Marcadores

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Navegações de cabotagem – o Jardim Botânico de Curitiba e as rupturas nas Ciências

(A Ciência anda na base dos tropeções ou zune como um novo sedan? Se temos uma Revolução Científica, não me parece que as coisas tenham sido assim tranquilas) 

Olá!

Clique aqui para ler mais textos sobre meus bate-e-volta

Dizem que ninguém vai a Roma se não pediu benção ao papa. Bom, primeiro que o Vaticano é um estado autônomo, mesmo que se constitua de um grande quarteirão encravado na capital italiana. Mas o sentido da frase é outra, e pode ser transposta para Curitiba da seguinte forma – ninguém veio a Curitiba se não foi ao Jardim Botânico. E é fato, é um lugar muito bonito e bem cuidado, embora outros locais também possam ser enquadrados como cartão postal da cidade.

Como venho contando nos últimos textos (este e este), vim ver meu piá mais velho, que se mudou para estas plagas ainda no começo do ano, mas somente agora, com o ciclo vacinal completo, senti-me encorajado a dar uma conhecida na cidade. Fiz pouco, é verdade e esperei o último momento para dar uma corridinha aqui, porque Curitiba faz as vezes de Seattle meridional, e chove por dias. Mas houve uma trégua e fomos lá. E eu estou aqui, para dar impressões e filosofar.


Quem vem pela entrada principal se depara com uma bela associação de estética com ciência, porque a visão mais marcante é da estufa ao fundo, enquanto se caminha pelos jardins geométricos do caminho.


Pelo que entendi, a elevação da estufa é a nascente das águas que abastecem o lago do parque e que atravessa o campo de fora a fora. É por este percurso que os jardins franceses foram cultivados, e daqui de cima temos a melhor visão da área.

Essa mesma fonte provê de água o chafariz que fica a meio caminho entre o portal e a estufa, onde reina uma estátua que é conhecida como Amor Materno.

O jardim tem trinta anos de existência, mas possui algumas instalações mais novas, como é o caso da Galeria das Quatro Estações, uma notória simbiose de homenagens, juntando o propósito sazonal de certas coleções com a célebre sinfonia de Vivaldi, que fica sendo executada em tempo integral lá dentro.

Uma boa sacada foi colocar as Horas (deusas gregas que regiam as estações do ano) e as amostras exatamente na mesma ordem da sinfonia, embora, para variar, tenhamos percorrido o caminho na ordem inversa. Na ordem, temos outono (Ftinoporão), inverno (Quimão), primavera (Eiar) e verão (Teros).


É preciso reforçar que um jardim botânico não é meramente um parque, mas um espaço de estudos. Um dos recintos é dedicado à flora nativa, que, embora seja semelhante à Mata Atlântica, tem suas sutilezas próprias, recordando que estamos em área de um sistema muito particular, o da Mata das Araucárias, que é particularmente circunscrita à região leste do Paraná.

Obviamente que uma flora bem cuidada atrai a fauna local para interação.

Por falar nisso, o Jardim das Sensações pretende ser exatamente um ponto onde as pessoas podem tocar e cheirar as espécies sem causar prejuízo à praça...

… inclusive das abelhas contidas nos diversos meliponários espalhados no jardim.


Bom… sempre que eu reporto algum equipamento de natureza científica com viés turístico eu acabo por mencionar a Filosofia da Ciência, especialmente dando ênfase na importância oculta que esse modelo de instituição tem não somente para a diversão, mas também para a pesquisa e para o aprendizado. Fiz isso com o Observatório do Pico dos Dias, com o Museu de História Natural de Atibaia e com o Jardim Botânico de Sorocaba, e não será diferente desta vez.

Continuo achando imprescindível que se faça isso, porque, como eu disse, o Jardim Botânico não é meramente um parque, onde levamos as crianças para ver flores e passarinhos. É um espaço da ciência, que aqui demonstra como experimentação e estética podem ser colocados em perfeita harmonia, sem nenhuma espécie de repelência entre si, como muita gente pensa.

Às vezes vivemos os momentos históricos mais importantes da humanidade e nem nos damos conta disso. Ainda ontem nem púnhamos na conta a hipótese de ficar enclausurados por quase dois anos em casa e em máscaras, com milhares e milhares de mortos. Como será que olharemos para este episódio daqui a cem, duzentos, mil anos?

O fato é que não somente muitas vidas foram interrompidas, mas o curso da história de muita gente também se guinou abruptamente. Hoje, passando pela rua São Bento, vejo inúmeras portas fechadas, de lojas e bares tradicionais, inclusive a centenária Casa Califórnia, portinha que servia lanches de linguiça bragantina, e onde eu gostava de fazer crescer minhas discrasias sanguíneas. Como estará cada uma das pessoas que trabalhavam em cada uma dessas lojinhas? A São Bento voltará a ser populada ou essa será a marca do fim de sua tradição?

Embora tudo isso nos diga a corações e mentes, porque vivenciamos e sofremos com a situação, facilmente podemos deduzir que a História se escreve aos tropeções, e isso diz respeito não só a pessoas, mas ao modo como as coisas se dão. Essas guinadas repentinas são costumeiramente chamadas de revolução, que, em sua raiz etimológica, quer dizer aquilo que gira, que dá voltas, que é remexido. Acontece assim com a Ciência também.

A Revolução Científica foi uma virada de chave nos princípios gerais do conhecimento, que ocorreu no momento em que o enclausuramento da Idade Média foi dando lugar à abertura para o mundo vinda com a Idade Moderna. Em rápido périplo histórico, podemos dizer que a Europa vivia espalhada em feudos cujos principais senhores eram os reis, e o conhecimento ficava guardado nos conventos, convenientemente disponibilizado na medida em que se adequasse à fé. Entretanto, a tomada de Constantinopla pelos turcos obrigou os europeus a se lançar ao mar, e as novidades, sejam concretas, sejam ideológicas, vinham aos borbotões. Tudo bem grosso modo.

Essa onda de novidades e de necessidade de desenvolvimento de técnicas fez com que as ideias científicas saíssem do marasmo. Entretanto, a Revolução Científica não foi um evento declarado, e, como costuma acontecer, os "revolucionários" não sabiam que estavam participando de um movimento histórico, que só foi ganhar esse nome bem mais tarde, quando já havia distanciamento suficiente para bem delineá-lo. Guilherme de Ockham, Roberto Grosseteste e Roger Bacon, por exemplo, eram clérigos que buscavam a construção de métodos sem desprezar os ensinamentos de sua religião. E os principais pioneiros da virada tiveram sempre algum tipo de problema com os sacerdotes estabelecidos: Giordano Bruno foi martirizado, Nicolau Copérnico publicou suas obras no anonimato e Galileu Galilei precisou voltar atrás com suas teses, para não ter o mesmo destino do pobre Bruno. Ou seja, os dois modelos de pensamento se imbricavam de alguma forma, o que dá uma ideia de continuidade.

Foi somente no século XX que surgiu o termo Revolução Científica na academia, pelas mãos do historiador e filósofo da ciência franco-russo Alexandre Koyré. Ele foi um estudioso da história medieval que se interessou pela história das Ciências justamente quando percebeu o processo contínuo de rupturas epistemológicas que se deu naquele momento de transição.

Esse novo olhar proposto por Koyré, que veremos mais adiante, vem se contrapor com a filosofia de fundo em vigor até então, baseada fortemente no Positivismo. Apenas para fazer uma rápida remissão, essa corrente de pensamento tinha um cunho otimista, na medida em que acreditava que a Ciência possuía um sentido estrito, apontando para o futuro como uma longa cadeia de progressos. Mais ainda, os positivistas sobrevalorizavam a Ciência como um método para tudo, de forma a reputar como válido apenas os conhecimentos que se encaixassem na metodologia científica.

De um modo geral, essa maneira de ver as ciências não era propriamente ruim, já que, embora as descobertas de base fossem neutras em si mesmas, a sua aplicação e transformação em tecnologias eram, sim, ferramentas do progresso. Ocorre que o otimismo reinante no Positivismo não conseguiu resistir à aplicação dos novos conhecimentos em máquinas de guerra, que alcançaram um poder destrutivo jamais sonhado. Ainda mais: a transformação de conhecimentos sociais e humanos em Ciências não foi capaz de prover previsibilidade aos teatros de eventos onde as nações passaram a se digladiar. Com isso, a confiança na escola positivista foi caindo por terra, e era natural que novas propostas de descrição da história das ciências começassem a pipocar pela academia.

A primeira coisa que foi pensada foi a seguinte: quando começou isso tudo? As mudanças de pensamento de fundo que encaramos a partir do evento da Primeira Grande Guerra também foi sentida em outros momentos? Esse tipo de pergunta conduziu filósofos e historiadores para o século XVII, no momento em que transitávamos do teocentrismo medieval para o humanismo moderno.

Uma das alternativas vinha da academia francesa, onde uma visão de continuidade histórica, liderada por Pierre Duhem, entendia serem as mudanças na concepção científica o fruto de longos períodos e de fenômenos em camadas sobrepostas, que faziam as transições serem mais ou menos suaves.

Koyré toma outra linha, muito influenciado por seus estudos anteriores. Ele havia se debruçado sobre a história do pensamento religioso medieval e havia percebido que não existem dissociações entre filosofia, religião e ciência, formando uma espécie de unidade onde uma vertente influencia na outra. Isso significa que mudanças em cada uma dessas linhas vai influenciar nas demais, porque o pensamento é um grande sistema.

Como sabemos, a Idade Média era caracterizada pelo pensamento teocêntrico, que se baseava em grande parte no ideário aristotélico, com as reformas e adaptações realizadas pelo tomismo, muito em voga na filosofia cristã. A partir do momento em que a visão metafísica vai se deslocando de foco, vai junto também as demais maneiras de pensar o mundo. Copérnico é um bom exemplo disso.

O astrônomo polonês, com a mudança de ares filosóficos, retira a Terra do centro do universo e vai colocar o Sol em seu lugar. Para além das observações empíricas, há um pano de fundo metafísico na atitude. Copérnico surfava no resgate das tradições clássicas, que cotejavam o Sol como uma espécie de divindade, e é exatamente o que o heliocentrismo faz. Eis que, portanto, a solução dos problemas aristotélicos-ptolomaicos é dada com um substrato religioso: o deslocamento do Sol para o centro não é só fruto da observação, como diria a Ciência, mas uma nova promoção de ordem metafísica. Por isso o pensamento é todo ele encadeado entre si.

Quando Koyré olha para o século XVII, o que ele vê não é uma escalada cheia de degradés no pensamento, mas uma coleção de rupturas. Copérnico tira a Terra do centro do universo, Lavoisier elimina o flogisto* e descobre que não se cria nem se perde energia, Newton descarta a imobilidade do universo e Darwin remove a imutabilidade das espécies. A Ciência não evolui de modo suave, mas em quebras de estrutura, o que se estende à própria maneira de pensá-la. Portanto, não são os avanços técnicos que caracterizam a Revolução Científica, mas uma mudança de paradigmas que começa no campo das ideias. Há mais revolução na ideia de produzir uma bomba atômica do que em sua efetiva produção.

As ideias de Koyré influenciaram bastante gente, principalmente o teórico estadunidense Thomas Kuhn, que passou a desenvolver uma teoria de crise na história das Ciências baseada na troca de paradigmas, ou seja, uma teoria preponderante começa a perder força na medida em que lhe são confrontadas teorias opostas, até que seu próprio paradigma implode, para dar lugar à nova maneira de se pensar, e é desta forma que a Ciência evolui. Tratei desta questão neste texto.

Nossa... Fiquei meio longe do Jardim Botânico, mas isso não é um problema. Vejam que na botânica também tivemos importantes quebras de paradigma, como aquela que deu origem ao conhecimento sobre genética, nascida de Mendel. Então por aqui também podemos observar e nos surpreender com os rumos que a Ciência tomou desde sua Revolução, inclusive em um lugar que é uma celebração não somente da Ciência, mas da Filosofia como um todo. Mas os rostos mascarados de fora a fora neste jardim me faz pensar se por trás dos fatos históricos atuais também não teremos uma nova maneira de ver a Ciência. Será que desde agora ela passará a fazer parte mais próxima de nossas vidas? Será que o modelo de verdade que ela defende será considerado ultrapassado? Será que um “bichinho” invisível será o divisor de águas em que o senso comum tomará as rédeas? Credo! Bons ventos a todos!

Recomendações:

Apesar de muito circunscrito aos meios acadêmicos, os estudos de Koyré podem ser lidos com boa dose de compreensão. Segue uma fonte:

KOYRÉ, Alexandre. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

E o Jardim Botânico de Curitiba merece a fama que tem. Não deixem de passar nele quando forem a Curitiba.

Jardim Botânico de Curitiba
Rua Engenheiro Ostoja Roguski, sem nº
Jardim Botânico
Curitiba/PR
A aproximadamente 420km do centro de São Paulo

* Flogisto seria um elemento que proporcionaria a possibilidade de um material qualquer, e quanto maior a quantidade desse hipotético elemento, maior a capacidade de queima. Dessa forma, uma madeira seria muito mais rica em flogisto do que um granito, para citar um exemplo.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Navegações de cabotagem - o Bosque Alemão de Curitiba e os filósofos que fizeram brotar conhecimento em terras tedescas

(A Alemanha é uma das maiores fornecedoras de autores para a Filosofia de todos os tempos, somente comparável à Grécia antiga. Vamos tentar entender quem foram os "pais" dessa galera toda, e porque influenciaram tanta gente).

Olá!

Clique aqui para ler mais textos sobre meus bate-e-volta

Não é a primeira vez que eu venho para Curitiba. Logo no final do verão, eu vim aqui para conhecer o apartamento que o filho mais velho alugou para exercer seu ofício nesta metrópole mais fria de Terra Brasilis. Acontece que estávamos em plena fase mais crítica da pandemia que ainda nos preocupa, e, sendo assim, limitei-me a jogar conversa fora pelos cinco dias em que lá estive. Desta vez, no entanto, ao invés de cortar a sinuosa estrada que a liga à Paulicéia Desvairada, pus-me ineditamente dentro de um avião e, já devidamente transformado em jacaré, pude conhecer um pouco melhor a cidade, mesmo que ainda com uma boa e justificada dose de restrições. Além de ir conhecer os três principais estádios da cidade (sem ver jogos), fui a mais alguns ambientes públicos, o que gostaria de compartilhar e filosofar com vocês, meus pacientes leitores. O primeiro deles foi o Bosque Alemão, e é sobre ele que me debruçarei a partir de agora.

Curitiba guarda uma boa dose de semelhanças com São Paulo. Ambas são cidades são sedes de metrópoles que arrastam sua influência por muitas cidades, e são relativamente próximas ao litoral, que ficam no cimo da serra que lhes afasta do nível do mar. Com isso, temos uma quantidade grande de desníveis compostos por morros e colinas, o que pode ser facilmente observável neste parque. Também em ambas há uma vasta colonização de povos estrangeiros, inclusive de alemães. Só que em Curitiba essa presença se faz sentir com mais peso. Este espaço é todo voltado para a cultura tedesca, sendo que o portal da parte baixa é a reprodução da Casa Mila, uma antiga construção em estilo próprio que ficava no centro da cidade. A praça à sua frente pretende ser uma homenagem aos escritores humanistas alemães.


Este lugar, dividido em duas partes de grande diferença de altura, era uma antiga chácara da família Schaffer, onde há preservado um bom trecho de Mata Atlântica nativa, que pode ser bem observada a partir do seu mirante (falarei sobre ele daqui a pouco) e que permite dar uma olhada em uma boa camada de Curitiba.


Tomamos o rumo inverso do que deveria ser feito, e entramos pela saída. Como eu disse, há uma parte alta e uma parte baixa, sendo que a lógica mais canônica deveria ser o rumo da descida, o que fizemos exatamente o contrário.


Existe algum problema basilar no sentido adotado? Mais ou menos. Se por um lado subir te fará mais exercício às pernas, por outro a história clássica de Joãozinho e Maria, escrita em quadrões de azulejo nos nichos de madeira ao longo da trilha, ficará invertida. Essa fábula é certamente uma das mais conhecidas dos irmãos Grimm, e versa sobre um casal de irmãos que se perde na floresta e vai buscar refúgio na casa de uma bruxa. Mais não digo, para não dar spoiler.


No meio deste caminho, há uma casinha que abriga uma biblioteca infantil, ainda fechada devido à pandemia, e que representa justamente a casa da tal bruxa, com um lago e uma ponte bem próximos a ela, e é chamada de Casa Encantada. Parte do lugar é todo dedicado ludicamente à feitiçaria.

Na ponta de cima da trilha, há uma praça que constitui um conjunto que dá toda a razão do parque: um memorial à cultura dos imigrantes alemães que povoaram a cidade.


A principal edificação é uma antiga igreja de madeira que foi transferida do bairro do Seminário, uma reprodução das igrejas luteranas teutônicas, com a simplicidade e rebuscamento que lhe são peculiares. Aqui, ela foi transformada em um oratório dedicado a Johann Sebastian Bach, onde são executados concertos de música clássica, embora ainda não tenha sido reaberto para este fim.


No material que pesquisei, obtive a informação de que há nascentes neste morro. Não sei se são suficientes para produzir toda a cascata que se esvai morro abaixo, mas foi aproveitado o declive para construir uma escadinha úmida.


Na parte de trás da capela, há uma confeitaria que me trouxe lembranças de infância. Meu avô tinha uma oficina eletrônica, que ficava na garagem alugada por uma alemã, que chamávamos de Dona Cathe. Era muito difícil de conversar com ela, mas ela tinha a linguagem que as crianças melhor entendem: a dos doces. Esses tipos de bolachinha de gengibre eram uma de suas especialidades, além de outros acepipes que usam uma quantidade de mel suficiente para abastecer uma família inteira de ursos.

Mas há a Torre dos Filósofos, e eu preciso falar dela, como é absolutamente óbvio pela natureza do meu espaço. Trata-se do elemento de ligação entre a trilha de João e Maria (ou Hänsel und Gretel, no original germânico), com uma escadaria de madeira que conduz ao topo do mirante, de quem falei logo aí atrás.


No seu topo, há o teto bicudo, que desemboca na passarela que transpõe a nascente e leva ao oratório e à confeitaria. Não consegui muitos detalhes sobre a homenagem em si, se a arquitetura quer dizer alguma coisa de especial ou mesmo qual é o escopo dos homenageados.


Isso porque a filosofia alemã é imensa, somente comparável aos gregos da época clássica, tanto que os ingleses do Monty Python não perderam tempo em referenciá-los no grande clássico do futebol filosófico mundial, nessa engraçadíssima esquete. Desde que veio o Iluminismo e seu arejamento de ideias, o pensamento alemão veio enriquecendo o cabedal intelectivo até os dias de hoje.

E não são contribuições quaisquer. Foram feitas em quantidade, mas principalmente em qualidade. Qualquer lista de dez mais incluirá pelo menos cinco alemães na contagem. Cheguei a pensar em fazer uma lista de textos de autores alemães que já usei neste espaço, mas concluí que ficaria trabalhoso para mim e enfadonho para vocês, de tantos itens que resultariam.

Resolvi então botar a bola para funcionar e fazer um exercício mental: tentar detectar as causas de tanta profusão e  traçar um itinerário para se chegar onde se chegou. E entendo que o fenômeno se deu por dois filósofos fundantes do pensamento moderno, sendo que um produziu uma miríade de seguidores, enquanto o outro, de detratores. Trata-se de Kant e Hegel.

É preciso dar um passinho atrás para entender ambos os casos, no entanto. Isso acontece porque cada um deles teve seu pensamento influenciado por um determinado contexto, embora haja vários pontos de intersecção entre si. Vamos solvendo esse substrato aos poucos, começando pelos caminhos que levaram a Kant.

Desde a Renascença, duas correntes muito sólidas haviam se estabelecido na questão da teoria do conhecimento. Havia uma querela em cima de qual seria a principal fonte cognitiva do raciocínio humano, coisa que já debati muitas vezes por aqui. Na Europa continental, a principal tendência era o racionalismo, escola que se caracterizava por um primado da razão na aquisição de conhecimentos. Grosso modo, os racionalistas diziam que todo o conhecimento já estava embutido na própria mente desde o nascimento, e o processo cognitivo era uma característica inerente. Aprender nada mais era do que despertar conexões que já existiam dentro dos cérebros, de maneira inata. Já nas Ilhas Britânicas a principal tendência epistemológica era o empirismo, que dizia ser a mente um grande estoque de informações, que eram apreendidas através do contato dado através dos sentidos, sem existir nada de anterior que fosse ativado por um processo cognitivo. O aprendizado, dessa forma, era aquisição, e não despertar. Na primeira tendência, tínhamos Descartes à frente; na segunda, Francis Bacon.

Inicialmente, Kant desejava estabelecer uma visão mais robusta sobre a Metafísica, especialmente trazendo novos elementos sobre a monadologia de seu conterrâneo Leibniz. Entretanto, à medida que ia tomando contato com ideias contrárias ao pensamento metafísico, em especial ao “despertar do sono dogmático” provocado pela leitura de Hume, foi agrupando elementos para fundar sua “revolução copernicana”, abandonando a leitura inicial pretendida e se voltando para a superação das distinções entre os modelos de cognição, o que mudaria por completo os rumos da Epistemologia.

Até então, todos os filósofos tinham para si que o processo de conhecimento se dava em função da análise de um objeto qualquer. Observávamos uma maçã ou uma pitanga e dela tirávamos conclusões, seja pelo puro raciocínio (como gostariam os racionalistas), seja pela coleção de conhecimentos gravados em nossa memória (como deduziam os empiristas). Ou seja, o objeto está no centro e os sujeitos que o observam ficam ao seu redor. A metáfora copernicana diz respeito exatamente a este ponto. O astrônomo polonês fez uma célebre inversão na posição do planeta Terra com relação ao sistema solar, tirando-o do centro para colocar o Sol no lugar. Isso resolveu uma série de problemas na observação das órbitas e na posição do sistema como um todo, e daí para frente toda a cosmologia recebeu somente aperfeiçoamentos, sem mudar substancialmente as teorias sobre sua estrutura.

Kant faz uma revolução inédita, que passa a considerar o sujeito em sua relação com o objeto, que é retirado do centro da relação, assim como Copérnico fez com o planetinha azul e cada vez mais quente. Todas as teorias significativas posteriores passaram a levar a influência que o sujeito doa ao processo cognitivo. Isso pode parecer óbvio hoje em dia, mas é porque a influência kantiana se faz sentir até hoje.

Destarte, a partir da revolução de Kant, não é mais o objeto que se apresenta ao sujeito para que este o conheça, mas sim é o sujeito que concede sentido ao objeto observado, deixando de ser um polo passivo na relação cognitiva. O sujeito possui suas leis particulares de sensibilidade, o que lhe dá um modo particular de intuir os objetos de estudo. Os objetos não são mais coisas em si mesmas, mas coisas em relação ao sujeito, cada um com suas peculiaridades, e isso faz absolutamente toda diferença do mundo. A razão inatamente fornece a estrutura do sujeito para a aquisição do conhecimento, o que bate com o que prega o racionalismo, enquanto a apreensão do mundo exterior se dá pela via dos sentidos, como queriam os empiristas.

É aqui que surge a noção de noumeno e fenômeno, a grande sacada kantiana. Como cada sujeito está colocado com suas particularidades na cadeia cognitiva, cada um terá uma intuição própria dos objetos do conhecimento. O noumeno, que seria o objeto comum observável por todo e qualquer sujeito, surge a cada um de uma forma diferente, ainda que sutilmente, porque o sujeito participante desta relação carrega consigo intuições próprias. A coisa-em-si, portanto, não é observável, mas apenas os fenômenos, as coisas tais quais se apresentam à uma consciência em particular, que, além de tudo, tem seu conjunto próprio de sentidos.

Quando Schopenhauer nos fala sobre a vontade e suas representações, ou Husserl cria uma metodologia levando em consideração a intencionalidade da consciência, ou ainda Heidegger explana sobre as diferenças entre Ser e ente, ou Cassirer nos traz a filosofia das formas simbólicas, é a Kant que todos eles estão se referindo. Toda psicologia que se fundeie na ideia de interação entre sujeito e objeto também lhe é tributária, como bem acontece com a Gestalt e outras correntes.

Por outro lado, e mesmo que Kant tenha tido bons contestadores, as coisas para o lado de Hegel foram bem menos confortáveis, embora ambos tenham formulado sistemas filosóficos completos. Isso provavelmente se dê porque Hegel tenha se mantido em um plano mais abstrato, e ainda mais complexo que o filósofo de Königsberg.

O prelúdio para o boom da filosofia na Alemanha vem com um movimento literário que ficou célebre no mundo inteiro, cada um com suas variações e peculiaridades: o Romantismo. Como houvessem dado seus primeiros passos na França, as  linhas de pensamento vindas do Iluminismo eram marcadas por um apelo à racionalidade recorrente, gerando uma reação por parte dos literatos e demais artistas. Embora possa parecer contraintuitivo que a liberdade de pensamento preconizada pelo Romantismo conduzisse a um novo caminho para uma filosofia que buscava se aproximar das ciências, é com esse ethos que é semeado o Idealismo alemão, cujo poderoso-chefão era Hegel.

O espírito do Romantismo marca uma espécie de conflito interior que se põe em contraste com a realidade. O mundo exterior nunca é satisfatório para o romântico, e a aproximação mencionada entre Filosofia e Ciência retira dele um dos pontos de conformação, porque ambas vão buscar o mesmo escopo objetivo. Diante disso, o Romantismo busca dar ênfase no ideal, em contraponto ao real. Schlegel, Hörderlin, Novalis, Schiller e principalmente Goethe formaram um corpus cuja principal maestria estava em manter o subjetivismo da sensibilidade.

Hegel, derivando sua Filosofia dessa “imaterialidade”, bem como pelo resgate e crítica aos estudos de Fichte e Schelling, indica que a realidade não é algo duro e estanque, como se fosse descritível nos manuais, mas que possui um dinamismo tal que só pode ser chamada de “processo” ou de “movimento”, bem ao gosto do que nos contaria o antiquíssimo Heráclito com seu devir. A realidade, portanto, não é uma substância, mas Espírito (geist). Dessa forma, a busca por uma verdade não deve olhar única e exclusivamente para os objetos, mas para toda transformação que ocorre nas ideias que existem sobre ele, porque não são só as coisas que mudam, mas também as noções que se tem sobre as coisas.

Vamos explicar um pouco melhor, usando exemplos simples. Quando eu era rapazola, queria por toda lei fazer uma tatuagem. Eram tempos em que fazê-la era realmente desafiador, porque carregavam a marca da revolta e da marginalidade. Eu tinha dessas coisas, mas esse tipo de marca tinha alguns efeitos imediatos, dificuldade para conseguir emprego à frente. Outra coisa é que os tatuadores exerciam suas artes e ofícios em antros, quase na clandestinidade. Hoje em dia, qualquer mocinha de 14 anos imprime seus ombrinhos e pezinhos com apoio dos pais, também eles tatuados nos shopping centers em estúdios modernos e cheirosos. O que mudou? Foi alguma lei proibindo o preconceito contra os tatuados? Não. Mudou o geist dos tempos, e tatuagens, piercings, alargadores e outras modificações corporais são bem vistas.

Notem que não foi uma única pessoa que mudou sua opinião a respeito do tema, mas uma espécie de “ar” movido pelo aumento das liberdades e da importância do corpo, gerando novos costumes, modificações corporais inclusas. O Espírito ao qual Hegel se refere, portanto, nada tem a ver com transcendentalidade ou seres divinos, mas com a consciência coletiva. É como qualquer peça de roupa: a primeira pessoa que a usa é ousada ou excêntrica, mas aos poucos outras começam a usá-la até ficar bem aceita, e virar moda. As consciências individuais passaram, pelos mais diferentes motivos, a mudar a maneira como viam tal peça, até que a mesma vire démodé, em constante transformação.

Sendo assim, Hegel entende que o movimento do Espírito, e consequentemente da própria História, é dialético. O Espírito manifesta-se de três formas. A primeira é o Ser em si mesmo, a segunda é o Ser do outro e a terceira é o retorno do Ser. Uma planta qualquer, por exemplo, começa sua vida em forma de semente, o que podemos chamar de Ser. Em um determinado momento, alguma condição fará com que essa semente encaminhe sua transformação, e ela deixará de ser o que ela é, caminhará rumo à sua negação, vai virar outra coisa; até que ela retorna ao Ser, volta a ser Espírito novamente, já devidamente transformada, na forma de uma outra planta. Esse processo de tese, antítese e síntese é refletido em tudo o mais, inclusive na História, no conhecimento e na realidade.

Hegel e seu Idealismo colecionaram seguidores ainda em vida, mas também se formaram inúmeros opositores. Marx, Feuerbach e outros recepcionaram bem parte de suas ideias, mas rechaçaram outras. Bruno Bauer e Max Stirner colocaram-se à esquerda do que dizia Hegel, discordando especialmente de sua visão abstrata e de suas posições conservadoras (estranho isso em um filósofo cuja principal chave de leitura é a transformação). Schopenhauer era crítico acérrimo do filósofo de Stuttgart, bem como também ocorria com Nietzsche.

Notem como grande parte dos seguidores e detratores destes dois mestres são alemães ou de países próximos. Estamos em um tempo onde não existiam computadores e suas redes, nem mesmo rádio, e toda comunicação se dava através de escritos, o que sem dúvida favoreceu a circunscrição a uma superfície territorial mais limitada. Mas podem perceber como eles foram fundamentais para movimentar as ideias e discussões acadêmicas, gerando produção filosófica rica e abundante até os dias de hoje. Por isso a homenagem colocada no Bosque Alemão é facilmente compreensível. A filosofia é realmente um orgulho para os alemães.

De resto, apesar da chuva, mais um lugar para agregar aos meus registros, aproveitando para matar as saudades do moleque que resolveu ir para tão longe, junto com sua companheira inseparável, mesmo que ainda de máscara e com álcool-gel no bolso. Bons ventos a todos!

Recomendação de visitação:

Como já recomendei as principais obras de Kant e Hegel neste espaço, e ainda espalhei um monte de links pelo texto todo, vou me limitar a recomendar a visitação do Bosque Alemão para quem estiver pelos arredores de Curitiba:

Bosque Alemão (Memorial da Imigração Alemã)
Rua Nicolò Paganini, s/n
Vista Alegre
Paraná/PR
Aproximadamente 410 km a partir do centro de São Paulo

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Navegações de cabotagem - o Aeroporto Internacional de Guarulhos e a diferença metafísica entre medo e angústia

(Medo e angústia não são a mesma coisa, e não é gostoso sentir nenhum dos dois. Mas qual deles tem um sentido ontológico mais consistente?)

”Um homem verdadeiramente sábio não é aquele que persegue cegamente uma verdade... Um saber superior (e todo saber é superioridade) só é concedido àquele que experimentou o ímpeto alado do caminho para o Ser, que não estranhou o espanto do segundo caminho para o abismo do Nada, e que aceitou, como constante necessidade, o terceiro caminho, o da aparência” - Heidegger

Olá!

Clique aqui para ler mais textos sobre meus bate-e-volta

Eu sempre me coloquei em uma posição extremamente ambígua com relação a voar de avião. Por um lado, era um daqueles quase mitos inatingíveis, viajar de forma rápida e eficaz, sem os transtornos do asfalto e se aproximando da tecnologia de ponta. Por outro, um medo de altura que passa do irracional. Mas as voltas que a vida dá nos levam aos becos do destino, e decidi comprar um par de bilhetes para chegar rapidinho em Cascavel, que consome mais de 12 horas de viagem pelo chão, mas uma hora e meia singrando os ventos. Fi-lo com um bocado de antecedência para pegar preços melhores. E aí veio a pandemia… sempre ela. Precisei adiar a viagem, o que fiz para agorinha há pouco, na semana passada, já devidamente convertidos em jacarés, eu e a cara-metade. Só que, daí, o moleque já tinha se mandado da Metrópole do Mercosul para a Cidade Sorriso, mais conhecida como Curitiba, tudo no estado do Paraná. Isso me deu novas dores de cabeça, com o desajuste que ficou nos preços das passagens. Passons, isso são contingências da vida e vamos tocando do jeito que é possível. Acontece que eu não pude deixar de filosofar mesmo estando em um aeroporto, e eu queria dividir meus pensamentos com vocês.


Eu nunca tinha voado anteriormente, embora vontade não houvesse me faltado. Ainda tenho uma pontinha de memória de quando meu avô pegava a mim e levava na laje do aeroporto de Congonhas, para ver as aeronaves pousarem e decolarem. Parece um divertimento ingênuo, mas que era bastante comum nos idos dos 70. O tamanho dos aviões era totalmente discrepante daquele que víamos nos desenhos animados, tipo Esquadrilha Abutre. Isso tudo causava uma grande impressão, mas à pergunta “quando nós vamos pegar um avião?”, a resposta era aquela do operariado: não é para nós.

Entrada do terminal 2

E não era mesmo. Voar era coisa para quem tinha dinheiro, especialmente para viajar. Nosso espectro incluía ir para a Baixada Santista, para o interior paulista ou norte do Paraná, onde moravam os parentes, e isso era plenamente atingível por ônibus. Mesmo que pensássemos em ir para mais longe, a diferença de preços entre viação e aviação era absolutamente proibitiva. Desta forma, pegar um avião necessitava de condições especiais.

Ao fundo, a torre de controle

A mais provável era viajar a trabalho, já que eu comecei carreira nos escritórios da vida. Havia uma ocasião frequente: eu trabalhava em uma fábrica de máquinas, e o meio mais comum de se financiar um caro equipamento industrial era através do Finame*. Os recursos deste dispositivo eram gerenciados pelo BNDES, que ficava situado no Rio de Janeiro. O roteiro já era bem escrito. Não havendo e-mails, nem certificações digitais, o contrato era enviado de malote até a entidade bancária onde seria liberado o dinheiro, o que podia levar até dez dias. Para acelerar o processo, a gerência metia um contínuo na ponte aérea, para ir à Avenida República do Chile - RJ, pegar a papelada, voltar a Congonhas, chamar um táxi e desembocar na Cidade de Deus, bairro de Osasco onde se situava a sede do banco onde minha empregadora desembaraçava seus cobres. Nunca calhou de ser eu o escolhido, e, com isso, não foi por esse caminho minha oportunidade.

O movimento dos saguões, com uma galera de alguma seleção brasileira

O voo veio por conta das novas políticas das empresas aéreas, que diminuíram os luxos e os custos para poder oferecer viagens mais em conta. Não se trata ainda de artigo em conta, mas o abismo que existia entre um bilhete aéreo e uma passagem de busão não é mais tão descompassado, e acabei fazendo a compra que já descrevi anteriormente. Só não foi em Congonhas, foi em Cumbica.

As listas de partidas/chegadas

Conheci este distrito de Guarulhos ainda criança, por vias do mesmo avô do passeio no aeroporto, mas por um motivo muito mais infeliz. Ele já estava bastante adoecido do seu câncer na garganta, e como se recusava a realizar tratamentos, meus familiares tentaram aqueles velhos paliativos que não resolvem nada, a não ser ativar o efeito placebo. No caso, vínhamos à casa de uma acupunturista, uma moça japonesa bastante jovem, que sabia que não o curaria, mas ao menos tentava mitigar suas dores.

Os bilhetes de embarque

A área era composta por uma base aérea e por uma certa quantidade de casas térreas espalhadas pelo seu perímetro. Na maioria delas, havia protestos colados nas janelas pela construção do novo aeroporto, que viria a desafogar o velho aeródromo da capital, já rodeado de prédios e sem a menor possibilidade de expandir seu território. Não adiantou nada, como se pode ver.

O avião em que embarquei

O aeroporto de Cumbica é gi-gan-tes-co. É um sem-fim de pistas, contendo um sem-número de aviões, a ponto de necessitar de transporte interno através de ônibus para dar mais fluxo aos passageiros.

Uma pequena parte das pistas

Preocupava-me a minha proverbial paura diante da altura. Meu medo essencialmente não era de um acidente, mas do puro cagaço mesmo. Sei lá… palpitações, ânsia, um vergonhoso desfalecimento, essas coisas. Mas o fato é que tudo foi tranquilo, mesmo com o trechinho de turbulência que pegamos. A coisa parece tão irreal vendo aquelas casinhas que ficam cada vez menores que entendo haver uma mudança de parâmetro mental, e a sensação se torna muito diferente do que acontece na borda de uma laje.

É bem verdade que assistir vídeos do canal Aviões e Músicas, que mencionei neste texto, ajudaram-me a compreender melhor a dinâmica aeronáutica e me tranquilizar quanto a chacoalhos e cheiros, mas o fato é que o medo é desconfortável e incomoda um tanto. Mais que isso… acompanha-nos do raiar ao pôr do sol, metáforas do nascimento e da morte. Pensar nessas coisas dá uma certa crise existencialista, e quem juntou as duas coisas foi Martin Heidegger.

Heidegger é muito complicado, então eu vou tentar explicar beeeeeeem cuidadosamente o que ele quer dizer. Ele é cheio de termos próprios, o que às vezes mais confunde do que ajuda, mas vamos tentar compreendê-lo.

A pergunta sobre o Ser é muito antiga e difícil de definir, até mesmo pela pouca importância que damos a ela em nosso quotidiano. Entretanto, há momentos em que paramos para pensar e nos questionamos de certos porquês. Um dos possíveis é perguntar porque algo existe, e não o Nada, ou, em outras palavras, o que é esse algo que existe? Heidegger dizia muito sobre a dificuldade de se encontrar o Ser das coisas, e sobre isso eu já falei neste post. Mas o que é o Ser do próprio homem? Havia a mesma dificuldade ôntica/ontológica aqui também, porque conhecemos os entes, que são "aplicações práticas" do Ser, e não o Ser em si. Conhecemos cada homem pelo que ele é, e não pelo que ele tem de comum com o restante da humanidade. Pensemos assim: olhamos uma pessoa andando na rua e contemplamos a sua individualidade, e não a sua essência. Ela pode ser bonita, magra, puxar de uma perna, mascar chiclete e usar roupas descoladas, e é esse ente que enxergamos. Não vemos seu Ser.

As coisas pioram quando olhamos para as velhas explicações sobre a Metafísica. A essência do homem é colocada do lado de fora, como se pudesse se destacar do mesmo. Isso funciona muito bem quando pensamos nos dualismos, do tipo corpo-alma, corpo-mente, res cogitans-res extensa. Acontece que há um ponto fundamental que esses filósofos não levavam em consideração: nada disso tem nenhum valor se essa essência não é concretizada. Em outras palavras, a essência de um ser humano não é nada se ele não existir. A existência é a essência.

Tudo isso soa a Existencialismo, e, embora não fosse intenção direta de Heidegger, esse modelo de pensamento acabou mesmo dando origem ao movimento inaugurado, aí sim, por Sartre. A Metafísica do ser humano, pelo que nos diz Heidegger, vem de sua presença no mundo, de sua interação com as coisas e com os demais seres, e ele deu nome de Da-sein para esse fenômeno, ser-aí. Aí onde? No mundo, sempre em relação com um contexto e uma situação.

O homem não é mera presença, como qualquer outro objeto. Um abajur, uma caneca e mesmo um avião estão cagando se estão servindo ao seu propósito. Essas sim são simples presenças, mas o da-sein não é assim: é para ele que todas as demais coisas estão presentes.

É por isso que o da-sein aplica-se unicamente ao ser humano. Ele tem consciência de si e pergunta sobre si mesmo. Segundo Heidegger, o da-sein é o Ser que se pergunta sobre o Ser. Uma codorna não faz isso, porque se preocupa só com sua sobrevivência. Uma planta, nem isso. Um ser inanimado, menos ainda. Se há pergunta sobre o sentido da vida, essa só é feita pelo próprio homem.

O da-sein, é, portanto, uma concretização do Ser que se pergunta pelo Ser, o próprio homem, cuja principal característica é a sua existência no mundo. Sendo assim, o ser humano enquanto ente, ou seja, cada um de nós individualmente, é uma das infinitas possibilidades de existência. O homem é, portanto e fundantemente, escolha. Guardem bem essa informação.

Pois bem. Sendo o da-sein uma concreção, existente, palpável, não é possível que se pense nele isoladamente. O homem, quando nasce, vem a um ambiente por onde ele fará transcorrer sua existência, que, no caso, é o mundo. Isso tem um significado muito direto: nós nunca nos apartamos do mundo, estamos eternamente (enquanto dure) em uma situação, porque a história é escrita em situações e não vivemos fora da história, como se fôssemos almas eternas. Ela pode ser favorável ou não, agradável ou não, duradoura ou não, mas estamos sempre enfiados em alguma situação, ainda que não queiramos. E isso é eterno porque se trata de um continuum - quando termina uma situação, já começa outra. Isso tudo é óbvio, mas nos dá o corolário de que sempre teremos que nos colocar em relação, ora com o ambiente, ora com os outros homens, ora com ambos. O da-sein não é um ponto isolado, repito, mas um Ser que se relaciona. Portanto, ele também é um ser-no-mundo (in der welt sein) e um ser-com-os-outros (mit-sein), porque não existe um sujeito sem mundo e nem um sujeito único, solipsista, cujas sensações são a única realidade existente.

Temos, portanto, o ser humano se relacionando com o seu ambiente (ser-no-mundo), com os demais homens (ser-com-os-outros) e consigo mesmo (da-sein). Mas existe ainda uma outra dimensão que, no final das contas, vai contribuir com a autenticidade da existência que lhe é peculiar. Heidegger pensa que os homens são livres para fazer suas escolhas, e, por conta disso, se veem de frente a um mar de possibilidades. É evidente que a quantidade de escolhas que cada ser humano pode fazer possui limites, e, com isso, a existência nada mais é do que projeção. É muito fácil de pensar nisso quando imaginamos o que seria nossa carreira profissional, por exemplo. Se opto por lecionar Filosofia, atiro-me nos estudos das diferentes teorias e das técnicas didáticas, eventualmente acrescendo um perfil de pesquisa para enriquecer meus conhecimentos. Fazendo isso, dificilmente conseguirei concomitantemente virar piloto de aviação comercial. Entretanto, e esse é um grande problema para Heidegger, ainda que nossas possibilidades de escolha fossem ainda maiores, há uma projeção que quase ninguém faz e que é o máximo horizonte de todas as possibilidades de nossas escolhas, que é a morte. Para além dela, cessa tudo, incluindo nossa metafísica, ao contrário do que pensaria a filosofia e as religiões de até então. O dasein se complementa e se finda com o ser-para-a-morte.

É aqui que começamos a chegar onde eu queria. O ser-para-a-morte não é terceirizável: ninguém pode morrer pelos outros. Isso acontece porque o da-sein é vivido em cada uma das individualidades, e que não é experienciável, pelo simples fato de que, sendo a existência a verdadeira essência, seu término encerra o da-sein. No ser-aí, a morte finda o "aí", representativo do nosso ponto de relações, e se não as temos mais, nossa vida vai junto, perde seu objeto e encerra nossa existência e essência. Como nós não podemos experienciar a própria morte, tendemos a fazê-lo pela morte dos outros, que acaba por se banalizar e perder seu significado, tirando boa parte da importância e magnitude que tem o ser-para-a-morte, ou a noção de finitude, para todos nós. Mas ainda assim, sabendo-nos seres-para-a-morte, reconhecemos o horizonte final.

Temos aí a raiz do medo. O medo sempre é a reação a uma ameaça à nossa permanência. Ocorre que a morte é uma possibilidade como as outras, cuja diferença é ser própria, incondicionada e insuperável. Ela é própria porque somente o homem tem a perspectiva da morte, e todos os demais seres, apesar de conviverem com ela, não tem consciência disso, e que, mesmo ainda sendo existência, coloca o fim à existência. É incondicionada porque, como eu já disse, a morte pertence ao indivíduo e não pode ser vivida por procuração, devendo cada um viver sua própria experiência, e é insuperável porque ela põe fim ao da-sein. Vivemos para a morte, e isso consiste em nossa existência autêntica.

A diferença entre ter medo e ter angústia está justamente na aceitação da finitude. O próprio medo já é, antes do próprio fato, ter medo da angústia. A angústia é o prenúncio do aniquilamento, e não necessita de nenhum objeto. Por isso, quando temos medo de alguma coisa, temos medo extensivamente de encarar a angústia da morte. Só que é justo essa angústia que Heidegger diz ser o elemento de autenticidade da vida, porque a aceitação da finitude é indissociável da vida completa. A existência banal exclui o encarar da morte, que somente se dá pela angústia.

É por isso que ter medo de avião é uma bobagem. Diante de tantas as possibilidades na vida, uma delas embutirá necessariamente o ser-para-a-morte, e a angústia é válida como expectativa, e não como paralisação. Se o fim não chega pelo avião, chega pela doença, pelo assassinato, pela velhice... Sentir angústia pelo fim que se aproxima não é sinal de fraqueza, nem nada que exclua nossa normalidade, pelo simples fato de que ela não deslegitima a vida. Portanto, o medo é uma coisa feita para ser superada, especialmente aquele que é tão antirracional com relação a um uso tão seguro. Talvez de hoje em diante eu tenha medo só dos preços das passagens. Bons ventos a todos!!!

Recomendações:

Como eu já mencionei a principal obra de Heidegger por aqui, cito outro livro, um pouco mais amigável e que trata do mesmo tema:

HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.


E, se você quiser viver a experiência com os seus filhos, há um bom terraço no Aeroporto para ver as naves comendo um bom saquinho de pipoca.

Aeroporto Internacional de Guarulhos
Rodovia Hélio Schmidt, sem nº
Cumbica
Guarulhos/SP


* Finame é uma sigla que significa algo com Financiamento de Máquinas e Equipamentos, um programa público federal que existe desde os anos 1960, para promover a aquisição de insumos fabris.