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terça-feira, 28 de maio de 2019

O nazismo de esquerda na moda e o Pequeno Guia das Grandes Falácias em dose dupla: 42º tomo – A Reductio ad Hitlerum e 43º tomo – o Wishful Thinking

Olá!


Meus caros concidadãos, que tempos loucos temos vivido ultimamente. Não vou aqui discutir nenhum tipo de preferência partidária, porque nestes momentos de ânimos exacerbados não há nada que seja possível fazer sem ser vítima de cotoveladas. Ninguém ouve ninguém e os argumentos se tornam menos lógicos do que troca de porradas. Como nunca fui muito bom nas artes marciais mistas, o que posso oferecer é uma tentativa de esclarecer a falta de sentido na afirmação de que o nazismo é de esquerda, quais motivos psicológicos estão por trás da insistência na sustentação desta tese e como ela é falaciosa por dois (ou mais) caminhos distintos. Vamos partir para o desafio.



Em primeiro lugar, vou pedir humilde e encarecidamente para que você, raro leitor, dê uma passada de olhos neste meu outro texto. Em síntese, lá eu falo da minha discordância com relação a essas cinestesias ideológicas, e em como não se deve comprar pacotes fechados de ideias políticas. No entanto, o fato é que pelo mundo inteiro a dicotomia está presente e eu não fecharei os olhos para isso. Sendo assim, uma vez bem marcada minha posição, vou penetrar nesse terreno movediço.

A história do nazismo de esquerda se alastrou bem recentemente, turbinada pelo fenômeno dos comunicadores instantâneos, WhatsApp à frente. É um tema que nasceu em oposição àquilo que a política chamou de extrema-direita. Como o nazismo era crítico ao sistema capitalista, achou-se uma brecha na base da falsa dicotomia para tentar situá-lo à esquerda. “Se a direita defende o capitalismo e o nazismo o alveja, então ele é de esquerda”, dizem. Ora, isso é falsamente dicotômico porque pressupõe somente duas opções de correntes de pensamento. Se algo não é preto, é branco, sem se cotizar os incontáveis matizes de cinza, além de todas as outras cores do espectro luminoso. Mas a coisa vai bem além.

Quando nós queremos estabelecer um contraponto sério entre direita e esquerda, precisamos fazê-lo pensando na ênfase que cada um dá ao seu conjunto político. Se este se volta especialmente ao aspecto econômico, estamos em uma posição à direita; se é para o social, vamos para a esquerda. Isso não significa que pensamentos à direita só se foquem em dinheiro. Em linhas gerais, é pela saúde econômica de um país que as políticas sociais podem ter mais sustentação, em especial através da ativação de todos os componentes de uma sociedade. Por outro lado, os pensadores à esquerda não deixam de levar em conta os aspectos econômicos, já que o dinheiro necessário à manutenção do aparato social tem que sair de algum lugar, e este é o meio econômico onde a sociedade vive. Não são duas linhas de pensamento dignas? Você pode concordar com uma ou com outra; o importante é que ambas têm sua lógica e seu valor.

Mas notem que eu só falei em linhas gerais. Se queremos afirmar ser o nazismo de esquerda ou de direita, precisamos partir para os extremos. E isso implica em começar pelo começo, e pensar como se formaram as sociedades. Na aurora de nossa espécie, vivíamos em tribos que extraíam do meio natural o seu sustento, em um esquema de colaboração onde alguns eram responsáveis pela caça, outros pela manutenção da aldeia e outros pela guarda da prole, e via discorrendo.

Evidentemente, este meio físico onde habitavam os primeiros ancestrais tinha uma capacidade máxima de abastecimento, e, por este motivo, era uma espécie de espaço vital. A partir do momento em que a tribo crescesse demais, só havia dois caminhos a seguir: deixar uma parte da população morrer ou tentar ampliar este espaço, de modo a fazê-lo dar conta dos incrementos demográficos. O problema se dava quando essa expansão fazia o terreno colidir com o de outra comunidade, e tínhamos encrenca. Mas é dessa noção de espaço vital que nasceu a ideia de propriedade, que, mais tarde, atomizou-se para os indivíduos, e passou a existir a propriedade privada.

Essas antigas tribos evoluíram, progressivamente, para aquilo que hoje chamamos de cidades e países. Na concepção à direita, está tudo bem. A propriedade se desenvolveu naturalmente, e, portanto, é natural que exista como direito. O território de um país é a propriedade da coletividade e é por isso que a direita é nacionalista, uma de suas grandes características. Para a esquerda, o conceito é o contrário. Como há uma relação de exploração de classes em todas as sociedades, a nação, com suas hierarquias e privilégios, é um mal. As fronteiras, ao contrário da tese do espaço vital, são erigidas artificialmente com o propósito de ser uma grande propriedade que alija pessoas de seus grupos, com o objetivo de manter estes mesmíssimos privilégios. Por isso, a esquerda é internacionalista.

Só aí, já seria o suficiente para derrubar a tese do nazismo de esquerda. O regime alemão não era só ultranacionalista, desejoso de expulsar de seu território toda minoria estranha ao modelo ariano, mas também em absorver para si todos os demais países onde houvesse algo de teutônico, como a Áustria, os Sudetos tchecos e parte da Polônia, como propriedade sua, do povo alemão. É o nacionalismo extremo, a extrema-direita.

Mas não é só. Quando se afirma que o governo nazista compunha um Estado com presença incompatível ao livre mercado ou à livre iniciativa, pilares da política à direita, traz-se o foco para o período de curso da Segunda Guerra, quando as necessidades bélicas levaram a uma intervenção muito forte. No entanto, a guerra foi antecedida por um boom econômico baseado no binômio obras públicas – estímulo a empresas privadas. Isto incluiu privatizações e abolição da atividade sindical, o que não me parece muito à esquerda. Ademais, o empresariado alemão se propôs a apoiar o regime nazista por contraposição ao avanço dos comunistas que se erguiam a leste. Basf, Krupp, Oetker, Bayer, BMW, Siemens, Daimler-Benz e outras empresas de renome não só apoiavam, mas eram parceiras do regime. Parece estranho combater extrema-esquerda com extrema-esquerda. Na verdade, esse apoio vinha do âmbito do conservadorismo – para evitar que se tocasse na instituição da propriedade privada (às vezes travestidos de manutenção das tradições morais), aceitou-se transformar o Estado como um tutor para mitigar o risco da estatização dos meios de produção. No extremo, tinha um Estado tão forte e presente quanto na União Soviética, mas que defendia a propriedade privada ao invés de absorvê-la.

Mas por que tanta sanha em querer se afastar do nazismo, ou, mais ainda, jogá-lo para o “outro lado”? Ouvi, certa feita, um desses youtubers assumidamente conservador levantar um questionamento como esse: governos indiscutivelmente de direita foram os de Margareth Tatcher ou de Ronald Reagan, conhecidos pelo amplo liberalismo econômico. Qual a semelhança que o governo nazista tinha com eles? Não seria ele muito mais parecido com a ditadura de Stalin, reconhecidamente de extrema-esquerda, que lançou mão de tirania, censura, expurgos e violência policial? A pergunta é cheia de malícia, apesar de revestida de uma aparência lógica. Estamos falando, no caso, de governos que não abriram mão da democracia, e isso não é privilégio de tendências liberais de direita. Governos como o de Olof Palme na Suécia, Gro Brundtland na Noruega ou François Mitterrand na França, todos socialistas (de esquerda, portanto) também não se assemelham em nada com o nazismo de Hitler, nem com o comunismo de Stalin. Por ambas as vias é possível, por outro lado, descambar para a tirania, que já existia ainda antes dessa divisão do mundo entre coxinhas e “mortandelas”. Dizer que não há tirania possível em um dos espectros é a aplicação da falácia do escocês.

É que quando queremos sintetizar uma representação do mal, sempre pensamos em Hitler. Pode ser que outros tiranos tenham sido ainda mais opressores ou violentos, como os imperadores romanos, mongóis, hunos ou babilônicos, mas o fato é um só: nosso registro acerca das ações dos nazistas é abundante. Do nazismo, temos o regime tirânico, com o racismo em seus fundamentos, elevado à enésima potência a ponto de não suportar a presença do outro. De Hitler, temos fotos, filmagens, áudios, gente ainda viva que o conheceu pessoalmente. Temos os sobreviventes dos campos de concentração, temos equipamento de guerra, temos prisões, temos numerosos documentos, tudo agrupado no butim de guerra que foi encontrado pelos aliados a partir de 1945, o dia de ontem no tempo histórico. Haverá quem diga que somente o demônio é pior que Hitler, mas há duas coisas substanciais: há quem ache essa história de diabo uma emérita baboseira (como eu), e, além disso, eles não se encontram em qualquer esquina, metafísicos que seriam. Hitler, por outro lado, é o real palpável, a maldade personificada, o mal colocado à nossa frente, e ninguém gosta de saber do que o ser humano é capaz, e muito menos ser associado ao mal.

Neste caso, a simples menção de que o nazismo é de extrema-direita faz com que aqueles que tem ideias mais achegadas à direita, seja pelo viés do conservadorismo, seja pelo caminho do nacionalismo, ou até mesmo pelo liberalismo econômico, sintam um incômodo incontornável. Os mais radicais e menos racionais buscam então um ponto de contato com a esquerda para jogar Hitler para lá. Tudo o que é associado a ele é ruim por definição, sem que se precise fazer nenhuma análise. Como não é nada raro este modelo reducionista de pensamento, é uma palha seca para a fogueira das falácias. No caso, reductio ad Hitlerum.

O que é uma redução? Em termos de argumentos, significa uma simplificação que aponta para um só elemento específico a causa de determinado fenômeno. Fazemos reduções o tempo todo, porque gostamos de explicações rápidas e concisas, e aquelas em que é fácil despejar toda uma determinada culpa, mas elas não servem quando buscamos entender o mundo a sério. Os pensadores de direita honestos não se incomodam com a presença perturbadora de Hitler porque sabem que, de fato, o espectro que abrange suas ideias é tão amplo que não se reduz ao bode na sala que é o nazismo. Idem se aplica à esquerda e Stalin. Isso só se encontra no procedimento sofismático. Afinal de contas, pensem adultamente: alguém que esteja lendo o Mein Kampf é um nazista? Pode até ser, mas está longe de necessariamente ser. Pode estar estudando este livro-base do nazismo para entender como foi possível sua ascensão; talvez esteja até enojado. Pode estar fazendo uma pesquisa, pode ser estudante de Ciências Políticas e tomando a saudável atitude de procurar fontes primárias. Lá, ele verá, por exemplo, o quanto Hitler é contrário ao marxismo e o quanto promete o extermínio dos comunistas. No reductio ad Hitlerum, tudo isso é deixado de lado, e, por isso, colocar a esquerda colada ao nome do malvadão tedesco é um recurso retórico buscado à exaustão para transformar suas doutrinas em intrinsecamente más. Para que uma afirmação que estampe Hitler na testa de alguém não seja falaciosa, ela precisa fazer sentido. Dizer que combate a minorias é uma atitude digna de Hitler faz esse sentido, porque o nazismo é estruturalmente racista.

Ok. Até aqui temos uma mecânica argumentativa, mas não podemos ainda compreender porque esse descolamento da realidade atrai tanta gente. Acontece que nossa racionalidade quase nunca é pura. Por mais que façamos força, nosso raciocínio lógico acaba sendo atravessado pelo nosso desejo de que nossas crenças sejam reais. E então acontece o fenômeno: tendemos a fazer uma seleção das evidências que são colocadas à nossa frente, valorizando as que corroboram as coisas que acreditamos, e menosprezando aquelas que as refutam. Esse é um fenômeno tremendamente humano, chamado de viés de confirmação, que dá privilégio aos fatos que reforçam nossas crenças, e que parecem direcionar a uma verdade absoluta que mesmo as mentes mais críticas tendem a perseguir. Parece que a verdade tem um só lado, justamente o meu.

Não que seja impossível existir dois pontos de vista sobre uma mesma questão, mas a robustez de duas propostas nem sempre se equilibram. É o caso dos defensores do nazismo de esquerda: apoiam-se em argumentos fragílimos, como a questão da tirania e outros piores, como o nome oficial do partido nazista, este um argumento simplesmente idiota. Daqui a pouco vamos falar que prova de vida em Marte é o fato de existirem caboclos chamados Marciano.

Esse grande desejo de estar certo em tudo e ser muito refratário a ideias opostas acontece pelo simples fato de que há um conjunto de coisas que reputamos por boas, e que as desejamos como fidedignas. É um fenômeno clássico das religiões, que têm dificuldades em se manterem firmes quando confrontadas com a realidade, mas cuja base é muito atraente para seres frágeis como nós. Como a ideia de um deus que nos cuida e que há uma vida post-mortem que é muito mais reconfortante do que a mera sensação de finitude, é natural que muita gente feche os olhos à segunda opção, mais árida e desesperançada. A realidade nos mostra que morremos, e ça tout. O que vem depois, é pura especulação, sem provas, sem evidências, sem transparência, sem garantia. A fé se arma como única autodefesa, e ela tem a resistência de uma fortaleza, porque nossos afetos excitam nossos nervos muito mais do que nossa razão. Em Psicologia, este desejo ardente de continuidade entre crença e concretude é conhecido por wishful thinking, o pensamento desejoso.

É nessa confusão entre afetos e verdades, que contamina nossa capacidade de julgamento, que opera a tese do nazismo de esquerda. Seus adeptos gostariam tanto que houvesse uma cristalização dual entre o bem e o mal, e que este estivesse do lado de lá, que mesmo os melhores argumentos antagônicos são colocados na bacia das teorias conspiratórias. Vão contra o consenso acadêmico – nas cadeiras de História, Filosofia e Ciência Políticas não existe essa discussão. Vão contra a dinâmica política, o desenrolar da História, as declarações de gente que tem representatividade para falar, como o governo alemão e o Museu do Holocausto israelense (vocês sabiam que o governo de Israel é de direita?). Vão contra até mesmo os próprios princípios basilares explícitos do nazismo: os comunistas eram rechaçados e perseguidos pelos seus seguidores, tanto quanto judeus e ciganos, e o próprio Hitler desanca com o marxismo em sua obra. Em suma, apoiam-se em uma vontade, a de que não é possível que o mal emane de seus próximos, de sua crença, de sua fé, e tomam isso como escudo.

E dá-lhe falácia. Não é porque você acredita em algo que isso é verdade, cara-pálida. A falácia do wishful thinking se baseia neste efeito psicológico, que tira quem a profere do seu contexto real. É porque muitas vezes a realidade é dura, de um modo que não gostaríamos que fosse. Convencemo-nos, por exemplo, de que nossa pouca disposição para o trabalho deriva de uma falta de reconhecimento alheio pelos nossos talentos. Não! É possível que sejamos simplesmente preguiçosos, e queremos do fundo do nosso coração que ninguém nos veja como tal, nem nós mesmos.

Recomendações:

Vai de baciada hoje.

Página do Yad Vashem, o Museu do Holocausto de Israel, onde está expresso que o nazismo é de direita:

Página em português da emissora alemã Deustche Welle, explicando o absurdo das declarações do atual chanceler brasileiro, de que o nazismo é um fenômeno da esquerda:


Artigos do professor catalão Germá Bel, falando sobre os programas de privatizações dos nazistas antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial:

BEL, Germá. Against the mainstream: Nazi privatization in 1930s Germany. Universitat di Barcelona. Disponível em http://www.ub.edu/graap/nazi.pdf.

BEL, Germá. The coining of “Privatization” and Germany’s National Socialist Party. Jounal of Economic Perspectives – Volume 20. Disponível em https://www.aeaweb.org/articles/pdf/doi/10.1257/jep.20.3.187

Eu entendo que uma das boas formas de entender o nazismo é ler seu livro base. Não se preocupem: ninguém vai sair por aí matando comunistas por causa do que está escrito aqui. Tem essa versão online que eu encontrei, mas é possível procurar versões comentadas para ter algum apoio a mais. Este livro, no meu entender, derruba completamente qualquer tentativa de tese mais séria de nazismo à esquerda, por isso o recomendo com as devidas ressalvas e cuidados.


Sobre o wishful thinking, segue um pequeno artigo que demonstra sua influência em modelos computacionais: 
https://cocolab.stanford.edu/papers/HawthorneGoodman2017-Wishful.pdf

Por fim, um bom filme para desopilar o fígado: o Hitler humanizado (não no sentido de se tornar bonzinho) d’A Queda, que mostra o que teriam sido as últimas horas do ditador. Ficou mais conhecido no Brasil pela quantidade agrícola de memes da cena do enfurecimento, mas é bom à beça, podem assistir sem medo.

HIRSCHBIEGEL, Oliver. A Queda. Filme. Alemanha: Constantin Film, 2004. Cor. 155 min.

terça-feira, 14 de maio de 2019

Ayrton Senna e os heróis fabricados de linguagem

Olá!

Não costumo elaborar textos programados. Prefiro meu velho estilo caótico, low profile, que me cria menos obrigações. Acontece que há duas efemérides a registrar: há vinte e cinco anos atrás, morria um dos maiores ídolos nacionais, o piloto Ayrton Senna da Silva. Bodas de prata de uma desgraça. O termo se aplica somente a casamentos, mas aqui estamos lançando mão de uma livre adaptação. Não seria errado falar em comemoração, já que a palavra significa “lembrar junto” em sua etimologia, mas é chato, já que o uso consagrou sua vinculação à alegria, então vamos falar em memória. São dezenas, centenas e milhares de textos, vídeos e programas inteiros dedicados a recordar o momento da tragédia, suas circunstâncias e cercanias que podemos esperar para este dia.

(Resolvi manter o texto acima única e exclusivamente para demonstrar como não dá para prometer datas, mas resolvi mantê-lo para que vocês, meus poucos leitores, entendam como é dura a tarefa de manter sincronismo com o mundo que nos cerca. Vejam a discrepância entre a data de pretensão da publicação e a de sua efetiva conclusão. São quase quinze dias. Mas foi bom, em um certo sentido, porque deu para ver muita coisa boa e muita tranqueira que confirma toda a substância do que vem a seguir).

Quantos anos eu tinha quando morreu Senna? Vinte e três para vinte e quatro. Eu estava assistindo a corrida ao vivo, no sofá do porão que me servia de casa, aproveitando a trégua matutina que me dava o filho mais velho. Foi uma pancada feia, mas que, a princípio, não parecia tão assustadora. O tempo e a imobilidade trouxeram mais preocupação, mas nada que fizesse supor o pior ainda. Só me desassosseguei de fato ao ver a grande poça de sangue deixada no chão, ao término do resgate: havia algum ferimento grande, e era na cabeça, já que as imagens do tronco não deixaram de ser exibidas, e nada se via. Desde então, as velas estavam acesas e os incensos fumegantes. Era a morte de um dos maiores heróis de todos os brasileiros. Todos? Não, nem todos.


Antes do apedrejamento, deem-me tempo de discorrer sobre meu modo de ver as coisas. Eu acompanho automobilismo desde criança, doente por carrinhos que eu era. Na feira, vendiam-se imitações de plástico injetado, baratíssimas e malfeitas, mas que povoavam meu imaginário particular. Era a única fruta que eu pedia para a minha mãe, e eu gostava de alinhar grids de largada, em traçados riscados a giz de costura tungados da genitora, para desespero da mesma. Obviamente aprendi essas coisas nas transmissões televisivas e revistas especializadas que meu padrinho trazia das oficinas onde trabalhava como mecânico. Só pude ir a um autódromo bem mais velho, adulto já.

Eu gostava de acompanhar o que houvesse. Em termos de TV, praticamente só se tinha notícias da Fórmula 1, mas nos jornais e revistas falava-se muito em outras categorias. Tinha o Grupo 1, dos opalões e mavecas envenenados, que depois virou Stock Car; a Divisão 3, com carros de passeio mais populares; das fórmulas, tinha a Super Vê, a Ford e a F2, na época a principal categoria de acesso ao topo. Em terras de tio Sam havia a Indy, a Atlantic, a Can-Am e a Nascar, mais uma corrida de bate-bate do que propriamente uma competição de pilotagem. São estranhos, os norte-americanos. Gostava de me debruçar nas variações das pistas, especialmente alguns trechos icônicos para mim, como a grande reta de Paul Ricard, as “lavadeiras” rapidíssimas de Silverstone, a belíssima Ferradura de Interlagos e as espremidas ruas dos circuitos urbanos.

Como garoto, era de se esperar que eu buscasse algumas referências mais fortes no esporte para compreendê-lo melhor, e isso faz com que tomemos alguns nomes mais conhecidos, evidentemente mais fáceis de encontrar. Mas eu não sou exatamente uma pessoa normal. Meu primeiro ídolo na F1 não foi nem Emerson Fittipaldi, já em sua aventura da Copersucar, nem Nelson Piquet, de carreira incipiente. Minha torcida mesmo era pelo italiano Riccardo Patrese.

Patrese? Por que diabos Patrese? O motivo é simples. Ele era o piloto principal da Arrows, uma equipe que, se estava longe do primor técnico ou de tradição, tinha um carro bonito prá caralho burro: o A2, com o dourado da antiquíssima cerveja Warsteiner, um modelo que deveria ser usado didaticamente todas as vezes em que se quisesse ensinar os princípios aerodinâmicos do automobilismo. Lindo de morrer, largo e de forma ondulada, um spoiler traseiro incomum e dianteiro ausente, invocado como uma fera, e seu sucedâneo A3 também era espetacular. Como era uma equipe intermediária, seu desempenho não era essas coca-colas, e era preciso torcer muito pelo desempenho de seus pilotos, e é isso o que me levou a ficar vibrando a cada vez que a TV mostrava as tentativas do padovano em atingir um 5º ou 6º lugares. Não havia internet: trinta segundos por corrida era o máximo de contemplação possível para uma equipe menor. Vejam sua cara, obtida em https://www.oldracingcars.com/arrows/a2/.


Já daí, dá para se perceber que o mesmo fenômeno que ocorre com o futebol (que exemplifiquei aqui) repete-se no automobilismo. Não é este ou aquele que me interessa pelos feitos grandiosos, mas o todo, a estrutura completa, que inclui obrigatoriamente as equipes nanicas. Osellas e Tolemans são tão importantes para F1 quanto Nacional e Juventus são para o futebol. Isso é o que eu penso.

Não citei a Toleman à toa. Foi nessa pequena equipe que Senna embarcou na sua aventura esportiva, e por lá fez sua única passagem por um time menor. Isso ajuda a fazer criar sua aura, porque demonstra uma escala progressiva onde o fim se deu em pleno auge, na “Williams de outro planeta” no dizer do próprio. O dia 1º de maio nos reservou uma infinidade de panegíricos onde se chora em profusão a nostalgia do portador da esperança, embora haja material muito bom e mais coerente com a história real, como opinam Flávio Gomes e Victor Martins, jornalistas especializados que produzem textos críticos, e que apanham muito por isso.

Não acho Senna um herói, não acho um mito. Acho um dos melhores pilotos que já vi e isso é tudo e já é muito. Acho justo que seja um ídolo esportivo, um dos maiores, mas circunscrito a esse papel. Como homem, atribui-se-lhe mais do que deveríamos. Vou explicar isso melhor depois de tentar entender como esse fenômeno ocorre, porque ele não é inédito e nem mesmo raro.

Por que temos necessidade de heróis? Sem dúvida, uma das explicações mais atraentes de todas vem do Estruturalismo, escola de pensamento que teve seus melhores dias em meados do século passado. A ideia base é relativamente simples: da mesma forma que os corpos físicos humanos tem sempre a mesma estrutura, tudo o mais que tenha o dedinho dos bípedes implumes também tem. Esmiuçando melhor – não importa se uma pessoa é homem ou mulher, trans ou cis, preto ou branco, criança ou velha, bonita ou feia, corinthiana ou palmeirense; ela tem cabeça, tronco e membros, tem um coração com quatro cavidades, dois pulmões e telencéfalo altamente desenvolvido, dentre outros arremates e passamanarias. Só que um ser humano não é só corpo – é também sua mente e todo o ambiente que lhe rodeia, incluindo a sociedade que lhe agrega aos demais. Tudo o que emana do homem é impregnado do homem. Por essa razão, tudo o mais possui uma espécie de configuração onde a variabilidade está nos conteúdos, e não nas estruturas. A concepção do Estruturalismo está presente na Psicologia com Titchener, na Linguística com Saussure, na Antropologia com Lévi-Strauss, na Sociologia com Giddens e em outros campos das Ciências Humanas.

As constatações dos estruturalistas se dão da mesma forma que as dos empiristas, ou seja, através da observação. Só que estes veem os fenômenos como fatos isolados, enquanto aqueles percebem a repetição de substrato. Por exemplo: os empiristas observam que um brasileiro toma café-com-leite e come pão com manteiga no desjejum, e que o ianque come bacon com ovos, enquanto o estruturalista vê que ambos têm a prática do desjejum. A prática deste é mais significativa do que o alimento utilizado. Um dos temas mais claramente verificados é a Religião. Com a honorabilíssima exceção dos índios pirahãs*, todos os povos possuem uma estrutura religiosa em sua formação.

No entanto, a religião como estrutura não é aquela coisa simplista de todo povo ter um culto e, se aqui temos catedrais, na Arábia temos mesquitas e em Israel temos sinagogas. O homem cria mitos pela necessidade de representar suas transcendências e de exaltar aqueles valores que considera fundamentais. Na medida em que vão se coligindo esses conjuntos, sente-se a necessidade de eleger algo concreto que materialize o plano simbólico obtido por consequência. É o que fazem os índios norte-americanos ao cultuarem seus totens. Ali estão agremiados seus ancestrais e seus ensinamentos, que traduzem por séculos e séculos todos os princípios basilares que foram transmitidos por aquilo que se consideram suas divindades. Quando um indígena reverencia o totem, não é à madeira esculpida que o faz, mas aos valores que o mesmo remete, ou seja, seu significado simbólico é o que importa. Entretanto, como são os aspectos físicos que estão ao alcance dos nossos sentidos, tendemos a ter a necessidade de sacralizar estas representações.

Isso tudo ajuda a entender a necessidade que temos de escolhermos heróis. Ao mesmo passo em que sofremos, queremos enxergar alguém que reagrupe tudo aquilo que temos de bom e que nos pode indicar uma saída, ou que sintetize as qualidades de uma gente, de modo a carregar nossas esperanças. Se nosso herói é capaz de superação, nós também seremos. E sabemos o quanto o Brasil é um país sofrido, feito essencialmente de um povo pobre, que, se pensasse a sério, se desesperaria com a falta de expectativas de melhora. O terreno é fértil para heróis, mas eles não surgem. Não temos grandes personalidades que brotam da História. Nossas datas comemorativas não nos tocam, porque se referem a eventos de conveniência, que pouco dizem respeito à grande massa. Os políticos têm a mais péssima das imagens, justificadamente; é um país que nunca viu um Oscar, nunca viu um Nobel, tem três santos, só um brasileiro de nascença. É o país do samba e do futebol. O primeiro é um fenômeno interno (nunca se viu um samba nos top ten da vida) e o segundo vinha em período de seca na era Senna: o propalado tricampeonato já havia sido igualado por Itália e Alemanha, e só na Fórmula 1 o país ainda tinha representantes dignos de orgulho.

Mas por que Senna, e não Fittipaldi ou Piquet? Afinal, o Rato** foi o pioneiro, e Piquet atingiu primeiro o tricampeonato. Aqui, faremos remissão ao filósofo francês Roland Barthes, que aplica o Estruturalismo à comunicação humana. Em seu livro Mitologias, Barthes disserta sobre a maneira como a linguagem e a construção do discurso estão subordinadas ao meio social e submetidos ao poder político, em consequência. A linguagem, sendo construção social, se afasta da natureza e se adequa a objetivos alienantes. Existe uma certa estrutura que enfeitiça o pensamento a partir do princípio de que este é, basicamente, composto por linguagem, cuja principal tarefa é fazer interações. Barthes traz uma grande lista de casos, e descreve seu funcionamento um a um. Não fala só de palavras, mas de posturas, de gestual, de indumentária, do modo de se apresentar à mídia, e demonstra como cada utilização da linguagem é construída especificamente para uma finalidade, que é escapadiça a um julgamento crítico. Este é o caráter mítico que se faz da linguagem: uma estrutura tal é articulada para que ela represente uma circunstância inequívoca. A linguagem de um político, de um atleta, de um malandro ou de um operário deve dizer o que eles mesmos são.

Essa é a pedra de toque que explica Ayrton Senna. Ele fala a linguagem do herói. Emerson Fittipaldi é discreto, e seu fracasso*** como dono de equipe tirou muito da magia que poderia girar em torno de seu nome, como um desbravador do automobilismo mundial. Nelson Piquet era um outsider para os padrões tupiniquins, pouco dado a usar a imprensa como meio de autopromoção, cioso de seu próprio valor e, por vezes, um tanto arrogante. Já Senna tinha a imagem do bom moço, que atendia a todos, que evocava o nome de deus a todo instante, atribuindo a ele a totalidade de seu próprio valor, que fazia questão absoluta de empunhar a bandeira brasileira a cada vitória. A figura emblemática do Senna Day vem da realidade. É uma representação de Senna nos braços do povo após uma vitória no GP do Brasil. Sua morte em plena ação e no auge da carreira deu contornos trágicos à sua imagem, como se estivéssemos no teatro grego. Se alguém quiser entender o significado de catarse, basta se colocar no lugar de quem presenciou toda esta história. Ou relembre-os, como faço eu.



Até aí, não temos nada demais. É lícito e natural que tenhamos ídolos, que procuremos nos espelhar neles e que prestemos reverência à sua memória. O problema é quando o efeito alienante dos discursos que Barthes detecta entra em ação, e nada do que está fora da linguagem do herói pode ser aplicado ao herói. O herói não pode ter falhas, o herói está no meio-termo entre o humano e o divino, o herói tem virtudes que o contribuinte ordinário, como eu e você que me lê, não possui. E quando se fala contrariamente ao arquétipo do herói, parece que ofendemos às mães das pessoas com os nomes mais feios do léxico. Mais ainda: parece que ofendemos as próprias pessoas. Em síntese, não é preciso falar mal do herói; basta que não se concorde em plenitude com o caráter elegíaco a ele atribuído.

Como Senna se espatifou em um muro, algo inerente ao esporte que praticava, havia um fato que o igualava ao restante da humanidade, o que é inadmissível. Parece impossível que simplesmente se aceite a vontade de experimentar a adrenalina em alta e os limites de nossas capacidades (como já discuti neste texto), há a necessidade de uma intervenção externa para explicar o acidente. Alguns enxergam misticismo: o olhar perdido, os longos minutos ao lado do carro e as palavras lamentosas eram prova de que Senna sabia que corria rumo à morte, um destino inexorável. Não, meus bons. Em 1994, Senna era pela primeira vez o principal representante da classe, sem a concorrência de outros pilotos do primeiro time, com Prost e Piquet aposentados, Mansell em seu êxodo na Fórmula Indy, e Schumacher era uma realidade ainda em construção. A geração de Senna não havia presenciado acidentes fatais in loco. No último, de Ricardo Paletti em 1982****, nenhum deles estava presente (minto, Patrese e de Cesaris estavam lá, mas não faziam parte do rol de líderes). É evidente que havia muita consternação e preocupação em um grupo de pilotos que vivia tempos de um esporte cada vez mais seguro, e a morte de Roland Ratzenberger deixava patente no rosto de todos uma aura ainda desconhecida de medo, e não só de Senna ou dos demais pilotos. Outros veem teorias da conspiração – Senna foi vítima de um sistema de coisas contra o qual se opunha. Prova disso foi o título que lhe roubaram em 89. Bobagem. Senna perderia o título de qualquer forma, porque não bastava vencer no Japão. Era preciso também vencer na Austrália, onde acabou por se acidentar. O título seria de Prost de todo jeito. E como era inevitável que vencesse títulos com o melhor equipamento disponível, surgiu aqueles assuntos em que se diz que era preciso evitar um domínio inevitável, e que para isso era preciso forçar um acidente, ou esconder um atirador na floresta, ou... ai, ai, ai.

Isso é o que dá desmedir as proporções da visão que temos do mito. Ele parece tão maior do que realmente é, que acaba por diminuir seu real valor. Boa parte dessa linguagem é sedimentada pela parte mais visível da mídia que projetava Ayrton, notadamente a própria rede Globo. Basta ver que a tentativa de edificar um novo ídolo falhou miseravelmente, personificada, na maior parte, em Rubens Barrichello (leiam este texto primoroso de Flavio Gomes). A expectativa que a vênus platinada formou em torno de um pretenso substituto gerou a imagem negativa que Rubinho carrega até hoje, como sinônimo proverbial de lentidão. Isso é injustíssimo. Rubinho é um ótimo piloto, como prova sua longevidade na categoria. Bom de chuva, grande acertador de carros, capaz de ficar horas a fio dentro de um cockpit para chegar a um resultado minimamente melhor. Deu azar de compartilhar espaço com Michael Schumacher, um dos maiores gênios do automobilismo, e a Globo cansou de alimentar esperanças falsas no torcedor. E a surrada frase que diz que no tempo de Senna é que as corridas valiam a pena é um dos argumentum ad antiquitatem mais escancarados que existem. São duas coisas: a primeira é que, do mesmo modo que acontece no futebol, se você gostava apenas das corridas em que o Senna ganhava, você gostava do Senna, e não das corridas. E a segunda é que o automobilismo sempre foi bom, com ou sem Senna; seria bom mesmo que Senna nunca tivesse nascido. Apenas teríamos um gênio a menos.

Ah... eu disse que eram duas as efemérides. O outro fato é estupidamente menos relevante, mas diz muito respeito a mim mesmo: os oito anos do Aporias Plurais, o blog deste que escreve estas mal digitadas linhas. Oito anos são bodas de papoula ou de barro, dependendo da fonte. Quanto a este item, é tudo o que tenho a dizer.

Bons ventos a todos.

Recomendações:
Vão de balde hoje. Em primeiro lugar, o livro já mencionado de Barthes. A sua primeira parte é uma longa coleção de breves mitos construídos na modernidade. Na segunda, ele parte para a ignorância e detona todos o qualquer outro mito moderno que venha a surgir, desvendando sua mecânica. É bem interessante de se ler.

BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 2003.

Atenção: o livro abaixo é uma grande elegia ao Ayrton mítico. Isso não é um demérito por si só, mas é bom que se saiba se tratar de um livro de fã, o que deve ser sopesado em sua leitura. No entanto, para quem busca dados biográficos, é irretocável.

RODRIGUES, Ernesto. Ayrton: O Herói Revelado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

Um documentário é boa pedida principalmente para quem não viveu aqueles dias, e há um muito bom disponível (por enquanto) na Netflix. O título brasileiro traduzido do original em inglês dá bem a dimensão do ídolo transformado em divindade.

KAPADIA, Asif. Senna: o Brasileiro, o Herói, o Campeão. (No fear, no limits, no equal). Filme. França: Studiocanal, 2010. Cor. 106 min.

Por fim, seguem os canais dedicados ao automobilismo que eu sigo no Youtube. Todos são muito bons, com destaque para o primeiro, de Sérgio Siverly. Eu também sou um “cabeça de gasolina”.

Boteco F1:

Botequim GP:

Grande Prêmio:

Projeto Motor:

Velocidade Alta:

* Já falei sobre os pirahãs em outro texto (aqui), mas é de rigor que eu o faça de maneira mais aprofundada. Aguardem porque está na minha pauta.

** Não estou ofendendo o Emerson. Este era realmente seu apelido antes de ingressar na Fórmula Indy. Ao que me conste, ele nunca se sentiu ultrajado com o cognome.

*** Discordo frontalmente de quem acha a curta história da equipe Fittipaldi/Copersucar um fracasso. Isso é coisa de quem não manja nada do que é competição esportiva. Dela, saíram projetistas de renome como Adrian Newey e Harvey Postlethwaite, e um campeão mundial, Keke Rosberg. Foi uma equipe que pontuou com alguma frequência e sentiu o sabor de alguns pódios. Esses resultados são incompatíveis com o fracasso.

**** É bem verdade que Elio de Angelis morreu em decorrência de um acidente em Paul Ricard em 1986, mas não se tratava da temporada regular, e sim de testes privados, com poucos pilotos e equipes presentes.