Já perceberam como nos tempos de eleição a guerra de
argumentos segue em um crescente, até chegar ao ponto de causar náuseas? Esse é
um dos principais motivos pelos quais é praticamente impossível manter a
serenidade para fazer escolhas bem ponderadas. Isso porque se fala muito e
diz-se muito pouco. Quem não gostaria de ouvir as propostas de governo e vê-las
debatidas por especialistas de forma imparcial? Infelizmente, o que temos são
propagandas eleitorais e debates em que mais se procura depreciar os
adversários do que propriamente discutir propostas. Todos os candidatos de
ponta fazem isso, insistentemente, por mais que digam o contrário. E, com
honorabilíssimas exceções, são seguidos nessa conduta pela grande imprensa, que
preferem esse ou aquele, e colaboram, subrepticiamente, em suas campanhas.
Esse é um dos usos mais perniciosos que se faz da linguagem,
o de engabelar. Mentir com cara de verdade. Esse jogo retórico busca mais
despistar do que propriamente esclarecer. Vou dar dois exemplinhos bem básicos,
extraídos da última eleição presidencial (um da oposição, outro da situação,
para que ninguém diga que eu mesmo estou aplicando a regra – aliás, como vocês
podem bem perceber, esperei o sufrágio ocorrer para soltar este post).
O que temos aí em cima? Duas candidatas com calhamaços à sua
frente e um terceiro, sem nenhum papel na mesa. O que isso quer dizer, a rigor?
Nada, absolutamente nada. A ideia aqui é que o Aécio é tão bem preparado que
não precisa do apoio de nenhum material para guiar seu discurso. Podemos fazer
as mais variadas especulações: que ele não tem fontes para basear suas
opiniões, que ele é soberbo, que ele não tem argumentos calcados em números,
que ele os esqueceu e está tentando se arranjar, pode ser que ele tenha papéis
mas não está utilizando-os no bloco, pode ser algo meramente proposital para
sair bonito na foto, pode ser qualquer uma dessas hipóteses ou nenhuma delas.
Bom discurso o Maluf tem, o Collor tem, o Lula tem, o Brizola tinha, o Quércia
tinha... E normalmente dispensam ou dispensavam papéis. Será responsável falar
de programa de governo sem tê-lo à sua frente? Quando vou a uma reunião,
procuro levar todo o material necessário, para não ser pego de surpresa, para
poder comprovar minhas afirmações. Não há absolutamente nada de errado nisso, mas
o pessoal usa essa imagem como se demonstrasse alguma coisa. O que essa
informação diz, além de ser um argumento de tiete? No máximo, que o Aécio é bem
preparado para debates, e não obrigatoriamente para governar. Vamos para outra:
O que temos aqui é um pouco diferente: uma grande dose de maldade. Isso tudo porque sabemos que há uma polêmica sobre uma suposta agressão feita a uma namorada pelo Aécio. Não há nenhuma comprovação deste fato, mas a pergunta é perniciosa. Ela não serve propriamente para acusar ou para conhecer a posição do adversário. A Dilma fez essa pergunta para lembrar à audiência da acusação que pesa contra seu oponente. É uma tática em que se causa o embaraçamento do contendor, seja ele culpado ou inocente, porque é um assunto delicado, que aflige muita gente no país e que torna sua imagem absolutamente antipática, justamente em cima de um fato não provado. A pergunta poderia sido formulada de uma forma diferente, menos irônica, mais direta, mas isso tiraria o efeito descrito acima.
Por fim, pincei uma frase dita pela candidata Dilma ao
candidato Aécio no primeiro debate do segundo turno, feito na Rede
Bandeirantes. Não há aqui nenhum juízo de valor, uso a frase apenas para fins
didáticos. Ela diz o que segue:
“O senhor perdeu as eleições em Minas Gerais. Pode fazer
qualquer outro sofisma, mas perdeu. Isso é inconteste.”
Vejam que eu frisei muito a palavra sofisma. Esta palavra
significa dar uma chicana no tema, uma contornada, uma manipulada nas palavras
para tentar justificar algo através de argumentos que não se calcam em fatos.
Sofismas são usados à beça em campanhas eleitorais, mas não só nelas.
Utilizamos sofismas sempre que precisamos aplicar aquele famoso “veja bem” no
atraso de entrega de um relatório, no “perdido” que demos no boteco com os
amigos, na louça que não lavamos para a patroa, e via discorrendo. Ou seja, é a linguagem utilizada a serviço da
falsidade.
A palavra deriva diretamente dos sofistas, a quem me referi
e prometi trazer mais elucidações neste texto aqui. Até o século XX,
esta palavra era praticamente sempre tomada no sentido de enganador, de
vigarista ou de mercenário. Culpa da tríade Sócrates-Platão-Aristóteles, que
falava muito mal deles. Somente com estudos mais específicos foi possível
desmistificar essa imagem negativa, e colocar os filósofos sofistas no lugar
merecido, contrabalançando seus defeitos com suas contribuições.
Para entendermos como foi possível o surgimento dos
sofistas, precisamos lembrar, em primeiro lugar, que o primeiro pensamento de
cunho filosófico tinha a preocupação de explicar os substratos materiais da
composição do universo, ou seja, tentar compreender do que o cosmos é feito. Por
isso mesmo, quase todos os grandes filósofos pré-socráticos escreveram tratados
De Natura, cada um com sua tese
consubstanciada sobre a natureza. Outro
questionamento dizia respeito à dúvida sobre a mutabilidade dos seres. Quem
estaria correto: Heráclito e seu eterno fluxo ou Parmênides e seu Ser uno e
mutável apenas nas aparências?
O problema é que esse divagar todo já não tinha paralelo com
a sociedade grega da forma com a qual esta vinha se desenvolvendo. Depois de
todas as observações dos filósofos naturalistas, especialmente após as
definições atomísticas de Lêucipo e Demócrito, as fontes de conhecimento
passaram a ser associadas à razão, perdendo seu caráter místico e sacralizado.
Já não era o sacerdote ou o poeta cantado por seus aedos que eram os sábios,
mas aquele que procurava na própria Terra as explicações para suas aporias.
Além disso, as soluções propostas pelos naturalistas poderiam ser geniais, mas
não eram suficientes, e muitas vezes eram contraditórias entre si. Vejam o
próprio átomo pensado pelos mestres de Abdera: a conclusão a que chegaram era
tão boa que vale, com as devidas reservas, até os dias de hoje, mas essas
mínimas partículas são frutos unicamente do pensamento, e não havia campo
teórico ou experimental suficiente para demonstrá-las. Com isso, encontramos
neste período uma posição cada vez mais afastada das certezas por parte dos
pensadores.
Mais ainda. A Grécia vivia o período de ascensão da
democracia, e os cidadãos já não tinham necessidade de olhar para o céu e se
perguntar o porquê das estrelas. Precisavam pensar menos no universo e mais no
seu lugar no universo.
A democracia grega não se assemelhava ao que hoje conhecemos
e adotamos como sistema político. Hoje em dia, temos a democracia representativa, que consiste em eleger representantes
que saibam traduzir nossos anseios. São os deputados, senadores e etc. No
sistema democrático grego, tínhamos a modalidade direta, que era traduzida por reuniões na ágora, a praça central das cidades, onde os cidadãos manifestavam
seus interesses e tratavam de defendê-los, para que a maioria acolhesse suas
propostas – algumas vezes no grito e na porrada. Isso significava que a
capacidade de argumentação era uma qualidade basilar.
(Abrindo parênteses. A democracia direta grega era
meia-boquíssima, se pensarmos em termos de poder popular e à maneira como ela é
exercida nos dias de hoje. Apenas os chamados “cidadãos” tinham o direito de se
manifestar. Desta forma, as mulheres, os escravos, os mestiços, os estrangeiros
e seus descendentes não tinham direito a participar da assembleia da ágora.
Fecha parênteses).
Neste contexto, surgem profissionais que se especializaram
em absorver conhecimento enciclopédico e traduzi-los em argumentos eloquentes,
os mais irrefutáveis possíveis. Essa mescla de conteúdo e uso da palavra era
absolutamente necessária para quem precisava viver e impor vontades na Ágora. O
poder de convencimento, portanto, era mais importante que a veracidade dos
argumentos. E mais ainda: esse saber era vendido a quem quisesse e pudesse
pagá-lo.
Dá a impressão que nossos amigos eram meros mercenários que
viviam de ensinar a produzir mentiras, mas vamos com calma, porque a coisa não
era bem assim. Vamos desossar esse frango.
Quando eu era pequeno, certa vez meu pai me desafiou a
produzir o desenho de um dado em que fosse possível enxergar mais de três lados
de uma só vez. Não valia, evidentemente, distorcer o cubo para forçar a barra.
Depois de algumas horas tentando e não convencendo, fiz o que deveria fazer
desde o começo: cacei um dado pelas minhas bagunças e verifiquei a
impossibilidade.
Muito bem. Vamos imaginar um desenho simples. Um dado igual
ao que eu me referi, visto por duas pessoas em ângulos diferentes.
A primeira pessoa terá a seguinte visão:
A segunda verá o que segue:
Agora peça para cada um dos interlocutores somar a
quantidade total de pontos visível. Você perceberá, através de exemplo boçal,
que este total será diferente porque cada um dos pontos de vista é diferente.
Nenhum dos dois é errado, mas nenhum dos dois é completo. Daí nasce o relativismo.
Essa visão relativa, para os sofistas, mata a possibilidade
de obter conhecimento seguro. Se um ponto de vista é sempre parcial, torna-se
impossível evitar que ele se torne uma mera opinião. O universal é uma lenda
para o sofista, portanto. Isso se aplica não só à observação física, como
mostrei anteriormente com o exemplo dos dados, mas também, e principalmente,
sob o prisma moral. Cada povo tem seu conjunto de costumes que não se conciliam
com os dos outros povos, e, mesmo individualmente, o que um indivíduo pensa não
coaduna NUNCA em 100% com o que pensa outro cidadão. Temos então que cada
indivíduo vê e pensa seu próprio mundo, e cria sua própria verdade. E então chegamos
a Protágoras de Abdera.
Este filósofo soltou a frase mais célebre de todo o
movimento sofístico: “O homem é a medida de todas as coisas”. Com isso, ele
quer dizer que todo o conhecimento é oriundo do pensamento humano. Nada brota
como conhecimento sem que exista um homem para interpretá-lo, com toda a sua
visão parcial e relativa. Se todo o conhecimento parte do homem, então ele deve
ser o centro da Filosofia.
Sua descoberta é chamada de antilogia. Todas as pessoas que observarem um determinado fenômeno
terão uma interpretação própria. Cada uma destas interpretações contém uma
parte da verdade sobre o fenômeno, e também há que se perceber que há ângulos
que não são considerados, por não terem sido observados ou levados em conta.
Com isso, há sempre um certo grau de contraposição entre um raciocínio e outro
e, com isso, sempre é possível colocar os discursos em confronto. Disso nasce a
arte da retórica, cujo objetivo é adotar e defender o melhor discurso. A
antilogia redunda em um exercício de crítica e debate de razões.
Pois bem. Derivando da posição relativista de Protágoras,
chegamos ao segundo pilar da escola sofista, o ceticismo. É simples de
fazer a correlação: se todo o conhecimento é relativo, se depende não apenas do
objeto, mas do sujeito que o observa, e se podemos duvidar de qualquer
conhecimento disponível, podemos duvidar, também e por consequência, de nossa
própria capacidade de conhecer, o que nos coloca na posição de seres ineptos à
verdade. Quem fala com propriedade sobre o assunto é Górgias de Leontino.
Esse filósofo era siciliano, região hoje em dia pertencente
à Itália, mas que na ocasião fazia parte da Magna Grécia. A sua frase mais
célebre, e que sintetiza seu pensamento, nos diz que “Nada existe. E ainda que
existisse, não poderia ser conhecido. E ainda que pudesse ser conhecido, não
poderia ser transmitido a ninguém”.
Em um único raciocínio encadeado, Górgias nos faz três
desafios filosóficos: o primeiro é metafísico, o segundo é epistemológico e o
último é linguístico.
“Nada existe” parece ser a assertiva mais provocativa de
todas. De fato, podemos observar e apalpar todo o cosmos ao nosso redor: os
astros, as plantas, os animais, os outros humanos, nós mesmos. Como será
possível compreender o niilismo de Górgias?
Na verdade, toda a Filosofia se voltava para a análise do Ser
como um todo, não só em suas aparências, mas também e principalmente em suas
essências. Esse era o substrato do pensamento filosófico de então, com um
espectro que transitava da total mutabilidade heraclitiana à total imobilidade
parmenidesiana. Para Górgias, tanto um quanto o outro se equivocavam, levando
consigo qualquer tipo de solução intermediária.
Parece óbvio que a afirmação de Górgias é mais radical do
que seu pensamento em si. O seu real sentido é evidenciar o quanto a discussão
acerca do Ser é vã. E, para compreender bem, necessitamos passar ao próximo
tópico.
“... e ainda que existisse, não poderia ser conhecido” faz
remissão direta à questão do ceticismo como derivação direta do relativismo, na
qual se cristaliza – como há a impossibilidade de se obter a verdade, abre-se
mão de prosseguir em suas tentativas. A única possibilidade de mitigar a
limitação que a visão relativa coloca no objeto do conhecimento é justamente
reconhecê-la. Dessa forma, o bom conhecimento será aquele desvencilhado de
todos os penduricalhos que só servem para obnubilá-lo, torná-lo complexo e arrastá-lo.
Conhecimento bom é conhecimento útil. Já ouviram falar nisso? Sim, é o
atualíssimo pragmatismo.
“... e ainda que pudesse ser conhecido, não poderia ser
transmitido a ninguém” toca na questão da linguagem e sua capacidade de ser
suporte ao conhecimento. O grande problema é o seguinte: o conhecimento já é
dúbio e inseguro. A tarefa de transmiti-lo é feita por uma ferramenta
claudicante, que tira o objeto em si da frente do observador e a arremessa a um
meio distinto, e, desta vez, abstrato e cheio de símbolos. Agrava ainda mais a
questão o fato de que a visão que temos da própria linguagem é parcial, da
mesma maneira que acontece com o objeto que ela tenta representar. Ou seja,
para Górgias, a linguagem não tem capacidade de transmitir conhecimento, ainda
mais porque piora o que já era ruim.
Ora, o pragmatismo citado no item anterior aplicado à
linguagem dá a sua verdadeira utilidade: a persuasão, conquistada através de
uma retórica bem treinada. A linguagem vale exatamente, portanto, pelo o que
ela tem de útil – se ela não consegue transmitir a verdade, que consiga exercer
o convencimento.
Percebem como o relativismo, o ceticismo e o pragmatismo são
assuntos muito relevantes até os dias de hoje? Este simples fato é suficiente
para que percebamos o valor do pensamento sofista. Pensem quantos filósofos
mais recentes que admiramos beberam nessas fontes, ainda que indiretamente. E
as principais críticas que se fazem aos sofistas podem, hoje em dia, ser
facilmente rebatidas.
Em primeiro lugar, é preciso saber que, sendo verdade que os
sofistas vendiam seus saberes e técnicas, não há mais nenhuma estranheza nisso,
já que o ensino é comerciado sem contestações nas escolas particulares – e mesmo
públicas, já que os professores trabalham em troca de salários. No fundo, os
sofistas eram mais democráticos do que parecem. É fato que para pagá-los, já era
preciso ter dinheiro, mas seus préstimos não dependiam da posição social de
quem os contratava, e sim da sua possibilidade de remunerar. Desta forma,
sai-se de uma elite de berço para uma elite financeira, o que, mesmo ainda
limitante, ampliava muito o alcance da educação.
Outra coisa que não se pode negar aos sofistas é o mérito de
fornecer ferramentas para o exercício da cidadania, pelo motivo já exposto da
necessidade de bom desempenho na ágora. Era algo semelhante aos ensinos de “ética
e cidadania” que vemos ministrados em nossas escolas modernas.
E o melhor de tudo: não é com os festejados socráticos, mas
com os detonados sofistas que nasce o conceito de paideia, que se trata da formação global do homem. Os sofistas
educavam nas mais diversas áreas, incluindo não só a questão política, mas
conhecimento referente à natureza, aos costumes, ao funcionamento da ética e
das religiões, e, no final, a virtude (que os gregos chamavam de areté). Hoje reconhecemos a importância
primordial da educação para a formação das gerações, e os sofistas já se
ocupavam dessa difusão do saber.
Talvez a maior crítica que se voltou aos sofistas se deva à
existência de uma corrente radical, denominada erísticos. Estes últimos transformaram a arte da retórica em jogo,
onde nenhum raciocínio poderia ser tornado definitivo; sempre havia uma
contraposição possível, e, com isso, os debates eram levados ao infinito. Desses
nós linguísticos, improdutivos e sem o aspecto primordial na senda sofística de
utilidade, nasceram a capciosidade e empulhação (esta, talvez, seja a escola
mais utilizada pelos políticos), tão bem explanadas principalmente por Platão
em seu livro Eutidemo.
É isso. Tenho uma boa notícia: a partir deste post, sem
seguir uma lógica temporal ou sequencial, vou elaborar textos que falarão sobre
as principais falácias que detectamos (às vezes sem facilidade alguma) em
nossos discursos. Vão ser textos curtos, em que vou nominar a falácia, falar um
pouco sobre sua origem, como são utilizadas e onde podemos localizar utilização
prática. Vai ser legal. Caso queiram, sugiram alguma falácia que vocês queiram
saber mais nos comentários. A quem é meu amigo nas redes sociais, podem fazê-lo
por lá também.
Recomendações de leitura:
Como os sofistas, apesar de terem escrito muito, tiveram
todos os seus registros perdidos, não tenho um livro de autoria deles para
recomendar. Mas Platão falou um bocado deles, mesmo que por um viés crítico.
São estes livros:
PLATÃO. Eutidemo.
São Paulo: Loyola, 2011
PLATÃO. O Sofista.
São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Col. Os Pensadores)