que há formas e dimensões que nos tocam, e a apreensão dessas sensações não é um simples nada que possamos voltar as costas. A Estética se dirige ao exame deste conhecimento sensível que não se aplica somente à arte, mas a todo objeto que nos provoque uma admiração, um desconforto, uma surpresa.

A Estética é tão axiológica quanto a Ética. Só que aqui não buscamos definir o que pode receber um valor de bom, certo ou justo, mas de belo. E a valoração sobre a beleza nos traz um impulso imediato, maroto e preguiçoso: o de que a beleza é uma questão de opinião. É uma saída simples e rápida (e até válida), mas escapadiça do espírito filosófico. Por isso, é preciso tentar estabelecer, logo a princípio, se é fato que a beleza e as sensações estéticas são somente existentes na doxa ou se podemos pensá-las como um objeto observável e mensurável.

Mas se queremos pensar em uma sensação estética de maneira objetiva, para onde devemos observar? O que podemos considerar belo de acordo com as regras lógicas de universalidade e necessidade, ou seja, o que é belo em todo lugar e em todo tempo e o que é preciso existir para algo ser belo, e sem o qual não há possibilidade de sê-lo?

A primeira ideia que podemos explorar é a de que a beleza é uma qualidade daquilo que se aproxima da perfeição. Quanto mais próximo do paradigma máximo de perfeição um objeto se achega, mais belo o consideramos. O grande problema é obter este paradigma. Mas há apontamentos.

Platão tinha uma visão dualista do universo, sendo que a uma vertente tínhamos o mundo da intelectualidade, da razão, das ideias, uma região não física além do céu detectável somente pelo puro pensamento (para saber mais sobre o Hiperurânio, clique aqui). A outra, estava o mundo concreto, realizado, detectado pelos sentidos. No primeiro, atingível unicamente pelo raciocínio, residiam as formas depuradas de todas as suas contingências. Lá, não havia o torto, o manco, o impróprio, o opaco, mas a perfeição primordial dos seres, a sua essência. E daí que se plasmava ao mundo inferior das sensações tudo o que de tangível existe e suas imperfeições. Se há beleza, não é no mundo obnubilado dos sentidos, mas na nitidez intelectual do Hiperurânio. Por isso, é através da atividade psíquica racional que habita a apreensão estética, ou seja, o modo de ver platônico atribui beleza aos meios de interpretar os mecanismos ideais, como as fórmulas matemáticas e os conceitos lógicos. Santo Agostinho retomará essa ideia mais tarde, agora atribuindo a perfeição ao intelecto divino.

Só que há um encarceramento muito severo nesta definição. Por mais que os entes lógicos e matemáticos possam guardar beleza, o fato é que, sem ver cálculos ou operadores, sentimo-nos tocados por paisagens, corpos e obras de arte, e isso também é uma apreensão de nossa mente. O pupilo mais célebre de Platão, Aristóteles, dizia-nos que a essência das coisas reside nas próprias coisas, e não em uma instância metafísica superior. Desta forma, é no próprio mundo que se deve buscar a perfeição. Um exemplo bastante claro está na contemplação dos corpos humanos. Assim como ocorre com outras espécies animais, também um indivíduo humano procura parceiros ideais para exercer sua função atávica de dar continuidade à espécie. A procura do indivíduo masculino é por uma mulher que tenha plenas condições de lhe propiciar uma prole, de cuidá-la e fazê-la crescer. Para isso, busca uma parceira que possua um porte razoável, onde haja equilíbrio entre ancas largas que garantam um parto tranquilo e seios fartos para bem alimentar os filhos, mas com cintura mais estreita, que lhe dê leveza suficiente para cuidar da “ninhada”. É o corpo de violão, em forma de oito.


Já a mulher espera um homem que tenha boas condições de provê-la nos momentos de restrição, seja por estar grávida, seja por estar cuidando da prole. Este homem precisa ser forte o suficiente para enfrentar feras e inimigos, e também bastante ágil para a caça e a coleta. Ombros largos e cintura delgada dão ao homem procurado um tronco com aspecto de triângulo invertido.


Essas são as proporções perfeitas dos corpos humanos guiados pelo que cada um dos gêneros busca no outro. Sendo ancestral, essa atividade mental não está na crista da consciência, mas no subconsciente comum da espécie, como o arquétipo descrito por Jung. O corpo tendente à perfeição desperta esse arquivamento, não na forma de raciocínio, mas de intuição. É aí que o sentimento estético nos é despertado. Da mesma forma que no exemplo, a árvore bonita é a frondosa, que dá muitos frutos, o mar belo é aquele com pouca agitação e muita iluminação, propicio para a navegação e sem exibir ameaça.

No entanto, a beleza vista como inerente à espécie, dada a busca pelas proporções e simetrias, tem mais um problema de difícil resolução. Se a beleza é intuída como aproximação ao que é mais proveitoso, deveria ser percebida por igual por todos os seres humanos, mas sabemos que essa universalidade não acontece. Há muita diferença entre os graus de satisfação obtidos através da sensação estética.

Quem dá uma resposta razoável para esta questão são os filósofos empiristas, Hume à frente. Estes pensadores diziam que todo conhecimento se origina da experiência, ou seja, do contato direto. Sendo conhecimento, temos dois polos envolvidos na relação: um sujeito cognoscente e um objeto cognoscível. A experiência estética, ela também uma apreensão de realidade, tem os mesmos componentes, com um objeto possuidor de uma propriedade específica (a beleza) e um sujeito que precisa absorvê-la para fechar o ciclo cognitivo. Para os empiristas, portanto, cabe ao sujeito a percepção da beleza, já que esta é uma dependência do objeto, sendo captada ou não. O ato estético é como qualquer outro ato cognitivo, que deve partir do sujeito e estar contido no objeto. A beleza está lá, ainda que não a vejamos. Imagine, por exemplo, que você vá a uma praia paradisíaca, dessas de cinema, com uma criança. Você olhará para o horizonte circundante e realizará uma experiência estética: a água transparente, as ondas que se aproximam da areia deixando sua espuma clara, os rochedos atingidos por essas últimas, uma fusão entre mar e terra no fundo da paisagem, em uma linearidade quebrada ocasionalmente por algumas ilhotas ou por pescadores solitários. Quanto ao fedelho, nada além de se jogar na água e fazer montículos de areia. Ela não vê pescador, ilha, rochedo, espuma, paisagem, horizonte, somente um imenso ambiente de brincar. Quem está realizando a experiência estética? Você, é claro. A criança está realizando a experiência lúdica, uma outra forma de interagir com o mundo. Para a experiência estética, a absorção da sensibilidade como conhecimento, é necessária uma posição de contemplação. Haveria muitos outros exemplos a dar: alguém que tem um fone nos ouvidos dentro de um ônibus dificilmente estará ouvindo uma sinfonia, porque não estará em posição de contemplá-la. Idem alguém que lê uma revista no consultório, enquanto aguarda sua consulta. A sinfonia de Tchaikowsky serve apenas de pano de fundo, sendo desperdiçada enquanto portadora de beleza. Há uma intencionalidade em se perceber o belo.

Mas lembram das pendengas entre empiristas e racionalistas? Foi Kant quem veio pôr fim à briga pela primazia na fonte do conhecimento, o que mandou respingos sobre a Estética. Isso porque Kant informa que somente pelos sentidos se obtém conhecimento, mas há um “escaninho” inato por onde essa informação passa. Há certos juízos a priori que são próprios do aparelho cognitivo humano, como as noções de tempo e espaço, e como a capacidade de imaginar e interpretar o mundo. Um destes juízos a priori é exatamente a faculdade de ter percepções estéticas e de reconhecer a beleza. Portanto, a beleza não está unicamente no objeto, como queriam os empiristas, mas também no sujeito, que possui juízos estéticos que fazem com que não se fique impassível perante o belo. Temos como reconhecer a beleza contida nos objetos.

Resta ainda um último ponto. Costumamos vincular beleza e prazer quase que automaticamente, mas as sensações estéticas são meramente prazerosas? Sua antinomia, a feiura, não seria ela também campo de estudo estético? Quando pensamos em sensibilidade, não podemos nos restringir ao campo do positivo. Estética, como palavra, não é sinônimo de beleza, não indica o gosto pessoal, mas sempre um ato empírico onde não nos colocamos impassíveis. Não é só a fealdade que se enquadra neste escopo, mas outros sentidos do conhecimento sensível também não são necessariamente atributos do belo. O próprio Kant nos dá algumas dicas sobre a sensação aterrorizante perante o sublime (já falei sobre isso neste texto), mas aqui não é a questão de se achar reduzido e frágil perante um cosmos que parece poder nos esmagar a qualquer instante, mas a de reconhecer o repulsivo também como conhecimento sensível. Afinal, se a beleza pode ser reconhecida no corpo perfeito, sua antítese deve ser detectada no que prejudica. Há também a questão da singularidade, uma propriedade que torna o objeto único, e aqui podemos considerá-lo tanto belo quanto feio, desde que nos mexa de maneira própria. É aquilo que chamamos de pitoresco, uma outra maneira de apreciar a percepção estética, baseada na capacidade de observar distinção.

Eis que o resumo da Estética está nisso, na obtenção de conhecimento intuitivo, vindo dos cinco sentidos: na forma simétrica que agrada a visão, na voz melodiosa que nos chega aos ouvidos, no aroma suave que o olfato aspira, no gosto marcante que o paladar saboreia e mesmo na sensação tátil do corpo que se desvanece na água de uma cachoeira, como descrevi em meu terceiro texto sobre a viagem que fiz a São Luiz do Paraitinga.

Esses pontos todos são suficientes para que consigamos perceber a complexidade da Estética, muito embora seu uso corriqueiro pareça remeter, como eu disse no começo deste texto, mais a enfeites e ornatos do que propriamente a uma discussão sobre aquilo que nos toca os sentidos. E, dessa forma, observamos como a Filosofia se imiscui nos recônditos mais aprofundados das questões humanas. Belos ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Indispensável no refinamento da lógica kantiana, o livro abaixo trata com mais esmero da questão dos juízos estéticos. Mas é indispensável conhecer as duas outras Críticas anteriores para entender melhor toda a sua complexidade.

KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

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